Dos Tipos Fundamentais de Dívida (Schuld) para uma Genealogia da Moral: O papel da dívida na constituição da moralidade e da psique humanas.

May 22, 2017 | Autor: Vinícius Amaral | Categoria: Friedrich Nietzsche, má consciência em Nietzsche, Culpa, dívida moral
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Universidade Estadual de Campinas Instituto de Filosofia e Ciências Humanas

Vinícius Amaral Galvão de França Andrade

Dos Tipos Fundamentais de Dívida (Schuld) para uma Genealogia da Moral: O papel da dívida na constituição da moralidade e da psique humanas.

Campinas Dezembro de 2009 1

Vinícius Amaral Galvão de França Andrade

Dos Tipos Fundamentais de Dívida (Schuld) para uma Genealogia da Moral: O papel da dívida na constituição da moralidade e da psique humanas.

Monografia apresentada ao Departamento de Filosofia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas, sob orientação do Prof. Dr. Oswaldo Giacoia Junior.

BANCA: Prof. Dr. Oswaldo Giacoia Junior (orientador) Prof. Dr. Eli Vagner Francisco Rodrigues (membro) Rodrigo Cumpre Rabelo (membro)

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RESUMO O presente trabalho tem por objetivo analisar o(s) conceito(s) de dívida (Schuld) na filosofia de Friedrich Wilhelm Nietzsche (1844–1900), especialmente na segunda dissertação de sua Genealogia da Moral, com o fim de entender, no contexto dessa obra, a relevância filosófica da polissemia do termo ‘Schuld’ (que, em alemão, pode significar tanto “dívida” quanto “culpa”) e identificar quais são, para o filósofo, os tipos fundamentais de dívida, bem como seus desdobramentos na constituição da moralidade. Tem por finalidade entender o processo civilizatório humano pensado a partir das noções jurídicas de débito e crédito, visando desvendar o valor dos valores morais: como sua axiologia é estabelecida e qual sua relação com as categorias do direito. Por fim, o trabalho propõe um desenvolvimento dessas categorias no âmbito psicológico, do que se origina o sentimento de culpa (Schuldgefühl) como base do sentimento moral da dívida. Palavras-chave: dívida/culpa (Schuld), má consciência (schlechtes Gewissen), moral.

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LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS ABM - Além do Bem e do Mal. São Paulo: Ed. Schwarcz LTDA (Companhia das Letras), 2005; tradução, notas e posfácio de Paulo César de Souza. CdI - Crepúsculo dos Ídolos. São Paulo: Ed. Schwarcz LTDA (Companhia das Letras), 2006; tradução, notas e posfácio de Paulo César de Souza. GdM - Genealogia da Moral. São Paulo: Ed. Schwarcz LTDA (Companhia das Letras), 2004; tradução, notas e posfácio de Paulo César de Souza. HdH - Humano, demasiado Humano I. São Paulo: Ed. Schwarcz LTDA (Companhia das Letras), 2006; tradução, notas e posfácio de Paulo César de Souza.

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SUMÁRIO Página INTRODUÇÃO.......................................................................................................................6

CAPÍTULO 1 – Ethos 1.1 – Do Surgimento da Memória........................................................................................8 1.2 – Do Surgimento da Linguagem (e sua relação com a origem do Estado)......................13 1.3 – Dos Costumes (em Aurora e Humano, Demasiado Humano).........................................18 CAPÍTULO 2 – Jus 2.1 – Do Surgimento da Justiça........................................................................................21 2.2 – Da Justiça como Equivalência (a primeira figura da dívida, que se estabelece entre comunidades de estirpe)................................................................................................25

2.3 – Do Direito do mais fraco...........................................................................................27 2.4 – Da Lei e do Castigo (a segunda figura da dívida, que ocorre entre a comunidade e seus membros).................................................................................................28

2.5 – Da Dívida Religiosa (a terceira figura da dívida, que se estabelece entre a comunidade e seus ancestrais).....................................................................................31

CAPÍTULO 3 – Psyché 3.1 – Quando o Ancestral-Credor se torna Devedor........................................................33 3.2 – A Má Consciência Ativa (a interiorização do homem)..................................................36 3.3 – Criação e Transvaloração dos Valores....................................................................39 3.4 – Do Ressentimento......................................................................................................44 3.5 – O Ressentimento e a Má Consciência......................................................................49 3.6 – Da Moralização da Dívida (a quarta figura da dívida e seu entrelaçamento com a consciência moral – schlechtes Gewissen como fenômeno tipicamente moral)................54

CONSIDERAÇÕES FINAIS (A Vontade de Poder na formação da moral, do direito e da psique humanos)...............................................................................................56

REFERÊNCIAS ....................................................................................................................60 5

INTRODUÇÃO Em nossa pesquisa, pretendemos traçar um percurso genealógico acerca da moral, sobretudo, no que diz respeito a seu aspecto axiológico não-universal, apontando numa direção perspectivista o trajeto daquilo que coordena os atos humanos em seu convívio social, assentando sobre o assunto um olhar crítico, na medida em que este olhar propõe-se a mostrar que toda moral é construída, ou seja, é artificial e, como todo artifício, é capaz de ressignificação, reapropriação e reinterpretação. O nosso objetivo é mostrar, em linhas gerais, o que foi preciso para que o homem se humanizasse e, assim, chegar a como este animal pôde “psicologizar-se” e tornar-se não só um animal responsável, mas moralmente responsável. Para pensarmos isso, utilizaremos a obra Genealogia da Moral1, de Friedrich Nietzsche, mas outras obras serão usadas no intuito de que possam nos ajudar e esclarecer acerca dos temas do ethos, do direito, e da psyché humanos, sobretudo, no que tange a questão da dívida [Schuld]2(nosso objeto de pesquisa). Assim, pensaremos como a dívida jurídica pôde ganhar um estatuto moral e se tornar sentimento de culpa (Schuldgefühl). Em nossas considerações finais, tentaremos esboçar um breve comentário acerca de nossa monografia, aceitando o conceito de “vontade de poder” como hipótese interpretativa segundo a qual toda coisa possui uma história, uma série de atuação de forças sobre ela; e serão justamente essas forças atuantes, o assenhoramento e 1

NIETZSCHE, F. W. Genealogia da Moral. São Paulo: Ed. Schwarcz LTDA (Companhia das Letras), 2004; tradução, notas e posfácio de Paulo César de Souza. Doravante abreviado por GdM. Os números romanos serão usados nas citações para indicar a dissertação e os algarismos arábicos para indicar o parágrafo. 2 Que, lembramos, tem uma polissemia relevante no que concerne à nossa pesquisa, podendo significar tanto “dívida” como “culpa”.

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apoderamento que se instauram sobre a coisa, que comporão a história da mesma. Em nosso caso, trataremos da moral como esse objeto, na intenção de buscar as forças que deram forma à moral: quem a construiu? Quem é que são os protagonistas e coadjuvantes nessa história? Quais e como foram possíveis transformações em seu desenvolvimento? Na intenção de responder a tais questões, dividimos nosso texto em três eixos: Ethos – Tentativa de abordar a gênese da forma relacional humana – comportamentos, costumes, valores: como são gerados e por quem? Jus – Tentativa de entender a formação do direito a partir do prisma agônico das forças em disputa. O que determina e o que justifica um direito? Psyché – Uma forma de pensar a psicologia assentada e configurada a partir das noções debitórias instauradas pela noção de direito e pelos costumes valorados (a moral): como a dívida jurídica passou a ser interiorizada pela consciência (Gewissen) e a ganhar um estatuto moral, tornando-se sentimento de culpa?

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Capítulo 1 – Ethos 1.1 – DO SURGIMENTO DA MEMÓRIA Dado o parágrafo inicial da segunda dissertação da GdM – no qual é dito que a natureza se impôs um fim em relação ao homem: criar um animal ao qual seja lícito fazer promessas (versprechen dürfen)3 – e sua subseqüente afirmação de que o homem é um animal primordialmente esquecidiço, Nietzsche afirma que, portanto, a memória não era “natural” do ser humano, mas antes, teve de ser desenvolvida no homem. Criar um animal que pode fazer promessas – não é esta a tarefa (Aufgabe) paradoxal que a natureza se impôs, com relação ao homem? Não é este o verdadeiro problema (Problem) do homem? (...) Precisamente esse animal que necessita esquecer, no qual o esquecer é uma força, uma forma de saúde forte, desenvolveu em si uma faculdade oposta, uma memória, com cujo auxílio o esquecimento é suspenso em determinados casos – nos casos em que se deve prometer.4

Entendemos que esse paradoxo é afirmado pela necessidade do homem de reunir-se, de agremiar-se com seus semelhantes, em decorrência da qual o homem teve de desenvolver uma faculdade oposta àquela que lhe era imanente, i.e., teve de desenvolver uma memória, entendida esta como conditio sine qua non para a promessa (e para viver em comunidade, portanto). Isso ocorre porque, para Nietzsche – ao contrário do senso comum, que pensa o homem como um animal naturalmente capaz em relação à memória, e que entende o esquecimento como uma “falha” nesta, uma espécie de “memória gasta” –, o homem é primordialmente um ser esquecidiço, e, entendendo o esquecimento como uma força ativa inerente ao homem, este teve de desenvolver em si uma memória igualmente ativa. Daí Nietzsche considerar esta tarefa uma tarefa paradoxal, pois a natureza orienta o homem na direção contrária daquilo que já lhe é natural: esquecer. Esquecer (Vergesslichkeit) não é uma simples vis inertiae [força inercial], (...), mas uma força inibidora ativa, positiva no mais rigoroso sentido, graças à qual o que é por nós experimentado, vivenciado, em nós acolhido, não penetra mais em nossa consciência, no estado de digestão (ao qual poderíamos chamar “assimilação psíquica”5), do que todo o multiforme processo da nossa nutrição corporal ou “assimilação física”.6

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Cf. GdM. II, 1. GdM. II, 1. 5 Einverseelung. 4

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Nietzsche vê a consciência (Bewusstsein)7, aqui, como uma espécie de tabula rasa, onde as impressões são gravadas. Neste sentido, o esquecimento é visto como uma força ativa responsável pelo “metabolismo”8 e pela saúde dessa consciência, e é entendido aqui não como uma incapacidade de lembrar, mas como uma faculdade de esquecer, de digerir os acontecimentos processados e impressos na consciência, “para que haja lugar para o novo, sobretudo, para as funções e os funcionários mais nobres, para o reger, prever, predeterminar”9. Não obstante, sendo a promessa uma meta a ser alcançada pelo homem, ela exige para si, enquanto mecanismo de possibilidade do processo civilizatório, a lembrança da palavra empenhada para a sua efetivação, a qual possibilita o homem, enquanto ser esquecidiço, tornar-se previsível, calculável, constante e, sobretudo, confiável. Entretanto, apesar de necessária, não é condição suficiente para a promessa. A promessa obriga o homem a pensar temporalmente, pois obriga-o a responder no presente pela palavra do passado. E, por outro lado, no ato da promessa, obriga-o a abstrair um devir, algo que ainda não é. Portanto, a necessidade da promessa instaura um princípio de temporalidade: passado, presente e futuro passam a ser considerados e “sentidos” pelo homem. É esse princípio que possibilita o atracamento de fenômenos e a interpretação causal que os relaciona, criando uma noção de necessidade entre eles ou de casualidade. Assim o homem pode representar a si próprio como necessário, anexando sua promessa ao ato realizado, assegurando aos outros homens sua confiabilidade. Para poder dispor de tal modo do futuro, o quanto não precisou o homem aprender a distinguir o acontecimento casual do necessário, a pensar de maneira causal, a ver e antecipar a coisa distante como sendo presente, a estabelecer com segurança o fim e os meios para o fim, a calcular, contar, confiar – para isso, quanto não precisou antes tornar-se ele próprio confiável, constante, necessário, também para si, na sua própria representação, para poder enfim, como faz quem promete, responder por si como porvir!10

Brusotti considera que Nietzsche antepõe duas faculdades ativas, a saber, o esquecimento (Vergesslichkeit) e a memória da vontade (Gedächtnis des Willens).11 Assim, ele encara o “problema do homem” como sendo não a memória pura e simplesmente, mas, sobretudo, a

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GdM, II, 1.

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“Consciência psicológica” – ter consciência de algo. Não confundir com Gewissen, termo que designa “consciência moral”. 8 ‘Metabolismo’ aqui é entendido como uma mudança () do organismo em vista de seu bom funcionamento e desenvolvimento. 9 GdM. II, 1. Ao dizer “reger, prever, predeterminar”, Nietzsche já está introduzindo a ligação entre a memória e a relação causal possibilitada pelo seu bom funcionamento. Isso ficará mais claro ao longo do trabalho. 10

GdM. II, 1.

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Cf. BRUSOTTI, Marco. Die ‘Selbstverkleinerung des Menschen’ in der Moderne. in: Nietzsche-Studien 20, 1992. pg. 90.

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memória da vontade, pois a tarefa de criar um animal que pode fazer promessas, i.e., um animal responsável, exige para si, como condição necessária, precisamente este tipo de memória. 12 Quer dizer, não meramente a lembrança do passado, mas uma vontade de carregar consigo a palavra empenhada, projetada no futuro, até que se cumpra o prometido. É desta forma que o problema do homem é reconhecido como (sendo este um animal esquecidiço) uma necessidade de desenvolver em si tal força contrária, o que só pode ser feito de maneira dolorosa.13 Na dura tarefa de subsistir e resistir frente às hostilidades do mundo “de fora”, o homem teve de se reunir com outros de seus. Para isso, o homem devia tornar-se confiável e constante. Assim, o estágio mais recuado de “hominização” do bicho-homem coincide exatamente com o estágio mais recuado de desenvolvimento de sua memória e, conseqüentemente, com o surgimento da promessa. Ainda mais, a dureza e crueldade dos costumes de uma comunidade é padrão de medida para se pensar o quanto de memória já se desenvolveu nela. Quanto pior “de memória” a humanidade, tanto mais terrível o aspecto de seus costumes; em especial a dureza das leis penais nos dá uma medida do esforço que lhe custou vencer o esquecimento e manter presentes, nesses escravos momentâneos do afeto e da cobiça, algumas elementares exigências do convívio social.14

Destarte, a peculiaridade do bicho-homem frente às outras bestas seria não somente o fato de ter uma memória, mas o fato de ter tido que desenvolvê-la, justamente por ter, como devir, o homem – aquele que pode prometer. Sendo a promessa uma condição necessária para o desenvolvimento do bicho-homem em direção ao homem, apenas com ela poder-se-ia dar a ignição para o processo civilizatório humano. Com o desenvolvimento da memória e, por conseguinte, com a aparição da promessa, “são fixados os primeiros lineamentos do pensamento causal, abrindo-se a distinção entre fortuito e necessário, consolidando-se o vínculo entre uma determinação qualquer da vontade (um “eu quero, eu farei”) e a descarga efetiva dessa vontade numa ação”15. Pois também a promessa é um tipo de relação causal, já que pressupõe a implicação entre a palavra empenhada e a ação. Parece haver três tipos fundamentais de relação causal instaurados pela promessa: 1) “se digo, então faço” (memória da vontade); 2) “se quero x, terei de fazer y” ou “se quero cumprir a

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Cf. BRUSOTTI, op.cit., Pg. 91. “apenas o que não cessa de causar dor fica na memória (...). Jamais deixou de haver sangue, martírio e sacrifício, quando o homem sentiu a necessidade de criar em si uma memória” (GdM. II, 3). 13

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GdM. II, 3.

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GIACOIA, O. Sonhos e Pesadelos da razão esclarecida: Nietzsche e a Modernidade. Doravante abreviado por SPRE. Pg. 43.

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promessa, devo fazer x” (encontrar meios, calcular) e 3) “se descumpro o compromisso, sofro conseqüências” (esta, mais precisamente, criada a partir da noção de castigo).16 Nietzsche prossegue explicando a promessa como “não sendo um simples não-maispoder-livrar-se da impressão recebida, não a simples indigestão da palavra empenhada (...), mas sim um ativo não-mais-querer-livrar-se, um prosseguir-querendo o já querido, uma verdadeira memória da vontade”, de forma que, mesmo que um mundo de novas coisas ocorra entre o “quero”/“farei” e a efetivação da vontade, isso não “rompa esta larga cadeia do querer”17. Portanto, para que o homem tenha o direito de prometer, é preciso não apenas a lembrança da palavra empenhada, mas mais que isso: carregar consigo o desejo da efetivação da promessa até o cumprimento da mesma. Justamente para isso fora imprescindível a distinção entre casual e necessário: para “ver e antecipar a coisa distante como sendo presente”, e para “estabelecer com segurança o fim e os meios para o fim”, em suma, “calcular, contar, confiar”18. Desta forma, o grau mais elevado da memória encontra-se no ato da promessa, quando a memória não se constitui apenas como lembrança do proferido, mas, sobretudo, como uma genuína dilação temporal da vontade. Essa capacidade de conseguir “prosseguir-querendo o já querido”, mantendo com força a memória da vontade, é condição necessária para a licitude a fazer promessas. No entanto, não é suficiente: é preciso também que aquele que promete tenha poder para cumpri-la, i.e., disponha de todas as capacidades necessárias para o feito19 e que saiba disso, porque a responsabilidade deve existir no homem antes de fazer a promessa, e não depois, já que responsável é não aquele que somente cumpre a promessa, mas antes, aquele que, na hora em que promete, conhecendo seus limites, capacidades e, sobretudo, sua previsibilidade, sabe que irá cumprir. Daí provém a noção de responsabilidade (Verantwortlichkeit), a qual pressupõe “sócios” aos quais se responde (antwortet): o responsável tem que cumprir a promessa, que fez conscientemente.20

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Tais relações serão desenvolvidas ao longo do presente trabalho. GdM, II, 1. 18 GdM, II, 1.Aqui, Nietzsche parece já tratar da, como denominamos, segunda relação causal – a referente aos meios para se chegar aos fins queridos. 19 Pois prometer é uma questão de poder (Macht). Entender isso se faz necessário para pensarmos o surgimento do direito a partir das relações de força entre nobres ou comunidades de estirpe, bem como qualquer forma de direito. 20 Pois, como vimos, não é lícito à promessa aquele simplesmente capaz de cumpri-la, mas aquele que tem consciência de tal capacidade, visto que não se pode chamar responsável aquele que promete sem saber que irá cumprir. Este seria, antes, um inconseqüente. Como se vê mais à frente, é justamente esta consciência de si e este auto-domínio que torna o homem livre para prometer. “[o] indivíduo soberano (...), o homem da vontade própria, duradoura, e independente, o que pode fazer promessas 17

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O doloroso caminho da construção de uma memória foi traçado com a ajuda de uma incrível mnemotécnica, um mecanismo de fixar na alma, pela dor, como dissemos, a palavra empenhada. É preciso que haja uma regularização (Regelmässigkeit) do homem através da moralidade do costume. A tarefa de criar um animal capaz de fazer promessas21, já percebemos, traz consigo, como condição e preparação, a tarefa mais imediata de tornar o homem até certo ponto necessário, uniforme, igual entre iguais, constante, e portanto confiável. O imenso trabalho daquilo que denominei “moralidade do costume” (cf. Aurora § 9, 14, 16) – o autêntico trabalho do homem em si próprio, durante o período mais longo da sua existência, todo esse trabalho pré-histórico encontra nisto seu sentido, sua justificação, não obstante o que nele também haja de tirania, dureza, estupidez e idiotismo: com ajuda da moralidade do costume e da camisade-força social, o homem foi realmente tornado confiável.22

Aqui notamos a eticidade dos costumes23 manifestando-se como um instrumento de domesticação (Zähmenapparat) e de aprimoramento da memória. A origem da responsabilidade, em Nietzsche, está diretamente relacionada com a moralidade dos costumes, pois a essa moralidade coube criar as condições necessárias para o desenvolvimento da responsabilidade no homem. Requerendo, todavia, fazer dele, primeiramente, “o homem até certo ponto uniforme, igual entre iguais, regular e, por conseqüência, calculável” (GdM. I, §1), e nisso encontra-se a função dessa moralidade em que o homem, enquanto formando a si mesmo, fez-se confiável mediante a ação da comunidade sobre o indivíduo. Para Nietzsche, é o trabalho de moldagem da consciência que se efetiva. Ao seu caráter fugidio, definido pelo esquecimento, contrapõem-se uma consciência mediante a introdução da memória.24

Quer dizer que não há memória antes da eticidade dos costumes. Antes, é justamente em vista daquela que esta surge, constituindo uma mnemônica. Nietzsche, após citar alguns exemplos de castigos cruéis, diz que [c]om a ajuda de tais imagens e procedimentos, termina-se por reter na memória cinco ou seis “não-quero”, com relação aos quais se fez uma promessa, a fim de viver os benefícios da sociedade – e realmente! Com a ajuda dessa espécie de memória chegou-se finalmente “à razão”! – Ah, a razão, a seriedade, o domínio sobre os afetos, toda essa coisa sombria que se chama reflexão, todos esses privilégios e adereços do homem: como foi alto o seu preço! Quanto sangue e quanto horror há no fundo de todas as “coisas boas”!...25

(versprechen darf) – e nele encontramos, vibrante em cada músculo, uma orgulhosa consciência (Bewusstsein) do que foi finalmente alcançado e está nele encarnado, uma verdadeira consciência de poder e liberdade (ein eigentliches Macht- und Freiheits-Bewusstsein)” (GdM. II, 2). 21

O tradutor optou por traduzir “das versprechen darf” (que pode prometer) por “capaz de fazer promessas”. Entretanto, lembremos que o verbo “dürfen” refere-se a “poder fazer”, mas não no sentido de capacidade, de “ser apto a” (para o que seria mais apropriado o verbo “können”), e sim no sentido de “ser livre para”, “ser lícito a”. 22 GdM. II, 2. 23 O termo “Sittlichkeit der Sitte” é também traduzido por “moralidade dos costumes”. A eticidade dos costumes está também relacionada com a obediência aos antepassados. Neste caso, ela deve ser seguida em forma de pagamento, dos vivos aos antepassados, de acordo com a “força” que a comunidade desenvolveu até o momento, o que será explicado mais à frente. 24 AZEREDO, Vânia Dutra de. Nietzsche e a Dissolução da Moral. Pg. 113. 25 GdM. II, 3.

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1.2 – DO SURGIMENTO DA LINGUAGEM (e sua relação com a origem do Estado) Entendendo que os surgimentos da moralidade e do Estado participam da mesma natureza, isto é, nascem como coerção e imposição de valores, trataremos aqui de como isso se deu e por quê. Pois para o homem não bastava a proteção contra os perigos externos. O homem teve de criar mecanismos de defesa contra um inimigo mais próximo: si próprio. Todavia, não pensemos que esta finalidade específica constitui, para Nietzsche, a gênese do “Estado”26 (já que ele não pretende incorrer no mesmo erro dos genealogistas da moral que confundem gênese e finalidade27), mas constitui antes uma justificativa a posteriori da dominação. Apesar da realidade dessa necessidade, o que está inscrito no processo genético do Estado, segundo Nietzsche, é, sobretudo, a vontade de poder. Portanto, através do emprego da força e da violência, o homem forte (que viria a ser, posteriormente, o homem nobre) imprime uma forma a esta massa nômade informe. Ao que parece, é neste momento que surge uma imposição dos costumes – mais precisamente, os costumes do forte, não há dúvida – constituindo-se, digamos, uma proto-moralidade. Nietzsche pensará, então, a formação do Estado da seguinte forma: um grupo de homens, superiores em força física e capacidade organizativa, que imprimem numa massa nômade, informe, errante, uma forma que lhes convém. Como um mecanismo de contensão dos “instintos de liberdade” do homem errante, o “Estado”, graças a “terríveis bastiões” com que se protege desses instintos, faz com que os impulsos do homem selvagem se voltem contra o homem mesmo.28 Assim começa a se desenvolver, na história do homem, uma regularidade dos costumes (Regelmässigkeit der Sitte) imposta por esses “inconscientes artistas”, formadores do “Estado”.29 Interpretamos que isso surja no mesmo contexto do surgimento da linguagem, dada a leitura e interpretação da conjectura apresentada por Nietzsche no seguinte trecho de Gaia Ciência:

26 “Estado” aparece como um termo com significado específico, para Nietzsche. Trata-se aqui de formas incipientes de Estado que, na concepção do filósofo, eram constituídas por “um bando de bestas louras, uma raça de conquistadores, que, organizada guerreiramente e com força para organizar, sem hesitação lança suas garras terríveis sobre uma população talvez imensamente superior em número, mas ainda informe e nômade” (GdM. II, 17). 27 A este respeito, conferir GdM. II, 12. 28 Cf. GdM. II, 16. Em decorrência desse processo de retroversão dos instintos haverá, segundo Nietzsche, a interiorização do homem, o que possibilitará o surgimento da “alma” e da má consciência. 29 Cf. GdM. II, 17. Especialmente o trecho: “Sua obra consiste em instintivamente criar formas, imprimir formas, eles são os mais involuntários e inconscientes artistas – logo há algo novo onde eles aparecem, uma estrutura de domínio que vive(...)”.

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Para que, então, consciência, quando no essencial ela é supérflua? Bem, se querem dar ouvidos à minha resposta a essa pergunta e à sua conjectura talvez extravagante, parece-me que a sutileza e a força da consciência estão sempre relacionadas à capacidade de comunicação de uma pessoa (ou animal), e a capacidade de comunicação, por sua vez, à necessidade de comunicação (...). Parece-me que é assim no tocante a raças e correntes de gerações: onde a necessidade, a indigência, por muito tempo obrigou os homens a se comunicarem, a compreenderem uns aos outros de forma rápida e sutil, há enfim um excesso dessa virtude e arte da comunicação, como uma fortuna que gradualmente foi juntada e espera um herdeiro que prodigamente a esbanje (...). Supondo que esta observação seja correta, posso apresentar a conjectura de que a consciência desenvolveu-se apenas sob a pressão da necessidade de comunicação – de que desde o início foi necessária e útil apenas entre uma pessoa e outra (entre a que comanda e a que obedece, em especial), e também se desenvolveu apenas em proporção ao grau dessa utilidade. Consciência é, na realidade, apenas uma rede de ligação entre as pessoas (...). O fato de nossas ações, pensamentos, sentimentos, mesmo movimentos nos chegarem à consciência – ao menos parte deles –, é conseqüência de uma terrível obrigação que por longuíssimo tempo governou o ser humano: ele precisava, sendo o animal mais ameaçado, de ajuda, proteção, precisava de seus iguais, tinha de saber exprimir seu apuro e fazer-se compreensível – e para isso tudo necessitava antes de “consciência”, isto é, “saber” o que lhe faltava, “saber” como se sentia, “saber” o que pensava. Pois, dizendo-o mais uma vez: o ser humano, como toda criatura viva, pensa continuamente, mas não o sabe; o pensar que se torna consciente é apenas a parte menor, a mais superficial, a pior, digamos: - pois apenas esse pensar consciente ocorre em palavras, ou seja, em signos de comunicação, com o que se revela a origem da própria consciência. Em suma, o desenvolvimento da linguagem e o desenvolvimento da consciência (...) andam lado a lado. (...) O homem inventor de signos é, ao mesmo tempo, o homem cada vez mais consciente de si; apenas como animal social o homem aprendeu a tomar consciência de si – ele o faz ainda, ele o faz cada vez mais. – Meu pensamento, como se vê, é que a consciência não faz parte realmente da existência individual do ser humano, mas antes daquilo que nele é natureza comunitária e gregária.30

Nietzsche traça um discurso diferenciando pensamento de consciência (Bewusstsein). Para ele, do fluxo de pensamentos que ocorrem em nós, apenas a menor parte nos chega à consciência, e apenas na medida em que se faz necessário expressar esse pensamento por meio de signos, sendo estes meios de comunicação mediante os quais o ser humano se faz entendido. A linguagem, enquanto artifício simbólico por meio do qual se busca exprimir uma experiência ou necessidade e ser compreendido, é um recurso objetivo, e não subjetivo, pois traduz para signos comuns uma experiência única dando a ela um caráter superficial e genérico. Aqui reside sua limitação. É por sua natureza gregária que ele inventa códigos e “aprisiona” elementos dessa enxurrada de pensamentos e os transforma em símbolos lingüísticos, trazendo-os para a consciência. Por isso Nietzsche diz que “somente como animal social o homem aprendeu a tomar

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Gaia Ciência, 354.

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consciência de si mesmo”.31 A consciência é, necessariamente, desenvolvida comunitariamente – somente o que foi socialmente desenvolvido (os signos estabelecidos pela necessidade de comunicação) é que pode “traduzir” os pensamentos para uma linguagem. De modo provocativo e cínico, o que o texto pretende insinuar é que somente o que é “gemein” [comum, vulgar] ingressa na esfera da consciência. Porque a consciência se desenvolve em função, sob a perspectiva e a pressão dos juízos de valor da “Gemeinde”, ou da “Gemeinschaft”, substantivos sinônimos em alemão, significando comunidade social. Com isso, a genealogia nietzscheana traz à luz também a raiz do parentesco originário entre a consciência, a linguagem e a moral, isto é, as formas e hábitos de avaliação presentes nos usos e costumes, nas regras praxeológicas e nas formas de conduta, orientadas e legitimadas por valores e crenças socialmente partilhados. Esse é um dos principais sentidos do terminus nietzscheano ‘rebanho’, moral do ‘rebanho’, perspectiva do ‘rebanho’, que tem a função de ressaltar o ponto de vista e o modo dominante de valoração do senso comum, o igualitário e uniformizante; pois, em um rebanho, desconsideram-se principalmente as características singulares (...).32

A linguagem pode expressar algo, por meio de signos do rebanho, apenas na medida em que esse algo é compartilhável. Por não poder haver um signo para cada coisa no mundo, a linguagem, devendo ser prática, deve generalizar, i.e., colocar cada coisa em gêneros, grupos de coisas semelhantes. É apenas mediante esse processo lingüístico de generalização que é possível a comunicação, e isso sempre decorre da necessidade de se fazer entender tais e tais coisas. Com esse instrumento, o homem pôde avaliar, valorar hierarquicamente impulsos e atos humanos, de modo que “[t]ais avaliações e hierarquizações sempre constituem expressão das necessidades de uma comunidade, de um rebanho (...). Moralidade é o instinto de rebanho no indivíduo”.33 O que pretendemos apontar aqui são uma possível interpretação acerca da origem da linguagem e sua relação com o surgimento do Estado e da moralidade, fundados e formados, havendo uma necessidade de comunicação, pela violência física. (...) o direito senhorial de dar nomes vai tão longe, que nos permitiríamos conceber a própria origem da linguagem como expressão de poder dos senhores: eles dizem ‘isto é isto’, marcam cada coisa e acontecimento com um som, como que se apropriando assim das coisas.34

Quer dizer, na medida em que houve necessidade de agremiação, houve simultaneamente o aparecimento de um mecanismo comunicativo entre os homens. Como disse Nietzsche, especialmente entre quem manda e quem obedece. Ou seja, Nietzsche parece indicar que mesmo 31

Gaia Ciência, 354. GIACOIA, O. Nietzsche como Psicólogo. Pg. 41-42. 33 Gaia Ciência, 116. 34 GdM, I, 2. 32

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a linguagem surge como imposição, mais precisamente, imposição de valores. Ela é, desde o princípio, uma coerção e o fundamento, a base, para o surgimento de qualquer moralidade (pressupondo, claro, que deva haver uma linguagem para qualquer moral, na medida em que esta pressupõe valores e estes são estabelecidos via linguagem; isto é, não entendemos moral apenas como conjunto de costumes, mas como costumes valorados)35. Disto, podemos pensar a moralidade como o desenvolvimento subseqüente dessa imposição de valores. Ora, foram, de certo, “os bons mesmos, isto é, os nobres, poderosos, superiores em posição e pensamento, que sentiam e estabeleceram a si e a seus atos como bons, ou seja, de primeira ordem, em oposição a tudo que era baixo, de pensamento baixo, e vulgar e plebeu. Desse pathos da distância é que eles tomaram para si o direito de criar valores, cunhar nomes para os valores”. Esses homens, fortes o bastante para criar e impor valores, eles mesmos, que antes haviam feito a distinção entre homens e bichos,36 são capazes de mensurar atos e coisas e de buscar equivalências.37 Ao invés de relacionar a criação artística somente à sensibilidade (como freqüentemente se faz), Nietzsche a relaciona também (e, quiçá, sobretudo) com a brutalidade, a violência, e ao prazer subseqüente. Em última instância, relaciona-a com a crueldade, portanto. Assim, o homem bruto, fundador do Estado, era pensado como um inconsciente artista. Sua obra consistia em criar costumes, criar signos, criar valores. O homem nobre afasta de si os seres nos quais se exprime o contrário desses estados de elevação e orgulho: ele os despreza. (...) O homem de espécie nobre se sente como aquele que determina valores, ele não tem necessidade de ser abonado, ele julga: “o que me é prejudicial é prejudicial em si”, sabe-se como o único que empresta honra às coisas, que cria valores.38

Essa estrutura de domínio (Herrschafts-Gebilde), essa configuração de relações de forças, aparece onde há o emprego da vontade de poder externalizada fisicamente: eis o fundamento

35 Caso contrário, alguém poderia defender que uma abelha, por exemplo, na medida em que possui uma “linguagem” (entendida como um “conjunto de signos”) e um conjunto de “costumes”, está inscrita nesse processo, o que não é o caso. É preciso que haja algo além da comunicação e dos costumes para que algo seja dito moral. Este algo além é o valor (Wert), pressuposto necessário para o surgimento das relações creditícias que sempre permeiam o âmbito da moralidade. 36 Nietzsche propõe, inclusive, a etimologia de Mensch (homem, em alemão) pensada a partir de manas (consciência, em sânscrito), entendendo o homem como o “animal avaliador”. Cf. GdM. II, 8. 37 GdM. I, 2. A respeito dessa forma de valorar, mensurando coisas e buscando equivalências, Brusotti comenta que “Este primeiro pensamento valorativo configura – (...) – a ativa condição para a mnemotécnica e para a gênese da promessa. Compra e venda ainda não implicam, entretanto, em promessa em sua forma simplificada” e completa sugerindo a interpretação de que haveria dois tipos de pathos da distância, a saber, o que se estabelece entre os homens e outros animais, e o que separa os fortes dos fracos: “Junto a esse pensamento valorativo, e por ele, surge também a mais antiga e rudimentar forma do pathos da distância, à qual Nietzsche, aliás, queria reconduzir a origem da linguagem na primeira dissertação. É “o primeiro impulso do orgulho humano, de seu sentimento de primazia em relação a outros animais” (GdM. II, 8), ainda não em relação a outros homens, como na primeira dissertação, porque na “comunidade” primitiva ainda não havia estamentos (Stände)” (BRUSOTTI, op.cit., pg. 92.).

38

ABM. 260.

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original do Estado. A obra, a sociedade criada a marteladas, justifica a violência de quem a criou. O artista se vê, por fim, justificado em sua obra, como a mãe no filho.39 O tipo nobre, para Nietzsche, enquanto homem avaliador, criador de valores e de costumes, faz acordos, submete-se a direitos, mas isso não lhe tira a agressividade e a vontade modeladora, a força plástica e guerreira. Ao contrário, ao dizer que “uma estrutura de domínio que vive” nasce por onde quer que passem homens fortes, Nietzsche conserva a idéia de que, embora a avaliação de poder (própria e alheia) – e, dessa forma, o próprio pathos da distância, enquanto sentimento de primazia frente outros seres – faça com que os fortes pactuem e criem, assim, um novo “corpo” (por exemplo, o próprio Estado), o que os mantém como estrutura vivente é a apropriação e o assenhoramento de outros “corpos”. Abster-se de ofensa, violência, exploração mútua, equiparar sua vontade à do outro: num certo sentido tosco isso pode tornar-se um bom costume entre indivíduos, quando houver condições para isso (a saber, sua efetiva semelhança em quantidades de forças e medidas de valor, e o fato de pertencerem a um corpo). Mas tão logo se quisesse levar adiante esse princípio, tomando-o possivelmente como princípio básico da sociedade, ele prontamente se revelaria como aquilo que é: vontade de negação da vida, princípio de dissolução e decadência. (...) a vida mesma é essencialmente apropriação, ofensa, sujeição do que é estranho e mais fraco, opressão, dureza, imposição de formas próprias, incorporação e, no mínimo e mais comedido, exploração (...). Também esse corpo no qual, conforme supomos acima, os indivíduos se tratam como iguais – isso ocorre em toda aristocracia sã –, deve, se for um corpo vivo e não moribundo, fazer a outros corpos tudo o que seus indivíduos se abstêm de fazer uns aos outros: terá de ser a vontade de poder encarnada, quererá crescer, expandir-se, atrair para si, ganhar predomínio – não devido a uma moralidade ou imoralidade qualquer, mas porque vive, e vida é precisamente vontade de poder. (...) A “exploração” não é própria de uma sociedade corrompida, ou imperfeita e primitiva: faz parte da essência do que vive, como função orgânica básica, é uma conseqüência da própria vontade de poder, que é precisamente vontade de vida.40

Nietzsche desenvolve essa idéia de responsabilidade entre iguais, e irresponsabilidade (entendida como ausência de acordo, ou seja, o caso em que um não tem obrigação de responder ao outro) entre diferentes, em ABM. O que faz uma moral dos dominantes parecer mais estranha e penosa para o gosto atual (...) é o rigor do seu princípio básico de que apenas frente aos iguais existem deveres; de que frente aos seres de categoria inferior, a tudo estranho-alheio, pode-se agir ao bel-prazer ou “como quiser o coração”, e em todo caso “além do bem e do mal”(...). A capacidade e o dever da longa gratidão e da longa vingança – as duas somente com os iguais –, a finura na retribuição, o refinamento no conceito de amizade, uma certa necessidade de ter inimigos (como canais de escoamento, por assim dizer, para os afetos de inveja, agressividade, petulância – no fundo, para poder ser bem amigo): todas essas são características da moral nobre.41 39

Cf. GdM. II, 17. ABM. 259. 41 ABM. 260. 40

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Finalmente, a vontade de poder desses organizadores natos se transmuta para a forma de obrigação (Pflicht) e isso ocorre por duas vias: uma “horizontal”, e uma “vertical”. Estas obrigações manifestas verticalmente aparecem em forma de prescrição para um bom convívio e deverão ser seguidas e respeitadas. Caso contrário, o senhor, ou a comunidade, castigará o criminoso. Mas, na medida em que a parte de baixo da relação, os homens fracos, estabelece, a partir de uma força contrária, uma relação de disputa, surgem também direitos (que poderão ser incorporados à lei, como um pacto). A relação, embora ainda vertical, é estabelecida entre forças ativas. Isso ocorre devido ao fato de existirem forças conflitantes entre si: forças fracas e forças fortes. Quer dizer, ainda o pólo fraco da relação se apresenta como força, ainda que perca a disputa. Assim, começam i) a serem acordados pactos de direito que possibilitam o bom sistema de trocas entre fortes (sobretudo, entre comunidades de estirpe de poder aproximado), e ii) a serem estabelecidas leis (entre senhores e os que estão sob seu domínio) – Nesse último caso, o castigo se apresentará como mnemotécnica da lei.42 1.3 – DOS COSTUMES (em Aurora e Humano, Demasiado Humano)43 A instituição de uma linguagem preparou o terreno para o aparecimento dos costumes, quer dizer, atos que passam a ser repetidos (e obrigatoriamente repetidos) e, na medida em que são “comprovadamente bons”, impostos sob a forma de prescrição. A partir de uma imposição de prescrições a uma comunidade, e pela repetição dos costumes, surge o que chamamos “tradição”. Em HdH, Nietzsche nos mostra que, sob o ponto de vista social, “bom” é o sujeito prestativo à ordem, seja qual ela for. Por outro lado, “mau é ser ‘não-moral’ (imoral), praticar o mau costume, ofender a tradição, seja ela racional ou estúpida”44. No intuito de conservar uma comunidade, os nobres (em diversas épocas e culturas) estabeleceram normas de convívio, reprimindo a livre descarga dos afetos, protegendo os 42

Ver a sétima parte do presente trabalho. Recorremos a estas obras no intuito de que isso nos auxilie na compreensão da filosofia “tardia” de Nietzsche (especialmente na leitura de GdM). Nessas obras, o direito e a moral assumem um papel fundamental e, por haver conceitos mais bem desenvolvidos nessas obras (como o de eticidade dos costumes, ou a própria noção de direito e sua relação com a idéia de vingança), optamos por estudá-las, fazendo um recorte temático acerca da problemática etológica dos valores (em que medida os costumes criam valores) e axiológica dos costumes (em que medida os valores criam ou justificam costumes). A presente seção tem por finalidade abarcar esses temas dentro das referidas obras para que se possa compreender melhor, com o desenrolar do trabalho, o desenvolvimento dessas idéias na GdM. 43

44

HdH, 96.

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concidadãos de si mesmos (“especialmente prejudicar o próximo foi visto nas leis morais das diferentes épocas como nocivo, de modo que hoje a palavra “mau” nos faz pensar sobretudo no dano voluntário ao próximo. ‘Egoísta’ e ‘altruísta’ não é a oposição fundamental que levou os homens à diferenciação entre moral e imoral, bom e mau, mas sim estar ligado a uma tradição, uma lei, ou desligar-se dela”)45. Entretanto, para Nietzsche, “não importa saber como surgiu a tradição, de todo modo ela fez sem consideração pelo bem e o mal46, ou por algum imperativo categórico imanente, mas antes de tudo a fim de conservar uma comunidade, um povo (einer Gemeinde, eines Volkes)”.47 Com a “experimentação” dos costumes, e com seu “sucesso”, aquilo passa a ser adoptado como “regra”. Mas com o tempo, os costumes da aristocracia e a reverência aos seus ancestrais passam a ser impostos à plebe. Por quê? Além da tentativa de pagamento da dívida (que abordaremos mais à frente), há um cuidadoso trabalho de seguir à risca os preceitos para não interromper o processo de crescimento da comunidade, já que tais costumes já foram comprovadamente bons.48 Sempre que pode exercer coação, o homem a exerce para impor e introduzir seus costumes, pois para ele são comprovada sabedoria de vida. Do mesmo modo, uma comunidade de indivíduos força todos eles a adotar o mesmo costume.49

Assim, pela moralidade dos costumes, estabelece-se o certo e errado50 e, futuramente, com a imposição das leis, o justo e injusto, pois não há uma justiça de fato que preceda o Estado; os predicados “justo” e “injusto” carecem de sentido antes do estabelecimento da lei. Ambas as formas de coação (a moralidade e a lei) são frutos da imposição de vontade de indivíduos fortes, e só com elas fora necessário represar os instintos, de maneira que, com o passar do tempo, a autorrepressão passou a ser voluntária. O indivíduo pode, na condição que precede o Estado, tratar outros seres de maneira dura e cruel, visando intimidá-los: para garantir sua existência, através de provas intimidantes de seu poder. Assim age o homem violento, o poderoso, o fundador original do Estado, que subjuga os mais fracos. Tem o direito de fazê-lo, como ainda hoje o Estado o possui; ou melhor, não há direito que o possa impedir que o faça. Só então pode ser preparado o terreno para toda moralidade, quando um indivíduo maior ou um indivíduo coletivo, como a

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HdH, 96. O que Nietzsche parece dizer é que uma tradição não surge fundamentada sobre preceitos metafísicos. 47 HdH, 96. 46

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Ademais, a ira divina pode abater sobre toda uma comunidade o erro de um único indivíduo, como veremos na oitava parte deste trabalho. 49 HdH, 97. 50 Não se trata de certo e errado ontológicos, como valores metafísicos existentes em si mesmos, mas sim como imposição dos senhores da estirpe. Trata-se, portanto, do que é certo e errado para o senhor, segundo sua valoração.

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sociedade, o Estado, submete os indivíduos, retirando-os de seu isolamento e os reprimindo em associação. A moralidade é antecedida pela coerção, e ela mesma é ainda por algum tempo coerção, à qual a pessoa se acomoda para evitar o desprazer.51 Depois ela se torna costume, mais tarde obediência livre, e finalmente quase instinto(...).52

Assim, Nietzsche diz que, originalmente, “tudo era costume, e quem quisesse erguer-se acima dele tinha que se tornar legislador e curandeiro, e uma espécie de semideus: isto é, tinha de criar costumes”.53 O que torna possível, nos primórdios, que homens se reprimam e se neguem não é a condenação dos atos, seus valores em si, mas a utilidade de se reprimir os impulsos. Aqui, “mau” será aquele que atuar contrariamente ao “sentimento comunitário” (Gemeingefühl). E o que nos fará aprender esse “sentimento comunitário” é, evidentemente, a repressão. A maldade não tem por objetivo o sofrimento de outro em si, mas nosso próprio prazer, em forma de vingança, ou de uma mais forte excitação nervosa, por exemplo. Já um simples gracejo (Neckerei) demonstra como é prazeroso exercitar nosso poder sobre o outro e chegar ao agradável sentimento de superioridade. (...) Em si mesmo o prazer não é bom nem mau; de onde viria a determinação de que, para ter prazer consigo, não se deveria suscitar o desprazer alheio? Unicamente do ponto de vista da utilidade,54 ou seja, considerando as conseqüências, o desprazer eventual, quando o prejudicado ou o Estado que o representa leva a esperar a punição e vingança: apenas isso, originalmente, pode ter fornecido o fundamento para negar a si mesmo tais ações.55

Em Aurora, Nietzsche parece afirmar que não se obedece à tradição em vista de sua utilidade para a sociedade, mas porque é uma ordem. Isto é, sendo a moralidade antecedida pela coerção, ainda que possua uma utilidade, não é essa utilidade que fará com que o povo a siga, mas o “medo” (pela coerção, no princípio). A moralidade do costume é percebida como a capacidade ou mesmo a condição do humano de obedecer a leis, cujo referencial regulador encontra-se em uma superioridade imanente expressa na figura da tradição.56 51

Este ponto é algo que deveria ser analisado com cautela, dado que é possível uma interpretação, segundo a qual em GdM tal argumento já não faria mais sentido. Já que a discussão é travada sob uma nova perspectiva – a da vontade de poder – o desprazer não seria a grande motivação de adequação do sujeito à moral, até mesmo porque o desprazer, em GdM, pode ser algo almejado. Em verdade, é também por buscar o sofrer que o homem se adéqua à moral, por querer dar à sua alma uma forma (o que chamaremos de má consciência ativa, uma auto-violentação modeladora). Não é que não haja, em GdM, a vontade de evitar o desprazer, mas há também uma outra vontade que atua com ela, a saber, a vontade de causar dor (que virou-se contra o próprio causador da dor). São vontades contraditórias que, nesse caso, atuam no mesmo sentido. O problema nesta obra não é o sofrer, mas o sofrer sem sentido. Dado isto, podemos pensar que a segunda formulação da noção de conformação do sujeito ao costume não é uma refutação à primeira, mas apenas um acréscimo. 52 HdH, 99. 53 Aurora. I, 9. 54 Entenda-se: “utilidade” aqui não é a “utilidade do ato não agressivo” para o Estado, mas a “utilidade de eu me adequar às regras” para evitar meu próprio desprazer, que seria proveniente de uma possível punição. 55 HdH, 103. 56 AZEREDO. op. cit. Pg. 113.

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O que é tradição? Não aquilo a que obedecemos porque nos é útil, mas porque ordena. O que distingue esse sentimento ante a tradição do sentimento do medo? Ele é o medo ante um intelecto superior que manda, ante um incompreensível poder indeterminado, ante algo mais do que pessoal – há superstição nesse medo.57

Capítulo 2 - Jus 2.1 – DO SURGIMENTO DA JUSTIÇA Em HdH, Nietzsche diz que “a justiça (eqüidade) tem origem entre homens de aproximadamente o mesmo poder”58, quer dizer, a noção de justiça se dá, primeiramente, com a noção de equivalência. E é justamente por surgir entre “iguais” que ela é entendida dessa forma. O que ocorre é que a justiça como tentativa da equivalência por parte dos espíritos mais fortes de vontade, os nobres, pressupõe um conflito de forças (ainda que latente). Essa tentativa de buscar uma eqüidade surge de uma perspicaz análise desse conflito que traz à tona a dura conclusão da equivalência de forças e subseqüente equivalência dos prejuízos, caso ocorra um conflito real bélico. Então, o direito entre iguais surge como se fosse uma trégua – um trato para minimizar os danos e perdas de ambas as partes. (...) quando não existe preponderância claramente reconhecível, e um combate resultaria em prejuízo inconseqüente para os dois lados, surge a idéia de se entender e de negociar as pretensões de cada lado: a troca é o caráter inicial da justiça. Cada um satisfaz o outro, ao receber aquilo que estima mais que o outro. Um dá ao outro o que ele quer, para tê-lo como seu a partir de então, e por sua vez recebe o desejado. A justiça é, portanto, retribuição e intercâmbio sob o pressuposto de um poderio mais ou menos igual (...). A justiça remonta naturalmente ao ponto de vista de uma perspicaz autoconservação.59

(Mais tarde, Nietzsche dirá que a vontade de poder se deixa mostrar, em todo vivente, “que tudo faz não para se conservar, mas para se tornar mais” (Fragmentos Póstumos. 1888. 14 [121]). Mas não sejamos precipitados em pensar que esta afirmação contraria aquela de HdH. O que Nietzsche parece defender em HdH é que, apesar de haver uma vontade “para se tornar mais”, a comunidade, visto que não há preponderância considerável de força, toma como objetivo mais imediato a conservação. É justamente por isso que, em GdM. III, 9, Nietzsche dirá que é somente com vergonha de si que um nobre se submete a um direito, a um pacto). Por isso, os termos ‘fraco’ e ‘forte’, para Nietzsche, não podem ser absolutos: eles têm que ser relativos. O forte é o que quer ser mais e esgota suas forças nesse processo. Mas é apenas 57

Aurora. I, 9. Na oitava parte de nossa pesquisa, pode-se encontrar mais detalhes sobre essa questão.

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HdH, 92.

59

HdH, 92.

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na medida em que ele não é forte o bastante (isto é, quando não é absolutamente forte, quando não há preponderância reconhecível de força frente um adversário) que ele busca sua conservação, estabelecendo pactos. Um forte absoluto jamais se submeteria a um acordo de direito, ele manda. É apenas em contraste com outro de mesma força que ele preserva sua energia destrutiva, reprimindo-se e estabelecendo um contrato. Mesmo entre fracos de uma comunidade, quando há preponderância de força em um dos pólos, o que vemos é subjugamento e imposição. Assim, chamamos de “forte” esse “corpo” de força maior (individual ou em associação), mas sempre apenas em relação a outra força. Portanto, quando falamos de “fortes” e “fracos”, estamos falando não de indivíduos, mas da relação propriamente estabelecida no caso. Então quando Nietzsche fala de fortes travando acordos, está falando de fortes para a comunidade, pois se fosse consideravelmente forte em relação aos outros, não faria um pacto, mas antes, imporia seus valores perante estes. No tocante aos deveres (Pflichten), Nietzsche diz que “nossos deveres são os direitos dos outros sobre nós”.60 Quando e se somos tomados como iguais, estabelecemos contratos com nossos semelhantes. Ao cumprir sua parte do trato, o outro penetra em nossa esfera de poder e assim permanece até que nós penetremos na sua, cumprindo nossa parte do acordo. E de que modo ele penetraria em nossa esfera de poder se não fosse por meio de uma relação creditícia? Ora, nós devemos (schulden) ao nosso contratante e devemos (sollen) prudentemente pagar. Do mesmo modo, eles, pois Meus direitos – são aquela parte de meu poder que os outros não apenas me concederam, mas também desejam que eu preserve. Como chegaram eles a isso? Em primeiro lugar, mediante sua inteligência, temor e cautela: seja que esperam algo semelhante de nós em retorno (proteção dos seus direitos), que consideram perigosa ou inadequada uma luta conosco, que vêem toda diminuição de nossa força uma desvantagem para si, pois então tornamo-nos impróprios para uma aliança com eles, no enfrentamento de um terceiro poder hostil. Em segundo lugar, mediante dádiva ou cessão (Schenkung und Abtretung). Nesse caso, os outros têm poder bastante e mais que bastante para ceder (abgeben) parte dele e garantir a parte cedida àquele a quem doaram (schenkten): em que se pressupõe exíguo sentimento de poder (Machtgefühl) naquele que se deixa presentear. Assim nascem os direitos: graus de poder reconhecidos e assegurados. Se as relações de poder mudam substancialmente, direitos desaparecem e surgem outros – é o que mostra o direito dos povos, em seu constante desaparecer e surgir. (...) O direito dos outros é a concessão, feita por nosso sentimento de poder, ao sentimento de poder desses outros. Quando o nosso poder mostra-se abalado e quebrantado, cessam os nossos

60

Aurora. II, 112.

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direitos: e, quando nos tornamos muito mais poderosos, cessam os direitos dos outros sobre nós, tal como os havíamos reconhecido a eles até então.61

Em ambos os casos, o que torna possível o contrato é, pois, a crença na memória (de ambas as partes) do contrato, e, sobretudo, a crença no poder de ambas as partes para o cumprimento da promessa. Contrato pressupõe promessa; poder (dürfen) prometer é uma questão de poder (Macht). A promessa é possível na medida em que se elevam os graus de poder. Ora, se é possível prometer de acordo com seu poder, o fraco, com força menor, poderá prometer apenas o que lhe é alcançável, como, por exemplo, a obediência. Isso quer dizer que não há apenas acordos entre homens de mesmo poder, mas também entre fortes e fracos, como no caso em que aqueles concedem a estes direitos a partir de um contrato. Embora a lei, para Nietzsche, não surja como um contrato (já que surge por uma imposição), ela se faz contrato no sentido em que o mais fraco é protegido pelo Estado (ou comunidade), mas em troca disso lhe presta obediência e serviços. Daí provém a noção de que a lei (enquanto contrato) é justa e, de certa forma, prevê uma “eqüidade” – quer dizer, estar de acordo com a lei é estar “quite” com a comunidade –, e que um crime representaria, portanto, uma dívida para com esta última.62 Afora essa ressalva a respeito da “eqüidade” da lei, a justiça como equivalência só pode ser pensada entre homens de mesmo poder porque, para Nietzsche, “a troca é o caráter inicial da justiça”63. É nesse sentido que, para o filósofo, a vingança se equipara à gratidão. Um homem poderoso é grato por se mostrar forte e manifestar sua força pela compensação, tornando clara ao seu benfeitor a equivalência de forças, pois Mediante seu benefício, o benfeitor como que violou a esfera do poderoso e nela se introduziu: em represália, este viola a esfera do benfeitor com seu ato de gratidão. É uma forma suave de vingança. Se não tivesse a compensação da gratidão, o poderoso teria se mostrado sem poder e depois seria visto como tal. Por isso toda sociedade de bons, ou seja, originariamente de poderosos, situa a gratidão entre os primeiros deveres.64

Portanto, para Nietzsche, a gratidão assemelha-se à vingança, no sentido em que ambas as coisas pressupõem certa capacidade de avaliação do poder (próprio e alheio). Pressupõem, pois, estabelecer valores e, com isso, relações de troca. Sem troca não é possível vingança ou gratidão. Nossa retribuição é a demonstração de que somos tão fortes quanto nossos opositores benfeitores, mantendose, assim, cada qual em sua esfera de poder. É isso que garante o equilíbrio.65 61

Aurora. II, 112. Trataremos essa questão na sétima parte de nosso trabalho. 63 HdH, 92. 64 HdH, 44. 65 MELO, E. Rezende. Nietzsche e a Justiça. Pg. 48. Nesse caso, o fraco, o impotente, é incapaz de retribuição e gratidão. 62

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Disso, temos que a vingança pertence ao domínio da justiça.66 E é necessário frisar: apenas no caso em que a justiça é entendida como equivalência, pois no tocante ao caso da justiça imposta, i.e., a lei, a vingança pessoal deve ser banida, de modo que fica a cargo do Estado cuidar do infrator.67 Quanto à vingança pessoal, Nietzsche comenta que Em toda parte onde se exerce e se mantém a justiça, vemos um poder mais forte que busca meios de pôr fim, entre os mais fracos e a ele subordinados (...), ao insensato influxo do ressentimento, seja retirando das mãos da vingança o objeto do ressentimento, seja colocando em lugar da vingança a luta contra os inimigos da paz e da ordem, seja imaginando, sugerindo ou mesmo forçando compromissos, seja elevando certos equivalentes de prejuízos à categoria de norma, à qual de uma vez por todas passa a ser dirigido o ressentimento. Mas o decisivo no que a autoridade suprema faz e impõe contra a vigência dos sentimentos de reação e rancor (...) é a instituição da lei.68

Essa busca por equivalências será pensada na GdM como a possibilidade de atribuição de valor a qualquer coisa e a conseqüente generalização do princípio de troca dada sob a forma “cada [toda] coisa tem seu preço; tudo pode ser pago (jedes Ding hat seinen Preis; Alles kann abgezahlt werden)”.69 É pensando nesse momento, em que a justiça é interpretada como equivalência, que Nietzsche afirma que “nesse primeiro estágio, justiça é boa vontade70, entre homens de poder aproximadamente igual, de acomodar-se entre si, de “entender-se” mediante um compromisso – e, com relação aos de menor poder, forçá-los a um compromisso entre si”.71 Interpretamos que tal citação nos indica que a justiça surge com dois valores distintos segundo sua perspectiva: entre homens de mesmo poder, como tentativa de eqüidade; e entre fortes e fracos, como imposição, lei (Gesetz). Então, enquanto um contrato ambivalente só pode ser pensado horizontalmente entre nobres, a lei só pode ser pensada verticalmente. 66

E não o contrário, como propõe Dühring. Não falaremos de Dühring neste trabalho. O comentário apresenta-se apenas como um esclarecimento sobre a relação entre vingança e justiça em Nietzsche. 67 Quando o homem é injuriado por outro da mesma comunidade, nesse caso, aquele deixa a cargo do Estado as devidas providências. Num caso específico, se o homem fraco for injuriado por um mais forte que ele, aquele passa a desfrutar mais ainda da proteção do Estado, pois sendo fraco para responder ao seu molestador, devido à sua impotência, deverá sempre contar com a providência de uma instância maior, seja ela o Estado ou, posteriormente, Deus. 68 GdM. II, 11. 69 GdM. II, 8. 70 Entendo essa “boa vontade” como um esforço, ou mais, quase um sacrifício que o homem nobre faz em busca de sua autoconservação, curvando-se a um direito. Quanto a isso, podemos conferir em GdM. III, 9: “A submissão ao direito: oh, com que objeção da consciência as estirpes nobres de toda parte renunciaram à vendetta [vingança] e curvaram-se ao direito! O “direito” foi por muito tempo um vetitum [algo proibido], um abuso, uma inovação, apareceu com violência, como violência, à qual somente com vergonha de si mesmo alguém se submetia”. 71 GdM. II, 8.

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2.2 – DA JUSTIÇA COMO EQUIVALÊNCIA (a primeira figura da dívida, que se estabelece entre comunidades de estirpe) É entre comunidades de estirpe (Geschlechtgenossenschaften) que surge a primeira noção de justiça, entendida como equilíbrio de forças, como equivalência. Antes do surgimento da figura do indivíduo tal como a concebemos hoje em dia, i.e., “destacado” da sociedade, a identidade pessoal era determinada pela pertença ao grupo, e não havia segurança em se viver fora de uma comunidade. Vive-se numa comunidade, desfruta-se as vantagens de uma comunidade (e que vantagens! Por vezes as subestimamos atualmente), vive-se protegido, cuidado, em paz e confiança, sem se preocupar com certos abusos e hostilidades a que está exposto o homem de fora, o “sem-paz” („Friedlose“).72

Ademais, Giacoia defende73 que, a partir da base etnológica de que dispõe Nietzsche, podemos constatar que o primeiro nível do sujeito de direito (credor e devedor) não pode ser reconhecido como um estágio no qual os sujeitos sejam entendidos individualmente, mas sim como comunidades de estirpe, isto é, formações sociais como clãs, tribos, gens que possuem suas bases nos laços de sangue. Giacoia comenta que nas “relações entre tais formas incipientes de organização social, toda responsabilidade é coletiva e a vingança é prerrogativa da comunidade”74. Assim, quando Nietzsche se refere à relação de direito privado entre devedor e credor, compreendemos que há aí um vínculo de obligatio que, em seu estágio mais primitivo, é obligatio entre comunidades. E com tal pressuposto, “Nietzsche busca no terreno do primitivo direito obrigacional as origens do germinante sentimento do dever. O sentimento da obrigação pessoal pressupõe que ao homem seja possível e lícito responder por si, isto é, que seja capaz de ter-se a si mesmo sob domínio, do que se origina também a base psicológica do primeiro sentimento de liberdade, como consciência de poder e responsabilidade”.75

72

GdM. II, 9. A esse respeito, conferir também GdM. II, 16.

73

Cf. Giacoia. SPRE. Pg. 45ss. Aqui temos uma livre tradução de POST, A. H. Giurisprudenza etnológica. Milano: Societá Editrice Librarin, 1906, que constitui parte da base etnológica de que Nietzsche dispunha em sua época, encontrada na citada obra: § 122: “A organização corporativa é sempre a forma mais recente de organização que se manifesta na vida dos povos. No ordenamento gentílico, territorial e senhorial, a pessoa jurídica individual desenvolveu-se muito pouco; pode-se dizer, antes, que o indivíduo, sujeito de direito, como o conhecemos em nossos dias, não existe. Somente com o desagregar-se daquelas formas de organização que sob total resguardo o fazem quase desaparecer nos grupos sociais, o indivíduo emerge como centro independente da vida social”. 74 Giacoia. SPRE. Pg. 46. 75 Giacoia. SPRE. Pg. 47.

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Por isso, é razoável que se considere que as primeiras relações de troca tenham se dado entre comunidades. Dessa forma, foi também entre elas que pôde haver valorações em relação a vantagens e desvantagens numa troca.76 Com o aperfeiçoamento dessas valorações, uma comunidade pôde atestar sua posição em relação a outras em termos de poder. Portanto, a capacidade de “pesar”, calcular a equivalência entre coisas, se transpõe da troca de mercadorias para o campo das relações políticas. No caso de uma guerra, esta pode ser vista como gerada por uma dívida não paga (entendida como “culpa”), a partir do que se poderia “castigar” uma comunidade rival por isso. Nesse tipo de ocorrência, os homens avaliadores devem medir as vantagens e desvantagens na guerra, pois, se os oponentes são igualmente fortes, é prudente que os dois reconheçam isso e pactuem, estabelecendo, assim, um acordo de paz. Se o fizerem, ambos desfrutarão de direitos mutuamente concedidos. Então, por um lado, as comunidades se reconhecem como equivalentes na força e é por meio desse reconhecimento que traçam acordos de paz. No caso de comunidades de poderes radicalmente diferentes, é possível, e até provável, que a mais forte se apodere da mais fraca e imponha suas próprias leis. Caso houvesse um rompimento do contrato, caso houvesse uma agressão a uma comunidade por parte de outra que não dispusesse de um poder visivelmente superior, haveria uma resposta imediata de retaliação. Segundo as pesquisas de Post,77 na sociedade gentílica, a retribuição ao dano não exigia um ressarcimento equivalente ao dano, mas simplesmente uma descarga de afetos destrutiva que recaía sobre toda a comunidade que havia ocasionado o dano inicial.78 Quer dizer, o princípio de que “tudo pode ser pago”, aqui, ainda não demonstra um refinamento das capacidades valorativas ao ponto de se pensar um equivalente material.79 Antes, a descarga de afetos atua sobre o princípio de “quebra” do acordo.80 Desta forma, o que temos é uma relação de disputa que atua sob o pressuposto de que o direito nasce e permanece segundo o poder de uma comunidade, ou seja, se não houver quem possa se contrapor a uma determinada força, esta nova força estabelece para si novos direitos. Se não houver esses novos direitos, caso haja uma infração por parte, de um membro que seja, da 76

Lembrando-se que é a partir da noção de troca que o conceito de justiça é formulado. Cf. POST, A. H. Giurisprudenza etnológica. Milano: Societá Editrice Librarin, 1906. 78 Nietzsche estenderá esse pensamento para o indivíduo infrator, num segundo momento. 79 “isto ao ponto de se requerer primeiramente um alto grau de humanização, para que o ‘homem’ comece a fazer aquelas distinções bem mais elementares, como ‘intencional’, ‘negligente’, ‘casual’, ‘responsável’ e seus opostos e a levá-las em conta na atribuição do castigo” (GdM. II, 4). 80 É tendo isso em mente que Nietzsche pensará o castigo primitivo como um efeito da raiva do credor sobre o devedor. 77

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comunidade A contra a comunidade B, a comunidade B exigirá retaliação não individual, mas coletiva, isto é, a culpa do dano recairá sobre a comunidade A como um todo, o que demonstra a interpretação de uma responsabilidade coletiva. E ainda mais, a comunidade B não exigirá reparação equivalente ao dano (uma galinha roubada por outra galinha, por exemplo), mas exercerá sua força para a retaliação, vingança, por raiva simplesmente (semelhante à dos pais que castigam seus filhos) e interpretará o dano como traição, podendo ocasionar um dano à comunidade A desproporcional ao primeiro (ateando fogo em toda a aldeia em resposta ao roubo da galinha, por exemplo).

2.3 – DO DIREITO DO MAIS FRACO Mas então, conseguirá o homem fraco seus direitos somente mediante graça, dádiva, do senhor? Nietzsche dirá que não é necessário que seja apenas dessa forma, já que, ainda sendo fraca, o homem fraco possui uma força, e, como veremos, seus direitos serão medidos de acordo com seu poder. Já que o que faz os homens fortes pactuarem entre si não é simplesmente uma busca pela paz, mas antes, uma prudência e perspicácia que caminham no sentido de uma autoconservação, no caso de um contrato (ou uma concessão de direitos) entre fortes e fracos não será diferente: quando, num caso de uma cidade sitiada, ou de um levante do operariado, quando este chega a apresentar real perigo ao poderoso e quando o poderoso considera o perigo iminente de uma grande perda, então surge um pacto entre os diferentes estamentos (classes, ou o que quer que seja). A partir da força, ainda que momentânea, e da importância de ambas as partes, surge uma espécie de “paridade, com base na qual se pode estabelecer direitos”81. Destarte, a concessão de direitos de um lado (ou a conquista de direitos do outro) ocorre mediante uma relação de forças que ameaçam, de certa forma, os dois pólos em conflito.82 Nesse sentido, há também direitos entre escravos e senhores, isto é, exatamente na medida em que a posse do escravo é útil e importante para o seu senhor. O direito vai originalmente até onde um parece ao outro valioso, essencial, indispensável, invencível e assim por diante. Nisso o mais fraco também tem direitos, mas menores.

81

HdH, 93. Seja entre nobres ou entre senhores e escravos. Daí a importância de se perceber a força do fraco não como ausência de força, mas como força mais fraca.

82

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Daí o famoso unusquisque tantum juris habet, quantum potentia uale [cada um tem tanta justiça quanto vale seu poder] (ou, mais precisamente: quantum potentia ualere creditur [quanto se acredita valer seu poder]).83

2.4 – DA LEI E DO CASTIGO (a segunda figura da dívida, que ocorre entre a comunidade e seus membros) A palavra alemã Gesetz (lei) preserva em si a raiz do verbo setzen (sentar (alg.)/ pôr, impor, meter, estabelecer, fixar). Para Nietzsche, não só a raiz do verbo, mas sua semântica sobrevive na palavra: lei é, sobretudo, imposição. Se é imposição, deve ser de cima para baixo. Apenas o forte é capaz de impor e só a ele é lícita tal atitude, dado seu olhar distante, imparcial, não contaminado pelo veneno do ressentimento que habita as classes mais baixas.84 A partir da necessidade de se organizar coletivamente, foi preciso que houvesse a contensão dos impulsos agressivos do homem selvagem e, em detrimento desses impulsos, o homem empregaria seus esforços na constituição de uma “sociedade da paz”. Justamente por isso, é necessário ressaltar que, na necessidade de se curvar perante as prescrições de uma moralidade dos costumes, inclusive os senhores tiveram de reprimir seus instintos, invertendo a direção do desafogamento desses impulsos para dentro, pois a paz, como bem mais precioso, tem como condição a “camisa de força da sociedade”. Toda repressão contra aqueles instintos mais selvagens do homem fez com que este revertesse esses instintos contra o homem mesmo, em direção contrária, tornando-os subterrâneos e alargando seu universo interior (o que Nietzsche viria a chamar “sua alma”). No caso de alguém que não conseguisse conter esses impulsos, alguém que eventualmente descumprisse algum termo do acordo com a comunidade, o castigo exerceria sua função coercitiva e mnemônica.85 A partir de uma noção debitória, o castigo será empregado na medida em que o ato de um indivíduo se manifeste como força contrária à comunidade:

83

HdH, 93. Ver também: “O socialismo só adquirirá direitos quando parecer iminente a guerra entre os dois poderes, entre os representantes do velho e do novo, e o cálculo prudente das chances de conservação e de vantagem, em ambos os lados, fizer nascer o desejo de um pacto. Sem pacto não há direito”. (HdH, 446). 84 Essa “imparcialidade” é vista por Nietzsche não no sentido trivial da palavra, mas por não ser um modo “reativo” de valoração. É o olhar justo: “O homem ativo, violento, excessivo, está sempre bem mais próximo da justiça que o homem reativo; pois ele não necessita em absoluto avaliar seu objeto de modo falso e parcial, como faz, como tem que fazer o homem reativo” (GdM. II, 11). 85 Lembrando: “(...) apenas o que não cessa de causar dor fica na memória” (GdM. II, 3).

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O criminoso é um devedor que não só não paga os proveitos e adiantamentos que lhe foram concedidos como inclusive atenta contra seu credor: daí que ele não apenas será privado de todos esses benefícios e vantagens, como é justo – doravante lhe será lembrado o quanto valem esses benefícios. A ira do credor prejudicado, a comunidade, o devolve ao estado selvagem e fora-da-lei (wilden und vogelfreien Zustande) do qual ele foi até então protegido: afasta-o de si – toda espécie de hostilidade poderá então se abater sobre ele86.

Daí provém a noção de débito do criminoso, de modo que “a comunidade, o credor traído, exigirá pagamento”87, pois O dano (Schaden) imediato é o que menos importa no caso: ainda sem considerar esse dano, o criminoso (Verbrecher) é, sobretudo, um “infrator” („Brecher“), alguém que quebra a palavra e o contrato com o todo, no tocante aos benefícios e comodidades da vida em comum, dos quais ele até então participava.88

Em outras palavras: houve uma quebra do contrato. Nessa perspectiva, o que menos importa é o dano: o que o torna criminoso é o rompimento do contrato, entendido como ato de traição.89 Deste modo, o infrator perde os benefícios antes assegurados, de modo que fica vulnerável a qualquer tipo de hostilidade que venha a se abater sobre ele. Isso é um tipo de castigo como forma de compensação. O castigo, nesse nível dos costumes, é simplesmente a cópia, mimus [reprodução] do comportamento normal perante o inimigo odiado, desarmado, prostrado, que perdeu não só qualquer direito e proteção, mas também qualquer esperança de graça; ou seja, é o direito de guerra e celebração do Vae victis [ai dos vencidos] em toda sua dureza e crueldade.90

Entenda-se aqui que o “direito de guerra”, como dissemos, não pressupõe equivalência entre dano e punição. O dano é visto não como dano específico (um roubo, por exemplo), mas como, antes de mais nada, traição. Assim, ao invés de uma reparação material, dependendo da infração, a comunidade tratará o infrator como um prisioneiro de guerra: ele será um homem matável, sem direitos, que perdeu a garantia da paz (um “Friedlose”). A finalidade, o propósito, o sentido do castigo são fluidos91, de modo que, em algum momento da história, pôde surgir uma justificativa sui generis para a existência do castigo, a saber, a produção do arrependimento92: “O castigo teria o valor de despertar no culpado um sentimento de culpa, nele se vê o verdadeiro instrumentum dessa reação psíquica chamada ‘má consciência’, ‘remorso’(Gewissensbiss)”.93 Portanto, durante o processo de desenvolvimento do 86

GdM. II, 9. GdM. II, 9. 88 GdM. II, 9. 87

89

Como vimos na quinta parte do presente trabalho.

90

GdM. II, 9.

91

Quanto à fluidez da finalidade das coisas, conferir GdM. II, 12. 92 É importante ressaltar que a produção do arrependimento é apenas uma entre tantas finalidades que o castigo poderia ter. 93 GdM. II, 14.

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homem em sociedade, ocorreu que o conceito de “culpa” teve como finalidade justificar as punições. A culpa se baseia na idéia de livre-arbítrio (dada sob a forma “ele deve sofrer porque é culpado; e é culpado porque poderia ter agido de outra forma”94). Não obstante, o castigo só teve sua justificação no conceito de livre-arbítrio bem tardiamente, pois durante a maior parte da história do homem, castigou-se por raiva devida a um dano sofrido, de modo semelhante ao dos pais, quando castigam seus filhos.

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Apesar de o castigo poder ter tido como finalidade, num

dado momento (recente, diga-se de passagem), despertar no culpado uma consciência de culpa, não foi nesse terreno que nasceu a má consciência. Antes, o castigo possibilitou, pela dor, o desenvolvimento da prudência, pois ele “endurece e torna frio; concentra; aguça o sentimento de distância; aumenta a força de resistência. (...) de fato, por muitíssimo tempo os que julgavam e puniam não revelaram consciência de estar lidando com um “culpado”. Mas sim com um causador de danos”.96 Destarte, o efeito do castigo intensificou a memória daqueles que o sofreram. Pois sem sentir-se moralmente culpado, o infrator buscava lembrar, no desenvolvimento de seu feito, alguma falha, uma brecha: “algo saiu errado” era o que passava pela sua cabeça, e não “eu não devia ter feito isso”.97 (...) inquestionavelmente se deve buscar o genuíno efeito do castigo, antes de tudo, numa intensificação da prudência, num alargamento da memória, numa vontade de passar a agir de maneira mais cauta, desconfiada e sigilosa, na percepção de ser demasiado fraco para muitas coisas, numa melhoria da faculdade de julgar a si próprio. (...) o castigo doma o homem, mas não o torna “melhor”.98

Destarte, entendemos que a motivação primeira do castigo não reside numa “reeducação” do infrator, ou algo do tipo, mas antes, numa forma de entorpecimento da dor própria pela dor alheia, como forma de “pagamento”. Mas de onde procede a idéia de equivalência entre dano e dor? Nietzsche responderá que advém justamente desta relação contratual entre credor e devedor.99 Precisamente neste tipo de relação fazem-se promessas. 94

Essa noção é desenvolvida, segundo Nietzsche, com uma finalidade clara de encontrar um culpado: “Apenas ofereço, aqui, a psicologia de todo “tornar responsável”. – Onde quer que responsabilidades sejam buscadas, costuma ser o instinto de querer julgar e punir que aí busca. O vir-a-ser é despojado de sua inocência, quando se faz remontar esse ou aquele modo de ser à vontade, a intenções, a atos de responsabilidade: a doutrina da vontade foi essencialmente inventada com o objetivo da punição, isto é, de querer achar culpado” (CdI. VI, 7). 95 Cf. GdM. II, 4. 96 GdM. II, 14. 97

GdM. II, 15. GdM. II, 15. 99 Cf. GdM. II, 4. 98

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O devedor, para infundir confiança em sua promessa de restituição, para garantir a seriedade e santidade de sua promessa, para reforçar na consciência a restituição como dever e obrigação, por meio de um contrato, empenha ao credor, para o caso de não pagar, algo que ainda “possua”, sobre o qual ainda tenha poder, como seu corpo, sua mulher, sua liberdade ou mesmo sua vida.100

Tal contrato garante o castigo, caso não haja o cumprimento da promessa. Assim, aquele que sofre quer compensação, e esta compensação vem em forma de sofrimento causado a outrem. A equivalência está em substituir uma vantagem diretamente relacionada ao dano (uma compensação em dinheiro, terra, bens de algum tipo) por uma espécie de satisfação íntima, concedida ao credor como reparação e recompensa – a satisfação de quem pode livremente descarregar seu poder sobre um impotente (Machtlosen), a volúpia de ‘faire le mal pour le plaisir de le faire’ (...). A compensação consiste, portanto, em um convite e um direito à crueldade.101

Embora haja este ato, por parte do devedor, de empenhar ao credor o que possui, a satisfação do credor não está ligada, necessariamente, ao bem empenhado, mas à crueldade, ao prazer em ver o devedor perdendo algo que lhe é importante. Temos, pois, o sofrimento como compensação para a dívida, de modo que o fazer sofrer torna-se mais gratificante do que a reparação pecuniária. Em virtude do desenvolvimento da memória (sobretudo, pela dor), o homem foi capaz de desenvolver a prudência, com a intensificação da qual, ele, no intuito de evitar o castigo, teve de reprimir seus impulsos mais selvagens, que, assim, se tornam cada vez mais “subterrâneos”. Notar o castigo como intensificador da prudência faz-se necessário para compreender o mesmo como um “bastião do Estado” através do qual fora possível a criação de uma mnemônica coletiva das normas impostas pelos senhores. O que se nota na história do homem é que o castigo passou a ser instrumentalizado desde o momento em que as comunidades começaram a padronizar o que seriam atos condenáveis, permitidos e solicitados. Essa padronização, também chamada de eticidade dos costumes (Sittlichkeit der Sitte), assume também a forma de herança deixada pelos antepassados.

2.5 – DA DÍVIDA RELIGIOSA (a terceira figura da dívida, que se estabelece entre a comunidade e seus ancestrais)

100

GdM. II, 5. Esse tipo de garantia empenhada ao credor, bem como a aplicação do castigo, não se aplica exclusivamente a esse tipo de relação debitória, mas, sendo seminal para a compreensão de como se desenvolve a noção de castigo (em especial, entre a comunidade e seus membros), é lícito que apresentemos aqui de modo a elucidar como este é entendido por Nietzsche nesse tipo de relação obrigacional. 101 GdM. II, 5.

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Na medida em que a estirpe envelhece, ela não só esquece sua origem: mais que isso, ela aumenta a sacralidade e poder de seus ancestrais, pois “toda tradição se torna mais respeitável à medida que fica mais distante a sua origem, quanto mais esquecida for esta”.102 Desse modo, o respeito à tradição cresce na medida em que surge uma reverência àqueles que a fizeram, os fundadores da estirpe, de modo que a força da comunidade engendra um sentimento de dívida em relação aos mesmos. Assim, a matriz obrigacional débito-crédito é transposta para o plano extra-mundano das relações entre as comunidades e seus ancestrais. Em conseqüência disso, há uma dívida em relação àqueles que tornaram possível o desenvolvimento e a força da comunidade atual. Por isso, a dívida para com os antepassados é diretamente proporcional ao poder de uma comunidade.103 A convicção prevalece de que a comunidade subsiste apenas graças aos sacrifícios e às realizações dos antepassados – e de que é preciso lhes pagar isso com sacrifícios e realizações: reconhece-se uma dívida [Schuld], que cresce permanentemente, pelo fato de que os antepassados não cessam, em sua sobrevida como espíritos poderosos, de conceder à estirpe novas vantagens e adiantamentos a partir de sua força.104

Destarte, a dívida tornar-se-ia cada vez maior, na medida em que a comunidade crescesse, pois quanto maior a consciência do poder (Macht), maior a consciência do dever (Pflicht) e da dívida (Schuld). Assim se consolida a figura religiosa da moralidade dos costumes por se entender que o poder atual se deve aos costumes dos antigos, do que emerge uma relação de débito para com os mesmos. O que se pode lhes dar em troca? Sacrifícios (...), festas, música, homenagens, sobretudo obediência – pois os costumes são, enquanto obra dos antepassados, também seus preceitos e ordens.105

A dívida da estirpe é, portanto, uma dívida para com os ancestrais nobres – aqueles que impuseram as normas fundadoras da estirpe. A moralidade se apresenta, aqui, como tentativa de pagamento aos ancestrais, e seu séqüito cresce sob a forma do medo do não pagamento da dívida. A religião é imposta belicamente, pela força. Assim, os cultos aristocráticos deixaram de ser domésticos e passaram a ser coletivos, praticados por toda a comunidade. No caso de uma comunidade de grande poder, seus antepassados podem ser valorizados até se elevarem ao 102

HdH, 96. “O medo do ancestral e do seu poder, a consciência de ter dívidas para com ele, cresce na exata medida em que cresce o poder da estirpe” (GdM. II, 19). 104 GdM. II, 19. 105 GdM. II, 19. Notamos que ainda há uma tentativa de pagamento da dívida, o que significa que a geração que vive tem, com a antecessora, uma obrigação que se limita ao âmbito jurídico. Portanto, trata-se ainda de uma dívida externa ao sujeito debitado. “Na originária comunidade tribal – falo dos primórdios – a geração que vive sempre reconhece para com a anterior, e em especial para com a primeira, fundadora da estirpe, uma obrigação jurídica (e não um mero vínculo de sentimento (...))” (GdM. II, 19). 103

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estatuto de deuses. Mas não é só a dívida aristocrática que faz nascer deus, mas especialmente o temor do povo frente à ira dos antepassados no caso de não pagarem a dívida, até mesmo porque “em toda parte onde existe uma comunidade e, portanto, uma moralidade do costume, vigora também o pensamento de que o castigo para a ofensa cabe sobretudo à comunidade”106. Trata-se, pois, de um castigo sobrenatural, derivado da força dos ancestrais em sua sobrevida, e a responsabilidade recai novamente sobre a sociedade como um todo. Assim, devido a um raciocínio supersticioso, a comunidade se enrijece e mantém-se fiel aos costumes. (...) como a percepção da causalidade real é muito escassa entre os povos e as culturas de nível pouco elevado, um medo supersticioso cuida para que todos sigam o mesmo; e até quando o costume é difícil, duro, pesado, ele é conservado por sua utilidade aparentemente superior. Não sabem que o mesmo grau de bem-estar pode existir com outros costumes, e que mesmo graus superiores podem ser alcançados.107

Antes da culpa individual, deve-se pensar uma culpa coletiva: a idéia de que “os costumes relaxaram” pesa sobre a comunidade de modo que a culpa não pertence exclusivamente ao infrator, mas à comunidade que permitiu que tal ocorrência tivesse efeito. A comunidade pode instar o indivíduo a reparar o dano imediato que sua ação acarretou, em relação a outro indivíduo e à comunidade; pode igualmente cobrar uma espécie de vingança pelo fato de, graças ao indivíduo, como suposta conseqüência de seu ato, as nuvens e trovoadas da ira divina terem se abatido sobre a comunidade – mas ela sente a culpa do indivíduo sobretudo como sua culpa, e toma o castigo dele como seu castigo.108

Com o tempo, no entanto, as comunidades se habituam a esse modo de vida e se apegam a seus costumes como preceitos de ordem superior. Ainda aquilo que parecia aleatório e sem sentido continua sendo seguido, devido ao medo que se tem de entrar em débito com os antepassados, e de desgraçar a comunidade. Mas de qualquer modo, “certamente notam que todos os costumes, inclusive os mais duros, tornam-se mais agradáveis e mais brandos com o tempo, e que também o mais severo modo de vida pode se tornar hábito e com isso um prazer”.109

Capítulo 3 - Psyché 3.1 – QUANDO O ANCESTRAL-CREDOR SE TORNA DEVEDOR Não obstante o caminho da dívida descrito acima ser em direção aos antepassados, há um momento na história da humanidade em que ocorre um processo de “descreditização” dos 106

Aurora. I, 9. HdH, 97. 108 Aurora. I, 9. 109 HdH, 97. 107

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mesmos, à medida que o terror perante a dívida se torna insustentável. É o momento em que a dívida começa a perder seu caráter jurídico. Expliquemos: Há um processo, descrito por Nietzsche, que mostra o desenvolvimento de uma comunidade ser diretamente proporcional ao tamanho de sua dívida para com as divindades que a protegem. Assim, uma comunidade que se aproprie de muitas outras, fagocita terrenos e culturas, tornando-se maior, de modo que sua própria identidade se torna mais difusa, mas sua dívida permanece em ascensão. O sentimento de culpa (Schuldgefühl) em relação à divindade não parou de crescer durante milênios, e sempre na mesma razão em que nesse mundo cresceram e foram levados às alturas o conceito e o sentimento de Deus. (...; o progresso em direção a impérios universais é também o progresso em direção a divindades universais; o despotismo, com seu triunfo sobre a nobreza independente, sempre abre o caminho para algum monoteísmo). O advento do Deus cristão, o deus máximo até agora alcançado, trouxe também ao mundo o máximo de sentimento de culpa.110

No decorrer do processo de tentativa de pagamento, o homem apercebeu-se de sua dívida impagável. É com isso que ele vai sustentar uma violenta negação de sua própria existência: um existir pleno de dívida/culpa (Schuld). (...) as noções de culpa (Schuld) e dever (Pflicht) devem (sollen) se voltar para trás – contra quem? Não se pode duvidar: primeiramente contra o “devedor”, no qual a má consciência de tal modo se enraíza (...) que, por fim, com a impossibilidade de pagar a dívida se concebe também a impossibilidade da penitência, a idéia de que não se pode realizá-la (o “castigo eterno”); mas finalmente se voltam até mesmo contra o “credor”.111

Podemos notar que Nietzsche apresenta aqui dois caminhos, a saber, (i) o caminho da culpa contra o próprio culpado, ou seja, contra si mesmo; e (ii) o caminho da culpa contra o credor primordial. Este segundo resulta num processo de culpabilização da própria existência, já que a inversão da direção da culpa para o credor se dá justamente pelo fato de ele ter se endividado com Deus primeiramente, o que coincide com o surgimento da “espécie humana”: a dívida original é o pecado original. (...) recordemos a causa prima do homem, o começo da espécie humana, o seu ancestral, que passa a ser amaldiçoado (“Adão”, “pecado original”, “privação do livre-arbítrio”), ou a natureza, em cujo seio surge o homem, e na qual passa a ser localizado o princípio mau (“demonização da natureza”), ou a própria existência, que resta como algo em si sem valor (afastamento niilista da vida, anseio do Nada, ou anseio do contrário, de um Ser-outro, budismo e similares).112

110

GdM. II, 20. GdM. II, 21. 112 GdM. II, 21. 111

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Assim, a dívida não será mais entendida como individual, mas antes, recairá sobre a própria espécie. O existir como um “erro”, o pecado da vida, dará fundamentos ao que chamaremos de má consciência como fenômeno tipicamente moral. É a figura da má consciência que internalizou sentimento da dívida – de uma dívida impagável, de uma dívida com Deus. Aquela dívida para com os ancestrais – que se tornou uma dívida para com Deus – deixou de possuir um caráter jurídico e foi, portanto, ganhando um estatuto moral até o momento em que o homem se viu tão culpado e tão consciente de dever expiar sua culpa que precisou atribuir novos predicados a um novo credor. Foi então que, a partir da moralização da consciência de culpa (consciência de se ter dívidas), o homem teve de criar um Deus que representasse exatamente o oposto de si.113 Assim, o sujeito em débito é visto como mau, e o credor (Deus), injustiçado pelo não pagamento da dívida, é eternamente bom. Por isso, o devedor deve reinterpretar suas qualidades como negativas. Por contraste e oposição, o bom, então, é exatamente o oposto do que há de mau no devedor, isto é, se o devedor é originalmente (i.e., em seu estado bestial) egoísta, imponente, viril, o credor deve ser o altruísta, misericordioso, compassivo.114 Nessa lógica da culpa, o devedor se sente mais culpado ainda, culpado por seu ser, por possuir os atributos que ele mesmo definiu como “perversos”, fazendo de sua vida algo condenável.115 Eis a técnica hermenêutica sacerdotal: consiste em reinterpretar o potencial pulsional agressivo do homem como uma dívida para com Deus. Por reconhecermos que isso constitui, no fundo, a natureza da espécie, consideramos, então, a irresgatabilidade da dívida. Por pulsarem nele aqueles instintos do animal selvagem, e por serem inextirpáveis tais pulsões

113

Essas valorações criaram o que Nietzsche chamava de moral antinatural. Segue um trecho de Crepúsculo dos Ídolos sobre a moral como contradição da vida: “A moral antinatural, ou seja, quase toda moral até hoje ensinada, venerada e pregada, volta-se, pelo contrário, justamente contra os instintos da vida – é uma condenação, ora secreta, ora ruidosa e insolente, desses instintos. Quando diz que “Deus vê nos corações”, ela diz Não aos mais baixos e mais elevados desejos da vida, e toma Deus como inimigo da vida... o santo no qual se compraz é o castrado ideal... A vida acaba onde o “Reino de Deus” começa...” (CdI. V, § 4). 114 O ápice de sua misericórdia e compaixão é observado no perdão da dívida, quando Deus sacrifica o próprio filho (ou a si próprio) na cruz, para livrar a humanidade do pecado original, o qual coincide com o surgimento da espécie humana. Quer dizer, a própria existência, sendo indigna desde o princípio, identifica-se com um insulto a Deus. Mas apesar do perdão da dívida, o homem, contraditoriamente, se vê ainda mais afogado em dívidas, pois a graça divina (como qualquer graça) reforça no presenteado (quando este não tem poder para retribuir a oferta) sua pequenez e miséria, lembrando-o de que a dívida é mesmo impagável (ao menos por esse devedor). A conseqüência é a consciência de culpa aflorada, ou seja, exatamente o contrário do esperado pelo perdão. 115 “Disto se segue que também essa antinatureza de moral, que concebe Deus como antítese e condenação da vida, é apenas um juízo de valor da vida – de qual vida? (...): da vida declinante, enfraquecida, cansada, condenada” (CdI. V, § 5).

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valoradas como malignas, manifesta-se uma espécie de loucura da vontade: uma ânsia por torturar-se e se aprofundar na mais tenebrosa transfiguração da violência, a saber, a dívida moralmente interpretada. Esse fenômeno adquire tais proporções, diz Nietzsche, por existir no homem um prazer em fazer sofrer, mesmo que seja a si próprio (“o prazer que sente o desinteressado, o abnegado, o que se sacrifica: este prazer vem da crueldade. (...) somente a má consciência, somente a vontade de maltratar-se fornece a condição primeira para o valor do não-egoísmo”116).

3.2 – A MÁ CONSCIÊNCIA ATIVA (a interiorização do homem) Para poder prometer, o homem precisou interiorizar-se, o que só foi possível graças à retroversão dos instintos. Por isso, teve de haver repressão para o desenvolvimento do que Nietzsche denomina “alma”. Ao que parece, há duas figuras diferentes da má consciência, a saber, (a) a má consciência como “pedaço” de psicologia animal (a má consciência ativa), manifesta pela “vontade” de causar dor; e (b) a “vontade” de causar dor valorada moralmente (a má consciência moralmente interpretada). Falaremos, nesta seção, a respeito da primeira. Para ser homem, é necessário inibir-se. A inibição obriga o homem a sofrer. E com a inibição de sua crueldade, a “vontade” de causar dor é necessariamente retrovertida: o prazer em fazer sofrer torna-se um prazer em fazer sofrer a si mesmo. Aquela hipótese para o surgimento do Estado nos mostra a enorme violência com que foram reprimidos os impulsos do homem selvagem, e que obrigou o homem a tal inibição. Tal é a origem da má consciência – uma retroversão dos impulsos causada pela repressão empreendida pelos fundadores do Estado. Neles não nasceu a má consciência, isto é mais do que claro – mas sem eles ela não teria nascido, essa planta hedionda, ela não existiria se, sob o peso dos seus golpes de martelo, da sua violência de artistas, um enorme quantum de liberdade não tivesse sido eliminado do mundo, ou ao menos do campo da visão e tornado como que latente.117 116

GdM. II, 18. Como vemos, Nietzsche afirma que a condição primeira para o não-egoísmo é a vontade de maltratar-se a si próprio, e não um princípio utilitarista que visa evitar o desprazer próprio. Nesse sentido, considero que há uma inversão do olhar, no tocante a essa questão, em GdM em relação a Aurora. O que fazia a moralidade ser consolidada era a utilidade da ação não-egoísta ao evitar o desprazer próprio. Agora, ao contrário, é justamente a vontade de maltratar-se que fundamenta o princípio do não-egoísmo. Possivelmente, os dois pontos de vista sejam aceitáveis. O ponto a que queremos chamar atenção é a justificação nova de Nietzsche, um olhar voltado para outra direção. 117 GdM. II, 17.

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Nietzsche apresenta a noção de “má consciência” como uma doença, da qual o homem até hoje não se curou: um sofrimento do homem consigo mesmo. Isso só foi possível graças ao processo de interiorização do homem, ocorrido em razão da necessidade do “Estado” de se proteger dos instintos de liberdade do homem errante.118 Aquele prazer na crueldade, por não poder se desafogar em outros, passa a se inverter para dentro, e o responsável pela dor, sobre o qual a vingança poderia atuar, identifica-se com o próprio sofredor. Nietzsche afirma que num dado momento da história do homem, este praticamente se viu obrigado a promover mudanças (fisiológicas e comportamentais) em si mesmo. Nesse momento, o homem teve de desenvolver em si um alargamento de seu universo interior: Para as funções mais simples sentiam-se canhestros, nesse novo mundo não mais possuíam seus velhos guias, os impulsos reguladores e inconscientemente certeiros (die regulierenden umbewusst-sicherführenden Triebe) – estavam reduzidos, os infelizes, a pensar, inferir, calcular, combinar causas e efeitos, reduzidos à sua “consciência” („Bewusstsein“), ao seu órgão mais frágil e mais falível – contudo – os velhos instintos (Instinkte) não deixaram de fazer suas exigências!.119

Dentre esses instintos, mantidos sob repressão, subterraneamente, o quiçá mais importante para pensarmos agora é a vontade de causar dor. Essa crueldade, à medida que foi reprimida, foi obrigada a fazer o caminho inverso. Mas era difícil, raramente possível, lhes dar satisfação: no essencial, tiveram de buscar gratificações novas e, digamos, subterrâneas. Todos os instintos que não se descarregam para fora, voltam-se para dentro – isto é o que chamo de interiorização do homem: é assim que no homem cresce o que depois se denomina sua “alma”. Todo o mundo interior (...) foi se expandindo e se estendendo, adquirindo profundidade, largura e altura, na medida em que o homem foi inibido (gehemmt worden ist) em sua descarga pra fora. Aqueles terríveis bastiões com que a organização do Estado se protegia dos velhos instintos de liberdade – os castigos, sobretudo, estão entre esses bastiões – fizeram com que todos aqueles instintos do homem selvagem, livre e errante se voltassem para trás, contra o homem mesmo.120

Todo tipo de controle, repreensão, repressão contra aqueles instintos do homem selvagem fez com que o ser humano tivesse de reverter esses instintos contra o homem mesmo, em direção contrária. A hostilidade, a crueldade, o prazer na perseguição, no assalto, na mudança, na destruição – tudo isso se voltando contra os possuidores de tais instintos: esta é a origem da má consciência. Esse homem que, por falta de inimigos e resistência exteriores, cerrado numa opressiva estreiteza e regularidade de costumes, impacientemente lacerou, perseguiu, corroeu, espicaçou, maltratou a si mesmo, esse animal que querem 118

Lembrando que também os antigos senhores tiveram de reprimir seus instintos ao longo dos tempos. GdM. II, 16. 120 GdM. II, 16. 119

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“amansar” („zähmen“), que se fere nas barras da própria jaula, (...), que a si mesmo teve de converter em aventura, câmara de tortura, insegura e perigosa mata (...) tornou-se o inventor da “má consciência”. Com ela, porém, foi introduzida a maior e mais sinistra doença, da qual até hoje não se curou a humanidade, o sofrimento do homem com o homem, consigo: como resultado de uma violenta separação de seu passado animal (...).121

O primeiro momento da má consciência, portanto, é indissociável do processo de hominização – é a sua distintiva doença. A vontade de causar dor (em especial, a si mesmo) é o que possibilita o bicho-homem civilizar-se. Trata-se de uma má consciência ativa, uma vontade de poder, uma vontade de artista de dar a si uma forma. Apesar de ter sido iniciada graças a uma vontade de poder externa, a vontade de poder interna manifesta-se igualmente ativa, pois não é uma força que simplesmente não se extravasa, mas uma força que atua (ainda que na direção contrária). Tal crueldade, longe de ser gratuita, é a crueldade que o artista tem em relação à sua matéria-prima, lapidando, experimentando formas. Com a ressalva de que, no caso, sua matériaprima é sua própria alma. Essa oculta violentação de si mesmo, essa crueldade de artista, esse deleite em se dar forma, como a uma matéria difícil, recalcitrante, sofrente, em se impor a ferro e fogo uma vontade, uma crítica, uma contradição, um desprezo, um Não, esse inquietante e horrendamente prazeroso trabalho de uma alma voluntariamente cindida, que a si mesma faz sofrer, por prazer em fazer sofrer, essa “má consciência” ativa também fez afinal (...) vir à luz uma profusão de beleza e afirmação nova e surpreendente, e talvez mesmo a própria beleza...122

A gênese de uma moral possui suas bases sempre numa coerção; no fundo, ela só é possível como resultado de forças atuantes em conflito, ou de forças latentes sendo consideradas; ela só vem a ser pela vontade de poder (tanto sob a forma exteriorizada como quando é aplicada contra si, na configuração de uma “alma”). Por um lado, há uma expressão da vontade de poder por parte de um “corpo” chamado Estado, por outro, há uma vontade de causar dor reprimida que cria um novo direcionamento da vontade de poder: ela se vira para dentro, causando dor e dando forma à alma. Por não poder descarregar livremente os afetos, nós orientamos nossa alma a seguir uma determinada conduta (repressiva, em todo caso). Isto é precisamente o que pode ser entendido como moralidade: o duplo direcionamento da vontade de poder. E é esse processo doloroso de aplicar duros golpes a essa massa informe (nossa alma), essa experimentação de formas, que Nietzsche chama de hybris (desmedida). hybris é a nossa atitude para com nós mesmos, pois fazemos conosco experimentos que não nos permitiríamos fazer com nenhum animal, e alegres e curiosos vivisseccionamos nossa alma: que nos importa ainda a

121 122

GdM. II, 16. GdM. II, 18

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“salvação” da alma! Depois curamos a nós mesmos: estar doente é instrutivo, não temos dúvida, ainda mais instrutivo que estar são – os que tornam doente nos parecem mesmo mais necessários do que homens de medicina e “salvadores”. Violentamos a nós mesmos hoje em dia, não há dúvida, nós, tenazes, quebra-nozes da alma, questionadores e questionáveis, como se viver fosse apenas quebrar nozes (...).123

Esse projeto de instaurar no homem uma moral, através de uma violenta moralidade dos costumes, apesar de participar daquela tarefa “paradoxal” da natureza (que gera um ser que luta contra sua própria natureza), esse projeto de forjar a ferro e fogo um ser que se sente distanciado da natureza (o primeiro pathos da distância), um ser que julga e valora a natureza como se estivesse de fora, em suma, esse projeto de humanizar o bicho-homem é visto, por Nietzsche, como um processo de invenção artística. Mas Nietzsche considera que mesmo essa tal arte de inventar-se ao passo em que nega a natureza pode ser ela mesma natural, à medida que parece indissociável do homem. É importante perceber também que tal violência e rigidez no emprego de regras arbitrárias são responsáveis pela formação de um espírito artístico, que sente o gosto de dar formas, de configurar, de ordenar, de dispor dos meios para se fazer algo difícil, novo, original e belo. Há medida e finura nessa técnica; ainda que possa mudar, maleável e passível de reinterpretação e ressignificação, sempre haverá uma regra. Toda moral é, em contraposição ao laisser aller [“deixar ir”], um pouco de tirania contra a “natureza”, e também contra a “razão”: mas isso ainda não constitui objeção a ela, caso contrário se teria de proibir sempre, a partir de alguma moral, toda espécie de tirania e desrazão. O essencial e inestimável em toda moral é o fato de ela ser uma demorada coerção. (...) Mas o fato curioso é que tudo que há e houve de liberdade, finura, dança, arrojo e segurança magistral sobre a Terra, seja no próprio pensar, seja no governar, ou no falar e convencer, tanto nas artes como nos costumes, desenvolveu-se apenas graças à “tirania de tais leis arbitrárias”; e, com toda seriedade, não é pequena a probabilidade de que justamente isso seja “natureza” e “natural” – e não aquele laisser aller! Todo artista sabe quão longe do sentimento de deixar-se levar se acha seu estado “mais natural”, o seu livre ordenar, pôr, dispor, criar nos momentos de “inspiração” – e com que rigor e sutileza ele obedece então às mil leis que troçam de toda formulação por conceitos, devido justamente à sua natureza e precisão (...). O essencial (...) é (...) que se obedeça por muito tempo e numa direção: daí surge com o tempo, e sempre surgiu, alguma coisa pela qual vale a pena viver na terra, como virtude, arte, música, dança, razão, espiritualidade – alguma coisa transfiguradora, refinada, louca e divina.124

3.3 – CRIAÇÃO E TRANSVALORAÇÃO DOS VALORES A partir da noção desenvolvida por nós, no que diz respeito à formação da linguagem, podemos pensar como Nietzsche busca a origem dos valores (especialmente dos valores “bom”,

123 124

GdM. III, 9. ABM, 188.

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“mau”, “ruim”, etc.). Ao descartar a possibilidade de que tenham sido criados como sintomas de um resultado positivo ou negativo – de modo que “bom” designaria aquilo que “faz bem”: como as ações não-egoístas faziam bem à sociedade, por serem úteis a ela e a seus membros, seriam tidas e sentidas como boas, mas teriam sua origem esquecida com o passar do tempo125, ou mesmo não tendo sido esquecida, dado o grau de conveniência de sua memória, e tendo sempre sido lembrada por sua utilidade (como defende Herbert Spencer)126 –, Nietzsche realiza uma investigação etimológica em busca da resposta para tal questão. A indicação do caminho certo me foi dada pela seguinte questão: que significam exatamente, do ponto de vista etimológico, as designações para “bom” cunhadas pelas diversas línguas? Descobri então que todas elas remetem à mesma transformação conceitual – que, em toda parte, “nobre”, “aristocrático”, no sentido social, é o conceito básico a partir do qual necessariamente se desenvolveu “bom”, no sentido de “espiritualmente nobre”,

“aristocrático”,

de

“espiritualmente

bem-nascido”,

“espiritualmente

privilegiado”:

um

desenvolvimento que sempre corre paralelo àquele outro que faz “plebeu”, “comum”, “baixo” transmutar-se finalmente em “ruim”.

Assim inicia sua empreitada etimológica, aproximando palavras alemãs como schlecht [ruim] e schlicht [simples]; ou Gut [bom] com “o divino” [den Göttlichen], o homem de linhagem divina [göttlichen Geschlechts], o que seria proveniente do nome do próprio povo, no caso, os godos [die Gothen]. Poderíamos fazer nossa própria incursão, analisando a nossa própria língua portuguesa, tomando como exemplo a palavra ‘aristocracia’. Temos, em grego, a palavra  (adv. da melhor forma, excelentemente, com excelência; adj. o melhor), cuja raiz se encontra no verbo

  (ser o mais bravo, ser o melhor, ter a mais elevada distinção), donde se segue    (governo dos mais nobres, governo dos melhores, aristocracia; - junção de  +  , que é “ter a força, ter poder, ser chefe, dominar, comandar, sobrepujar, etc.”).127 Outra exemplificação de um juízo de valor social refletido na linguagem é a da palavra

  (aquele que faz o trabalho; vil, baixo, maligno), derivada da mesma raiz de  (trabalho físico que extenua, desgasta, degrada o homem/ sofrimento) e  (trabalhar, sofrer), e sua relação com  (pobreza, miséria, desgraça).128 Com isso, podemos pensar que, 125

Cf. GdM. I, 2. Cf. GdM. I, 3. 127 Cf. MAGNIEN, V. – LACROIX, M. Dictionnaire Grec-Français. Paris: Librairie Belin-Paris, 1969 e ISIDRO PEREIRA, S. J. Dicionário Grego-Português e Português-Grego. Livraria Apostolado da Imprensa – Braga. 8a edição. 128 Não se pode inferir daí a criação da palavra “pena” com sentido de castigo (poena – lat.), a qual é derivada de outra palavra, a saber,  . Designa a expiação de um homicídio, punição, compensação e até vingança. 126

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de fato, independente do que tenha vindo antes (se o conceito “bom” ou o nome da condição social), é fato que há uma semelhança lingüística entre as duas coisas. O importante a se destacar aqui é como uma mesma palavra pode não só denotar uma condição social, como também algo pejorativo. É explícita a compreensão do homem grego sobre o conceito de trabalho como algo degradante. Então, sendo os nobres os grandes empregadores de valores, ‘bom’ será aquilo que disser respeito aos valores e à conduta moral nobre. No entanto, para Nietzsche, a regra “de que o conceito denotador de preeminência política sempre resulta em um conceito de preeminência espiritual” não tem como exceção o fato de a casta sacerdotal ser simultaneamente a mais elevada. Ela, por sua vez, fará valorações coerentes com sua função. “É então que “puro” e “impuro” se contrapõem pela primeira vez como distinção de estamentos; aí também se desenvolvem depois “bom” e “ruim”, num sentido não mais estamental”.129 Esta casta divide o posto mais elevado não só por se mostrar importante, mediante sua sabedoria, para fins curandeiros, mas, sobretudo, por também criar valores e ter o poder de ressignificá-los. É por esta capacidade que Nietzsche diz que Com os sacerdotes tudo se torna mais perigoso, não apenas meios de cura e artes médicas, mas também altivez, vingança, perspicácia, dissolução, amor, sede de domínio, virtude, doença – mas também com alguma eqüidade se acrescentaria que somente no âmbito dessa forma essencialmente perigosa de existência humana, a sacerdotal, é que o homem se tornou um animal interessante, apenas então a alma humana ganhou profundidade num sentido superior, e tornou-se má – e estas são as duas formas fundamentais da superioridade até agora tida pelo homem sobre as outras bestas!...130

A partir disso, Nietzsche traça duas perspectivas segundo o modo de valoração: (i) o modo cavalheiresco-aristocrático, que, por sua constituição física e natureza guerreira, atribuirá valor elevado a noções como “guerra”, “força”, “caça”, “dança”, “disputa” “e tudo o que envolve uma atividade robusta, livre, contente”.131 As classes aristocrática e sacerdotal enfrentar-se-ão ciumentamente através de suas valorações, pois (ii) o modo de valorar nobre-sacerdotal tem pressupostos diferentes, pela sua natureza e constituição física desfavorecida, rebaixará valores como os citados acima e elevará aquilo que tem de melhor (a inteligência e espiritualidade estão entre essas coisas).

129

GdM. I, 6.

130

GdM. I, 6. GdM. I, 6.

131

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Dessa forma, Nietzsche dirá que a classe sacerdotal revelar-se-á como a mais perigosa, por ser a mais impotente (ohnmächtigste) e “[n]a sua impotência, o ódio toma proporções monstruosas e sinistras, torna-se a coisa mais espiritual e venenosa. Na história universal, os grandes odiadores sempre foram sacerdotes, também os mais ricos de espírito”.132 É neste ponto que Nietzsche apresenta-nos a grande virada sacerdotal: a transvaloração dos valores (Umwethung der Werthe). Esse desenvolvimento tem como maior exemplo o sacerdote judeu. O resultado foi que, com esse movimento, apenas os fracos e necessitados, os doentes e malogrados, os pobres, impotentes e feios foram tornados bons. Unicamente os sofredores são os abençoados, pois distinguem-se diametralmente dos fortes e poderosos, que são maus por serem opressores e causarem sofrimento. Estes, os poderosos, são malditos e ímpios. É válido notar também que foi advinda de uma tradição sacerdotal a divinização do trabalho: “o trabalho dignifica o homem”. Tal palavra é oriunda de Tripālium que é uma espécie de tripālis (objeto de três estacas) usado para prender animais e também como instrumento de tortura. Da raiz indo-germânica orbho (pequeno, pobre, fraco) se origina o labor latino e Arabd (alemão antigo: fadiga, necessidade, miséria; donde se deriva Arbeit). É a partir de um contraste radical que Nietzsche se referirá aos gregos e aos últimos romanos. De um lado, a indignidade do trabalho e sua incompatibilidade com a virtude: “Para que se origine a virtude e a atividade política é necessário o ócio”133. De outro, a dignificação do trabalho, não por ser uma faculdade da alma (que não é), mas por afastar da alma (ou mente) as tentações do mundo material, mantendo o corpo fraco e doente, porém, a mente “sã”. Em verdade, o trabalho não oferece espaço ao homem que o pratica para ser egoísta. Desta forma, o homem trabalhador, ao sofrer (e, muitas vezes, não só sofrer, como voluntariamente sofrer), aproxima-se mais da redenção por participação na cruz de Cristo – como se estivesse também ele carregando a sua própria. É assim que a vingança perde o terreno físico e se estabelece no plano espiritual. O ódio judeu fez nascer “o mais profundo e sublime de todos os tipos de amor”134, que se ergue como coroa, como triunfo. Ora, pergunta Nietzsche, não seria Jesus de Nazaré,135 enquanto ápice desse amor, o redentor dos pobres e doentes e, desta forma, o grande rebaixador dos ideais e valores 132

GdM. I, 7. ARISTÓTELES. Política, VII, 9, 1328b. In: Logos Enciclopédia Luso-Brasileira de Filosofia, 1992. A citação de Aristóteles serve somente para ilustrar um fato cultural entre os gregos da Antigüidade, e não, de forma alguma, aproximá-lo de Nietzsche. 134 GdM. I, 8. 135 Não o que foi enquanto homem, mas o que representou/representa. Cf. GdM. I, 8. 133

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nobres? Não seria, pois, também ele o grande vingador, por aniquilar e transpor a ordem axiológica aristocrática? Não foi este o grande triunfo de Israel e seu povo (um povo de sacerdotes) sobre todos os ideais nobres? Exigir da força (Stärke) que não seja um querer-dominar, um querer-vencer, um querer-subjugar, uma sede de inimigos, resistências e triunfos, é tão absurdo quanto exigir da fraqueza que se expresse como força. Um quantum de força (Kraft) equivale a um mesmo quantum de impulso, vontade, atividade (Trieb, Wille, Wirken), este mesmo querer e atuar, e apenas sob a sedução da linguagem (...), a qual entende ou mal-entende que todo atuar é determinado por um atuante, um “sujeito”, é que pode parecer diferente. Pois assim como o povo distingue o corisco do clarão, tomando este como ação, operação de um sujeito de nome corisco, do mesmo modo a moral do povo discrimina a força e as expressões da força, como se por trás do forte houvesse um substrato indiferente que fosse livre para expressar ou não a força. Mas não existe um tal substrato; não existe “ser” por trás do fazer, do atuar, do devir; “o agente” é uma ficção acrescentada à ação – a ação é tudo (das Thun ist Alles).136

É esta compreensão vulgar da noção de sujeito que o desvincula de sua inocência no devir. Essa “essencialização” do ato, como se a coisa fosse “ser”, e como se a ação fosse seu produto, é que possibilita a fantasia do livre arbítrio, distanciando o sujeito de suas ações, criando-se a ilusão de que ele pode escolhê-las. É daí que, conforme a alegoria nietzscheana, as ovelhas prerrogam a si o direito de julgar as aves de rapina, ou seja, não pela força, mas por uma ficção (assentada numa sedução da linguagem). Assim, a ave de rapina é não só má, como voluntariamente má, por escolha própria – as ovelhas imputam à ave de rapina sua condição de ave de rapina e, dessa forma, imputam a si mesmas sua condição de fraqueza como mérito, como se isso exigisse uma escolha e um esforço para ser alcançado. Por um instinto de autoconservação, de auto-afirmação, no qual cada mentira costuma purificar-se, essa espécie de homem necessita crer no “sujeito” indiferente e livre para escolher. O sujeito (ou, falando de modo mais popular, a alma) foi até o momento o mais sólido artigo de fé sobre a terra, talvez por haver possibilitado à grande maioria dos mortais, aos fracos e oprimidos de toda espécie, enganar a si mesmos com a sublime falácia de interpretar a fraqueza como liberdade, e o seu ser-assim como mérito.137

É assim que Nietzsche nos conduz à conclusão de que foi de maneira mentirosa que houve tal transvaloração, a partir do que “a impotência que não acerta contas é mudada em ‘bondade’; a baixeza medrosa, em ‘humildade’; a submissão àqueles que se odeia em ‘obediência’ (há alguém que dizem impor esta submissão – chamam-no Deus). (...) o não-poder-

136 137

GdM. I, 13. GdM. I, 13.

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vingar-se chama-se não-querer-vingar-se, talvez mesmo perdão (‘pois eles não sabem o que fazem138 – somente nós sabemos o que eles fazem!’)”. 139 Mas tudo agora se passa num novo plano – um mundo não mais governado pelos fortes, mas por Deus. Assim, os bons serão os justos (que agem de acordo com a lei divina), a injustiça a falta de Deus, e o consolo por todo o sofrimento em vida será a crença no Juízo Final.140 Essa crença surte um efeito de uma espécie de entorpecimento da dor causada a ele pelos fortes. Pois aquela satisfação íntima dada ao credor para ver o devedor sofrer está reservada para ele no dia do Juízo. O homem fraco não exige direito em vida, pois para isso é necessário força. Mas em sua mente, em sua ficção, há sim uma espécie de direito estabelecida, pois, para ele, cada dor que sofre de seu opressor é um bônus, de modo que o opressor (sem saber que foi posto num terreno “jurídico”) acumula dívidas para com esse credor sofrente. Na impossibilidade de exigir o pagamento em vida, o fraco espera o dia da compensação. Tomás de Aquino, o grande mestre e santo. “Beati in regno coelesti”, diz ele, suave como um cordeiro, “uidebunt poenas damnatorum, ut beatitudo illis magis complaceat” [Os abençoados no reino dos céus verão as penas dos danados, para que sua beatitude lhes dê maior satisfação].141

Agora entendemos por que Nietzsche chama a todo esse movimento de um ato da mais espiritual vingança. Para Nietzsche, é esse movimento que agora gera os novos valores. E isso é levado a cabo por um “fenômeno” psicológico chamado ressentimento.

3.4 – DO RESSENTIMENTO Aqui surge uma divisão entre tipos: o homem nobre e o homem do ressentimento. Enquanto aquele valora ativamente, “com confiança e franqueza diante de si mesmo”142, o homem do ressentimento valora reativamente. A dor que ele sofre se fixa na memória e não é convertida em forma de afetos extravasados. Ele precisa criar uma saída para o escoamento desses afetos: essa saída é finalmente possibilitada por uma ficção, e apenas enquanto ficção, uma criação engenhosa e de ordem espiritual (pois espírito é o que ele dispõe de mais desenvolvido). Na visão de Deleuze, essas forças reativas parecem ser forças ativas invertidas,

138

Lucas, 23, 34. GdM. I, 14. 140 Cf. GdM. I, 14. 139

141

GdM. I, 15.

142

GdM. I, 10.

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forças de recuo, que são descarregadas para dentro, mas sempre em resposta às forças ativas que querem extravasar: por isso são reativas. As forças não são separáveis do elemento diferencial do qual deriva sua qualidade. Mas as forças reativas dão, desse elemento, uma imagem transposta: a diferença de forças, vista do lado da reação, torna-se a oposição de forças reativas às forças ativas. Portanto, bastaria (Il suffirait) que as forças reativas tivessem a ocasião de desenvolver ou de projetar esta imagem para que a relação das forças e os valores que correspondem a esta relação sejam, por sua vez, transpostas. Ora, essa ocasião, elas [as forças] a encontram ao mesmo tempo em que buscam o meio de se furtarem à atividade. Cessando de serem agidas, as forças reativas projetam a imagem transposta/invertida (renversée). É essa projeção reativa que Nietzsche chama uma ficção: ficção de um mundo supra-sensível em oposição a este mundo, ficção de um Deus em contradição com a vida. (...) É ela que preside a toda evolução do ressentimento, quer dizer, às operações pelas quais, simultaneamente, a força ativa é separada daquilo que ela pode (falsificação), acusada e tratada como culpada (depreciação), os valores correspondentes transpostos/invertidos (negação). É nesta ficção, por esta ficção, que as forças reativas se representam como superiores. “Por poder dizer não em resposta a tudo que representa o movimento ascendente da vida, a tudo que é bem nascido, poder, beleza, afirmação de si na terra, foi preciso que o instinto de ressentimento, tornado gênio, inventasse um outro mundo, onde essa afirmação da vida nos aparecesse como o mal, a coisa reprovável em si”143.144

O ressentimento surge como uma resposta a uma excitação nervosa que é elaborada, mas que não é agida. Por não haver extravasamento de afetos, a dor se instaura na consciência e se fixa na memória. O aparelho psíquico, por não poder se livrar da dor, traz sempre novamente à tona aquela excitação, ressentindo-a mais uma vez. Esse seria o aspecto tipológico do ressentimento, mostrando-se capaz de gerar novos valores. A rebelião escrava na moral começa quando o próprio ressentimento se torna criador e gera valores: o ressentimento dos seres aos quais é negada a verdadeira reação, a dos atos, e que apenas por uma vingança imaginária obtêm reparação. Enquanto toda moral nobre nasce de um triunfante Sim a si mesma, já de início a moral escrava diz Não a um “fora”, um “outro”, um “não-eu” – e este Não é seu ato criador. Esta inversão do olhar que estabelece valores – este necessário dirigir-se para fora, em vez de voltar-se para si – é algo próprio do ressentimento: a moral escrava sempre requer, para nascer, um mundo oposto e exterior, para poder agir em absoluto – sua ação é no fundo reação.145

É um modo de valorar reativo. Mas entenda-se: é uma reação que não é agida, ou seja, é ficcional, imaginária. Ela se passa, portanto, apenas no plano fictício das imagens. Devemos entender a reação como um tipo específico de ação, ou seja, um ato de resposta. Assim, não seria suficiente uma reação para formar um ressentimento. Por isso, Deleuze afirma que o “[r]essentimento designa um tipo em que as forças reativas levam vantagem sobre as forças 143

AC, 24. DELEUZE, Gilles. Nietzsche et la philosophie. Paris: PUF, 1962. Pg. 143. Doravante abreviado por NP, seguido da paginação. 145 GdM. I, 10. 144

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ativas. Ora, elas não podem imperar que não desta forma: deixando de serem agidas”.146 Desse modo, completa dizendo que não se pode definir o ressentimento pela força de uma re-ação, pois se deve lembrar que o homem do ressentimento não reage. Antes, cria um mundo alternativo, no qual os valores estão dados de modo diferente, onde se deve respeitar um novo senhor e, portanto, novas leis. Isso só pôde ser levado a cabo, diz Nietzsche, por haver no ressentido uma habilidade e uma destreza que atuam no plano da inteligência e do espírito. Sua alma olha de través; ele ama os refúgios, os subterfúgios, os caminhos ocultos, tudo escondido lhe agrada como seu mundo, sua segurança, seu bálsamo; ele entende do silêncio, do não-esquecimento, da espera, do momentâneo apequenamento e da humilhação própria. Uma raça de tais homens do ressentimento resultará necessariamente mais inteligente (Klüger) que qualquer raça nobre, e venerará a inteligência numa medida muito maior: a saber, como uma condição de existência de primeira ordem, enquanto para os homens nobres ela facilmente adquire um gosto sutil de luxo e refinamento.147

Parece haver, como defende Deleuze, dois aspectos do ressentimento, portanto. Para ele, “o primeiro aspecto do ressentimento é topológico: há uma topologia de forças reativas: é a sua mudança de lugar, seu deslocamento que constitui o ressentimento, é a invasão da consciência pelos traços mnêmicos”.148 Mas há, para ele, também um caráter tipológico decorrente dessa topologia. O primeiro seria o ressentimento em seu estado bruto, entendido como o deslocamento das forças reativas. Esta distinção corresponde à topologia e à tipologia. Ora, tudo indica que ela já vale para o ressentimento. O ressentimento (...) possui dois aspectos ou momentos. Um, topológico, questão de psicologia animal, constitui o ressentimento como matéria bruta: exprime a maneira pela qual as forças reativas se furtam à ação das forças ativas (deslocamento das forças reativas, invasão da consciência pela memória das marcas). O segundo, tipológico, exprime a maneira pela qual o ressentimento toma forma: a memória das marcas torna-se um caráter típico, porque encarna o espírito de vingança e conduz um empreendimento de acusação perpétua; então, as forças reativas opõem-se às ativas e separam-nas daquilo que elas podem (transposição [renversement] da relação de forças, projeção de uma imagem reativa). (...) notar-se-á que, em nenhum dos dois casos, as forças reativas triunfam ao formar uma força maior do que as forças ativas: no primeiro caso, tudo se passa entre forças reativas (deslocamento); no segundo, as forças reativas separam as forças ativas daquilo que elas podem, mas por uma ficção, por uma mistificação (transposição por projeção).149

O aspecto topológico também pode ocorrer no homem nobre, pois independe de seu tipo. Mas ele não o envenena, porque o homem nobre deve possuir uma capacidade regeneradora de modo a metabolizar sua dor sem deixar que ela se fixe na consciência.

146

NP. Pg. 127.

147

GdM. I, 10. NP. Pg. 131. 149 NP. Pg. 142-143. 148

46

Mesmo o ressentimento do homem nobre, quando nele aparece, se consome e se exaure numa reação imediata, por isso não envenena: por outro lado, nem sequer aparece, em inúmeros casos em que é inevitável nos impotentes e fracos. Não conseguir levar a sério por muito tempo seus inimigos, suas desventuras, seus malfeitos inclusive – eis o indício de naturezas fortes e plenas, em que há um excesso de força plástica, modeladora, regeneradora, propiciadora do esquecimento(...).150

Ao sofrer, quase instantaneamente, é elaborada essa reação para ser descarregada em forma de afeto, sobretudo, sobre algo que possa sentir dor. Por isso, há uma busca imediata pelo responsável pela dor, o culpado sobre o qual o afeto poderá agir e, assim, entorpecê-la. Mas no homem ressentido, por possuir forças reativas que levam vantagem sobre as ativas, a elaboração é feita, mas não é extravasada, e isso obriga um novo direcionamento para a elaboração feita: a descarga de afetos é inibida e voltada para dentro. Esse deslocamento das forças ativas, para Deleuze, constitui o aspecto topológico do ressentimento. Ele consiste, pois, em uma dor que atinge um ser que, por sua vez, produz uma resposta a esta dor. Tão logo haja uma forte excitação num organismo (uma dor, por exemplo), esse organismo age em resposta. Essa elaboração fisiológica, para Nietzsche, não pode ser entendida como um mero movimento reflexo, pois ela é em vista de algo diferente: não busca afastar-se do causador de danos, evitando e prevenindo mais lesões. Busca, antes, entorpecer, mediante um afeto, a dor sofrida. (...) a descarga de afeto é para o sofredor a maior tentativa de alívio; de entorpecimento, seu involuntariamente ansiado narcótico para tormentos de qualquer espécie. Unicamente nisto, segundo minha suposição, se há de encontrar a verdadeira causação (wirkliche Ursächlichkeit) fisiológica do ressentimento, da vingança e quejandos, ou seja, em um desejo de entorpecimento da dor através do afeto – de ordinário ela [a efetiva causação] é procurada, muito erroneamente, me parece, em um contragolpe defensivo, uma simples medida protetora, um “movimento reflexo” em resposta a uma súbita lesão ou ameaça, do tipo que ainda executa uma rã sem cabeça, para livrar-se de um ácido corrosivo. Mas a diferença é fundamental: em um caso quer-se prevenir mais lesões, no outro caso quer-se entorpecer, mediante uma emoção mais violenta de qualquer espécie, uma dor torturante, secreta, cada vez mais insuportável, e retirá-la da consciência ao menos por um instante – para isto necessita-se de um afeto, um afeto o mais selvagem possível e, para sua excitação, um bom pretexto qualquer.151

Quando esse afeto não é extravasado, a dor se instala na memória, tornando-se uma marca, um traço mnêmico torturante. Se isso ocorre num homem nobre, o afeto deve ser extravasado numa reação imediata, agida, de modo que não penetre na consciência, envenenando-a. Fisiologicamente é o esquecimento, força ativa, atuando e não deixando esses

150 151

GdM. I, 10. GdM. III, 15.

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traços mnêmicos tomarem conta da consciência. É a boa digestão psíquica das marcas, das vivências. Já o homem do ressentimento possui uma deficiência fisiológica, que gera um problema psicológico: “o homem no qual esse aparelho inibidor [o esquecimento] é danificado e deixa de funcionar pode ser comparado (e não só comparado) a um dispéptico – de nada consegue “dar conta”...”.152 A busca pelo culpado, que compõe o modo de entorpecimento da dor, passa a ter uma significação orientada pelo sacerdote ascético, pois não conseguindo livrar-se das marcas, é preciso, ao menos, significar a dor. Surge, então, o que Deleuze denominaria aspecto tipológico. “Eu sofro: disso alguém deve ser culpado” – assim pensa toda ovelha doente. Mas seu pastor, o sacerdote ascético, lhe diz: “Isso mesmo, minha ovelha! Alguém deve ser culpado: mas você mesma é esse alguém – somente você é culpada de si!...”. Isso é ousado bastante, falso bastante: mas com isto se alcança uma coisa ao menos, com isto, como disse, a direção do ressentimento é – mudada.153

Para Deleuze, não basta pensar um sujeito que não reage porque é mais fraco, simplesmente. É preciso deixar de lado a quantidade de força num sujeito ou nos sujeitos em questão, e pensar “uma relação determinada no próprio sujeito entre forças de diferentes naturezas que a compõem: aquilo a que se chama um tipo”.154 Quer dizer, não é por ser fraco que o sujeito não reage, não por sua constituição física, mas pela sua constituição psicológica. Qualquer que seja a força da excitação recebida, qualquer que seja a força total do próprio sujeito, o homem do ressentimento não se serve desta se não para investir a marca daquela, já que é incapaz de agir, e até mesmo de reagir à excitação. Assim como não é necessário que tenha experimentado uma excitação excessiva. (...) Já não é mais necessário generalizar para conceber o mundo inteiro como objeto de seu ressentimento. Em virtude de seu tipo, o homem do ressentimento não “reage”: sua reação não se esgota (n’en finit pas), ela é sentida ao invés de ser agida.155

A dor causada ao sujeito do ressentimento instaura nele uma vontade de querer um culpado. Esse direcionamento da culpa pode ricochetear em cada canto e pousar sobre um objeto qualquer (ainda que este não seja o responsável direto pela dor, mas, de preferência, ainda deve ser algo suscetível de dor). “Prende-se, portanto, ao seu objeto, qualquer que seja ele, como a um objeto do qual é preciso vingar-se, ao qual, precisamente, é necessário fazer pagar esse retardo infinito”.156

152

. II, 1. GdM. III, 15. 154 NP. Pg. 132. 155 NP. Pg. 132. 156 NP. Pg. 132. 153

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Não compreendemos o ressentimento enquanto virmos aí somente um desejo de vingança, um desejo de se revoltar e triunfar. O ressentimento, em seu princípio topológico, ocasiona um estado real de forças: o estado de forças reativas que já não se deixam agir, que se furtam à ação das forças ativas. Ele [o ressentimento] fornece, à vingança, um meio: meio de transpor a relação normal das forças ativas e reativas.157

O aspecto topológico do ressentimento é, então, a forma pela qual o ressentimento se manifesta como um desejo de vingança, um desejo de extravasar, em resposta a uma excitação, um afeto. No entanto, não é só isso: o que o caracteriza como tal é o fato de ser um deslocamento (déplacement), ou seja, uma mudança “de lugar”, quando as forças reativas são removidas de seu campo de atuação e são realocadas num lugar em que não possam agir, furtando-se à atividade. Já o aspecto tipológico é dado por uma “deficiência” psicológica, uma incapacidade de agir e de esquecer a dor. O entorpecimento da dor, nesse caso, é propiciado pela hermenêutica sacerdotal, que atribui à dor um sentido, dando a essa limitação psicológica uma justificação moral.

3.5 – O RESSENTIMENTO E A MÁ CONSCIÊNCIA Interpretamos que haja também dois aspectos da má consciência, como havíamos considerado anteriormente. Deve haver um primeiro momento entendido como um “estado bruto” da má consciência, aquele pedaço de psicologia animal; e um segundo momento em que ela é dotada de uma forma moral reinterpretada pelo sacerdote como pecado. O grande estratagema de que se utilizou o sacerdote ascético para fazer ressoar na alma humana toda espécie de música pungente e arrebatada consistiu – todos sabem – em aproveitar-se do sentimento de culpa. A origem deste foi tratada brevemente na dissertação anterior – enquanto parte da psicologia animal, não mais: lá deparamos com o sentimento de culpa em seu estado bruto, por assim dizer. Apenas nas mãos do sacerdote, esse verdadeiro artista em sentimentos de culpa, ele veio a tomar forma – e que forma! O “pecado” – pois assim se chama a reinterpretação sacerdotal da “má consciência” animal (da crueldade voltada para trás).158

A má consciência animal foi reinterpretada pelo sacerdote ascético sob a forma do pecado. A busca pelo causador do dano, pelo culpado, finalmente volta o foco do sujeito para si próprio. Afinal, com a ajuda desse sacerdote, a direção do ressentimento foi mudada, de forma que toda a culpa deve ser buscada num passado ressoante no presente, numa busca pelas marcas mnêmicas que invadiram a consciência psicológica (Bewusstsein) e lá se estabeleceram, e onde o esquecimento foi incapaz de agir.

157 158

NP. Pg. 133-134. GdM. III, 20.

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Como indicamos anteriormente, o problema para o homem não é sofrer, mas sofrer sem sentido.159 O poder do sacerdote consiste em exatamente atribuir sentido à dor, o que é facilitado com a nova valoração que ele impôs. Trata-se de aliviar a dor por mostrar que ela é boa: ela é o meio para a salvação. Ou seja, alivia-se a dor, ressignficando-a e fazendo dela algo almejado: ela agora tem razão de ser. Sofrendo de si mesmo de algum modo, em todo caso fisiologicamente, como um animal encerrado na jaula, confuso quanto ao porquê e o para quê, ávido de motivos – motivos aliviam (Gründe erleichtern) –, ávido também de remédios e narcóticos, o homem termina por aconselhar-se com alguém que conhece também as coisas ocultas – e vejam! Ele recebe uma indicação, recebe do seu mago, o sacerdote ascético, a primeira indicação sobre a “causa” do seu sofrer: ele deve buscá-la em si mesmo, em uma culpa, um pedaço de passado, ele deve entender seu sofrimento mesmo como uma punição... (...) Ele não consegue sair do círculo: o doente foi transformado em “pecador”.160

Deleuze correlaciona cada tipo de má consciência a um aspecto do ressentimento, respectivamente, ao topológico e ao tipológico. Mas ele acredita que esse movimento de um momento do ressentimento para outro seja conduzido por um “artista em ficção”, a saber, o sacerdote. Ele inverte os valores da nobreza e passa a designar qualquer tipo de pulsão ativa, toda manifestação de força, como coisa maligna. Para elevar-se acima do estado bruto do ressentimento, para sublimá-lo, foi preciso haver uma transvaloração dos valores, de modo que tudo o que antes era bom (valores como “forte”, “agressivo”, etc.) passou a ter uma conotação maligna e perversa; ao passo que tudo que era ruim (adjetivos como “fraco”, “pobre”, “humilde”, “simples”) passou a designar valores bons. “Privar a força ativa de suas condições materiais de exercício” e “separá-la formalmente daquilo que ela pode” são, respectivamente, os dois aspectos do ressentimento. Não obstante a força ativa ser separada ficticiamente daquilo que pode, não deve ser menos verdade que algo de real lhe aconteça, como resultado dessa ficção.161 Assim, as forças reativas, segundo Deleuze, ao inibirem as forças ativas, não as anula, mas simplesmente invertem a direção das forças ativas. Eis o que Nietzsche chama de interiorização. Então Deleuze pensa que a introjeção é uma 159

“O que revolta no sofrimento não é o sofrimento em si, mas sua falta de sentido: mas nem para o cristão, que interpretou o sofrimento introduzindo-lhe todo um mecanismo secreto de salvação, nem para o ingênuo das eras antigas, que explicava todo sofrimento em consideração a espectadores ou a seus causadores, existia tal sofrimento sem sentido. Para que o sofrimento oculto, não descoberto, não testemunhado, pudesse ser abolido do mundo e honestamente negado, o homem se viu então praticamente obrigado a inventar deuses e seres intermediários para todos os céus e abismos, algo, em suma, que também vagueia no escuro, que também vê no escuro, e que não dispensa facilmente um espetáculo interessante de dor” (GdM. II, 7). 160 GdM. III, 20. 161 Cf. NP. Pg. 146.

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conseqüência da projeção das forças reativas, impulsionando as forças ativas retroativamente.162 Esse é o papel do ressentimento na formação da segunda má consciência. Ao virar-se para dentro, as forças ativas causam dor. Por isso, ao pensar essas forças reativas como manifestações de vontade de poder, Nietzsche as pensa como uma vontade de causar dor em si. É precisamente este movimento que consolida a má consciência como estado bruto (o que Deleuze chamará de aspecto topológico). Ao gerarem dor, as forças ativas alargam o universo interior do homem, fazendo-o sofrer. No entanto, há um segundo momento da má consciência que se inicia pela busca de sentido da dor. Essa justificação da dor (sendo esta última entendida como inerente à vida) passa a ser um calço de sustentação e afirmação de uma vida que sofre. Aqui entra o papel do sacerdote ascético: ele será um médico (ou pseudo-médico, pois não cura a doença, apenas alivia a dor, quer dizer, não ataca a causa, apenas a conseqüência), detentor e propagador do phármakon que, longe de curar o doente, apenas entorpece e alivia seu sofrer. A droga receitada por esse sacerdote é a justificação da dor, a atribuição de um sentido (o que só pode ganhar efetivação com a transvaloração dos valores). Apesar de, numa perspectiva, o sacerdote negar o que Nietzsche entende por pulsão e afirmação de vida (isto é, a vontade de poder como força de exploração, opressão e apropriação, etc.), já que prega condutas como pobreza, humildade e castidade, em outra perspectiva, o sacerdote afirma uma vida que, justamente por ser debilitada, carece de forças para subsistir. O sacerdote ascético é a encarnação do desejo de ser outro, de ser-estar em outro lugar, é o mais alto grau desse desejo, sua verdadeira febre e paixão: mas precisamente o poder (Macht) do seu desejo é o grilhão que o prende aqui; precisamente por isso ele se torna o instrumento que deve trabalhar para a criação de condições mais propícias para o ser-aqui e o ser-homem – precisamente com este poder ele mantém apegado à vida todo o rebanho de malogrados, desgraçados, frustrados, deformados, sofredores de toda espécie, ao colocar-se instintivamente à sua frente como pastor. Já me entendem: este sacerdote ascético, este aparente inimigo da vida, este negador – ele exatamente está entre as grandes potências conservadoras e afirmadoras da vida...163

O homem, para Nietzsche, é um animal doente e sua doença parece ser proveniente primeiramente de sua não-fixação, de sua indeterminação, por não ter um “telos” estabelecido, o que o faz o maior experimentador de si dentre todos os animais: “ele, o grande experimentador de si mesmo, o insatisfeito, o insaciado, que luta pelo domínio último com os animais, a natureza e

162 163

Cf. NP. Pg. 147. GdM. III, 13.

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os deuses – (...) – como não seria um tão rico e corajoso animal também o mais exposto ao perigo, o mais longa e profundamente enfermo entre todos os animais enfermos?”.164 Essa não-fixação e a eterna auto-experimentação infringem dores no homem. Mas a dor passa a ser suportável à medida que deixa de ser em vão. É nesse momento que o sacerdote ascético desempenha seu papel. A maneira pela qual ele entorpece a dor é anexando a noção de dor à vida; depois, anexa a noção de vida às de culpa e pecado. De acordo com o que expusemos, o existir passa a ser algo a ser refutado, uma mera passagem ao “verdadeiro mundo eterno do além”. Ora, para ser feliz no além-mundo, é preciso que se pague em vida toda dívida acumulada pelo próprio fato de existir (o existir pleno de culpa de que havíamos falado). E qual a melhor maneira de satisfazermos nosso credor? Pagando a dívida por meio da dor, não há dúvida. Concedemos ao nosso credor aquela satisfação íntima de ver o devedor sofrer, e por termos interiorizado a consciência do credor, sentimos junto esse prazer. Dessa forma, a fórmula está dada: justifica-se a dor por interpretar que a própria dor é o melhor caminho para o céu. É uma lógica sacrificial (como tentativa de pagamento), mas que se sabe não ser suficiente, pois a dívida é impagável e o sofrimento merecido. De certa forma, ainda carrega os traços daquela má consciência animal, pois é também um tipo de crueldade voltado para trás. Desde o começo a fé cristã é sacrifício: sacrifício de toda liberdade, todo orgulho, toda confiança do espírito em si mesmo; e ao mesmo tempo solidão e auto-escarnecimento, automutilação. Há crueldade e fenicismo religioso nessa fé, que é exigida de uma consciência debilitada, múltipla e de muitos vícios: seu pressuposto é que a submissão do espírito seja indescritivelmente dolorosa, que todo o passado e todo o hábito de um tal espírito oponham ao absurdissimum que a “fé” para ele representa.165

É assim que a dor, à medida que é entorpecida por sua significação, passa a ser desejada. Não podemos nos livrar dela, pois assim a vida (que é sofrer) não teria sentido – é preciso tornála suportável através de uma reinterpretação das categorias jurídicas de débito e crédito: a vida é culpa/dívida; tanto mais dor, melhor. É nesse sentido que esse processo será um tipo de afirmação da vida: porque é uma afirmação da, e busca pela, dor. Por isso, nesse caso, negar a vida é ainda uma afirmação da vontade de viver. O lesionado, ao buscar instintivamente um responsável pela sua dor, tendo a direção do ressentimento mudada pelo sacerdote ascético, que a inverte para dentro, deve sentir-se culpado por sua própria dor. “Mas calma, minha ovelha” – diz o sacerdote – “é justamente essa dor que tu 164

GdM. III, 13. Isso é o que chamamos anteriormente de má consciência ativa.

165

ABM, 46.

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infringirás a ti própria, sendo tu culpada por ti, que te salvará de tua culpa”. É como se o “sentirse culpado” fosse parte essencial do pagamento da dívida. Destarte, a dor é interpretada simultaneamente como conseqüência da culpa e o meio para a salvação. O entorpecimento da dor vem através da fabricação de mais dor, envenenando a ferida e interiorizando e espiritualizando a dor. A bem dizer, se formos analisar por esse caminho, veremos que pouco importa a redenção própria, já que não se poderá ter certeza dela nunca (a não ser no dia do juízo). O que entorpece a dor é saber que ela tem um motivo (“razões aliviam”) e que os opressores sofrerão em sua sobrevida (a forma espiritual da vingança). Como vimos, para Nietzsche, o ressentido pouco ou nada se importa com o resgate propriamente, já que entendemos que o ressentimento não é aquele movimento reflexo que busca “evitar mais lesões”, mas sim o entorpecimento da dor através da infringência de dor (a outrem ou a si). No caso do cristianismo, vemos aparecer os dois aspectos: uma dor a si (pelo fato de o ser pertencer a uma espécie maligna, o homem, sendo culpado e devendo sofrer exatamente por isso) e uma dor causada a outrem, como vingança (mas não promovida pelo ressentido, mas por Deus), sendo esta última uma demorada espera por um deleite cruel e eterno. Nietzsche, aqui, faz vir à tona o fluxo das pulsões daquela velha má consciência animal. Não só ela ainda existe como ganhou dimensões novas e mais profundas; até a eternidade passou a compô-la (um grau de crueldade jamais visto). Essa nova figura da má consciência se mostra como um fazer-sofrer sem limites e direcionado a todas as direções (inclusive contra si), mas que possui uma justificativa religiosa orientada pela valoração sacerdotal sobre o homem e sua dívida com Deus. É importante, pois, percebermos que a passagem do primeiro para o segundo momento da má consciência se dá pela ressignificação sacerdotal da dor. Isto é, é preciso que haja um ser forte o bastante para criar valores, para imprimir, de certa forma (uma forma não-física), sua vontade de poder e ter os outros sob seu domínio. E isso não vem por uma via violenta exteriorizada, mas por uma ardilosa capacidade de transvalorar valores, atribuindo à dor o caminho para a salvação, fazendo dos mal-nascidos os mais aptos à felicidade eterna. Ele próprio [o sacerdote ascético] tem de ser doente, tem de ser aparentado aos doentes e malogrados desde a raiz, para entendê-los – para com eles se entender; mas também tem de ser forte, ainda mais senhor de si do que os outros, inteiro em sua vontade de poder, para que tenha a confiança e o temor dos doentes, para que

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lhes possa ser amparo, apoio, resistência, coerção, instrução, tirano, deus. (...) Não lhe será poupado fazer guerra aos animais de rapina, uma guerra de astúcia (de “espírito”) mais que de violência.166

3.6 – DA MORALIZAÇÃO DA DÍVIDA (a quarta figura da dívida e seu entrelaçamento com a consciência moral – schlechtes Gewissen como fenômeno tipicamente moral) É importante salientar que a dívida religiosa e a moral são figuras diferentes da dívida. Enquanto aquela (em relação aos antepassados) é uma dívida externa ao indivíduo, esta última é entendida a partir da interiorização do sentimento de dever (schulden). É dessa interiorização167 que se origina a má consciência, como fenômeno tipicamente moral. O processo de interiorização do homem possibilitou a interiorização da dívida através do afundamento (Zurückschiebung) das noções de “culpa” e “dever” na consciência moral, a partir do que se consolida a má consciência. Contudo, sua efetivação atinge a culminância quando há um entrelaçamento da má consciência com a noção de Deus. Com a moralização da dívida religiosa, com seu estabelecimento nas profundezas da má consciência, as noções de dívida/culpa (Schuld) e dever (Pflicht) devem (sollen) voltar-se para trás, contra o devedor mesmo, se enraizando e aprofundando de modo que, com o reconhecimento da impossibilidade do pagamento da dívida, concebe-se igualmente a impossibilidade do resgate.168 Somente com o advento do Deus cristão (deus máximo até agora alcançado, que trouxe ao mundo o máximo de sentimento de culpa)169, a dívida originada a partir da matriz obrigacional pôde em absoluto revestir-se de uma forma completamente nova, a saber, a forma de dívida moral, o que só foi obtido graças à interiorização da dívida. Isso quer dizer que houve uma ressignificação da dívida pela moralização da relação de obligatio, o que ganha efetivação com a ressignificação de seu próprio Deus e do papel do homem no mundo. Por fim, Nietzsche relaciona todas essas causas (a repressão dos instintos pelo “Estado”, a interiorização do homem, o entrelaçamento da má consciência com a noção de Deus, os predicados atribuídos a Deus e ao homem) de maneira que, em suas diferentes manifestações, a dívida atinge seu ponto máximo, e a crueldade sua mais terrível culminância, do que se consolida 166

GdM. III, 15.

167

Essa interiorização da dívida é coerente com a nova figura de Deus: agora, aquele que tudo vê habita, inclusive, nossa consciência (Gewissen), do que surge a má consciência como resultado de uma introjeção da culpa. A interiorização da dívida é a interiorização da consciência do credor. Portanto, a satisfação do credor ao ver o devedor sofrer será sentida pelo próprio devedor. 168 Cf. GdM. II, 21. 169 Cf. GdM. II, 20.

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a má consciência como uma dívida interiorizada para com Deus, justificada, enfim, por uma loucura da vontade – a vontade de autoflagelação, automartírio. (...) essa crueldade reprimida (zurückgetretene Grausamkeit – ou “crueldade retrovertida/ recuada”) do bichohomem interiorizado, acuado dentro de si mesmo, aprisionado no “Estado” para fins de domesticação, que inventou a má consciência para se fazer mal, depois que a saída mais natural para esse querer-fazer-mal fora bloqueada – esse homem da má consciência se apoderou da suposição religiosa para levar seu automartírio à mais horrenda culminância. Uma dívida para com Deus: este pensamento tornou-se para ele um instrumento de suplício. Ele apreende em “Deus” as últimas antíteses que chega a encontrar para seus autênticos insuprimíveis instintos animais, ele reinterpreta esses instintos como culpa em relação a Deus (como inimizade, insurreição, rebelião contra o “Senhor”, o “Pai”, o progenitor e princípio do mundo), ele se retesa na contradição “Deus” e “Diabo”, todo o Não que diz a si, à natureza, naturalidade, realidade do seu ser, ele o projeta fora de si como um Sim, como algo existente (...) como eternidade, como tormento sem fim, como Inferno, como incomensurabilidade do castigo e da culpa.170

O que se nota é uma forma de vontade de sofrimento introjetada, como se a satisfação íntima do credor (dada a ele quando vê o devedor sofrer) fosse interiorizada pelo próprio sujeito em débito. Ou seja, há aqui uma satisfação pela crueldade, mas trata-se agora de uma crueldade consigo mesmo tomada em seu grau mais elevado. Assim, quando o devedor eleva a culpa ao ápice de crueldade para consigo, ele cria a segunda figura da má consciência. Há uma espécie de loucura da vontade, nessa crueldade psíquica, que é simplesmente sem igual: a vontade do homem de sentir-se culpado e desprezível, até ser impossível a expiação, sua vontade de crer-se castigado, sem que o castigo possa jamais equivaler à culpa, sua vontade de infectar e envenenar todo o fundo das coisas com o problema do castigo e da culpa, para de uma vez por todas cortar para si a saída desse labirinto de “idéias fixas”, sua vontade de erigir um ideal – o do “santo Deus” – e em vista dele ter a certeza tangível de sua total indignidade.171

Ora, uma dívida, que, por princípio, é impagável, não pode situar o campo jurídico. O que vemos é o prazer na crueldade tornando-se vontade de culpa, engendrando a má consciência, que é a crueldade internalizada, gerada a partir da introjeção de culpa (Schuld) e dever (Pflicht) na consciência moral (Gewissen). Foi então que, segundo essa perspectiva, o homem, maltratando a si mesmo, a partir de uma vontade de autoflagelação, reinterpretou as categorias jurídicas de débito e crédito sob a veste da moralidade. E “[c]om essa ressignificação da obligatio, a noção de dever passa a ser entendida como sinônimo de aguilhão da consciência, morsus conscientiae”.172

170 171 172

GdM. II, 22. GdM. II, 22. Giacoia. SPRE. Pg. 59.

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A moralização dos instintos de liberdade que continuam atuando subterraneamente, da “vontade” de causar dor, faz com que a má consciência, entendida como hostilidade contra si, seja banhada de culpa. É uma má consciência diferente da mencionada anteriormente (a ativa) por trazer consigo valores novos, em especial, a dívida moral. O que fundamenta essa má consciência, em primeira instância, não é aquela vontade de auto-experimentação, não é tanto uma vontade de poder aplicada a si, mas uma fraqueza da vontade, a qual justifica o não-extravasamento dos afetos a partir da noção de que tal extravasamento (quer dizer, a exteriorização das pulsões violentas, a manifestação da vontade de poder) seja parte constituinte daquele passado animal que deve ser negado. Ou seja, agir de tal modo aumenta a dívida para com Deus. Ou ainda, a má consciência moral interioriza a consciência do credor, para poder contemplar a dor (própria e de todos os devedores), por crer que quem exerce a violência – i.e., o homem forte – será punido em sua sobrevida. É uma forma psicológica da vingança. Sublimação é a via pela qual essas moções de energias instintivas encontram satisfação compensatória. Por meio de uma aliança com a imaginação, cuja inventividade é inesgotável, obtém-se a satisfação derivada, com ela vindo à luz as formações psíquicas do mais extremo refinamento e complexidade, como a má consciência.173

O ideal ascético cumpre o papel de, num primeiro momento, negar um passado animal, por negar, no fundo, aquilo a que chamamos de má consciência ativa (a crueldade animal voltada contra si). Assim, a ascese se constitui como a ascensão, a vida como uma passagem, um caminho a ser refutado em vista de um bem meta-físico. Ela carrega consigo a negação de forças pulsionais, como geração e nutrição (prega a fome, castidade, pobreza, obediência). A vida aparece como erro, ou seja, a natureza, o mundo, o devir e a transitoriedade são coisas consideradas falsas, o mal, a ilusão. Enquanto que, por outro lado, considera-se a existência de um ser-outro: o mundo metafísico que carrega os valores do verdadeiro, do bem, da realidade.

CONSIDERAÇÕES FINAIS (A Vontade de Poder na formação da moral, do direito e da psique humanos) Tentaremos, nessa seção, apenas fazer apontamentos sobre as questões pertinentes ao conteúdo programático do que foi estudado até agora, indicando um direcionamento para uma

173

Giacoia. SPRE. Pg. 59.

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pesquisa futura. Apoiamo-nos na hipótese interpretativa da vontade de poder, para podermos justificar a transformação da dívida em suas diversas manifestações. Percebemos que, para Nietzsche, as noções das categorias jurídicas de débito-crédito permeiam, de certa forma, toda a pré-história e história do homem até aqui. O princípio de troca inaugura o caráter inicial da justiça; quando este princípio não possui “retorno” dado sob o princípio da troca (ou seja, quando não há compensação, equilíbrio), surge o crédito. De pronto, apercebemo-nos da importância, para Nietzsche, da capacidade valorativa do homem. Foi com ela que o homem pôde medir-se, comparar-se com outros; com ela também, pôde diferenciar-se de seus semelhantes; com ela atribuir valor a coisas e exigir compensações, inclusive entre coisas diferentes (seja numa troca de mercadorias, ou na compensação pelo sofrimento alheio). Em suma, é a capacidade de valorar do homem que possibilita o nascimento do princípio de troca e, portanto, da própria noção de justiça. Mas há de se notar o caráter peculiar da dívida que se desenvolve: com um processo de internalização dela na consciência, com sua moralização, fez-se notar um débito sem resgate, o que não pode habitar o terreno jurídico. Ora, não obstante uma ‘dívida’ ser sempre um conceito jurídico (pois nasce do princípio de troca), ela, ao se tornar ‘culpa’, passa a ser moral e psicológica. Mais que isso: não bastasse a dívida cumprir sua função nos campos econômico e jurídico, ela desempenha papel fundamental na religião e, com isso, na própria significação da vida humana. Isso se dá, como vimos, pela mudança de direção do ressentimento: ao invés de buscar o culpado no exterior, o sacerdote orienta sua ovelha de forma a encontrá-lo dentro de si. E toda a dor sentida é agora justificada como punição (o que demonstra a temos os valores da jurisdição aqui presentes, como dívida e pena). Aquilo que antes não se conseguiu pelo castigo (criar uma consciência de culpa), o sacerdote consegue fazê-lo, tornando a dívida não mais externa, não mais jurídica – fazendo dela um problema de ordem espiritual. Isso se dá, como vimos, por haver uma vontade de poder no ato criador de valores, por parte do sacerdote (nesse caso), e uma vontade de poder aplicada a si, na formação da alma (o que caracteriza a má consciência ativa, mas que, mesmo com a interpretação sacerdotal da culpa, não deixa de atuar no indivíduo). É importante perceber, pois, que estamos propondo uma hipótese de que haja duas vias de manifestação da vontade de poder, a saber, a via externa (a pulsão violenta senhorial que oprime 57

o indivíduo, por exemplo; ou mesmo a transvaloração dos valores, numa outra escala) e a interna (a vontade do indivíduo de dar a si uma forma). As duas precisam caminhar juntas para que haja moralidade. O homem não é um animal de rebanho qualquer: ele é um animal doente. Sua peculiaridade, sua doença é a má consciência. O extravasamento de afetos, a exteriorização da vontade de poder, enfim, é comum a outros bichos. Mas só o homem é capaz de querer-se como ser sofrente e de, a partir de um estímulo externo (a dor causada, de fora pra dentro), agir contra si. A vontade de poder não deixa de ser, ela apenas mudou a direção. O que nos parece, portanto, é que a regra à qual um sujeito adere é imposta de fora. No entanto, o motivo pelo qual o sujeito se conforma a ela é devido não à extinção dessa força pulsional, mas sim à mudança de sentido dela. Portanto, não se trata de uma nova vontade de poder, apenas de um novo caminho. A vontade de poder aplicada a si se configura, enfim, como a doença do homem (se a entendermos como essa má consciência animal). Mas é necessário salientar que é justamente essa crueldade voltada a si, essa hybris que o homem tem em relação a seu próprio ser, que fez com que pudesse vir à terra um ser tão “interessante”, bem como tudo o que veio com ele: arte, direito, espiritualidade, moralidade, em suma, tudo por que se vale a pena viver. No que tange o direito obrigacional, o que se conclui é que toda relação jurídica, mesmo nas relações extra-mundanas do direito (como na dívida para com o ancestrais), pressupõe uma avaliação de poder. Todo direito é, antes de tudo, crença num certo tipo de poder com o qual se estabelece uma relação obrigacional. Não poderíamos, neste campo, falar no poder de fato, porque a promessa, por exemplo, não se baseia nele, mas antes, na crença nele. Pois quando pactuamos com alguém, pelo fato de seu feito não ter sido efetivado ainda, o que mantém o pacto é a crença no cumprimento da palavra, na efetivação da vontade. Ao que parece, a origem do direito, para Nietzsche, se dá porque, e na medida em que, é exercida a vontade de poder ou, ao menos, ela é considerada. Talvez seja nesse sentido que Volker Gerhardt discuta as idéias de poder (Macht) e efeito (Wirkung). Para ele, o poder é qualquer coisa que de alguma maneira produz, ou pode produzir, um efeito, mas não é propriamente este efeito. Ou ele aparece como um tipo-sujeito que possui a possibilidade de efetivação, ou o consideramos um tipo-instrumento com auxílio do qual um sujeito decide sobre tal possibilidade. Portanto, o poder poderia ser interpretado como apenas o meio pelo qual um autor decide por um efeito possível. A autoria do poder não pode ser 58

entendida no sentido de uma causalidade imediata. Poderes podem produzir efeitos, mas não precisam, não são obrigados a isso („Mächte können Wirkungen zeitigen, sie müssen es aber nicht“). 174 Não obstante, tal crença deve ter sido originada por ter havido algo que representasse esse poder (a vitória numa guerra nos faz crer na força de uma comunidade; a safra de trigo arruinada pode nos fazer crer que foi em decorrência de uma dívida não paga aos ancestrais). Portanto, desde o ato individual da promessa, até as grandes negociações políticas ou barganhas com os deuses (por meio de oferendas e sacrifícios), em toda confiança depositada em seu contratante subjazem relações de força, ainda que latentes. Mas, por outro lado, o que faz com que consideremos essa latência hoje é o fato de já havermos presenciado uma manifestação mais clara dessa vontade de poder, ou de isso nos ter sido ensinado pela cultura de alguma forma. Ainda a memória ativa e o esquecimento ativo, enquanto forças atuantes num determinado organismo, podem ser interpretadas sob o prisma hermenêutico da vontade de poder, pois o que configura um organismo é justamente a incessante batalha entre os impulsos que nele atuam. A esse respeito, Michel Haar comenta que o que um indivíduo chama sua “vontade” é a pluralidade de impulsos em constante batalha entre si. Quando alguém diz “quero”, e chama isso de vontade, está desconsiderando as vontades internas que se digladiaram até que uma vencesse. Trata-se de um reducionismo, portanto. “O que a linguagem designa por “vontade” é, na realidade, apenas um complexo e tardio sentimento que acompanha a vitória de um impulso sobre outros”.175 Assim considerando, enfrentamos a questão da vontade de poder como hipótese interpretativa, segundo a qual a moralidade, a ética, o direito e a alma, enfim, tudo o que constitui o processo civilizatório humano se desenvolve a partir de relações de forças, de estabelecimentos violentos de valores; tudo se passa como resultado dessa imposição de valores e tem seu sentido reinterpretado historicamente de acordo com a vontade de poder que se apodera da coisa. É assim que percebemos a própria moral como fruto histórico da vontade de poder, manifestando-se, como Nietzsche queria “demonstrar”, como algo fluido, que não possui uma valoração em si, mas ao contrário: varia exatamente de acordo com a vontade daquele que é forte o bastante para

174

GERHARDT, Volker. Vom Willen zur Macht: Antropologie und Metaphysik der Macht am exemplarischen Fall Friedrich Nietzsches. Berlin; New York: de Gruyter, 1996. Cf. Pgs. 7-9. 175 HAAR, Michel. Nietzsche and Metaphysics. (Tr. Michael Gendre). New York: State University of New York, 1996. Pg. 7.

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reinterpretá-la [a moral]. Pois fazer uma genealogia da moral é investigar os valores dessa moral a partir das vontades, em conflito, que atuaram em seu desenvolvimento. (...) todos os fins, todas as utilidades são apenas indícios de que uma vontade de poder se assenhorou de algo menos poderoso e lhe imprimiu o sentido de uma função; e toda a história de uma “coisa”, um órgão, um uso, pode, desse modo, ser uma ininterrupta cadeia de signos de sempre novas interpretações e ajustes, cujas causas nem precisam estar relacionadas entre si, antes podendo se suceder e substituir de maneira meramente casual. Logo, o “desenvolvimento” de uma coisa, um uso, um órgão, é tudo menos o seu progressus em direção a uma meta (...) – mas sim a sucessão de processos de subjugamento que nela(e) ocorrem.176

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GdM. II, 12.

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