Dos sons do silêncio à indeterminação metódica.

July 24, 2017 | Autor: Ana Cancela | Categoria: John Cage, Indeterminacy, Indeterminism
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Dos sons do silêncio à indeterminação metódica

Two monks came to a stream One was Indian, the other Zen The Indian began to cross the stream The Japanese became excited and called to him to come back, “What’s the matter,” The Indian said. The Zen monk said “that’s not the way to cross the stream. Follow me.” He led him to a place where the water was shallow and they waded across. John Cage, in “A Year from Monday” O n e w a

John Cage nasceu em Los Angeles, as 5 de Setembro de 1912 e morreu a 12 de Agosto de 1992. Durante os anos 30, conheceu Henry Cowell e Adolf Weiss H

com quem passa a estudar em Nova York. Sob a influência destes, regressa à i

Califórnia, a fim de estudar com Arnold Schoenberg. n d foi-se esbatendo à medida que se No entanto, a admiração que nutria por Schoenberg u iniciava no sistema dodecafónico. Para este, a organização harmónica constituía o ,

único meio possível pelo qual se chegaria a uma estrutura musical. Embora se note a influência deste conceito desde o inicio da sua carreira, Cage entendia a estrutura mais t h como uma organização do tempo do que da harmonia. Este conceito de estrutura que e mais tarde apelidaria de estrutura rítmica, expressa a vontade de incluir na obra

musical todo o universo de ruídos.

o

Nos primeiros anos da sua carreira é notória a influência de Henry Cowell, t h A redefinição dos conceitos som tendo este sido determinante para a sua evolução. e

musical e ruído e a procura de um método composicional próprio, constitui a sua r

principal preocupação durante as décadas de 30 e 40. Durante este período é através Z e Dos sonsndo silêncio à indeterminação metódica

.

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dos instrumentos de percussão que Cage encontra o meio mais adequado para concretizar o seu ideal: A música para percussão é uma transição contemporânea da influência da música para teclado para o total sonoro do futuro. Qualquer som é aceitável para o compositor de música para percussão. Percussion music is a contemporary transition from keyboard-influenced music to the all-sound music of the future. Any sound is acceptable to the composer of the percussion 1

music.

O processo composicional das primeiras obras para percussão era baseado na elaboração de um sistema complexo de estruturas rítmicas alicerçadas na simetria e nas relações de proporções entre grupos de frases e secções mais longas. First Construction in metal (1939) é a primeira obra onde este conceito aparece claramente expresso. Toda a sua obra musical composta posteriormente até 1956 assenta neste processo. Para Cage, o emprego da estrutura rítmica seria o único método possível a utilizar na música para percussão devido à própria natureza dos sons extraídos – indefinidos quanto à altura, é a duração a componente primordial do fenómeno sonoro . Até à década de 40, a maior parte da obra para percussão desatinava-se ao acompanhamento de coreografias. A invenção do piano preparado surge a partir de um convite feito pela bailarina Silvia Fort a John Cage aquando a realização de uma peça para uma das suas coreografias: Bachanal. Bachanal

pretendia

recriar

o

espírito

da

dança

africana

e,

consequentemente, os instrumentos de percussão seriam os mais indicados para o efeito; no entanto, devido às pequenas dimensões da sala onde iria ser realizado o espectáculo, Cage ficou impossibilitado de escrever para percussão como desejava, só dispondo de um piano. Inspirado na peça para piano The Banshee de Cowell, (que em vez de utilizar o teclado, percutia e beliscava as cordas no interior do piano) decidiu transformar o timbre do instrumento inserindo vários objectos entre as cordas. Qualquer tipo de objecto poderia fazer parte da lista de preparação; pequenos pedaços 1

CAGE, John — The future of music: credo in, Silence, New York: Wesleyan University Press1999, p.5 Dos sons do silêncio à indeterminação metódica

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de borracha ou de pele alteravam a altura, o timbre e a afinação do piano , transformando-o numa pequena orquestra de percussão.

(ilustração 1: tabela de preparação) As Sonatas e Interlúdios para piano preparado, compostas entre 1946 e 48, são das obras mais significativas, entre aquelas em que é explorada esta extensão do timbre pianístico. Marcam o fim de um período e o início de uma nova fase na vida de John Cage . As obras para piano preparado contrastam com a produção inicial para percussão, na medida em que a procura de novos sons, através das preparações, lhe desenvolveu um sentido tímbrico mais apurado. A música para percussão articulava grandes blocos sonoros dentro de uma estrutura rítmica controladora, enquanto que na música para piano preparado é dado mais ênfase à melodia, que poderá aparecer sozinha ou com um simples acompanhamento. De certo modo a música para piano preparado mudou o seu estilo de composição, contribuindo para a evolução do Dos sons do silêncio à indeterminação metódica

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conceito de estrutura rítmica. Pela primeira vez em 1944, Cage faz referência à necessidade de distinguir o conceito de estrutura do conceito forma; constituindo a forma o conteúdo musical que é articulado dentro da estrutura. Compara-se assim a estrutura a uma lei que controla uma liberdade de linguagem musical - a forma; constituindo esta dualidade uma das premissas que está na base da criação da maior parte da obra musical da década de 50. Depois das experiências realizadas com o piano preparado, Cage fundamenta o seu estilo em toda uma série de ideias filosóficas, que abrangem desde o Budismo Zen às teorias de Meister Eckhart, passando pela obra de Ananda Coomaraswamy. Fortemente influenciado pelo filósofo japonês Teitaro Suzuki, transporta para

a

sua

composição

os

princípios

de

desobstrução

(unimpededness)

/interpenetração do Budismo Zen. Estes dois princípios que, à partida, parecem opostos, em vez disso complementam-se. Segundo Teitaro Suzuki, o princípio de desobstrução diz respeito à importância de cada ser como uma individualidade, e o princípio de interpenetração refere-se à universalidade, ou seja, à integração de cada indivíduo no universo, capaz de ser influenciado e de influenciar qualquer outro ser existente na natureza, sendo, simultaneamente, uma individualidade e o centro de uma universalidade. A realidade, em vez de ser constituída por conceitos contraditórios, integra um universo de inter-relações, sem divisões ou distinções. A disciplina essencial do Zen consiste no esvaziamento do eu de todo o seu conteúdo psicológico, libertando-o da moral, da filosofia e até do espírito que o constitui, de cada vez que parte para uma tomada de consciência. Esta ideia fundamental refere-se à negação do ego que proporciona a aceitação de toda uma informação sensorial sem passar previamente por um julgamento que a condene ou aprove. Pretendendo comprovar através da sua obra musical, o ideal da filosofia budista de negação e consequente esvaziamento do ego como um caminho possível de tornar a realidade perceptível, Cage envereda gradualmente para o abandono da intenção composicional a partir de 1951. Se, nas suas primeiras obras para percussão, a fundamental preocupação era a de estabelecer uma estrutura rítmica rígida e inalterável que controlasse todo o processo composicional, gradualmente este Dos sons do silêncio à indeterminação metódica

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elemento perde importância, até que por fim se extingue. Aparece assim subjacente à formulação da ideia de estrutura rítmica, a busca do esvaziar do espírito e da sua libertação de todos os entraves do eu psicológico. Cage tende para uma visão da estrutura rítmica, existente por si só, partindo de uma ignorância do material para abarcar um vasto universo de sons e inclusive o silêncio. Tal implica a independência da estrutura em relação ao conteúdo, sendo a ligação entre acontecimentos musicais e pontos temporais importantes feita mais por coincidência (“luminosa” segundo Cage) do que propriamente por uma prévia intenção. Devido à exploração desta ideia de estrutura vazia, capaz de abarcar toda uma infinidade de sons, sem a manipulação do compositor, Cage concebe a sua composição, baseando-se na alternância intenção/não intenção. Na sua obra musical, o jogo entre conceitos opostos torna-se uma constante, a necessidade de recorrer a métodos bastante determinados para gerar a aleatoriedade do processo criativo, faz com que os pares determinação/indeterminação e liberdade/regra estejam sempre presentes a partir de 1951. Neste contexto, as noções de som e de silêncio deixam também de ter o mesmo significado. Ao entrar no campo da indeterminação, a articulação do som e do silêncio não vai ser feita da mesma maneira. Se até aqui, o silêncio representava um espaço de tempo vazio entre dois sons, o silêncio vai ser tratado como um elemento musical de pleno direito, passando a fazer parte do grupo dos materiais, até que por fim, o significado do termo altera-se radicalmente, passando a englobar todos os sons ambientais, ou seja, todos os sons que não fazem parte da intenção do compositor — em suma, sons não intencionais.

É nesta linha de pensamento que Cage desenvolve o seu método composicional, a partir de 1951, pretendendo percepcionar a verdadeira natureza do som, sem recorrer a uma prévia construção intelectual, feita de gostos ou opiniões. Neste contexto compunha Music of changes, em 1951, através dos resultados obtidos da consulta do livro de adivinhação chinês I Ching ou Livro das mutações. Cage recorre assim ao I Ching para aceitar a livre continuidade dos materiais, sem sofrer as influências da tradição histórica. 0 I Ching é assim entendido como um meio libertador do ego, necessário durante o processo de composição. A escolha dos diversos materiais da obra musical, já não depende de uma Dos sons do silêncio à indeterminação metódica

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intenção prévia, mas de um método que é alheio à vontade do compositor. A ideia de aceitação de todos os sons aplica-se neste caso, através do método do I Ching, já que, segundo Cage, o conhecimento musical prejudica o acto criativo, devendo, qualquer som ser entendido imediatamente após a sua audição, despido de qualquer possibilidade de o transformarmos em qualquer outra coisa, simbólica ou abstracta. Como consequência da relação estabelecida

entre os princípios da

filosofia japonesa e a composição, os sons são a individualidade que se inter-relaciona num espaço musical. A composição, enquanto processo destinado a alternar sons e silêncios, não era compatível com as teorias Zen de negação dos opostos. 0 silêncio era um conceito visto por Cage, como uma oposição ao som. Só a partir de 1951, quando, em Harvard, entrou numa câmara anecóica (um espaço fechado sem som reflectido) se deu conta que existiam dois sons que o acompanhariam durante o resto da vida: um agudo, o sistema nervoso, e outro mais grave — a circulação sanguínea. Nos seus escritos, o compositor relata frequentemente a história desta experiência, sendo talvez o relato mais completo aquele que se encontra em A Year From Monday, no conjunto de historias dedicadas ao tema do indeterminismo e que se intitulam, How to Pass and Kick and Fall and Run: It was after I got to Boston that I went the anechoic chamber at Harvard University. Anybody who knows me knows this story. I am constantly telling it. Anyway, in that silent room, I heard two sounds, one high and low. Afterward I asked the engineer in charge why, if the room was so silent, I had heard two sounds. He said, "Describe them." I did. He said, "The high on was your nervous system in operation. The low one was your blood in circulation".2

A conclusão que Cage tira desta experiência é a de que não se pode estabelecer diferença entre silêncio e som, visto que o silêncio, enquanto ausência de som, não existe. 0 silêncio, na sua nova concepção, abarca todo um conjunto de sons não-intencionais, existindo exteriormente à sua vontade, que se distinguem dos sons produzidos segundo a intenção do compositor — sons intencionais. A sua música integra uma nova oposição: intenção versus não-intenção. Conforme relata na introdução de I -VI, esta experiência mudou o rumo do seu pensamento, 2

CAGE, John — "How to pass and kick and fall and run" in A year from Monday: new lectures and writings. New York: Wesleyan University Pres1967, p. 134 Dos sons do silêncio à indeterminação metódica

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direccionando-o definitivamente para a composição não - intencional. A experiencia da câmara anecóica, aliada aos princípios Zen de desobstrução/interpenetração, levam-no a abandonar o conceito de estrutura como controlo do processo de composição, deixando de fazer sentido a ideia de forma enquanto criadora de continuidade, já que perante um espaço de infinitas possibilidades há que explorar um vasto universo de sons que criam a própria continuidade. Após essa experiência fulcral, compunha em 1952 a peça mais polémica do todo o seu acervo - 4'33’'. A primeira audição ocorreu no mesmo ano, em Woodstock, pelo pianista David Tudor. A peça consiste em 4'33" de silêncio nos quais o intérprete nada toca, dividindo-se em três andamentos, mensuráveis também em minutos : 1° andamento - 30", 2° andamento - 2'23", 3° andamento - 1'40". 4'33’' representa a confirmação das suas teorias - totalmente silenciosa, esta peça é constituída pelos sons ambientais que surgem pelo acaso. Ao idealizar uma peça silenciosa, o seu principal intuito seria demonstrar que o silêncio não existe, passando o termo a referir-se a todos os sons que ocorrem no Universo, e que não dependem da vontade do compositor no momento em que este inicia o processo de composição. Para alem da experiência da câmara anecoica, outra vivência, desta feita de natureza mais directamente artística, despoletara a execução do ousado projecto: a exposição das White paintings de Rauschenberg. Segundo Cage, a ideia de Rauschenberg, ao elaborar uma exposição onde uma das obras era constituída por três painéis de tela branca sem mais conteúdo, impulsionou-o a concretizar o seu antigo desejo de compor uma peça completamente silenciosa. Segundo ele, são duas abordagens diferentes da mesma questão. Os sons ambientais de 4'33" relacionam-se com as partículas de pó, as sombras e as mudanças de luz que as White paintings exibem, ou seja tudo o que está ao alcance do olhar, para lá do que é representado pelo pintor na tela. A ideia de esvaziamento atinge em 4'33" o seu máximo expoente. A estrutura da peça refere-se à divisão em andamentos (cujo numero e durações foram atribuídas através do I Ching) podendo abarcar um universo vastíssimo de sons ambientais. A forma como elemento fundamental do processo de composição deixa de ter razão para existir. Anteriormente, a forma relacionava-se como o conteúdo expressivo da obra musical; em 4’33" o conteúdo não é provocado pela intenção mas Dos sons do silêncio à indeterminação metódica

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sim pelo acaso, deixando a forma de depender do compositor no momento da elaboração da obra. Os sons de 4'33", não tendo origem na intenção do compositor, existem na natureza e na vida quotidiana, livres para serem ouvidos e participarem na obra de arte. A natureza e a vida, segundo este ponto de vista, constituem a própria obra de arte. A ideia de desobstrução remete também para 4'33"; os sons que até aqui eram considerados ruído são, no seio da obra musical, ao mesmo tempo individualidades e centros de várias universalidades. Como conta Cage numa das histórias publicadas posteriormente em A year from Monday.

One day when the windows were open, Christian Wolff played one of his pieces at the piano. Sounds of traffic, boat horns, were heard not only during the silences in the music, but, being louder, were more easily heard than the piano sounds themselves. Afterward, someone asked Christian Wolff to play the piece again with the windows closed. Christian Wolff said he'd be glad to, but that it wasn't really necessary, since the sounds of the environment were in no sense an interruption of those of the music.3

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CAGE, John — "How to pass and kick and fall and run" in A year from Monday: new lectures and writings. New York: Wesleyan University Pres1967,, p.133

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Ilustração 2 Programa da primeira audição de 4'33"

A experiencia da câmara anecóica e a realização de 4'33'’ condicionaram a composição de Cage que, no final da década de cinquenta, enveredará pelo indeterminismo absoluto como consequência desta nova noção de silêncio. Esta terá consequências duradouras na estética e na pratica artística de John Cage. Efectivamente

a

partir

de

1958,

o

compositor

envereda

pelo

indeterminismo, na verdadeira acepção da palavra; em obras anteriores, como The ten thousand things (1953-56) ou o ciclo de 84 peças, Music for piano 1 (1952-56)

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as unidades estruturais poderiam ser ordenadas pelo interprete no momento da execução, lembrando o conceito a realidade da obra aberta. O indeterminismo por seu lado refere-se ao discurso musical propriamente dito, o que implica uma notação e um processo composicional específicos para cada obra. O período que se segue a 1958, caracteriza-se pela procura de meios que fomentem a liberdade e a flexibilidade das obras, deixando de produzir objectos determinados, para retirar à partitura a obrigatoriedade de possuir uma única forma de execução, enveredando desta maneira por um processo de composição que promove a indeterminação. Duas grandes obras marcam este período: o Concerto para piano e orquestra (1957) e Fontana mix (1958), nas quais Cage leva o indeterminismo até às suas ultimas consequências. O Concerto para piano e orquestra é das obras indeterminadas de maior relevância na obra musical de Cage. O ruído do público criado pelo escândalo da primeira audição foi aproveitado na realização do primeiro registo sonoro da obra. A reprovação da audiência ficou registada na gravação, o que não foi de modo nenhum em vão, visto que reflecte a ideia de que todos os ruídos que são externos à composição actuam na execução da obra. Sendo o Concerto uma obra que não está dependente unicamente da vontade do compositor, tornando-se assim indeterminada, a inclusão de sons alheios aos dos produzidos pelos músicos confirma a ideia de Cage que o silêncio representa todo um conjunto de sons que fazem parte do quotidiano e que nos são alheios. No Concerto cada músico actua como um solista, tendo cada instrumento partes independentes que não se relacionam. Nesta obra, é bem visível a exploração de vários tipos de notação indeterminada, assim como a possibilidade de esta estar sujeita a diferentes desenvolvimentos e aplicações. 0 Concerto é constituído por um solo de piano e soli independentes de três violinos, duas violas, violoncelo, contrabaixo, flauta, clarinete, fagote, trompete, trombone e tuba. 0 maestro, por sua vez, é detentor de uma parte individual, sendo o seu papel semelhante ao de um relógio que controla o tempo de execução da obra, movimentando os braços como ponteiros (Aliás, aquando da estreia este papel foi atribuído a Merce Cunningham). A fusão sonora não é um objectivo, e para obter uma separação, tanto audível como visível, os músicos são separados no espaço, tornando impossível a realização da obra numa sala de concerto tradicional. Dos sons do silêncio à indeterminação metódica

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Para a notação das partes instrumentais, Cage utilizou o método da observação de imperfeições do papel que já tinha aplicado numa obra anterior - Music for piano. Este método consistia na substituição da partitura tradicional por um gráfico que traduz os elementos musicais através do desenho de pontos no papel. Os pontos, no entanto, só ganhavam significado musical pela adição das respectivas claves. Este sistema é intencionalmente ambíguo para provocar a indeterminação durante o processo de interpretação. A diferença existente entre a notação de Music for piano e do Concerto seria a aplicação de diferentes tamanhos das notas para indicar a duração de cada uma delas; deste modo quanto maiores estas forem representadas mais longa será a sua duração, ficando a cargo do interprete a decisão final da atribuição das durações reais. Depois de determinar, em colaboração com os instrumentistas, os efeitos sonoros a realizar, recorreu ao I Ching para estabelecer a organização final da partitura. 0 solo do piano é constituído por sessenta e três paginas que podem ser executadas, parcial ou totalmente, em qualquer ordem escolhida pelo interprete. 0 processo de composição do piano solo foi baseado na continuada invenção de novas notações e de novos métodos de composição. Cage concebeu oitenta e quatro métodos de notação e composição que realizou numa ordem determinada através do I Ching. Estes oitenta e quatro métodos são identificáveis na partitura pela atribuição de letras: aos primeiros vinte e seis Cage atribui as letras de A a Z; continuando a enumeração com as sequencias AA a AZ, BA a BZ, e CA a CF. Esta profusão de novas notações faz com que a partitura seja uma colecção de gráficos muito diversificados, como se pode observar no excerto da partitura do piano solo (ver ilustração 5). 0 conjunto das sessenta e três páginas do solo de piano apresenta vários sistemas de notação, baseados em gráficos e desenhos de pontos que, intencionalmente, sugerem apenas uma vaga referência interpretativa, com o fim de sujeitar a obra à indeterminação.

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Ilustração 3 – Excerto do Concerto para piano e orquestra – piano solo Deste modo, a primeira fase de elaboração do sistema foi o desenho de pontos, inspirado pela observação das imperfeições do papel, aplicando-se-lhe posteriormente linhas curvas ou rectas que lhes atribuem um significado musical. A todos os esquemas, Cage adicionava um conjunto de explicações que permitia ao executante a sua interpretação. (ver ilustração 4).

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Ilustração 4 Excerto do Concerto para piano e orquestra – piano solo Outro dos muitos sistemas de notação utilizados refere-se simplesmente à omissão de informação relativa à produção do som (ver ilustração 5). Como se pode observar, só a dinâmica está escrita, sugerindo ao interprete que qualquer som pode ser utilizado.

Ilustração 5 Excerto do Concerto para piano e orquestra- piano solo

Algumas obras posteriores, como Solo for Voice (1958), Fontana Mix (1958) Variations I (1958) e II (1961) são descendentes do Concerto. Alguns destes sistemas de notação e métodos de composição foram utilizados na realização das referidas obras, cuja execução pode ser individual, ou em simultâneo com a do Concerto.

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Fontana Mix, escrita e realizada em 1958, em Milão, é claramente uma obra indeterminada. A composição do Concerto para piano e orquestra foi o ponto de partida para a invenção e exploração de novas notações. Após a realização desta obra, o trabalho de Cage enveredou por um caminho ainda mais radical, de tal maneira que, para Fontana Mix e para as obras posteriores a 1958, a partitura tradicional é substituída por aquilo a que Pritchett chama "ferramenta musical". Mais do que uma invenção de notações propositadamente ambíguas, um dos meios que transportam as suas obras para o indeterminismo é a criação de um novo processo de representação escrita de acontecimentos musicais — a grande novidade é a introdução no seu processo de composição, a capacidade de a partitura actuar como uma ferramenta de auxilio aos músicos no momento em que partem para a sua tradução em factos musicais e de, simultaneamente, estar aberta a possíveis transformações. Deste modo, uma partitura elaborada para uma obra específica poderia ser transformada na realização de outra, podendo cada uma delas ser executada individual ou simultaneamente. Este é o caso de Fontana Mix que derivou da notação CC do Concerto para piano e orquestra (Ver ilustração 6)

Ilustração 6 Excerto do Concerto para piano e orquestra - piano solo

Neste caso, como se pode observar na figura, quatro tipos de linhas curvas representam quatro variantes dos parâmetros do som (frequência, amplitude, timbre, duração). Em Fontana Mix, o compositor segue um método diferente:

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Parts to be prepared from the score for the production of any numbers of tracks of magnetic tape, or for any number of players, any kind and number of instruments. This a composition indeterminate of its performance. There are ten transparent sheets with points, 10 drawings having six differentiated curved lines, a graph (having 100 units horizontally, 20 vertically) and a straightline, the two last on transparent material. Place a sheet with points over a drawing with curves (in any position). Over these place the graph. Use the straight line to connect a point within the graph with one outside. Measurements horizontally on the top and bottom lines of the graph with respect to the straight line give a 'time bracket' (tim within which the event may take place). Measurements vertically on the graph with respect to the intersections of the curved lines and the straight line may specify actions to be made. Thus in case of tape music, the thickest curved line may give sound sources. (...) Intersections of the other lines may specify machines for the alteration of original material. Amplitude,frequency, overtone structure may be changed, loops and specific durations introduced.

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CAGE, John — “Notes on composition”, in John Cage: writer: Selected Texts, Kostelanetz ,(ed.) Cooper Square Press, 2000 p. 57 Dos sons do silêncio à indeterminação metódica

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Ilustração 7 – Fontana mix

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Inicialmente, Cage concebeu esta obra unicamente para fita magnética, advertindo no entanto que o material utilizado na sua elaboração poderia ser utilizado livremente em termos instrumentais, vocais ou até mesmo teatralmente, tornando Fontana Mix ainda mais indeterminada e flexível do que o Concerto para piano e orquestra. 0 primeiro passo levado a cabo na sua realização, foi a recolha do material sonoro a ser utilizado na fita. Esse material sonoro era constituído por sons extraídos da vida quotidiana da cidade italiana e pela voz da então senhoria de Cage, a Senhora Fontana. Após ter efectuado a selecção do material, recorreu ao uso de campos temporais ("time bracket"), períodos de tempo no interior dos quais o interprete (ou neste caso particular, o compositor) pode utilizar livremente sons pré - determinados. A distinção entre som e silêncio, nesta obra, é feita através deste artificio - o silêncio é representado espacialmente na partitura como um período de tempo vazio, mas auditivamente ele representa todo um conjunto de acções musicais que intencionalmente são alheias a vontade do compositor. A indeterminação da obra foi conseguida não só a partir da invenção de um novo sistema de notação, como também através da nova noção de silencio desenvolvida anteriormente. Da primeira transformação de Fontana Mix surgiu a Aria para voz (1959), que Cage compôs especialmente para Cathy Berberian. Às linhas curvas do gráfico inicial Cage adicionou dez cores que representam, cada uma delas, um estilo diferente de interpretação vocal. Aria pode ser executada simultaneamente com a versão inicial de Fontana Mix como também com algumas partes do Concerto para piano, ou então isoladamente. Sounds of Venice (1959), Water walk (1959) e Theatre piece (1960) são também produto de Fontana Mix. Cada uma destas obras pode ser vista como uma possível representação de Fontana Mix. Fontana Mix funciona como um método que pode ser aplicado a uma variedade de materiais, transformando a sua ideia inicial: do acto de composição como um processo. Passamos, a partir de 1958, a uma situação em que a execução musical constitui o próprio processo.

A obra musical de John Cage, a partir de 1958, reflecte as teorias desenvolvidas durante a década de 50. Para cada obra, o compositor desenvolve uma procura de métodos de composição e notação diferentes, sempre com o intuito de provocar a indeterminação no momento da execução. A consulta do I Ching vai ser Dos sons do silêncio à indeterminação metódica

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sempre uma constante. Mesmo quando não o aplica no processo de composição, utiliza-o para definir qual o método que irá aplicar na realização de qualquer obra. Darei como exemplos de aplicação de outros métodos as obras Cartridge Music (1960), Atlas Eclipticalis (1961-62), Score (40 Drawings by Thoreau) and 23 Parts (for any instrument and/or voices): Twelve Haiku followed by a Recording of the Dawn at Stony Point, New York, August 6, 1974 (1974), Chorales (1978), Ryoanji: Solos for Oboe, Flute, Contrabass, Voice, Trombone with Percussion or Orquestral Obbligato (1983-85), entre muitas outras. Em Cartridge Music, Cage baseou-se no sistema de notação de Fontana Mix em que a utilização de transparências sobre a partitura alteravam o modo de execução. 0 termo "cartridge" refere-se a utilização de "pick-ups" de gira-discos em que, em vez da habitual agulha, são introduzidos os mais variados objectos, acções essas realizadas independentemente da respectiva amplificação. A composição de Atlas Eclipticalis, reuniu a consulta do I Ching e o uso de papel transparente sobre as paginas de um mapa astral, onde a posição de cada estrela corresponde a posição de cada som. Esta operação repete-se, sempre diferentemente, para 86 partes instrumentais, podendo a obra ser realizada por qualquer numero e combinação de executantes. Score... utiliza a disposição espacial aleatória de desenhos de Henry David Thoreau numa grelha de segmentos verticais, agrupados numa estrutura temporal que espelha a estrutura silábica do género poético do haiku. Cage aplica igualmente técnicas de geração de indeterminismo a musica já existente, conferindo-lhe o mesmo estatuto de qualquer outro acontecimento sonoro. Um exemplo é Chorales em que o compositor sobrepõe uma pauta especialmente elaborada a notação de corais póstumos de Erik Satie, transformando-os assim em música microtonal. Ryoanjie ao mesmo tempo o nome dos jardins japoneses de Kyoto e o titulo de uma serie de obras que constituem um ciclo para vários instrumentos. Esta coincidência não existe por acaso. Os jardins de Kyoto são o lugar de acolhimento da meditação inerente ao Budismo Zen e a sua arquitectura está imbuída de um significado que simboliza os princípios que regem o Budismo. Os jardins são constituídos a partir de uma superfície de areia que é ornamentada por um conjunto de quinze pedras dispostas aleatoriamente. A ausência de vegetação é intencional, o que pressupõe um espaço despido de qualquer tipo de obstrução à meditação (o Dos sons do silêncio à indeterminação metódica

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esvaziamento do ego). A areia representa o espaço vazio, o nada, que é preenchido aleatoriamente por pedras que representam o princípio da desobstrução, e, simultaneamente, actua como uma universalidade. 0 cicio de Cage - Ryoanji, foi composto entre 1983-85 e representa outro dos muitos métodos que proporcionam o indeterminismo, como também mostra um desenvolvimento estético (baseado não só na filosofia Zen como na redefinição do conceito de silencio) que teve início na década de 50 e que perdurou ate ao final da vida do compositor. 0 material e o método escolhidos para a realização desta obra pretendiam traduzir musicalmente toda a filosofia que envolve os jardins de Kyoto. Paper was prepared that had two rectangular systems. Using two such sheets I made a garden of sounds, tracing parts of the perimeters of the same stones I had used for the drawings and etchings(.. .)for the accompaniment I turned my attention to racked sand. I made a percussion part having a single complex os unspecified sounds played in unison(...) A experiencia da câmara anecoica e a nova concepção de silencio que se lhe seguiu, mudaram o rumo da obra musical de Cage. Se no inicio da sua carreira musical, tudo apontava para uma obra que, tendo como base o conceito de estrutura rítmica, seria bastante determinada; a partir desta nova concepção de silêncio, o indeterminismo condicionará o caminho percorrido por Cage. Os sons (todo o tipo de sons) aparecem libertos de qualquer contingência, sendo o papel do músico o de criar métodos e situações que anulem qualquer tentação discursiva que limite tal liberdade.

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Bibliografia: CAGE, John — The future of music: credo in, Silence, New York: Wesleyan University Press1999 CAGE, John — “Notes on composition”, in John Cage: writer: Selected Texts, Kostelanetz ,(ed.) Cooper Square Press, 2000 CAGE, John — "How to pass and kick and fall and run" in A year from Monday: new lectures and writings. New York: Wesleyan University Pres1967 CAGE, John — "Introduction" in I-VI, New York: Wesleyan University Pres 1997 CAGE, John — Silence, New York: Wesleyan University Press1999 PRITCHETT, James — The music of John Cage. New York: Cambridge University Pres 1995

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