Doxa universalista dos Direitos Humanos e seus paradoxos: por uma crítica ao Direito na atualidade (Livro: Jurisdição, Processo e Direitos Humanos)

July 31, 2017 | Autor: D. Carneiro Leão ... | Categoria: Teoría Crítica, Eurocentrismo, Direitos Humanos
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Descrição do Produto

Organizadores João Paulo Allain Teixeira Louise Dantas de Andrade

Jurisdição, Processo e Direitos Humanos

Recife, julho de 2014

Créditos Dseign da capa: Ana Catarina Lemos Composição do miolo: Ana Catarina Lemos Organização e revisão: João Paulo Allain Teixeira e Louise Dantas de Andrade Editora: APPODI

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Jurisdição, processo e direitos humanos / João Paulo Allain Teixeira, Louise Dantas de Andrade, organizadores. -- Recife : APPODI, 2014. 255 p. : i.. ISBN: 978-85-64680-03-6 1. Direitos humanos - Brasil. I. Teixeira, João Paulo Fernandes Allain. II. Andrade, Louise Dantas de. CDU 342.7(81)

SOBRE OS AUTORES

João Paulo Allain Teixeira Doutor em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (2005), Mestre em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (1999), Mestre em Teorías Críticas del Derecho pela Universidad Internacional de Andalucía, Espanha (2000), Graduado em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (1995). Professor dos programas de pós-graduação stricto sensu da Universidade Federal de Pernambuco e da Universidade Católica de Pernambuco. Professor Adjunto da Universidade Federal de Pernambuco, professor da Universidade Católica de Pernambuco e Professor titular nas Faculdades Integradas Barros Melo. Avaliador ad hoc do MEC/INEP. Louise Dantas de Andrade Mestranda em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco, Graduada em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco (2010).

APRESENTAÇÃO

O pensamento jurídico contemporâneo, nascido a partir da segunda metade do século passado, tem se voltado às múltiplas possibilidades de compreensão da tutela e promoção dos Direitos Humanos. Uma das mais evidentes formas de proteção aos Direitos Humanos encontra-se na dimensão jurisdicional do direito. O trabalho ora apresentado é o resultado de um esforço coletivo voltado a debater as possibilidades de compreensão do papel do Poder Judiciário no que se refere à efetividade dos Direitos Humanos em um contexto social fragmentado e multifacetado. Este esforço é viabilizado a partir de diálogos estabelecidos entre os integrantes do Programa de Pós-Graduação em Direito da UNICAP, integrantes do grupo de pesquisa “Jurisdição Constitucional, Democracia e Constitucionalização de Direitos” e pesquisadores de outras Universidades e Centros de Pesquisa do país. As abordagens que se seguem oferecem um panorama das possibilidades de pensar os direitos humanos a partir do viés jurisdicional. Virginia Colares e Vinicius Calado, utilizando-se das ferramentas da Análise Crítica do Discurso (ACD), dissecam um editorial publicado em um jornal pernambucano acerca da Extradição de Cesare Batisti; Carolina Salazar L`Armee Queiroga de Medeiros e Marilia Montenegro Pessoa de Mello, analisam o simbolismo da Lei Maria da Penha no tratamento da violência doméstica e familiar contra a mulher; Érica Babini Lapa do Amaral, Marilia Montenegro Pessoa de Mello, Juliana Marques Lyra Carneiro Leão, Keunny Raniere Carvalho de Macêdo Filho estudam o tema da criminalização secundária nas varas da infância e da juventude do Recife, evidenciando os paradoxos do sistema punitivo brasileiro; Manuela Abath Valença lança um olhar crítico sobre a cultura do medo e seus reflexos para os Direitos Humanos; Luciana Brasileiro inscreve os Direitos Humanos no contexto da reprodução assistida, analisando seus reflexos para o direito à liberdade;em análise sobre a tutela dos Direitos em decorrência da atividade médica, Natália Barroca estuda as violações aos Direitos Humanos e a responsabilidade penal em decorrência da episiotomia; Hugo de Brito Machado Segundo partindo da neurociência e da biologia, vislumbra a possibilidade de contribuições destes dominios do saber para a filosofia do direito, Daniel Carneiro Leão Romaguera e João Paulo Allain Teixeira procuram estabelecer um crítica contemporânea aos Direitos Humanos a partir da sua doxa universalista; sob uma perspectiva institucional, Rafael Bezerra de Souza e Carlos Bolonha estudam as dificuldades de pensar o funcionamento das instituições a partir de um recorte estritamente normativo; Flávia Santiago Lima trabalha com o tema do “neoconstitucionalismo” destacando seus reflexos para a efetividade constitucional; Em estudo sobre o controle da administração pública, Glauco Salomão Leite e Marcelo Labanca Corrêa de Araújo se propõem a refletir sobre o pael da adminsitração pública no que se refere à constitucionalização do direito à saúde; partindo do perfil legislativo brasileiro, Hé5

lio Silvio Ourém Campos dedica a sua atenção para a as interferências assimétricas da política na produção do direito tributário brasileiro; Raymundo Juliano Feitosa e Alexandre Salema estudam o tema da extrafiscalidade a partir da Teoria dos Sistemas; Lúcio Grassi de Gouveia trabalha com as relações entre antijuridicidade e litigância de má-fé; Roberto Wanderley Nogueira analisa os novos paradigmas constitucionais para o acesso à justiça de pessoas com deficiência; o tema de Aline da Silva Machado Joaquim e Raquel Fabiana Lopes Sparemberger é o estudo do Direito à Memória na Constituição de 1988, partindo da obra “Eichmann em Jerusalém” de Hannah Arendt; Alexandre Henrique Tavares Saldanha trabalha com a liberdade de comunicação em uma sociedade de informação na restauração de democracias em regimes transicionais; Alexandre Freire Pimentel dedica-se ao estudo do sistema jurisdicional norte-americano, lançando as bases para uma análise comparativa entre o direito, o processo e a classificação das ações nos Estados Unidos, e finalmente, Vanessa Alexsandra de Melo Pedroso estuda as relações entre desenvolvimento econômico e tráfico de pessoas. Como se percebe, trata-se de um trabalho conjunto cuja maior virtude encontra-se na possibilidade de afirmação de um olhar multifacetado sobre um fenômeno complexo. É com alegria e satisfação que apresentamos à comunidade jurídica nacional este conjunto de reflexões, na esperança de que possam vir a estimular o debate em torno da proteção jurisdicional dos Direitos Humanos. João Paulo Allain Teixeira Louise Dantas Recife, julho de 2014

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SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO5

EXTRADIÇÃO DE CESARE BATTISTI: UM ESTUDO DA INFORMATIVIDADE JURÍDICA DA MÍDIA NUM EDITORIAL PERNAMBUCANO 10 Virgínia Colares Vinícius Calado

O SIMBOLISMO DA LEI “MARIA DA PENHA” NO ENFRENTAMENTO DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA A MULHER 18 Carolina Salazar l’Armée Queiroga de Medeiros Marília Montenegro Pessoa de Mello

A CRIMINALIZAÇÃO SECUNDÁRIA NAS VARAS DA INFÂNCIA E JUVENTUDE DE RECIFE- SISTEMA PUNITIVO DISFARÇADO DE SOCIOEDUCATIVO – UM RETORNO AO MENORISMO  28 Érica Babini Lapa do Amaral Machado Marília Montenegro Pessoa de Mello Juliana Marques Lyra Carneiro Leão Keunny Raniere Carvalho de Macêdo Filho

PRIVILÉGIO DE BANDIDOS? A CULTURA DO MEDO E O SENTIMENTO DE INSEGURANÇA COLOCANDO OS DIREITOS HUMANOS EM XEQUE 41 Manuela Abath Valença

DIREITOS HUMANOS REPRODUTIVOS E REPRODUÇÃO MEDICAMENTE ASSISTIDA: LIBERDADE DE REPRODUZIR (?) 53 Luciana Brasileiro

A RESPONSABILIDADE PENAL DECORRENTE DA EPISIOTOMIA COMO VIOLAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS 64 Natália Barroca

CONTRIBUIÇÕES DA NEUROCIÊNCIA E DA BIOLOGIA À FILOSOFIA DO DIREITO72 Hugo de Brito Machado Segundo

DOXA UNIVERSALISTA DOS DIREITOS HUMANOS E SEUS PARADOXOS: POR UMA CRÍTICA AO DIREITO NA ATUALIDADE 85 Daniel Carneiro Leão Romaguera João Paulo Allain Teixeira

TEORIAS JURÍDICAS CONTEMPORÂNEAS: UMA ANÁLISE CRÍTICA SOB A PERSPECTIVA INSTITUCIONAL 105 Rafael Bezerra de Souza Carlos Bolonha

“MOVIMENTO BRASILEIRO DA EFETIVIDADE CONSTITUCIONAL”: CONSIDERAÇÕES SOBRE A ADOÇÃO DOS POSTULADOS NEOCONSTITUCIONALISTAS NO BRASIL120 Flávia Santiago Lima O OUTRO LADO DA CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO CONTROLE DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA: ANÁLISE A PARTIR DO DIREITO À SAÚDE  132 Glauco Salomão Leite Marcelo Labanca Corrêa de Aráujo

O BRASIL – ATOS INSTITUCIONAIS, ATOS COMPLEMENTARES E UMA HISTÓRIA DE DESCONSTITUCIONALIZAÇÕES E RECONSTITUCIONALIZAÇÕES ACELERADAS139 Hélio Sílvio Ourem Campos

TEORIA DOS SISTEMAS E EXTRAFISCALIDADE: A QUESTÃO DA PREVALÊNCIA DA LÓGICA DO SUBSISTEMA DA ECONOMIA 157 Raymundo Juliano Feitosa Alexandre Henrique Salema Ferreira

ANTIJURIDICIDADE E LITIGÂNCIA DE MÁ-FÉ

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Lúcio Grassi de Gouveia

ACESSO À JUSTIÇA PARA PESSOAS COM DEFICIÊNCIA: NOVOS PARADIGMAS CONSTITUCIONAIS189 Roberto Wanderley Nogueira

O DIREITO À MEMÓRIA NA CONSTITUIÇÃO DE 1988: um olhar a partir da obra Eichmann em Jerusalém de Hannah Arendt 202 Aline da Silva Machado Joaquim Raquel Fabiana Lopes Sparemberger

SOCIEDADE DA INFORMAÇÃO E JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO: DESAFIOS DA LIBERDADE DE COMUNICAÇÃO E DA LÓGICA “WIKILEAKS” NA RESTAURAÇÃO DAS DEMOCRACIAS EM TRANSIÇÃO 223 Alexandre Henrique Tavares Saldanha

O SISTEMA JURISDICIONAL NORTE-AMERICANO: ANÁLISE COMPARATIVA SOBREO DIREITO, O PROCESSO E A CLASSIFICAÇÃO DAS AÇÕES NOS EUA 231 Alexandre Freire Pimentel

LA POLÍTICA MIGRATORIA DE LOS ESTADOS DESARROLLADOS COMO FACTOR FACILITADOR DE LA TRATA Y DEL TRÁFICO HUMANO 246 Vanessa Alexsandra de Melo Pedroso

EXTRADIÇÃO DE CESARE BATTISTI: UM ESTUDO DA INFORMATIVIDADE JURÍDICA DA MÍDIA NUM EDITORIAL PERNAMBUCANO

Virgínia Colares1 Vinícius Calado2 1. A NOTÍCIA DO EDITORIAL O fato jurídico (lato sensu) noticiado no editorial é uma decisão judicial proferida pelo Supremo Tribunal Federal (STF) no tocante ao pedido, feito pela Itália, de extradição de Cesare Battisti, com fundamento em decisão judicial transitada em julgado naquele país que condenou o cidadão italiano à pena de prisão por homicídio. Destaque-se que até mesmo esta simples informação resumida da questão de fato jurídico não fora abordada no editorial, uma evidência de versão da notícia politicamente comprometida. O editorial, intitulado “BATTISTI ATINGE O STF”, ao leitor médio pode até passar despercebido e iniciar a leitura do texto sem qualquer reflexão, entretanto o verbo atingir no presente do indicativo insinua,em seu eixo de possibilidades polissêmicas, imediatamente, um duplo sentido: o primeiro o de alcançar (chegar até lá) e o segundo de ofender/ manchar a imagem (HOUAISS, 2001. p.334). Assim a oração poderia ser interpretada como “Battisti chega até o STF” ou “Battisti mancha a imagem do STF”, assinalando ambigüidade na construção. Para o jurista, fica evidenciada a idéia de que Cesare Battisti conseguiu manchar a imagem do STF com o episódio, notadamente porque juridicamente o caso não chegou até o STF, mas sim originou-se nele por força de sua competência fixada na Constituição da República como adiante 1 Possui mestrado (1992) e doutorado (1999) em Linguística pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Atualmente, é professora, adjunta IV, da Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP), atuando na graduação e mestrado em Direito. É líder do Grupo de Pesquisa Linguagem e Direito (Plataforma Lattes). Integra a International Language and Law Association (ILLA). É participante do Grupo de Pesquisa em Linguística Forense da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Tem experiência na área de Linguística Aplicada ao Direito, atua na linha de pesquisa da Análise Crítica do Discurso Jurídico.  2  Bacharel em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco - UNICAP (2000), com especialização em Direito Tributário pela Universidade Federal de Pernambuco - UFPE (2002). Obteve o primeiro lugar na seleção para o programa de mestrado em Direito da Universidade Católica de Pernambuco - UNICAP (2010), sendo aprovado com distinção em sua defesa pública (2012). Atua como professor de Direito Civil, Direito do Consumidor e Prática Jurídica na UNICAP (desde 2011). Sócio fundador e ex-presidente da APPODI - Associação Pernambucana de Pósgraduandos em Direito (2010-2012).

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se demonstrará. Outro elemento de destaque neste editorial é a sua chamada: “O Supremo poderia ter evitado o espetáculo vexatório de uma decisão inócua”, conforme figura 01, a seguir. De modo explícito, uma posição de crítica à conduta do STF, com escolhas lexicais eruditas precisas e tempo verbal que remete o leitor a uma idéia de “culpa” do tribunal, pois, pela construção do texto do editorial,pode-se inferir que o STF poderia ter evitado o espetáculo, mas não o fez.

Figura 01

2. ANÁLISE CRÍTICA DO EDITORIAL A crescente expansão do poder judicial no Estado Democrático de Direito vem sendo chamada por alguns autores de judicialização da política (WERNECK VIANNA et al., 1999; CASTRO, 1997; SANTOS, 2003). Esse fenômeno mundial é caracterizado por uma postura ativista dos juízes, que passam a interpretar “criativamente” o direito, ocasionando assim uma espécie de transferência da função legislativa, antes concentrada nos poderes Legislativo e Executivo, para os tribunais. Por outro lado, a influência do Poder Judiciário (e do raciocínio judicial) no campo político torna-se visível devido à utilização, cada vez maior, de procedimentos judiciais por parte de agências executivas e legislativas (TATE; VALLINDER, 1995). Tais fenômenos que evidenciam essa dúplice tendência antidemocrática quando noticiados na imprensa expõem relações entre diferentes práticas discursivas. No editorial, apresentam o alinhamento político da empresa midiática como assegura Nascimento (2003, p.85): O editorial é um texto argumentativo que representa a opinião da empresa jornalística que o publica. Através dele, é apresentado o posicionamento do jornal sobre fatos do dia-a-dia. A partir de um fato, o (a) editoralista desenvolve um raciocínio valorativo, através do qual defende, com argumentos persuasivos, a posição político-social do jornal e refuta as opostas, conduzindo o leitor à conclusão pretendida pela empresa.

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Pelo sistema de transitividade da Gramática Sistêmico Funcional (GSF) há seis modos de expressar os processos verbais: (a) materiais, (b) mentais, (c) relacionais; considerados os principais e (d) verbais, (e) existenciais e (f). comportamentais; considerados secundários. O processo, na perspectiva da GSF, é um espaço semiótico no qual as regiões não são rígidas, há um continuum entre os vários processos que sustenta o princípio da indeterminação semântica das línguas. Num texto, podemos ver experiências construídas no domínio da emoção/ sentimento, p. ex. “estou muito cansada” ou no domínio da classificação “meu corpo está quebrado” porque o mundo das experiências é altamente indeterminado e a gramática constrói seu sistema a partir dos vários tipos de processo sem comprometer a comunicação. Os processos principais [(a) materiais – do mundo físico, (b) mentais – do mundo consciente, (c) relacionais - do mundo das relações abstratas] são aqueles pelos quais se faz algo. Os processos materiais constituem ações nas quais as entidades fazem algo. Assim, há orações médias ou intransitivas e orações transitivas ou efetivas. Nas primeiras, há apenas um participante, p. ex. “Nos últimos anos, o STF tem buscado exibir de maneira mais intensa, com transparência louvável, o debate sobre as suas decisões.” (linhas 0305, fragmento 01, a seguir). Já as orações efetivas ou transitivas têm dois ou mais participantes como p. ex. “Causou estranheza em boa parte dos cidadãos quando, na última quarta-feira, o STF decidiu procedente o pedido de extradição de Cesare Battisti pela Itália, e logo em seguida, voltou atrás, na prática, ao deixar para o Executivo – leia-se o presidente Lula – a última palavra sobre a extradição.” (linhas 09-12, fragmento 02, a seguir). As orações transitivas assinalam que alguém fez alguma coisa a alguém. Se na intransitiva acima, o STF aparece como único protagonista na construção textual do editorial e por essa razão a oração aparenta maior isenção ou intransitividade; a segunda envolve vários protagonistas “os cidadãos” (leitoras do jornal); “o STF”; “Cesare Battisti”; “a Itália”; “o Executivo/ o presidente Lula”. 1. 2. 3. 4. 5. 6. 7.

Composto idealmente por personalidades de reconhecida experiência, notório saber e ilibada trajetória pública, ao Supremo Tribunal Federal cabe decidir, em última instância, questões muitas vezes polêmicas que são postas ao sistema jurisdicional brasileiro. Nos últimos anos, o STF tem buscado exibir de maneira mais intensa, com transparência louvável, o debate sobre as suas decisões. Neste processo, contudo, cresce a impressão de que os holofotes da mídia chegam a ofuscar os ministros a tal ponto que a discussão intramuros parece contaminar-se pelo calor do lado de fora. Fragmento 01

A escolha dos verbos do mundo físico, eixo do fazer, comportamental: “cabe decidir” (linha 2); “exibir” (linha 4); “cresce” ( linha 5); “chegam a ofuscar” (linha 6) “contaminar-se” (linha 7) reafirmam a idéia de agente do Supremo Tribunal Federal (STF) realizando processos materiais que constituem ações de mudanças externas, físicas e perceptíveis. A reflexividade entre os ministros do STF, “os holofotes da mídia” e o “calor do lado de fora” da população brasileira, é anunciada pelo editorialista como “transparência louvável” (linhas 04-05) do STF. Entretanto, nos escritos de Chouliaraki & Fairclough (1999) sobre a pós-modernidade, a reflexividade, em toda prática social, há um aspecto discursivo; ou seja as construções discursivas das práticas são partes constitutivas das próprias práticas e as práticas podem depender dessas construções para sustentar relações de dominação; dessa forma, a reflexividade funciona ideologicamente e não de maneira neutra como apregoam tanto o judiciário, como a imprensa- centros de poder da vida social no dizer foucaulteano. A “informação” sobre a composição do STF (linhas 01-03), ao usar o advérbio idealmente já demonstra o tom de crítica, um ar de ironia; inferindo-se daí que a composição do STF, de fato, não é a ideal. Ao utilizar a técnica de ancoragem (aproximação/ distanciamento) para falar genericamente da atuação positiva do STF e no caso concreto criticá-lo, o editorial recorre às expressões “Nos últimos anos” (linhas 03-04) e “Neste processo” (linha 05). O operador argumentativo“contudo”(linha 05), indicador de contraposição, estabelece relações de contraste, disjunção, concessão, oposição corroborando a ironia insinuada com a escolha lexical do advérbio “idealmente” (linha 01). 8. Essa intercomunicação aparenta ter sido prejudicial à própria capacidade do STF de 9. discernir o seu raio de poder. Causou estranheza em boa parte dos cidadãos quando, na

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10. última quarta-feira, o STF decidiu procedente o pedido de extradição de Cesare Battisti 11. pela Itália, e logo em seguida, voltou atrás, na prática, ao deixar para o Executivo – leia12. se o presidente Lula – a última palavra sobre a extradição. Lembra a letra de uma 13. canção de Vinicius de Moraes - se era para desfazer, por que é que fez? Ficou a 14. incômoda sensação de que a sutil diferença entre veredicto “determinativo” e 15. “autorizativo” configurou a tentativa de saída honrosa para uma questão resolvida, desde 16. a origem, politicamente. Fragmento 02

O movimento dos verbos, no fragmento 02, informa que o STF fez e desfez uma decisão ao sabor da política. Entretanto não informa que apenas o chefe de estado pode homologar um pedido de extradição. O editorial joga mais que com os permitidos jogos de linguagem wittgnsteineanos ao citar Vinicius de Moraes: “se era para desfazer, por que é que fez?” (linha 13). Nesse sentido, Meurer e Motta-Roth (2002) dizem que, emtodo contexto cultural de situação, há atividades que são representadasna linguagem, há papéis desempenhados por nós e por nossos interlocutoresque se estabelecem pela linguagem, e há pressuposições compartilhadas pornós e por nossos interlocutores sobre como essas atividades e esses papéisserão explicitados por meio da linguagem. Assim, o uso dos verbos e da adjetivação demonstra tendenciosidade do jornal ao afirmar que o STF estaria “contaminado” (linha 07, 46) e com seus ministros “ofuscados” (linha 06), e ainda que ficou uma sensação “incômoda” em face de “sutil” (linha 14) diferença que configurou a atitude uma “saída honrosa” (linha 15), numa decisão “apertada” (linha 32) que teria gerado um “perigoso” (linha 35) precedente. Fala ainda de um elemento “perturbador” (linha 43) e aquela fora uma “surpreendente solução” (linha 47), além dos já citados “espetáculo vexatório/decisão inócua” (chamada).Aduz ainda de modo implícito que o STF deveria ficar de “fora do mundo/ realidade social” para não se prejudicar ao asseverar que: “Essa intercomunicação aparenta ter sido prejudicial à própria capacidade do STF de discernir o seu raio de poder.” (linhas 08-09) 17. 18. 19. 20. 21. 22. 23. 24. 25.

Seria mais lógico, sob qualquer ângulo avaliado, que a apreciação que se sucedeu ao mérito da extradição tivesse sido realizada antes, determinando-se previamente a quem caberia a palavra final sobre o caso. Posto que, ficasse decidido, como ficou, que a decisão seria da alçada do Executivo, posição defendida desde o início pelo ministro da Justiça, Tarso Genro, o STF estaria dispensado de dar continuidade ao espetáculo vexatório de uma decisão inócua. Se os processos de extradição “começam e terminam pelo Executivo”, como declarou o ministro Carlos Ayres, a utilização da Suprema Corte nacional como mero “rito de passagem” apenas onera os cofres públicos e toma o tempo dos réus. Os ministros do Supremo certamente têm mais o que fazer. Fragmento 03

Predomina neste fragmento verbos do eixo do mundo das relações abstratas que representam algo que acontece ou existe e se constroem com apenas um participante que a GSF denomina existente, na nossa análise o STF. O fulcro do editorial é asserção: “Posto que, ficasse decidido, como ficou, que a decisão seria da alçada do Executivo, posição defendida desde o início pelo ministro da Justiça, Tarso Genro, o STF estaria dispensado de dar continuidade ao espetáculo vexatório de uma decisão inócua”. O ministro não defendeu nenhuma posição, apenas aludiu à lei que determina a competência jurídica da decisão. Destaque-se, ainda, que existiram fatos precedentes a esse pronunciamento do STF. Cesare Battisti havia solicitado a condição de refugiado político que fora deferida pelo Ministro Tarso Genro. Nos autos da extradição, o STF reconhece a ilegalidade do ato de concessão de status de refugiado político, concedido pelo Ministro de Estado da Justiça em setembro de 2009, e discute o mérito do pedido feito pela Itália. Esse fato fez cair por terra um dos argumentos da defesa de Cesare Battisti que se fundamentava no art. 33 da Lei nº 9.474/97 “O reconhecimento da condição de refugiado obstará o seguimento de qualquer pedido de extradição baseado nos fatos que fundamentaram a concessão de refúgio”. Os parâmetros de legalidade para o caso da extradição de Cesare Battisti estão estabelecidos no art. 77, VII do Estatuto do Estrangeiro, disciplinando que o crime político não pode ser o fundamento do pedido de extradição: 13

Lei n.: 6.815/81Art. 77. Não se concederá a extradição quando: VII - o fato constituir crime político; Lei n.: 6815/81, Art. 77 - § 2º Caberá, exclusivamente, ao Supremo Tribunal Federal, a apreciação do caráter da infração.

Nesse mesmo sentido está grafado o Tratado de Extradição entre Brasil e Itália, em seu artigo 3º, 1: “A extradição não será concedida: (...) e) se o fato pelo qual é pedida for considerado, pela Parte requerida, crime político;”. Da interpretação dos dispositivos constitucionais e legais pertinentes, compreende-se que o papel do STF é apreciar a questão de fundo e não a extradição em si. Ou seja, competiria ao STF, por meio de seu Plenário, decidir exclusivamente acerca da prática ou não de crime político pelo extraditando Cesare Battisti. Caso não houvesse se pronunciado o Plenário do Supremo Tribunal Federal - STF sobre a legalidade e procedência do pedido de extradição, o extraditando não poderia ser entregue à Itália por força do art. 77 do Estatuto do Estrangeiro acima transcrito, mas como houve o reconhecimento (apertado) da existência de crime comum de homicídio, pronunciou-se o STF pelo deferimento do pedido de extradição. Segundo o editorial, o problema fora o conteúdo da manifestação do STF na “contraditória sessão” (linha 26) que julgou procedente o pedido de extradição de Cesare Battisti feito pela Itália e, ao mesmo tempo, entendeu que compete ao Presidente da República a discricionariedade da execução ou não da extradição por se tratar de questão de relações internacionais. O discurso que emerge da superfície textual do editorial expressa uma não-neutralidade; sinaliza explícita posição contrária à atitude do STF; tece inúmeras críticas; e finda por inferir supostas conseqüências do fato, sem qualquer correlação direta ao episódio. Nessas condições, a informatividade e a intertextualidade restam comprometidas. O caso Battisti não “chegou até o STF”, mas sim se originou nele por força de sua competência fixada na Constituição da República, pois assim estabelece o Art. 102, I, ‘g’ da CF/88: CF/88, Art. 102 - Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe: I - processar e julgar, originariamente: g) a extradição solicitada por Estado estrangeiro;

Assim, compete exclusivamente ao STF processar a julgar a extradição solicitada por Estado estrangeiro, sendo justamente o que ocorreu no caso objeto de análise do editorial, qual seja, o julgamento pelo STF do pedido de extradição de Cesare Battisti formulado pela Itália. A Lei n° 6.815/81 que “Define a situação jurídica do estrangeiro no Brasil, cria o Conselho Nacional de Imigração”, conhecida como “Estatuto do Estrangeiro”, trata da questão da extradição e disciplina sobre qual aspecto deve o STF se pronunciar, estabelecendo ainda que dita decisão é irrecorrível, posto que proferida pelo plenário da Corte3. Daí o menor grau de informatividade dos aspectos legais envolvidos no fato jurídico (lato sensu), noticiado pelo editorial, compromete a notícia, tornado-a tendenciosa. O fragmento 03 se caracteriza pela utilização de verbos do eixo dos processos verbais (d), existenciais (e) e comportamentais (f), considerados por Halliday; Matthiessen (2004) como secundários. Esses processos verbais que expressam o dizer, comunicar, apontar, configuram as relações simbólicas construídas na mente e expressas verbalmente ou por outras vias multimodais. O editorial enuncia que “Se os processos de extradição ‘começam e terminam pelo Executivo’, como declarou o ministro Carlos Ayres, a utilização da Suprema Corte nacional como mero ‘rito de passagem’ apenas onera os cofres públicos e toma o tempo dos réus” (linhas 22-15). A utilização das aspas, desloca a responsabilidade do dizer para o ministro, entretanto o Art. 102 da CF, como visto acima, é incisivo quanto à competência do STF no que concerne “a extradição solicitada por Estado estrangeiro”. Na linha 25, a asserção de que “Os ministros do Supremo certamente têm mais o que fazer. ”, um ato indireto de fala modalizado pelo advérbio “certamente”, ironicamente constrói uma 3 Lei n.: 6.815/81 - Art. 83. Nenhuma extradição será concedida sem prévio pronunciamento do Plenário do Supremo Tribunal Federal sobre sua legalidade e procedência, não cabendo recurso da decisão.

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identidade negativa do STF. 26. 27. 28. 29. 30. 31. 32. 33.

A implicação da contraditória sessão do STF não passou despercebida por seus integrantes. O ministro Cezar Peluso, relator do caso, comparou a possível negativa do presidente da República à extradição a transformar a função do STF numa “brincadeira de criança”. No mesmo tom, o presidente do Tribunal, Gilmar Mendes, afirmou que não deveria haver espaço para questionar a validade da aprovação da extradição, uma vez que a casa não seria “órgão de consulta”. Contrariando Mendes e o relator, pela mesma votação apertada da primeira parte, só que em sentido inverso, por cinco votos a quatro, os juízes resolveram dar o caráter “autorizativo” para a extradição do italiano. Fragmento 04

Halliday; Matthiessen (2004) classificam os processos materiais em criativos e transformativos, sendo esses últimos aqueles que mudam o estado de coisas numa dada situação. Ao comparar “ /.../a possível negativa do presidente da República à extradição a transformar a função do STF numa “brincadeira de criança”, na voz do ministro Cezar Peluso; o editorial constói uma oração cuja transitividade coloca em rota de colisão os poderes Executivo e Judiciário. A despeito da concessão da extradição (ou sua execução) ser ato compete ao chefe de Estado, por força do art. 84, incisos VII e VII da CF/1988. Ou seja, quem efetivamente despacha a extradição no Brasil é o Presidente da República, após o prévio pronunciamento do STF, como já explicitado. Ou ainda dito de outro modo, a decisão de deferimento da extradição pelo STF não vincula o Presidente da República, sendo a decisão presidencial política e não jurídica. Neste diapasão, compulsando o andamento do processual do processo de Extradição nº 1.0854, encontra-se o resumo da decisão objeto do editorial: “O Tribunal, por maioria, deferiu o pedido de extradição, por maioria, o Tribunal assentou o caráter discricionário do ato do Presidente da República de execução da extradição, Extradição nº 1.085. Plenário, 18.11.2009.” Como se vê, falar de mero “rito de passagem” (linha 24); “órgão de consulta” (linha 31); “coadjuvante” (linha 41); dentre outras estratégias de nomeação da entidade jurídicaem tom de caráter jocoso evidenciam a construção de uma identidade negativa STF pelo editorial do jornal.

34. O professor de direito da Universidade de São Paulo, Miguel Reale Jr., chamou o vaivém 35. do STF no desfecho do caso Battisti de “um tiro no pé”. Abre-se perigoso precedente 36. para a desvalorização do Judiciário diante de um Executivo já hipertrofiado, como o 37. Executivo brasileiro. Afinal, para o cidadão comum, e de acordo com a prescrição 38. constitucional, o Supremo Tribunal Federal deve ser evocado para dirimir as mais altas 39. dúvidas, e sobre a sua resposta não devem restar bifurcações. Dentro da repartição dos 40. poderes republicanos, ninguém espera que o “tribunal supremo” funcione como um 41. coadjuvante “supremo conselho”. Ou que o julgamento dos dilemas nacionais seja 42. encargo submetido à ponderação do presidente da República. Como se vê, o recuo do 43. STF após “extraditar” Battisti lança um elemento perturbador na própria arquitetura 44. democrática. Fragmento 05

No fragmento 05, o editorialista arremata o tecido textual iniciado com do fio condutor “se era para desfazer, por que é que fez?” (linha 13) com o “vaivém do STF” (linha 34) atribuindo ao “professor de direito da Universidade de São Paulo, Miguel Reale Jr” o enunciado gnómico dar “um tiro no pé” ( linha 35). Nesse caso, o tiro saiu pela culatra, pois qualquer cidadão brasileiro poderia ter dito tal “pérola”, usar o argumento de autoridade de um eminente catedrático da USP parece piada. Trata-se de uma “citação”, no mínimo, inadequada. Como já dito, se existem “bifurcações” (linha 39) foram postas pelo poder legislativo na construção das leis, vistas acima, e não pelo STF que as cumpriu. Assim, “a sutil diferença entre veredicto ‘determinativo’ e ‘autorizativo’” (linhas 14-15) não se trata de uma “tentativa de saída honrosa para uma questão resolvida, desde a origem, politicamente”. (15-16), como pretende o editorial, o judiciário cumpriu aquilo posto pelo legislativo; 4 Disponível em:http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.asp?incidente=2514526

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sendo ambos expressões do poder institucionalizado. A idéia de poder, que está ao centro da visão moderna do direito processual, constitui assim fator de aproximação do processo à política, entendida esta como o processo de escolhas axiológicas e fixação dos destinos do Estado. (itálicos no original) /.../ Em sua acepção mais ampla e necessariamente vaga, poder é a capacidade de produzir os efeitos pretendidos (ou simplesmente de alterar a probabilidade de obter esses efeitos), seja sobre a matéria ou sobre as pessoas. (itálicos no original) DINAMARCO (2005. p. 100)

Assim, sendo o poder a capacidade de produzir os efeitos pretendidos, e sendo a observância do devido processo legal um direito fundamental, era indispensável a manifestação do poder judiciário para atingir este desiderato, pois, se assim não fosse, estar-se-ia “ferindo de morte” o texto constitucional e não “bifurcando-o”, ou o STF dando um “tiro no pé”. 45. A extradição de Cesare Battisti (ou a sua acolhida pelo governo brasileiro) recebeu tons 46. dramáticos e uma carga ideológica que não poderiam contaminar o seu julgamento. 47. Entretanto, a surpreendente solução, encontrada pelo máximo juizado do País, de 48. “concluir sem encerrar” um caso polêmico, além de perplexidade, traz de volta a 49. preocupação acerca da saúde de nossas instituições. Diante de um cenário continental 50. que apresenta endêmicas fragilidades, qualquer suspeita de trincamento em uma das 51. bases do estado de direito pode fazer ressurgir o fantasma de tempos idos, quando o 52. argumento político proibia que qualquer um pudesse contar com o bom senso final de 53. um tribunal superior isento, democrático e justo” – como consideramos o STF. Fragmento 06

O tom do fragmento 06 é panfletário, evoca “o fantasma de tempos idos” da ditadura militar. Estrategicamente, o editorial alinha “a extradição de Cesare Battisti” com “a sua acolhida pelo governo brasileiro” como sinônimos (linha 45), fato que, aí sim denota o tom político-partidário do jornal. Paradoxalmente, a concepção de linguagem do jornalista isola as práticas sociais de julgar e de dar a notícia de “tons dramáticos” e de “carga ideológica” como se produzissem textos no vácuo social. As vozes de Tarso Genro, Carlos Ayres, Cezar Peluso, o ministro relator do caso, o presidente da República, Gilmar Mendes e Miguel Reale Jr tentam aproximar e persuadir o leitor a concordar com ele (autor), mostrando uma conformidade discursiva de seu texto com o dos ministros, utilizando essa intertextualidade como uma de suas estratégias além de tentar a transitividade com os cidadãos, evocando-os aqui e ali. Em fecho, o autor conclui, sem qualquer, coerência de raciocínio com as premissas previamente estabelecidas em seu texto que o STF estaria doente, inferindo que o judiciário teria “trincado” e estaria submisso ao Executivo, não sendo, pois “isento, democrático e justo” como deveria ser. 3. REFLEXÃO SOBRE A ANÁLISE Em conclusão, podemos afirmar que o conteúdo informativo que deveria ser o aspecto mais nítido do editorial, com linguagem clara e objetiva sobre o fato em si mesmo considerado, notadamente a questão jurídica de fundo e as divergências existentes (entre juristas), não foi a principal preocupação do autor, emergindo do texto um discurso construído em premissas equivocadas/ parciais/ localizadas com uma conclusão de aspecto generalizante que termina por questionar a lisura do Poder Judiciário, demonstrando-se que o editorial enquanto “voz” oficial do jornal, expressou um discurso comprometido ideologicamente, numa verdadeira violação ao compromisso ético-profissional dos jornalistas, consubstanciado em levar ao grande público a “verdade dos fatos”. Observou-se que o editorial em análise limita-se a transmitir ao leitor uma versão ideologicamente comprometida visando angariar adeptos às suas teses, sem abordar, como deveria, 16

a questão central (efetivo deferimento da extradição pelo STF), a questão de fundo (não houve crime político, segundo decisão do STF) e, por fim, a questão a decisão judicial que é objeto de crítica pelo editorial (compete ao presidente e não ao STF executar a extradição). REFERÊNCIAS BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília,DF: Senado, 1988. BRASIL. Lei n. 6.964, de 9.12.1981, com as alterações por ela introduzidas. Os anexos referidos estão publicados no DOU, de 10.12.1981. Define a situação jurídica do estrangeiro no Brasil, cria o Conselho Nacional de Imigração. Disponível em http://www.pge.sp.gov.br/centrodeestudos/bibliotecavirtual/dh/volume%20i/naclei6815.htmAcesso em 19 set. 2010. BRASIL. TRATADO DE EXTRADIÇÃO ENTRE A REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL E A REPÚBLICA ITALIANA. Assinado em Roma, em 17 de outubro de 1989.Aprovado pelo Decreto Legislativo nº 78, de 20 de novembro de 1992. Ratificações trocadas em Brasília, em 14 de junho de 1993. Promulgado pelo Decreto nº 863, de 9 de julho de 1993. Publicado no Diário Oficial de 12 de julho de 1993. Disponível em http://s.conjur.com.br/dl/tratado-extradicao-brasil-italia.pdf. Acesso em 19 set. 2010. CHOULIARAKI, L. ; FAIRCLOUGH, N. Discourse in late modernity. Edinburgh: Edinburgh University Press, 1999. DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade do processo. São Paulo: Malheiros Editores, 2005. p. 100. HALLIDAY, M.A.K.; MATTHIESSEN, C.M.I.M. Introduction to funcional grammar. 3. ed.London: Arnold, 2004 HOUAISS, Antonio. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva,2001. MEURER, J.L ; MOTTA-ROTH, D. (orgs.) Gêneros textuais e práticas discursivas: subsídios para o ensino da linguagem. Bauru: EDUSC, 2002. NASCIMENTO, K. C. de S. Mecanismos argumentativos no jornalismo escrito. In: PAULIUKONIS, M. A. L. & GAVAZZI, S.(orgs.). Texto e discurso: mídia, literatura e ensino. Rio de Janeiro: Lucerna, 2003: 85-96. SANTOS, Fabiano. O Poder Legislativo no Presidencialismo de Coalizão. Belo Horizonte: Ed, UFMG; Rio de Janeiro: IUPERJ, 2003. TATE, Neal; VALLINDER, Torbjörn. The Global Expansion of judicial power. New York: New York University Press, 1995. WERNECK VIANNA, Luiz; CARVALHO, Maria Alice Rezende de; MELO, ManuelPalacios Cunha et al. Corpo e alma da magistratura brasileira. 3. ed. Riode Janeiro: Revam, 1997. 334 p.

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O SIMBOLISMO DA LEI “MARIA DA PENHA” NO ENFRENTAMENTO DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA A MULHER1

Carolina Salazar l’Armée Queiroga de Medeiros2 Marília Montenegro Pessoa de Mello3

1. A LEGITIMAÇÃO DA VIOLÊNCIA COMO FORMA DE CONTROLE INFORMAL SOBRE AS MULHERES NA SOCIEDADE PATRIARCAL BRASILEIRA A legitimação da sociedade patriarcal por parte do sistema da justiça criminal se deu, dentre outras razões, porque o Estado penal se eximiu de interferir na esfera privada. Nesse sentido, o sistema penal transferiu a responsabilidade de controle sobre as mulheres para outras instituições de controle social, tidas como informais, como as escolas, a mídia, a religião e, principalmente, as famílias, através das quais eram aplicadas sanções informais (privadas) às mulheres cujas condutas eram contrárias ao padrão social esperado (não preenchiam a condição de “boa” filha, “boa” esposa ou “boa” mãe), e não as formais (públicas) aplicadas pela Justiça Penal (BARATTA, 1999, 45-46). O Estado penal, então, absteve-se de interferir na esfera privada, transferindo para o homem, detentor do poder patriarcal, a responsabilidade de exercer o controle e fiscalizar o comportamento das mulheres. A preocupação com a sexualidade e reputação da mulher autorizava, por exemplo, a restrição de sua liberdade e acesso aos espaços públicos, como também maior controle sobre o seu corpo. Ademais, a falta de independência econômica permitia também o controle das horas vagas e das atividades de lazer. 1  O presente trabalho foi aprovado e apresentado pelas autoras no 4º CONGRESSO INTERNACIONAL DE CIÊNCIAS CRIMINAIS: Criminologia e Sistemas Jurídico-Penais Contemporâneos, realizado no segundo semestre de 2013, na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Ademais, está vinculado às pesquisas desenvolvidas pelo Grupo Asa Branca de Criminologia -www.asabrancacriminologia.blogspot.com.br 2  Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Católica de Pernambuco. Bolsista CAPES/ PROSUP. 3  Doutora em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina e Mestre em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco. Professora do programa de Mestrado em Direito da Universidade Católica de Pernambuco e da Graduação em Direito da UNICAP e UFPE.

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Em último caso, porém com certa frequência, essas formas de controle resultavam na prática de violência, “justificada como forma de compensar possíveis falhas no cumprimento ideal dos papéis de gênero” (DIAS, 2010, p. 21). Ao eximir-se de interferir na esfera privada, pois, o Direito Penal elevou praticamente à legalidade ações violentas no seio familiar contra as mulheres, mascarando-as e dando a impressão de que a paz reinava no “nobre” e intocável âmbito privado. Nesse contexto, em momentos históricos, ainda que teoricamente possível, o Direito Penal eliminou, na prática, a atuação da mulher no polo ativo de um crime, por ser considerada, ao revés do homem, vulnerável, inativa e inferior. Ressaltou com frequência, entretanto, desde que considerada “honesta”, sua qualidade de vítima. Na tipificação dos crimes sexuais do Código Penal, o legislador utilizou-se da técnica que Vera Andrade denomina de “lógica da honestidade” (ANDRADE, 2005, p. 90), pela qual, classificavam-se as mulheres vitimizando ou desvitimizando-as conforme o padrão de sexualidade da época. Obviamente, as mulheres consideradas “desonestas” e “indignas” eram afastadas do polo passivo do crime, de modo a desmerecer a tutela do Direito Penal. Nesse cenário, a qualidade de vítima da mulher, desde que considerada “honesta”, foi tão frequentemente ressaltada que, embora apenas exigido para a configuração de alguns crimes sexuais, o preenchimento da condição de honestidade pela mulher parecia ser elemento essencial para sua figuração no polo passivo de qualquer tipo penal. Logo, independentemente do bem jurídico atingido – vida, integridade física ou honra – enquanto considerada “indigna”, “pública” ou “prostituta”, a prática criminosa contra a mulher parecia ficar subliminarmente autorizada pela ordem jurídica (MELLO, 2009, p. 466). Foi nesse contexto, pois, que se desenvolveu a sociedade patriarcal brasileira. Nela, os estigmas impostos pelo sistema penal, especialmente os relacionados à sexualidade, legitimaram exigências de padrões comportamentais femininos e também contribuíram para ressaltar os mecanismos de controle sobre as mulheres, que se resumiam à aplicação pelos homens de penas privadas no núcleo da instituição familiar, em nome da “proteção da família”, da “defesa da honra” ou da “garantia do pátrio poder”. Em razão da abstenção do Estado penal de interferir na esfera privada, portanto, a maioria dos delitos praticados contra a mulher no contexto doméstico e familiar não chegava ao conhecimento das autoridades ou, quando chegava, por algum motivo, não resultava em processo criminal. Esse processo de imunização e impunidade gerou a chamada “cifra oculta” do crime (SUTHERLAND, 1985)4. Por conseguinte, tinha-se a falsa impressão de que não havia violência alguma contra a mulher. 2. O POPULISMO PUNITIVO E A LEI “MARIA DA PENHA” Somente após a vigência da Constituição Federal Brasileira de 1988, com a formal equiparação dos direitos das mulheres aos dos homens, a realidade dessa legitimação passou a ser modificada e a violência de gênero passou, paulatinamente, a ser revelada e a ter um tratamento diferenciado no sistema jurídico penal brasileiro. Nesse cenário, por intermédio de indicadores oficiais, dentro dos Juizados Especiais Criminais, se evidenciou a alarmante presença de inúmeros casos de violência doméstica e familiar contra a mulher, até então desconhecidos (ou ignorados) pela sociedade brasileira (CAMPOS; CARVALHO, 2011, p. 143-145). Constatou-se, assim, um paradoxo, já que a família, espaço de proteção onde laços de amor e afeto são construídos, revelou-se, também, um local de violência e violação. No contexto da violência doméstica, pois, o homem, pai ou companheiro, confunde-se com o agressor. Embora evidenciada, o julgamento da violência doméstica nestes Juizados demonstrou-se ineficaz, porque se desconsiderava a relação hierarquizada e de poder sobre as mulheres no ambiente doméstico e familiar, como também a existência, entre vítima e agressor, de uma relação de carinho e afeto (ROMEIRO, 2009, p.54). No mais, o propósito de escuta das vítimas era inverso ao 4  A “cifra oculta” da criminalidade é representada pela diferença entre a “criminalidade real” (quantidade de delitos cometidos verdadeiramente em um determinado momento) e a “criminalidade aparente” (casos que chegam ao conhecimento das autoridades e constam nas estatísticas oficiais).

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procedimento utilizado e as soluções apresentadas, através indiscriminada utilização das medidas despenalizadoras e redução dos conflitos a aspectos pecuniários, findaram por banalizar esta violência de gênero (CAMPOS; CARVALHO, 2006, P. 419). Além de estar bastante presente nos JECRIMs, a violência doméstica contra a mulher passou a ocupar um espaço cada vez maior na imprensa brasileira. Portanto, ao divulgar e dramatizar alguns casos extremos de violência contra a mulher, como o da cearense Maria da Penha Maia Fernandes, vítima de duas tentativas de homicídio por seu ex-marido, a mídia passou a fomentar e legitimar a necessidade de um maior rigor punitivo para os agressores, interferindo, assim, na opinião pública. A mídia, no entanto, superficializa as realidades sociais e distorce o modo de enxergá-las, de sorte que a essência dos problemas passa a ser ignorada. Adicionalmente, todo conhecimento produzido nas universidades por estudiosos renomados a respeito da violência institucional das prisões, seus efeitos negativos sobre o indivíduo e o fracasso das ideologias prevencionistas é escondido. Ganham espaço nos telejornais de maiores audiência, em contrapartida, os discursos vazios dos “especialistas em tudo”, os quais reduzem a complexidade dos conflitos ao binômio delito-pena e tentam convencer os expectadores de que a única opção que resta ao Estado é o poder de punir e criminalizar (BATISTA, 2002, p. 274-276). Com efeito, as pessoas compadecidas com o drama da violência de gênero, se visualizavam como potenciais vítimas, demonizavam os possíveis agressores e criticavam o Estado brasileiro em razão do banal tratamento dado à violência contra a mulher no âmbito dos JECrims. Nesse ínterim, a sociedade se mobilizou a fim de inserir a violência doméstica e familiar contra a mulher nos debates políticos e pleitear o aumento indiscriminado da punição. Nesse contexto, é de suma importância a apresentação dos ensinamentos de David Garland (2008, p. 55), que, embora observador das realidades norteamericanas e britânicas, conseguiu caracterizar um fenômeno evidentemente global: Os interesses e sentimentos das vítimas (...) agora são rotineiramente invocados em apoio às medidas de segregação punitiva. Nos EUA, políticos concedem entrevistas coletivas para anunciar leis relativas às sentenças condenatórias, e são acompanhados no palco pelas famílias das vítimas. Leis são aprovadas e batizadas com o nome de vítimas (...). O novo imperativo político é no sentido de que as vítimas devem ser protegidas, seus clamores devem ser ouvidos, sua memória deve ser honrada, sua raiva deve ser exprimida, seus medos devem ser tratados (...). Qualquer atenção aos direitos ou ao bem-estar do agressor é considerada defletiva das medidas apropriadas de respeito às vítimas. Cria-se um jogo político maniqueísta, no qual o ganho do agressor significa a perda da “vítima”, e “apoiar” as vítimas automaticamente quer dizer ser duro com os agressores.

A articulação do poder da mídia com o sofrimento das vítimas e as demandas populares recrudescedoras causam fortes consequências na política, gerando o fenômeno que se denomina “populismo punitivo”, o qual consiste na verdadeira “perpetuação do antigo clientelismo que sempre marcou as recentes democracias latino-americanas” (GLOECKNER, 2011, p. 82) por meio da utilização política do arsenal penal. Tal fenômeno é caracterizado pela atual tendência política de se atuar emergencialmente enrijecendo legislações penais, em razão da demanda populacional por respostas mais incisivas ao crime, consequência da disseminação do medo e forte sentimento de insegurança social, potencializados, ainda, pelo apelo midiático. Como efeito, políticas criminais recrudecedoras, incluídas nas pautas eleitoreiras como principal forma de solução das mazelas sociais, são aplaudidas pela sociedade e a popularidade dos mentores dessas políticas aumenta significativamente. A respeito dessas manobras políticas através das quais os legisladores fogem às suas responsabilidades ao tentar atribuir às legislações penais um efeito educador meramente simbólico, Raúl Zaffaroni (2011, p. 44) declara: Essas normalizações são claramente inconstitucionais porque, (a) usam as pessoas

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como meio para a obtenção de fins e (b) porque valoram positivamente o embuste público (pretendem que a população acredite falsamente que seus bens são tutelados com eficácia). Quando os bens jurídicos ficam desprotegidos, o público enganado e o poder punitivo incrementado, é violada frontalmente a constituição porque (a) não se provê segurança, (b) se coisificam ou se mediatizam os seres humanos, (c) o príncípio democrático é pervertido por enganação, (d) se colocam em perigo os âmbitos democráticos, habilitando o abuso do poder punitivo, (e) se aprofunda a seletividade punitiva, (f) por fim, se obstaculizam o desenvolvimento social e o aperfeiçoamento institucional.

Com efeito, as soluções atuais dadas ao crime ganham um novo semblante bastante paradoxal, porque, na tentativa de se tutelar bens jurídicos, garantir a segurança e educar a moral societária, são utilizadas leis penais. Contudo, tais legislações são simbólicas, por não conseguem cumprir, sequer minimamente, as funções que lhes são atribuídas, assim como, muitas vezes, põem em risco os próprios bens que pretendem proteger (FAYET JÚNIOR; MRAINHO JÚNIOR, 2009, p. 86-89). Face, portanto, ao compadecimento social com a história de Maria, à fácil aderência por todos às causas feministas, no que tange à violência doméstica contra a mulher, como também aos fortes anseios e apelos vindicativos midiáticos e coletivos por uma máxima intervenção penal, o Estado, por meio de seus discursos políticos-demagogos, não inovou e decidiu governar através da simbólica intervenção punitiva e fez por encerrada sua suposta atuação voltada para a solução do problema social “iluminado”. Surgiu, assim, no cenário jurídico nacional a Lei n.º 11.340/2006 como resposta política às fortes demandas midiáticas e populacionais por ações mais incisivas contra a criminalidade doméstica. Quanto ao tratamento penal previsto para os crimes praticados contra a mulher no contexto doméstico e familiar, a Lei n.º 11.340/2006 pecou em inúmeros aspectos. O Poder Legislativo, preocupado apenas em atender clamores demandantes de uma Lei rigorosa, contrariamente à tendência dos movimentos e reformas garantistas em favor dos direitos humanos, vedou o uso das aclamadas medidas despenalizadoras, aumentou penas de crimes, adicionou circunstâncias agravantes ao Código Penal, ampliou o rol de situações passíveis de prisões preventivas e preferiu a regra da ação penal incondicionada. Afastou-se, portanto, do referencial minimalista do Direito Penal para solucionar conflitos de origem doméstica e familiar. Diante do exposto, a Lei Maria da Penha, no contexto das legislações de emergência, trouxe muitas alterações recrudescedoras para o mundo jurídico-penal, de modo que foi bastante aclamada pelos militantes em prol dos direitos das mulheres e tida como um marco para autonomia e segurança feminina. No entanto, as pretensões da criminalização provedora são tidas como falaciosas e inócuas. Nesse sentido, assegura-se: O uso simbólico do direito penal foi sem dúvida um forte argumento do movimento feminista para justificar a sua demanda criminalizadora. É certo que as normas penais simbólicas causam, pelo menos de forma imediata, uma sensação de segurança e tranquilidade iludindo os seus destinatários por meio de uma fantasia de segurança jurídica sem trabalhar as verdadeiras causas dos conflitos. Daí a afirmação que mais leis penais, mais juízes, mais prisões, significam mais presos, mas não menos delitos. O direito penal não constitui meio idôneo para fazer política social, as mulheres não podem buscar a sua emancipação através do poder punitivo e sua carga simbólica (MELLO, 2010, p. 146).

A legislação, através de sua redação, portanto, trouxe a simbólica criminalização de complexos problemas sociais, a qual legitima a ação do sistema penal. No entanto, os estudos de criminologia crítica comprovam o quanto esse sistema está deslegitimado por produzir um falso discurso de erradicação da violência e promoção da segurança.

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3. A INCAPACIDADE DE O SISTEMA PENAL RESOLVER UM PROBLEMA SOCIAL A lógica da imposição de sanções do sistema penal, através da teoria da pena, apresenta-se aparentemente perfeita, porque, promete acabar com a criminalidade, garantir a segurança e a correção do delinquente. Com efeito, alude-se ao sistema penal, diante de suas promessas, como melhor forma de solução de mazelas sociais. Entretanto, pesquisas revelam que, contrariamente ao que se espera como consequência da crescente utilização do cárcere como meio de prevenção do crime, os índices da criminalidade não diminuem, mas aumentam concomitantemente ao aumento dos indicadores da população encarcerada (CID; LARRAURI, 2009, p. 3-13). Nesse sentido, Foucault confirma: “as prisões não diminuem a taxa de criminalidade: pode-se aumentá-las, multiplicá-las ou transformá-las, a quantidade de crimes e de criminosos permanece estável, ou, ainda pior, aumenta” (FOUCAULT, 1999, p. 292). Outrossim, o cárcere revela-se como uma instituição degradante que não realiza a promessa de recuperação do delinquente. A prisão, que ainda é uma pena corporal, só gera sofrimento: impõe um modo de vida peculiar, controlado e negativo ao detento, priva-o a da forma cotidiana de viver, do contato com familiares, amigos e pertences, das relações amorosas, do trabalho, de modo que despersonaliza e dessocializa o prisioneiro (ZAFFARONI, 2001, p. 135-136). Nesse diapasão, é contraditória a utilização da segregação pessoal e consequente afastamento de todas as regras sociais extramuros, com a intenção de integrar o preso, como um passe de mágica, às regras sociais das quais foram afastados. Sem mencionar, ainda, a crise institucional pela qual o cárcere passa em razão das degradantes condições de vida proporcionadas aos prisioneiros. Ademais, as dificuldades de readaptação são potencializadas pelo estigma social que marca um ex-condenado, de modo que, mesmo com a cessação do sequestro institucional, a exclusão social perdura para além do tempo atrás das grades. Como consequência da exclusão constante, altos índices de reincidência são apresentados à sociedade (ANDRADE, 1997, p. 291). Cai por terra, pois, a funcionalidade das atribuições da pena: o sistema penal é incapaz de proteger bens jurídicos, de reduzir da criminalidade e de ressocializar o preso. Assim, salta aos olhos que a operacionalidade do sistema penal baseia-se na irracionalidade e que ele representa uma aberração no mundo real. O sistema penal revela-se como um sistema de aparências porque não consegue fazer com que as promessas que o legitimam sejam cumpridas; marcada está, pois, sua completa crise de legitimidade (ANDRADE, 2006, p. 470-471). O sistema penal, portanto, está falido e deslegitimado e possui uma lógica particular, cuja funcionalidade é intangível aos problemas que pretende resolver. A pena deixou, nesse contexto, de ter funções concretas; restou-lhe, apenas, a função simbólica de manutenção do sistema penal e crença populacional na legislação vigente e na funcionalidade do próprio sistema; é o que se denomina de “função agnóstica da pena” (ZAFFARONI, 2004, p. 33). Na atualidade, no entanto, a sociedade, escravizada pelo medo e pela insegurança, prefere optar por uma atuação simbólica a qual acaba por expandir o paradoxal sistema punitivo no intuito de acalmar seus anseios. Nesse compasso, porém, as esferas que apresentariam soluções mais plausíveis aos conflitos são ocultadas e os problemas sociais findam por não serem solucionados. A ineficiência do sistema penal para prevenir e erradicar a criminalidade não é diferente quando o assunto é a violência doméstica e familiar contra a mulher. Estudos divulgadospor Elena Larrauri demonstraram que, na Espanha, conquanto exista a rígida Lei Orgânica n.º 11/2003, a qual em muito inspirou a brasileira Lei “Maria da Penha”, os índices de homicídios praticados contra as mulheres por seus parceiros não diminuíram. Deveras, resultados revelam, ainda, que as mulheres em situação de violência não vislumbram a aptidão da justiça penal para ajudá-las a solucionar seus problemas (LARRAURI, 2011, p. 1-2). Os motivos que conduzem a decepção feminina com o sistema penal são vários, no entanto todos eles convergem para um único fato (de inúmeros efeitos negativos): a apropriação, pelo sistema penal, dos conflitos das vítimas, de sorte que suas vozes e expectativas são completamente olvidadas e o problema não é solucionado. O procedimento processual penal, tal como é concebido na modernidade, relega à vítima um papel secundário. A prioridade da ação Estatal não consiste na contemplação dos sentimentos da vítima ou dos efeitos da prática delitiva sobre sua vida, mas na persecução penal daquele que pra22

ticou um ato criminoso. Após a expropriação do conflito pelo Estado, portanto, o suposto agressor não tem que dar satisfações à ofendida, mas deve prestar contas ao próprio Estado, detentor da ação penal. As vítimas, no sistema penal, portanto, são ignoradas; seus depoimentos são reduzidos a termo e, para os oficiais, tudo que importa ao reportá-los são as circunstâncias que fazem o fato subsumir à norma, o que leva à completa redução da complexidade desses conflitos. No enquadramento legal, portanto, o encadeamento da briga é totalmente refutado e reduzido àquele único ato que define o crime (CELIS; HULSMAN, 1993, p. 82). Necessário destacar, ainda, um dos aspectos mais relevantes e diferenciadores dos conflitos de gênero: o comprometimento emocional entre as partes envolvidas. As normas do direito penal não contemplam o envolvimento afetivo entre os integrantes dos polos ativos e passivo do crime; elas programam, normalmente, situações corriqueiras e não complexas nas quais as partes não se conhecem, como uma briga em um bar ou um roubo eventual. No caso da violência doméstica e familiar contra a mulher, entretanto, a briga ou agressão é concomitante à existência de uma relação familiar, onde os integrantes partilham laços de amor, intimidade e carinho. Logo, os casos envolvem uma carga subjetiva muito grande e o Direito Penal não foi estruturado para contemplá-la. Em decorrência dessas relações íntimas e de afeto existentes, aponta-se que as mulheres violadas, ao tornarem público o conflito doméstico e familiar, normalmente não querem retribuir o mal causado pelo agressor, criminalizando-o e punindo-o. Elas desejam apenas romper o ciclo de violência e restabelecer o pacto familiar e a paz no lar. Até mesmo as raras mulheres que desejam a separação, no caso de violência conjugal, não almejam a persecução penal do agressor; elas preferem que a coesão familiar seja mantida, especialmente quando há filhos envolvidos. Nesse diapasão, as mensagens midiáticas de que as vítimas e suas famílias clamam por vingança e punição são bastante falaciosas. Afirma-se que o sentimento da vindita até existe, principalmente logo após a ocorrência do fato, daí a existência de calorosos depoimentos veiculados nos meios de comunicação. Entretanto, esse sentimento não é generalizado e muito menos duradouro. Pesquisas revelam que as vítimas, em geral, não vislumbram a necessidade de um processo penal e, até mesmo em casos mais graves, preferem a resolução do conflito fora do mundo jurídico-penal e punitivo (CELIS; HULSMAN, 1993, p. 116-118). As vítimas querem, nesse contexto, proteção e a disponibilidade de formas diversas e concretas para a solução dos conflitos domésticos e não, necessariamente, a punição do agressor. No entanto, a expropriação do conflito pelo Estado, além reduzir as complexidades dos conflitos por não contemplar suas peculiaridades e múltiplas facetas, redunda na apresentação de uma única reação à situação conflituosa: a resposta punitiva através da imposição de uma pena privativa de liberdade. O enforque penal, portanto, limita as mulheres e o conflito é subtraído, por completo, da órbita de alcance das partes envolvidas, de modo que e as múltiplas formas de solução disponíveis são forçosamente substituídas pela aplicação de uma lógica punitiva (OTERO, 2008). Ademais, a crença de que, com a punição do agressor, a vítima poderá descansar e encontrar sua paz, é tão falaciosa quanto os ideais de ressocialização e prevenção que acompanham o modelo da justiça encarceradora. Quando o processo termina com a imposição de uma medida constritiva, a mulher, que ainda partilha sentimentos amorosos pelo agressor, ao ver o sofrimento do condenado no cumprimento da pena, sente-se uma violadora e não mais uma vítima, já que vislumbra o mal causado ao agressor muito mais gravoso que aquele que ele lhe causou. Outrossim, os efeitos da pena transcendem à pessoa do condenado, de modo que afetam substancialmente a família (HERMANN, 2002, p. 56-57). A imposição da pena ao agressor, portanto, implica também a imposição de uma sanção à vítima. Com a intervenção penal, a mulher fica desamparada em todos os sentidos: não possui mais apoio econômico (seja porque ela já não trabalhava, seja porque a renda familiar não será mais complementada); não há mais a afetividade daquele ente querido no seio familiar; e, o estigma de ser “filha”, “mãe” ou “mulher” de um condenado acompanha-a em qualquer âmbito social, dificultando suas relações e obtenção de trabalho. A condição de vítima da mulher, portanto, perpetua-se com a condenação de seu agressor; o vitimizador, no entanto, agora é o próprio sistema penal. Ante o exposto, percebe-se que normalmente as mulheres vítimas da violência doméstica 23

não desejam a existência do procedimento penal5. A Lei Maria da Penha, no entanto, impossibilitou qualquer forma de diálogo e de exposição das vontades das vítimas, seja pela vedação da utilização dos institutos alternativos ao processo, seja pela escolha da regra da ação penal pública incondicionada. Paradoxalmente, pois, a Lei que surgiu, no contexto do fenômeno do populismo punitivo, no intuito de dar voz e poder às mulheres, impõe um procedimento o qual impede que elas falem e que elas tenham vez. Com efeito, a rigidez da legislação, que impõe a irreversibilidade do procedimento processual penal e a prisão como única resposta ao conflito doméstico, findará por inibir a procura do auxilio institucional e contribuir para o silêncio e temor das vítimas. Por conseguinte, as “cifras ocultas” da violência doméstica contra a mulher poderão ser incrementadas, já que o próprio instrumento reservado à proteção feminina irá, de todas as formas, penalizá-la. A respeito, afirma Julita Lemgruber (2011, p. 381): (...) legislações muito rígidas desestimulam as mulheres agredidas a denunciarem seus agressores e registrarem suas queixas. Sempre que o companheiro ou esposo é o único provedor da família, o medo de sua prisão e condenação a uma pena privativa de liberdade acaba por contribuir para a impunidade... É urgente que se amplie o conhecimento das experiências alternativas à imposição de penas nesta área, pois já existe evidência de que, em vários casos, o encarceramento de homens pode aumentar, ao invés de diminuir, os níveis de violência contra a mulher e as taxas gerais de impunidade para esse tipo de crime.

Nesses termos, pois, a intervenção penal jamais poderá ser considerada como um meio efetivo para a solução de conflitos domésticos. Em verdade, muitos dos conflitos pessoais, os quais são enquadráveis na previsão taxativa da Lei penal, na atualidade, são resolvidos através de meios não disponibilizados pelo sistema penal. Apenas uma ínfima parte deles é resolvida na justiça criminal. Na maioria das vezes, as soluções são encontradas pelos próprios membros da família ou com o auxílio de profissionais que apontem uma alternativa viável. Resta comprovada, assim, a incapacidade da superação dos conflitos interpessoais pela via formal da justiça criminal, visto que ela se apropria do conflito das vítimas, fugindo aos propósitos de escuta das partes envolvidas, não apresentando soluções e efeitos positivos sobre os envolvidos ou sequer prevenindo as situações de violência. Nesse contexto, se o sistema penal está falido por não conseguir solucionar os problemas que se propõe erradicar e as mulheres vítimas da violência doméstica e familiar, em sua maioria, não desejam a persecução penal de seus agressores, resta, unicamente, a irracionalidade da utilização de medidas punitivas extremas para a solução dos conflitos domésticos. Certamente o caminho para a solução do conflito não passa pela criminalização, muito menos pela carcerização do agressor, na medida em que o sistema penal, em especial a pena de prisão, não oferece mais que uma falácia ideológica em termos de ressocialização do agente (...). Esse mesmo sistema, ademais, não faz pelas vítimas mais que duplicar as suas dores, expondo-as a um ritual indiferente e formal, que desconsidera a diversidade inerente à condição humana e reproduz os valores patriarcais que a conduziram até ele. Aportando ao sistema penal, a vítima, mais do que nunca, distancia-se de seu desiderato de reformular a convivência doméstica, porque deflagra um aparato que não esta munido dos mecanismos necessários para a mediação do conflito, o que a leva a retirar-se do espaço público que conquistou ao longo de uma história de lutas, para retornar à esfera do privado, desmuniciada 5  Em estudo realizado pelas autoras durante dois anos no 1º Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher da cidade do Recife, em que se pesquisou todos os processos criminais instaurados no Juizado nos anos de 2007 a 2010 arquivados pelo Tribunal pernambucano até Junho de 2011, constatou-se que 57% das mulheres retrataram, quando se tratava de crime de ação penal pública condicionada à representação. Ademais, 79% dos processos pesquisados foram extintos sem a resolução do mérito e pode-se afirmar que 53% dessas extinções foi devida à manifestação de vontade das vítimas, já que os institutos que deram ensejo à extinção da punibilidade foram a decadência e a retratação da vítima.

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de qualquer resposta (HERMANN, 2002, p. 18-19).

Reconhecer a violência doméstica e familiar contra a mulher como um problema social, portanto, não implica que o Direito Penal seja a melhor solução. Importante, assim, que sejam discutidos e apresentados meios alternativos para a solução de conflitos, principalmente através transferência da responsabilidade para outros ramos do Direito, como também pela utilização de medidas psicoterapêuticas, conciliadoras e pedagógicas, rompendo assim com o paradigma penalista tradicional de que só se resolve o problema da criminalidade com rigor penal. Resultados positivos têm sido obtidos quando no investimento em políticas públicas emancipadoras. Logo, concomitantemente às políticas minimizadoras da intervenção penal e à evolução do pensamento criminológico, devem ser implementadas políticas sociais de prevenção incidentes nas verdadeiras causas da criminalidade doméstica. Portanto, as políticas de prevenção e combate à violência contra a mulher devem estar focadas na reprodução de um ambiente doméstico e familiar equilibrado, ultrapassando, assim, as barreiras da medieval e maniqueísta perquirição do culpado e eterna vitimização feminina. É indispensável, nesse diapasão, a superação e não disseminação, no intelecto social, dos preconceitos, ainda existentes, decorrentes de uma sociedade ainda patriarcal e machista, que levam à ideia da mulher como um ser passivo e desigual que se pode dominar e de quem se pode dispor. Logo, é preciso se voltar às origens do problema, precipuamente familiar e de origens históricas, da violência doméstica e, definitivamente, o sistema penal não se presta a fazer isso. 4. CONSIDERAÇÕES FINAIS A Lei “Maria da Penha”, criada no intuito de “empoderar” as mulheres para enfrentar a violência doméstica e familiar, não cumpre os seus propósitos. Entretanto, paradoxalmente, por haver retirado a fala feminina do espaço público e não ter contemplado as peculiaridades dos conflitos de gênero e a falência do sistema punitivo, pode contribuir para a ocultação dos dados relativos à violência doméstica e familiar, já que as mulheres vítimas preferem o silêncio à dolorosa e ineficiente intervenção do sistema penal no ambiente doméstico. É urgente, portanto, que se ampliem as discussões a respeito das melhores formas de resolução dos conflitos domésticos para além do sistema penal. Como precisamos denunciar uma estrutura falida de um sistema, antes de pensar em formas capazes de substituí-lo, não coube a este trabalho apontar formas alternativas de soluções de conflitos aplicáveis ao problema da violência doméstica e familiar contra a mulher. Por ora, entretanto, fica o apontamento de que se deve atentar para as contradições do sistema penal e criar formas de resistir ao fenômeno do populismo punitivo, visto que, através dele, políticas públicas de aparência são enxertadas no seio social e, consequentemente, os espaços de debate na sociedade são reduzidos e os meios que apresentem soluções efetivas aos problemas que incomodam a sociedade são ocultados. REFERÊNCIAS ANDRADE, Vera Regina Pereira de. A ilusão da segurança jurídica: do controle da violência à violência do controle penal. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1997. _________. A soberania patriarcal: o sistema de justiça criminal no tratamento da violência sexual contra a mulher. Revista Sequência, Florianópolis, ano XXV, n. 50, p. 71-102, julho, 2005. _________. Minimalismos e abolicionismos: a crise do sistema penal entre a deslegitimação e a expansão.Revista da ESMESC, Florianópolis, v. 13, n. 19, p. 459-488, jan./dez., 2006. BARATTA, Alessandro. O paradigma do gênero: da questão criminal à questão humana. In: CAMPOS, Carmen Hein de (org.). Criminologia e feminismo. Porto Alegre: Sulina, 1999. BATISTA, Nilo. Mídia e sistema penal no capitalismo tardio. Discursos Sediciosos: crime, direito e 25

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A CRIMINALIZAÇÃO SECUNDÁRIA NAS VARAS DA INFÂNCIA E JUVENTUDE DE RECIFE- SISTEMA PUNITIVO DISFARÇADO DE SOCIOEDUCATIVO – UM RETORNO AO MENORISMO 1

Érica Babini Lapa do Amaral Machado2 Marília Montenegro Pessoa de Mello3 Juliana Marques Lyra Carneiro Leão4 Keunny Raniere Carvalho de Macêdo Filho5

1. INTRODUÇÃO O Estatuto da Criança e do Adolescente, criado pela Lei 8.069/90 e consagrado nos termos dos artigos 227 e 228 da Constituição Federal de 1988, estabelece um novo paradigma no tratamento conferido à infância e juventude. Antes alicerçado sob os parâmetros da Doutrina da Situação Irregular, o menor submetia-se à tutela do Estado, que regido pelo binômio menor/delinquente, resultava em um processo de intenso aprisionamento. Com o advento do ECA, a Doutrina da Proteção Integral passa a elencar garantias próprias do sistema constitucional para a apuração de atos infracionais, impedindo violações de direitos e garantias fundamentais, ainda que em nome da “socioeducação”, determinando novo marco no tratamento à infância e juventude, ao reconhecer seu status de sujeito de direitos e deveres em condição peculiar de desenvolvimento - conditio sine qua non para a proteção dos direitos fundamentais da pessoa humana em um Estado Democrático de Direito - e garantido seu tratamento 1  Este trabalho é resultado de pesquisa realizada no Programa Institucional de Iniciação Científica – PIBIC, financiado pela Universidade Católica de Pernambuco – UNICAP e está vinculado às pesquisas desenvolvidas pelo Grupo Asa branca de Criminologia -www.asabrancacriminologia.blogspot.com.br 2  Professora de Criminologia e Direito Penal da Universidade Católica de Pernambuco – UNICAP. Doutoranda em Ciências Criminais na Universidade Federal de Pernambuco - UFPE. 3  Professora de Direito Penal e Criminologia da Universidade Católica de Pernambuco – UNICAP e da Universidade Federal de Pernambuco – UFPE. Doutora pela Universidade Federal de Santa Catarina -UFSC 4  Graduanda do Curso de Direito da Universidade Católica de Pernambuco. Pesquisadora PIBIC-UNICAP 5  Graduando do Curso de Direito da Universidade Católica de Pernambuco. Pesquisador PIBIC-UNICAP.

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específico e particular. A Doutrina da Proteção Integral orienta as diretrizes do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), incorporando o conceito de ato infracional para conferir à responsabilização o caráter de medida socioeducativa, objetivando fomentar a perspectiva pedagógica. Entretanto, resta verificada através desta pesquisa que a implementação da nova política guarda muitos resquícios do antigo sistema menorista. Percebe-se, ao lado da excessiva intervenção estatal por meio do Poder Judiciário, conferido ao juiz poder quase absoluto de decisão, uma ampla discricionariedade ao impor valores e crenças pessoais quando da aplicação de medidas, o que termina por restringir as prerrogativas constitucionalmente asseguradas pelos referidos diplomas legais. Destarte, é sob a égide da Criminologia Crítica que se tem o marco teórico norteador da presente pesquisa, o qual desenvolve estudo crítico acerca das questões atinentes ao sistema penal e suas políticas punitivistas adotadas pelo Estado, detectando, por conseguinte, as influências e os impactos exercidos sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente. Orientar-se através dos estudos proporcionados pela Criminologia Crítica é de fundamental importância, posto que a perspectiva crítica pretende compreender o crime como um fenômeno complexo – resultado da criminalização das agências oficiais de poder, cuja reação é condicionada por ideologias e políticas (ZAFFARONI, 2001). O desvio não é a qualidade do ato cometido por alguém, mas antes a consequência da aplicação, por outros, de regras e sanções a um ‘ofensor’. O desviante é uma pessoa a quem este rótulo pôde ser aplicado com sucesso. O comportamento desviante é o comportamento designado como tal (BECKER, 1963, p. 55).

Trata-se exatamente do intento sociológico, segundo o qual a real atuação do sistema de justiça deve ser perquerido, apesar das diagramações da dogmática legislativa. A pesquisa está sendo realizada a partir da metodologia etnográfica, com o objetivo de compreender como a criminalização secundária atua nas audiências de apresentação e continuidade para apuração de ato infracional, de modo a investigar o grau de cumprimento de garantias penais e processuais quando da cominação de medidas socioeducativas. Nesse sentido, foram acompanhadas audiências na Vara da Justiça Sem Demora, e nas 3ª e 4ª Varas de Continuação da Infância e Juventude da cidade do Recife, no período de abril a junho do ano de 2013, para apuração de dados necessários à proposta da pesquisa em estudo. Outrossim, verificou-se em que nível se processam tais impedimentos e suas influências na imputação de medidas, em detrimento dos princípios assegurados pelo referido dispositivo legal e consolidados pela Constituição Federal de 1988. Para consolidar a temática proposta, adentrar no contexto social-político envolto no tratamento conferido as crianças e adolescentes, foi necessário um extenso estudo teórico. Inicialmente a metodologia dedutiva, fundamentada na investigação bibliográfica, foi importante para compreender a evolução cultural-legislativa da infância e juventude no Brasil e no mundo. Com o objetivo de alcançar a verdadeira compreensão dos fatos, focou-se na contextualização da própria estrutura jurídico-protecionista de intervenção estatal, caracterizada por um modelo legislativo garantista através, principalmente, da aplicação do Estatuto da Criança e do Adolescente influenciado pela Doutrina da Proteção Integral. Procurou-se verificar a incidência paralela de influências extrínsecas de controle social legitimados por uma camada latente de punitivismo e segregação. Com base nesta investigação, o pesquisador posiciona-se como espectador dentro do objeto em exame, absorvendo os dados de forma impessoal, visando absorção da realidade dos fatos em sua essência. Neste projeto, o método foi empregado a partir do acompanhamento de um total de 54 audiências, sendo 21 delas realizadas na Vara da Justiça Sem Demora (VJSD), e outras 33 nas 3ª e 4ª Varas de Continuação da Infância (VI) e Juventude, na cidade do Recife, durante o período de abril a junho do ano de 2013. Constituindo-se como uma pesquisa de campo, este convívio permitiu uma produção de dados concretos frutos de observação direta do pesquisador com o objeto científico. 29

Nesse sentido, serão utilizadas de forma amostral para análise e cruzamento de dados que irão compor a presente pesquisa, 3 das audiências acompanhadas VJSD, e 5 das audiências presenciadas nas VI. De modo a realizar a interpretação do conteúdo pelo cruzamento de dados, foram criadas três categorias de análise, objetivando delinear as conclusões obtidas através dessa experiência. As categorias de análise formuladas foram as seguintes: 1ª Categoria: Procedimentos – Direitos e Garantias Fundamentais; a) Legalidade; b) Devido processo legal (- Materialidade, - Provas, - Trâmite legal); c) Proporcionalidade; 2ª Categoria: Seletividade do Sistema; 3ª Categoria: Fundamentos do Julgador (- Família, - Escolaridade, - Drogas, - Exemplo para a sociedade, - Arrependimento do ato praticado, - Religião). O procedimento desenvolvido seguiu, portanto, etapas sucessivas e determinadas: 1- Realizado o estudo bibliográfico de contextualização da temática (objeto da pesquisa); 2- Acompanhadas as 54 audiências, coletando-se os dados relevantes e necessários para teste das premissas preestabelecidas inicialmente; 3- Prosseguiu-se uma análise de conteúdo (BARDIN, 1977), explorando os elementos ocultos constatados a partir dos dados empiricamente agrupados; 4- Tomando como base as fases anteriores, estabeleceu-se as categorias de análise para filtração das mesmas; 5- Levando-se em consideração todo o estudo teórico-prático elaborado, faz-se necessária a exibição das discussões trazidas e dos resultados advindos. Após o empreendimento algumas conclusões foram levantadas, o que se verá a seguir. 2. DO MENORISMO À PROTEÇÃO INTEGRAL: UM OLHAR SOB A INFÂNCIA E JUVENTUDE Para abordar a temática sobre a infância e juventude, é mister estabelecer um marco referencial, que no presente trabalho será dado pela edição da Lei 8.069/90, que inaugura o Estatuto da Criança e do Adolescente, simbolizando novo modo de se visualizar e lidar com jovem no Brasil. A história da infância comprova que somente a partir de meados do século XIX que se tem dedicado um tratamento jurídico diferenciado para este grupo. Em outros termos, é neste momento histórico que a criança passa a ser visualizada juridicamente. Porém, o que se verificava anteriormente, além de não ser reconhecida pela sociedade, era a criança sequer ser contemplada nos textos legais, fato que pode ser analisado diante dos Códigos Penais existente na época. Estes consideravam menores de idade da mesma forma que os adultos, de caráter penal indiferenciado, conferindo tratamentos semelhantes e fixando penas privativas de liberdade relativamente menores que às aplicadas aos maiores, a serem cumpridas em condições deploráveis de encarceramento e sujeitas às promiscuidades praticadas pelos adultos, visto que ambos encontravam-se recolhidos nas mesmas instituições penitenciárias (PLATT, 1977). Esse quadro perdura até o final do século XIX e início do século XX, quando surge forte indignação moral da sociedade com as condições existentes e da promiscuidade vivenciada nos ambientes penitenciários, sinalizando os primeiros indícios de mudanças, que seriam propostas pelos ideais do Movimento dos Reformadores, nos Estados Unidos, onde teve início essa nova compreensão acerca da criança, e se espalharia pelo mundo no decorrer do novo século (MENDEZ, 1998). Fundamental ressaltar que o contexto da época colaborava com a situação vivida pela infância. As inovações e inúmeras mudanças promovidas pela Revolução Industrial, trazendo em si os novos rumos do capitalismo, terminaram por produzir efeitos nas diversas camadas sociais, provocando o deslocamento de grandes massas do campo em direção aos centros urbanos nascentes, na busca por emprego nas grandes fábricas. Como o artesão perdeu espaço frente às linhas de produção fabris, fator aliado aos salários muito baixos, fazia-se necessário a aplicação de toda família no trabalho, de maneira a obter o sustento mínimo do lar. Destarte, mulheres e crianças ocuparam os novos postos de trabalho nas fábricas. Uma vez que as mulheres e as crianças não estavam sujeitas a qualquer regulamentação de trabalhista, e com salário auferido inferior àquele pago ao homem, consistiam em mão de obra barata de fácil acesso, favorecendo o empresariado, no intento de ter todos os postos ativos. Nesse sentido, a criança cumpria importante papel, visto que auxiliava na renda familiar. Destaca-se que as condições a que estavam submetidos operários e crianças era de completa precariedade, em ambientes insalubres, inadequados ao desempenho de qualquer atividade. Não 30

obstante as circunstâncias desfavoráveis, o sistema econômico capitalista agravou a pobreza no campo, de modo que a necessidade das famílias em obter seu sustento gerou incessante busca por empregos, impulsionando intenso processo de superlotação das grandes cidades, que aliado à falta de infraestrutura que comportasse o excesso de contingente populacional, culminou em graves problemas sócio estruturais, ensejando o surgimento dos subúrbios onde se aglomeravam as pessoas mais pobres, provocando, por sua vez, a difusão de doenças e o aumento da violência urbana (SARAIVA, 2009). Esse processo passou a clamar por políticas que atuassem tanto no sentido da manutenção do sistema econômico, quanto no controle dos problemas sociais. Nesse ínterim, medidas foram instituídas nesse propósito. O alto índice de jovens em situação de abandono, em razão das dificuldades enfrentadas pelas famílias para criá-los, e de jovens delinquentes, em função da excessiva aglomeração nos centros urbanos aliada à precária infraestrutura, além de estarem situados à margem do mercado de trabalho, fomentam a introdução de novas políticas destinadas à criança e ao adolescente. Os ideais propostos pelo Movimento dos Reformadores no início do século XX, nos Estados Unidos, instauram um momento de caráter tutelar da juventude, ao estabelecer classificações distintas entre criança e adulto, eliminando a promiscuidade existente nos centros de reclusão, principal dos motivos de contestações. Intentada uma análise crítica, evidencia-se que o projeto dos reformadores, além de uma conquista sobre o velho sistema, constituiu compromisso profundo com àquele. As novas leis e administração da Justiça de Menores nasceram e se desenvolveram sob os pilares ideológicos do positivismo filosófico, de maneira que a cultura de sequestro dos conflitos sociais somente foi alterada em único aspecto: a promiscuidade (MÉNDEZ, 1998). Ademais, se por um lado visava extinguir a promiscuidade através da distinção estabelecida, por outro reproduzia articuladas políticas de repressão social, com intensa criminalização da pobreza e estereotipação da juventude desviada, invariavelmente estigmatizada por ser pobre, de maioria negra, mal instruída e localizada nos subúrbios das cidades, o que não raro resultou no encarceramento, alegando-se proteção ao menor abandonado/delinquente (BARATTA, 1998). Remonta ao final do século XIX a criação do primeiro Tribunal de Menores, em Illinois, nos Estados Unidos. Seguiu-se com diversos outros países aderindo à criação de Tribunais de Menores, instituindo seus juízos especiais. Através do Decreto Federal 16.273, o Brasil cria seu primeiro juízo de menores em 1923, no Rio de Janeiro. A criança que era tratada como coisa passou a reclamar a condição de objeto de proteção do Estado, dando molde à nova Doutrina da Situação Irregular que perduraria até meados do século XX. Esta doutrina acaba consagrando o binômio carência/delinquência, promovendo intensa criminalização da pobreza. Imperioso constatar que essa nova política surge como uma tentativa de solucionar os problemas sociais, e não havia melhor alternativa senão a de exercer estratégico controle nas camadas mais desfavorecidas da população, notadamente os mais pobres. Nos dizeres de Emilio García Méndez (1998, p. 27), essa doutrina não significa outra coisa que legitimar uma potencial ação judicial indiscriminada sobre as crianças e os adolescentes em situação de dificuldade. Dessa forma, busca o Estado, através da intervenção jurídico-penal, suprir as deficiências estruturais de políticas sócias básicas, o que demonstra claro populismo punitivo, dado que se recorre a mecanismos da esfera penal para intentar a dizimação dos grupos mais vulneráveis, à margem do sistema econômico vigente, em decorrência da própria omissão estatal no cumprimento de medidas mínimas que atendam as necessidades da sociedade. Em nome da paz e da ordem, aqueles que não detinham o poderio econômico pregado pelo sistema capitalista estavam sujeitos a contínuo processo de controle e explícita exclusão, consequentemente. Em outras palavras, consistia na criminalização dessa faixa social, e para tanto, o cárcere desempenhava papel essencial no funcionamento das sociedades, sendo instrumento civilizado e constitucional de segregação das populações problemáticas criadas pela economia e pelos arranjos sociais atuais (GARLAND, 2008). No tocante a Doutrina da Situação Irregular, é de suma importância atentar que suas leis estabelecem clara divisão na categoria da infância: entre crianças e adolescentes, aqueles pertencentes às classes mais altas; e menores, compreendendo o universo dos excluídos economicamente, da escola e da família. Levando em consideração a impunidade declarada, ignorando 31

juridicamente delitos graves cometidos por adolescentes das classes mais favorecidas, não resta entendimento diverso acerca das leis existentes enquanto destinadas exclusivamente para os menores em situação de dificuldade. O tratamento jurídico dos problemas relacionados à juventude, seguido da atuação do juiz portando-se como um bom pai de família, encarregado de suprir as deficiências de instrução do jovem, infere que o Juiz de Menores não estava limitado pela lei e tinha amplo poder discricionário para tomar sua decisão. Destarte, a proteção conferida à juventude frequentemente violava ou restringia direitos, dado não ser concebida desde a perspectiva dos direitos fundamentais, como se observa diante da utilização de categorias vagas e ambíguas para definir em que situação o menor seria classificado em condição de risco ou perigo, além de reunir no mesmo lugar crianças e adolescentes que cometeram delitos graves com aqueles que se encontravam em status de abandono. É válido suscitar que nesse sistema as condições pessoais, familiares e sociais que fazem o jovem estar em situação irregular, tornando-se potencial objeto de intervenção estatal. A juventude aparece como objeto de proteção, porém não reconhecidos enquanto sujeito de direitos, e sim como incapazes, tornando a opinião da criança irrelevante. Uma vez que essas leis são direcionadas aos menores, abandonados e delinquentes, a medida adotada pelos Juizados de Menores resumia-se na privação de liberdade, por tempo indeterminado, tanto para os que delinquiram, quanto para os protegidos em razão de abandono. Nesses termos, a prisão constitui o principal instrumento da política habitacional do Estado para os inúteis da nova economia (WACQUANT, 2007). Ora, inolvidável reconhecer que se trata de uma política jurídico-penal que estereotipa sua clientela, criminaliza a pobreza e segrega os vulneráveis, e diante da inexistência de investimentos públicos básicos, figuram a imagem de inimigo interno, constituindo-se em ameaça a sociedade, fruto da própria má atuação estatal, que encontra em mecanismos de controle e exclusão social a manutenção e justificativa de sua omissão administrativa. 2.1 O Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/90) e a promoção da Doutrina da Proteção Integral Na vigência do Código de Menores, decorrente da discricionariedade outorgada ao juiz, e em consequência da atuação judicial-criminalizante dos órgãos repressivos e intervencionistas, frequentemente se aplicavam sanções de privação de liberdade a situações não tipificadas como delito na legislação penal brasileira, suprimindo-se garantias penais e processuais. Desse modo, evidencia-se a assertiva proferida por Larrauri (2006, p. 14) quando atenta que o aumento de pessoas que estão na prisão não reproduz o aumento da delinquência, mas a multiplicidade de outros fatores, como decisões legislativas, sensibilidade judicial e capacidade e limites do próprio sistema para processar os diversos atos delitivos. Outrossim, esse populismo punitivo que assolava o universo infanto-juvenil resultou em grande movimento pela reforma do Direito do Menor, a Convenção Internacional dos Direitos da Criança, aprovada pela Assembleia Geral das Nações Unidas, em 1989, que tem força de lei interna para os países signatários, dentre os quais o Brasil. Essa lei internacional constituiu marco na condição jurídica da infância, e terminou por consagrar a Doutrina da Proteção Integral, que embasaria as futuras legislações concernentes à criança e ao adolescente, substituindo a velha Doutrina da Situação Irregular (DOLINGER, 2003 ). A Doutrina da Proteção Integral foi adotada na Constituição Federal de 1988, contemplada nos artigos 227 e 228, promovendo a juventude à condição de sujeitos de direitos e obrigações próprios de seu peculiar estado de desenvolvimento, eliminando o conceito menor e atribuindo novo funcionamento da Justiça da Infância e Juventude. Os sistemas de garantias presentes no Direito Penal passam a ser aplicados à criança e ao adolescente, inclusive quando da prática de ato infracional. A introdução da atual legislação retira a figura do Juiz de Menores, atribuído do caráter de instrutor do jovem, na figura de um pai, restringindo sua atuação ao estrito papel de julgador dos fatos, com poderes limitados pelas garantias processuais e penais asseguradas na Carta Magna (DA ROSA, 2011). Definem-se os direitos das crianças, que sob pena de ameaça ou violação, é dever da família, 32

da sociedade, de sua comunidade e do Estado reestabelecer o exercício do direito atingido, e não mais a criança ou o adolescente que se encontra em situação irregular, mas sim a pessoa ou instituição responsável pela ação ou omissão; as ambiguidades sobre as categorias de risco e perigo são extintas; a ideia de proteção dos direitos visa não apenas protegê-los, trata de garantir os direitos que lhes competem; a proteção perde seu caráter de intervenção estatal coercitiva, assim como se cria a ideia de universalidade de direitos, estabelecendo condições de igualdade, inexistindo distinção entre crianças e adolescentes e menores. Importante aspecto dessa doutrina é a não utilização do argumento de incapacidade do jovem, sendo contemplado o direito individual de serem ouvidos e suas opiniões consideradas, cuja única particularidade é o estado de desenvolvimento. Merece especial destaque a introdução de um rol de medidas aplicáveis ao adolescente, sendo a privação de liberdade sempre última medida a ser adotada, por breve tempo e em caráter excepcional, a ser cumprida em instituição especializada. A Doutrina da Proteção Integral tornou-se marco norteador das novas políticas dedicas à criança e ao adolescente. Tal fato é comprovado ao se constatar a inclusão dos princípios da Doutrina da Proteção Integral no texto da Constituição Federal de 1988, expressos nos artigos 227 e 288. E sob este prisma ideológico será elaborada pela edição da lei 8.069/90, o Estatuto da Criança e do Adolescente, regulamentando os dispositivos constitucionais que tratam da matéria. Assentando-se no princípio de que crianças e adolescentes gozam dos mesmos direitos e estão sujeitos às obrigações compatíveis com sua condição de desenvolvimento, o Estatuto promove uma ruptura com o antigo sistema da Doutrina da Situação Irregular. Imprescindível destacar que a presente legislação estabelece-se por meio de uma estrutura pautada em três sistemas de garantias: o sistema primário, voltado às políticas públicas de atendimento, compreende toda população infanto-juvenil; o sistema secundário, que remete às medidas de proteção destinadas jovens em situação de risco, tem caráter preventivo, de modo a salvaguardar aqueles enquanto vitimizados; e o sistema terciário, que engloba as medidas socioeducativas, direciona-se àqueles que praticaram conduta infracional, na condição de vitimizadores (SÊDA, 1999). Com a edição da Lei 8.069/90, que instaura o Estatuto da Criança e do Adolescente no Brasil, se construiu novo modelo de responsabilização do adolescente em conflito com a lei. Embora a imputabilidade penal se dê aos dezoito anos, a partir do momento que a infância e juventude ascende à condição de sujeito de direitos, constitui-se uma relação de direito e dever, ressalvando a condição peculiar de desenvolvimento que lhes é próprio. Outrossim, a responsabilização conferida aos adolescentes, através do Direito Penal Juvenil, decorrente das sanções previstas no Estatuto, e aplicáveis aos autores de ato infracional, podem interferir, limitar e até suprimir temporariamente sua liberdade, verificado o devido processo legal, sob a luz dos princípios extraídos do Direito Penal, do garantismo jurídico e da ordem constitucional (RAMIDOFF, 2011). Dessa maneira, somente haverá imputação de medida socioeducativa quando praticado ato infracional, entendendo-se por este toda conduta descrita em lei como crime ou contravenção. Portanto, o jovem será submetido à medida socioeducativa quando sua conduta for típica, antijurídica e culpável, não havendo implicação de medida socioeducativa quando a conduta não for passiva de reprovação, por ausência de elementos de culpabilidade. 2.1.1 Dos Direitos e Garantias Processuais da Criança e do Adolescente O Estatuto da Criança e do Adolescente, proveniente da edição da Lei 8.069/90, passa a implementar em seu texto os direitos individuais e garantias processuais consignados na Constituição Federal de 1988 e no Direito Penal à infância e juventude. Destarte, todo adolescente terá assegurado os seus direitos e garantias por força de lei, como prevê a legislação vigorante. Nesse sentido, imperioso ressaltar o disposto em seu artigo 103, que define ato infracional a conduta descrita como crime ou contravenção penal. Conforme definição vigente na Lei de Introdução ao Código Penal brasileiro (Decreto-lei n. 3.914/41), “considera-se crime a infração penal a que a lei comina pena de reclusão ou detenção, quer isoladamente, quer alternativa ou cumulativamente com a pena de multa; contravenção, a infração a que a lei comina, isoladamente, pena de prisão simples ou de multa, ou ambas, alternativa ou cumulativamente”. Para tanto, estabeleceu-se como penalmente inimputáveis os menores de dezoito anos, estando sujeitos às 33

medidas previstas no ECA. No que concerne às mudanças auferidas em relação ao antigo sistema menorista, o dispositivo contempla direitos e garantias ao adolescente, coadunando seu novo status de sujeito de direitos e deveres ao texto normativo. Na presente legislação prevalece o princípio da legalidade, de modo que não há crime sem lei que o defina, garantindo segurança jurídica ao ordenamento. Desse modo, a atuação irrestrita do Estado, no que toca ao intenso aprisionamento de jovens durante o período em que vigorou a Doutrina da Situação Irregular, sob alegações de abandono e vulnerabilidade encontra seu primeiro entrave, uma vez que o sistema atual proíbe a privação de liberdade senão em flagrante de ato infracional ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judicial competente, garantido ao adolescente a identificação dos responsáveis por sua apreensão, como também ser informado de seus direitos. Ademais, a apreensão e o local onde se encontra recolhido o adolescente devem ser imediatamente comunicados à autoridade judiciária e à sua família, devendo ser analisada a liberação imediata. A lei prevê possibilidade de internação antes da sentença, com período máximo de quarenta e cinco dias, devendo a decisão fundamentar-se em indícios comprobatórios de autoria e materialidade, e verificada a imperiosidade da medida. Nesses termos, notável avanço se conquistou com a nova lei, como expõe o artigo 110, ao obstar privação de liberdade a adolescente, sem o devido processo legal, assegurando inúmeras garantias processuais, estabelecidas pelo artigo 111 e incisos, quais sejam: conhecimento da atribuição de ato infracional; igualdade na relação processual, podendo produzir todas as provas necessárias à sua defesa; defesa por advogado; assistência judiciária gratuita e integral; direito de ser ouvido pessoalmente pela autoridade competente; e direito de solicitar a presença de seus pais ou responsável em qualquer fase do procedimento de apuração de ato infracional. Com tais modificações normativas, o tratamento conferido à infância e juventude se pautou na elaboração de medidas socioeducativas que melhor se adequassem ao seu público alvo, levado em conta sua peculiar condição de desenvolvimento, que requer modos especiais e específicos de atuação, atentando à recuperação do jovem em conflito com a lei, permitindo sua reintegração ao convívio social. Dispõe o estatuto de seis medidas socioeducativas, nos termos do artigo 112, aplicáveis se verificada a prática de ato infracional: advertência; obrigação de reparar o dano; prestação de serviços à comunidade; liberdade assistida; inserção em regime de semiliberdade; e internação em estabelecimento educacional. Por constituir objeto de análise indispensável à pesquisa, especial atenção cumpre ser dada a medida socioeducativa de internação. Diante da previsão legal, consignada no artigo 121 do estatuto, a internação constitui medida privativa de liberdade, sujeita aos princípios de brevidade, excepcionalidade e respeito à condição peculiar de desenvolvimento do jovem infrator. Nota-se, portanto, que tal medida compreende uma situação de cerceamento de liberdade, aplicável desde que cumpridos os requisitos exigidos. Verifica-se, contudo, um ponto problemático no que tange à internação: não comporta prazo determinado, devendo ser reavaliada sua manutenção, através de decisão fundamentada, em no máximo seis meses. Muito embora não se tenha um prazo determinado para execução de medida de internação, a legislação define em três anos o período máximo a que o adolescente estará submetido ao cumprimento, sendo compulsória a liberação aos vinte e um anos. Entretanto, encontra-se nessa brecha uma margem à possibilidade de discricionariedade do juiz, detentor do poder decisório acerca da perpetuação na referida medida, independentemente das circunstâncias e situação concernentes ao jovem. Situação esta remete aos resquícios da antiga Doutrina da Situação Irregular, em que o menor estava à mercê das arbitrariedades judiciais quando da imputação de medidas de internação. Referido fato indica para lacunas presentes na lei, que invariavelmente ameaçam a segurança jurídica, e como será exposto em sequência, ensejam decisões que violam os direitos e garantias instituídas à infância e juventude. A aplicabilidade de medida de internação restringe-se a três situações: tratar de ato infracional cometido mediante grave ameaça ou violência a pessoa; por reiteração no cometimento de outras infrações graves; e por descumprimento reiterado e injustificável da medida anteriormente 34

imposta. Cumpre levantar questionamento sobre esse dispositivo do artigo 122, uma vez que não se encontra menção no estatuto sobre o que se define por ato infracional grave e reiteração, tornando-os termos vagos e imprecisos na aferição de emprego da medida, de forma a oferecer risco ao adolescente na tomada de decisão por parte do juiz, visto que da imprecisão dos termos será dado ao magistrado a capacidade de suprir essa lacuna de interpretação, e assim deliberar sobre o caso, numa clara afronta aos princípios e direitos constitucionais assegurados, remontando ao sistema menorista, sob o qual impera o poder decisório judicial frente qualquer direito ou garantia do adolescente. Compreendida a questão legislativa, seguem-se os resultados da pesquisa. 3. ANÁLISE DOS DADOS: A IDENTIFICAÇÃO DE FATORES EXTRÍNSECOS E INTRÍSECOS DA DECISÃO Nesse momento, fez-se necessário a criação de categorias de análise, com o objetivo de cruzar os dados obtidos durante a pesquisa de campo, no acompanhamento das audiências de apresentação da Vara da Justiça Sem Demora, e de continuação das 3ª e 4ª Varas da Infância e Juventude da cidade do Recife. 3.1 Procedimentos – Direitos e Garantias Fundamentais – os abandonos legais em nome da “tutela” do adolescente a) Legalidade: no decurso das audiências, percebeu-se o uso de interpretação extensiva com relação às hipóteses estabelecidas para aplicabilidade de medida socioeducativa de internação, de modo que as resoluções aplicadas aos casos perpassassem diretamente pelo julgamento próprio do juiz competente, representando grave ameaça à ordem jurídica e afronta ao princípio constitucional assegurado nos termos do artigo 5º, XXXIX da CF/88 e ao dispositivo normativo do artigo 122 do ECA. Comprovação esta se verificou na aplicação de medida de internação nos casos de tráfico de drogas e em uma situação de porte ilegal de arma, situações completamente contrárias à legislação. Entretanto, foi notável a percepção de analogia feita pelos magistrados entre as situações infracionais acima mencionadas enquanto ato infracional grave, quando sequer o próprio estatuto define quais atos remontam a tal gravidade. Além disso, o próprio STJ proferiu entendimento, por meio da súmula 492, no sentido que “o ato infracional análogo ao de tráfico de drogas, por si só, não conduz obrigatoriamente à imposição de medida socioeducativa de internação ao adolescente”. Ora, no quadro em tela não há qualquer respeito ao princípio da legalidade quando da aplicação de internação ao jovem que incorre nos casos de tráfico de drogas e do porte ilegal de arma, vez que ao menos encontram-se previstos enquanto ato infracional grave no próprio dispositivo normativo, como não representam situações nas quais se faça mister a imposição de internação ao adolescente, dado o caráter de excepcionalidade e real necessidade, requisitos exigidos para adoção de medida de internação. Além disso, como se percebeu, em nenhum caso houve preocupação do magistrado em definir, na sentença – qual das hipóteses que justifica a internação – em termos estritos, qual dos incisos do art. 122. Era como se a obrigatoriedade da fundamentação inexistisse. Na verdade, a legalidade, enquanto limite da tensão entre a liberdade pessoal e o arbítrio estatal é violentada como se não fizesse parte do sistema de responsabilização juvenil. A prova disso é o número considerável de adolescentes cumprindo medida socioeducativa de internação em PE decorrente de tráfico de entorpecentes – 127, além de outros 48 casos que além do tráfico há outro tipo de ato infracional ( de um total de 1013 adolescentes em internação no mês de fevereiro de 2014) (FUNASE, 2014). Como se percebeu a definição da medida socioeducativa como responsabilização do ato infracional varia enormemente e independe do respeito à legalidade. E neste sentido, a definição de advertência ou internação vai depender do estereótipo - “elemento suspeito” ou da “atitude suspeita”, símbolos que representam mecanismos de interpretação que, “no cotidiano do exercício 35

do poder de polícia, criminalizam um grupo social vulnerável muito bem representado no sistema carcerário: jovens pobres, em sua maioria são negros, que vivem nas periferias dos grandes centros urbanos” (CARVALHO, 2013, p. 71). b) Devido processo legal: previsto no artigo 5º, LIV da CF/88 e no artigo 110 do ECA, encontra-se assegurado o devido processo legal no procedimento de apuração de ato infracional praticado pelo adolescente. Dessa forma, devem imperar as garantias arroladas nos diplomas referidos, a fim de que esteja o jovem livre das arbitrariedades e discricionariedade nas decisões judiciais proferidas. Destarte, o pleno e formal conhecimento da atribuição de ato infracional, igualdade na relação processual, defesa técnica por advogado, assistência judiciária gratuita e integral, direito de ser ouvido pessoalmente pela autoridade competente, e poder solicitar a presença de seus pais ou responsável são garantias invioláveis que evitam excessos nas decisões e constituem característica ímpar de um Estado Democrático de Direito. Porém, verificou-se que em todas as audiências há alguma violação desses direitos. Em nítida desigualdade na relação processual, dada a prevalência das provas, impera o depoimento da acusação, tomadas em quase totalidade por policiais. Em três audiências verificou-se a transgressão ao direito de acompanhamento pelos pais ou responsáveis; e em mais da metade das audiências não esteve ausente o defensor no procedimento de apuração, infringindo o princípio da ampla defesa. Quando está presente, porém, a postura da defensoria pública é frequentemente de atender ao celular, sair da sala em momento de ouvida do adolescente ou de testemunha, balançar a cadeira ou os cabelos. Em outros momentos, quando o adolescente entra na sala de audiência, de cabeça baixa e em choro, a defensora toma suco de alguma fruta, cantarola alguma música, e quando a juíza questiona sobre a necessidade de a defensora conversar em particular, a mesma sequer ouve a provocação da magistrada, continua sem acompanhar a audiência. E apesar disso, a audiência segue, e nada acontece. Aliás, em todas as audiências observadas a defensora não elabora questionamentos para fins de defesa. Quando o faz parece ser por curiosidade sobre o contexto, e ao obter a informação não elabora nenhuma argumentação de defesa ou quando muito, faz algum comentário paralelo com a pesquisadora, ante um comentário desesperado da mãe que dizia estar sendo o filho injustiçado por um policial que o perseguia: “ele precisa articular melhor as palavras e aproveitar o que a mãe disse para se defender”. Como a defensoria afirmando que o adolescente precisa se defender? Isso é obvio, o que não parece óbvio é a função que ela está exercendo. Ainda em termos de instrução processual, há de se ressaltar que a materialidade do crime resta comprometida, em decorrência da falta de perícia e consistência de provas consignadas nos autos, sendo possível averiguar a ausência de elementos comprobatórios das alegações, atentando às imprecisões nos relatos sobre a quantidade de drogas apreendidas na posse do adolescente, o que se mostrou muito recorrente, por exemplo. Demonstrada a insuficiência e, inclusive, falta de provas contundentes para se alegar a autoria da infração, resulta que todo o trâmite legal termina negligenciado, em desacordo com as diretrizes estabelecidas pelo ECA. Ainda, duas audiências não estava presente o representante do Ministério Público, sendo iniciada a audiência somente com a juíza competente, porque também a defesa não estava; reforçando a concentração de poder detido nas mãos do magistrado, que sem a interpelação do representante do MP e do defensor, visto suas ausências, termina por proferir a decisão que julgar conveniente inexistindo qualquer oposição, num claro descumprimento às previsões do texto normativo do estatuto. Proporcionalidade: não obstante a ineficiência na apuração da materialidade do crime, e da insuficiência de provas conclusivas de autoria de ato infracional, este importante princípio encontrou-se deflagrado nas audiências com diversos problemas de aplicação. Haja vista o emprego de medidas de internação, alicerçadas em violações de direitos e garantias processuais, figura a própria proporcionalidade como elemento transgredido, imputando-se a medida de internação sem que haja convicção de que ato infracional fora cometido pelo adolescente e qual sua gravidade. Retrato disso é que em mais da maioria dos casos houve apreensão somente pelo fato de o jovem estar em localidade dita de “atividade suspeita de traficância”. Ademais, foi verificado que em quase metade das audiências as testemunhas arroladas pela 36

acusação, invariavelmente policiais, alegaram não saber do que tratou a ocorrência ou não se lembrarem dos depoimentos prestados à época do fato, o que confere ainda mais imprecisão na apuração sobre a infração cometida, e enseja a imposição de medida de internação sem que se atenda a qualquer dos requisitos exigidos. Destaca-se que a esse quadro cumpre merecida atenção o disposto no artigo 189 do estatuto, que determina a não aplicação de qualquer medida, se: provada a inexistência do fato; não haver prova da existência do fato; não constituir o fato ato infracional; e não existir prova de ter o adolescente concorrido para o ato infracional. Ante o exposto, é inolvidável a transgressão das diretrizes normativas previstas. 3.2. Categoria de Análise: Seletividade do Sistema – verificação do estereótipo Por meio da pesquisa de campo desenvolvida, foi possível evidenciar variáveis que influenciam no julgamento. Inicialmente, verifica-se o alto nível de seletividade do sistema ao estabelecer o seu público alvo. Em outras palavras, o que se nota não é simples fiscalização policial na busca pela redução dos índices de criminalidade juvenil, sequer uma política de prevenção é intentada, mas sim uma ação voltada à captura daqueles que encontram em situação de marginalidade social. Nesse contexto, a juventude passa a ser encarada como um inimigo interno à segurança pública, e toda uma política coercitivo-repressiva manifesta-se sobre esse grupo social (MÉNDEZ, 1998). Em uma perspectiva crítica, o interesse da tutela penal, considerado como último recurso para intervenção estatal, remonta a uma ideia pejorativa da “menoridade”. Os elementos de culpabilidade do agente tomados objetivamente cedem lugar a uma verdadeira criminalização fundamentada em aparências e discriminações sociais. No curso do acompanhamento das audiências de apresentação, foi constatado como esses valores tem um papel fundamental na constituição de uma verdadeira identidade do “menor infrator”. Tal verificação remonta uma questão de prejudicialidade intrínseca baseada em códigos ideológicos advindos de um senso comum social. O compromisso central da jurisdição volta-se a perseguição de alguns hipossuficientes em prol de um garantismo de fachada, essencialmente punitivista e pouco pedagógico. Nesse parâmetro, não é revelador o fato de a atuação policial se dar notadamente nas localidades mais isoladas e vulneráveis, de situação socioeconômica deficitária, predominantemente humilde. O papel policial ganha valor intimidador, “caçando” os seus escolhidos, eleitos para adentrar nesse sistema punitivo, expondo nas salas de audiência a estereotipação e estigmatização atribuídas aos jovens em conflito com a lei, os excluídos da nova economia política do controle. O ato infracional não é uma realidade ontologicamente pre-constituída, mas realidade social construída por juízos atributivos do sistema de controle, determinados menos pelos tipos penais legais e mais pelas metaregras – o elemento decisivo do processo de criminalização –, aqueles mecanismos atuantes no psiquismo do operador jurídico, como estereótipos, preconceitos e outras idiossincrasias pessoais que decidem sobre a aplicação das regras jurídicas e, portanto, sobre o processo de filtragem da população criminosa (SANTOS, 2001).

De modo a retratar esse cenário, seguem-se algumas análises quantitativas do que foi observado: 100% dos casos de apreensão se deram em comunidades carentes; ademais, todas as autuações ocorreram por rondas policiais, realizadas durante a noite; 62,5% das apreensões foram por alegações de tráfico de drogas, pelo simples motivo de estar em localidade de atividade suspeita de traficância; 12,5% correspondem a ameaça, 12,5% a homicídio, e outros 12,5% a porte ilegal de arma; em 100% dos casos envolvendo tráfico houve divergências nas provas acerca da quantidade de droga apreendida e da posse; em 40% dos casos analisados os adolescentes relataram prática de agressão e abuso por parte dos policiais; em 20% o jovem admitiu ter seus pertences furtados pelos policiais, não sendo consignados nos autos. Ressalta-se que em 40% das observações os irmãos dos representados foram apreendidos pelos menos policiais de sua autuação; 40% dos jovens avaliados 37

é reincidente na prática de ato infracional; 80% afirmaram ser viciados em drogas; e 60% disseram não estar frequentando a escola. Ante as análises realizadas, é perceptível a série de violações a direitos e garantias constitucionalmente asseguradas, como também se verifica o modus operandi das agências de controle e segurança pública no tratamento aos jovens em conflito com a lei. Além disso, como será comprovado em sequência, essa política criminalizadora da juventude se manifesta inclusive nas salas de audiência, seja pelo discurso afirmado pelas testemunhas de acusação, notadamente policiais ou agentes de segurança, como pela atuação dos magistrados, reforçando o caráter punitivo através de intensa criminalização secundária quando da aplicação de medidas socioeducativas, o que somente se torna palpável ao estudar criticamente a atuação dos autores do sistema punitivo nas audiências de apuração de ato infracional, onde se revelam as variáveis e fundamentos incriminadores não elencados nos autos do processo. 3.3. Categoria de Análise: Fundamentos do Julgador – a concretização de metaregras Não obstante todas as violações aqui narradas, a medida socioeducativa é posta como uma benesse estatal, e como tal não precisaria estar submetida a todas as amarras constitucionais garantidoras de um devido processo legal. A categoria de análise que se adentra tem seu cerne pautado no fundamentos norteadores das decisões proferidas pelos magistrados, e guarda estreitas relações com cada uma das etapas supramencionadas, vez que tudo se resume a um ciclo contínuo e progressivo, em que cada ação positiva ou negativa terá seus efeitos na decisão final sentenciada em cada processo. No acompanhamento dos processos de apuração de ato infracional foi notável a utilização de diversas variáveis na composição dos fundamentos proferidos pelos magistrados. Análise, esta, verificada em todos os casos em estudo. Para tanto, critérios como família, escolaridade, drogas, exemplo para a sociedade, arrependimento do ato praticado e religião foram contemplados recorrentemente para fundamentar a deliberação dos togados. Nesses termos, a condição familiar do representado, se capaz e empenhada a colaborar com sua recuperação; a situação escolar do adolescente, se tem prosseguido em seus estudos; a relação do jovem com as drogas; o exemplo que se deve dar a sociedade pela ação negativa de seu ato; o arrependimento do cometimento de ato infracional; e sua orientação religiosa, foram classificações decisivas para a imposição de medida socioeducativa. É como se existisse duas saídas para um único caminho – ou a medida socioeducativa é necessária para responsabilização do adolescente devido à prática do ato infracional ou é imposta em razão das “ necessidade pedagógicas do adolescente”. Por um ou outro argumento a solução final é o aprisionamento dos adolescentes. Mas não se esta a falar de qualquer adolescente, mas sim a juventude marginalizada e socialmente excluída. Será, portanto, que o sistema socioeducativo, nas paragens locais não estaria a funcionar como um disfarce do sistema punitivo? Zaffaroni (2003) já alertara sobre isto quando trabalha sobre os processos de recepção da criminologia na América Latina, indicando um sistema penal em sentido estrito e outro paralelo, composto por agências de menor hierarquia, porém destinado a operar com uma punição tida como menor, razão pela qual gozaria de maior discricionariedade (arbitrariedade). Ou seja, neste sistema paralelo enquadra-se o sistema infracional o qual por meio de ações não institucionais (ilícitas) promove o controle dos indesejados, mas que é normalizado por termos estatais aceitáveis. Na América Latina, a realidade, assinala Juarez Cirino, é orientada pela repressão das classes dominadas, imunidade das classes dominantes e a imunidade do terror institucionalizado. Para aqueles leis, polícias e tribunais especiais, para os segundos, liberdade de práticas contra a vida, a saúde, a integridade e o patrimônio do povo e estes últimos a autorizações de todas as ordens vistas por toda a história desde a colonização - de genocídio de índios, passando pelo tráfico de escravos - a torturas e assassinatos dos tempos modernos. Práticas que se generalizam por toda a América Latina “como consequência de sua absorção/integração no mercado mundial, sob a égide do imperialismo [...] (cujo território) desenvolveu ao mais alto nível a tecnologia da violência” (1984, p. 70-71) 38

Na realidade marginal, o controle de índios, negros, pobres e marginalizados, hoje mais notadamente por meio da criminalização do tráfico de jovens pobres e negros da periferia, mesmo sendo a pena declarada público estatal, o que se vê é o exercício arbitrário do poder privatizado. A conclusão é que não se encontra abismos entre o evolucionismo oficial do passado e o moderno – “o que subsiste é um continuum metódico punitivo, desde a colonização, o mercantilismo e a escravidão, até a globalização do capitalismo” (ANDRADE, 2012, p. 108) O sistema punitivo (não mais aqui ser reconhecido como sistema infracional) conta com a própria estrutura de poder que ao julgar a conduta do adolescente, invariavelmente aplica a medida que assegurava conveniente amparado em suas convicções pessoais, de maneira que seus valores e crenças atuam conjuntamente ao seu papel de julgador dos fatos, inexistindo o dito princípio da imparcialidade do magistrado (SARAIVA, 2009). Tal situação não é fato novo no universo da infância e juventude, dado que no período em que vigorava a Doutrina da Situação Irregular, o mesmo procedimento se identificava com o juiz se portando como um bom pai de família, devendo zelar pelo futuro de seu “filho” e suprir-lhe as ausências e deficiências que o levaram à prática delituosa (MÉNDEZ, 1998). Como se percebe a natureza da intervenção socioeducativa é eminementemente penal, o que implica reconhecer que “a seletividade, a reprodução da violência, a criação de condições para maiores condutas lesivas (...) e a destruição das relações horizontais ou comunitárias não são características conjunturais, mas estruturais do exercício de poder de todos os sistemas penais” (ZAFFARONI, 2001). Deste modo é importante reconhecer que em sendo assim, há um pífio grau de comprometimento da magistratura recifense atuante nas Varas de apuração do Ato Infracional. Porém, se a “a polícia exerce o poder seletivo, o juiz pode reduzi-lo, ao passo que o legislador abre um espaço para a seleção que nunca sabe contra quem será individualmente exercida.” ZAFFARONI, BATISTA; et all, 2001, p. 51) . Pôde-se verificar, entretanto, a excessiva intervenção estatal por meio do Poder Judiciário no cotidiano da prestação jurisdicional, restringindo as prerrogativas processuais ilustradas no texto constitucional, assim como no Estatuto da Criança e do Adolescente. Percebeu-se que a convicção particular do julgador torna-se, por vezes, fator decisivo que restringe a concessão de direitos e garantias os quais, em um plano normativo, devem ser observados. Nesse segmento, constata-se que essa política de criminalização secundária concebe uma estereotipação do jovem infrator, invariavelmente oriundo de camadas mais vulneráveis, que termina por determinar não somente seu público alvo, como também a forma pelo qual serão submetidos e tratados no decurso do processo judicial de apuração do ato infracional praticado. 4. ENSAIANDO ARREMATES A Lei 8.069/90, que inaugura o Estatuto da Criança e do Adolescente, introduz no Brasil um Direito Penal Juvenil, assentado na Doutrina da Proteção Integral, resultante da Convenção Internacional dos Direitos da Criança, em 1989. Embora todos os avanços conquistados perante o antigo sistema da situação irregular, vestígios desta ainda se encontram no Estatuto da Criança e do Adolescente. A Doutrina da Proteção Integral adota um sistema de garantismo, com a construção das colunas mestras do Estado de Direito, que tem por fundamento e fim a tutela das liberdades do indivíduo, inclusive das crianças e dos adolescentes enquanto sujeitos de direitos, frente às variadas formas de exercício arbitrário de poder, odioso no Direito Penal (BOBBIO, 2002). É nesse propósito que se orientou o presente trabalho, visto que as lacunas de implementação e interpretação existentes no texto do Estatuto da Criança e do Adolescente terminam por produzir a discricionariedade, o subjetivismo, o que não raro resulta em autoritarismo, em tempos de afirmação dos Direitos da Criança. REFERÊNCIAS ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Pelas mãos da Criminologia. O controle penal para além da 39

(des)ilusão. Rio de Janeiro: Revan, 2012 BARATTA, Alessandro. Infancia y democracia. In: Infancia, ley y democracia en América Latina. Compiladores: Emílio Garcia Mendez; Mary Beloff. Bogotá: Editora Temis, 1998,. BARDIN, Laurence. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70, 1997. BECKER, Howard. Outsiders: studies in the sociology of desviance. Nova York: The Free Press, 1963. CARVALHO, Salo. Nas Trincheiras de uma Política Criminal com Derramamento de Sangue: depoimento sobre os danos diretos e colaterais provocados pela guerra às drogas. In: XIMENDES, A. M. C.; REIS, C. & OLIVEIRA, R. W. Entre Garantia de Direitos e Práticas Libertárias. Porto Alegre: CRPRS, 2013 DOLINGER, Jacob. Direito Civil Internacional. V. 1. A família no direito internacional privado. Rio de Janeiro: Renovar, 2003 GARLAND, David. A Cultura do Controle: crime e ordem social na sociedade contemporânea. Rio de Janeiro: Revan, 2008. LARRAURI, Elena. Populismo Punitivo y como Resistirlo. Revista Jueces para la Democracia, Madrid, n. 55, 2006. MÉNDEZ, Emilio García. Infância e Cidadania na América Latina. São Paulo: Hucitec/Instituto Ayrton Senna, 1998. _____. Adolescentes e Responsabilidade Penal: um debate latino-americano. Porto Alegre: AJURIS, ESMP-RS, FEDESP-RS, 2000. MIRAGLIA, Paula. Aprendendo a Lição. Uma Etnografia das Varas Especiais da Infância e Juventude, Novos Estudos, n. 72, p. 79-98, jul, 2005. PLATT, Anthony. Los Salvadores de la Infancia. La Invención de la Delincuencia. Mexico: Siglo XXI, 1977. ROSA, Alexandre de Morais da; LOPES, Ana Christina Brito. Introdução Crítica ao Ato Infracional: princípios e garantias constitucionais. 2 ed. São Paulo: Lumen Juris, 2011. SARAIVA, João Batista Costa. Adolescente em Conflito com a Lei: da indiferença à proteção integral: uma abordagem sobre a responsabilidade penal juvenil. 3 ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009. SANTOS, Juarez Cirino. O adolescente infrator e os direitos humanos. Discursos Sediciosos: crime, direito e sociedade. V. 9/10, p. 173, Rio de Janeiro, 2001. ______. As raízes do crime. Um estudo sobre as estruturas e as instituicoes de violência. Rio de Janeiro: Forense, 1984. SÊDA, Edson. Os eufemistas e as crianças no Brasil. Rio de Janeiro: Adês, 1999. ZAFFARONI, Eugenio Raul. criminología: aproximación desde un margen. Bogotá: Editorial Temis, 2003. _____. Em busca das penas perdidas: a perda de legitimidade do sistema penal. Rio de Janeiro: Revan, 2001. _____. ZAFFARONI, Eugenio Raúl; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito Penal Brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2001. 40

PRIVILÉGIO DE BANDIDOS? A CULTURA DO MEDO E O SENTIMENTO DE INSEGURANÇA COLOCANDO OS DIREITOS HUMANOS EM XEQUE1

Manuela Abath Valença2

1. INTRODUÇÃO O presente trabalho busca investigar como o medo de ser vítima de um delito pode ser determinante na construção de uma opinião reticente a um sistema punitivo regulado por um conjunto de garantias. Parte-se da ideia de que o sentimento de insegurança e a sensação de impunidade que, por vezes, dele deriva, geram um clima de antipatia em relação aos direitos fundamentais que visam a limitar o Estado Penal. Tentaremos verificar a hipótese a partir da literatura produzida sobre a cultura do medo no Brasil e por meio da análise qualitativa de dados secundários colhidos em pesquisas de opinião sobre pena de morte, redução da maioridade penal e sentimento de insegurança no país. Sem deixar de lado a importante discussão em torno de como essas pesquisas são realizadas e sobre a existência efetiva de uma ‘opinião pública’, verificamos que em épocas de forte clamor público em torno de eventos delitivos específicos a adesão a medidas punitivas extremas aumenta. De um modo geral, entretanto, o apoio à pena de morte e à redução da maioridade penal é elevado. Como interpretar esses dados? 2. O CRIME E A VIOLÊNCIA URBANA: QUE CATEGORIAS SÃO ESSAS? DO QUE TEMOS MEDO, AFINAL? A Teoria do Etiquetamento ou o labeling approach representou uma das maiores reviravoltas nas teorias criminológicas contemporâneas. Até então com bases eminentemente etiológicas, as diversas teorias que enfrentavam o fenômeno da criminalidade buscavam encontrar uma causa 1 O presente artigo está vinculado às pesquisas desenvolvidas pelo Grupo Asa branca de Criminologia -www.asabrancacriminologia.blogspot.com.br 2 Doutoranda em Direito pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade de Brasília (UnB). Mestre em direito pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da UFPE (2012). Possui graduação em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (2010).

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para ele, algo que, contido no indivíduo ou na sociedade, compelisse aquele à prática de delitos. De Cesare Lombroso e sua teoria antropológica do criminoso atávico a Robert Merton e sua teoria funcionalista, identificando a causa dos crimes em desfuncionalidades biológicas, psicológicas ou sociais e os métodos de investigação se dirigiam sempre no sentido de apontar para a causa da criminalidade, para algo que produz o comportamento desviante (BARATTA, 2002). A teoria da reação socialparece romper com estas concepções ao acrescentar às análises sobre o crime um elemento essencial: a política. Abandonando um conceito ontológico de crime, define-o como um comportamento “que as pessoas rotulam como tal” (BECKER, 2008, p. 22). Se o crime não é uma realidade pré-discursiva, importa estudar por que determinadas condutas são definidas como delituosas, quem pode realizar essa tarefa e quem serão os alvos preferenciais da etiqueta de desviante (BECKER, 2008, p. 155). Muitas foram as conclusões que advieram dessas teorias, as quais levaram a uma inexorável deslegitimação do sistema penal (ANDRADE, 2009, p. 175): a) o sistema de justiça penal protege essencialmente o patrimônio (afirmações normalmente confirmadas pelos índices de encarceramento); b) o sistema de justiça penal, incapaz de lidar com todas as atividades que ele criminaliza, seleciona em regra aqueles sujeitos mais vulneráveis, com fracas redes sociais e que cometem crimes “grotescos” (ZAFFARONI;BATISTA;ALAGIA, SLOKAR, 2006); c) o sistema de justiça penal não é capaz de lidar com grandes violações de direitos humanos, a exemplo de casos de genocídios (praticados ou não pelo Estado) d) o sistema de justiça penal opera conforme estereótipos que atribuem a algumas pessoas (as selecionadas pelas instâncias policiais) o caráter de criminosa; e) os estereótipos recaem preferencialmente sobre as classes pobres, já selecionada e mais selecionáveis etc. A distribuição do estereótipo criminoso é essencialmente desigual e comumente atribuído às chamadas “classes perigosas”. A noção de classe perigosa está ligada ao surgimento de pequenos conflitos urbanos relacionados, sobretudo, ao dano ao patrimônio, no final do século XIX (FOUCAULT, 2008). Roubos, furtos, violações de domicílio, mendicância, saques, dentre outras condutas, conformam uma noção de perigo. No Brasil, após o fim da escravidão em 1888, esses indivíduos ameaçadores podem ser identificados nos negros, razão pela qual surgem legislações de contenção social que proíbe condutas como a mendicância, a vadiagem e a capoeira. Essa violência da rua é mais comumente explorada na mídia e pelo Sistema Punitivo. Embora possamos falar de diversas outras formas de violência igualmente danosas como a morte de crianças por inanição decorrente de situação extrema de pobreza - a violência estrutural - ou ainda de violência praticada pelas próprias forças do Estado – violência institucional - (BARATTA, 1993, p. 47-48), quando submete uma mulher a uma revista vexatória na entrada do sistema prisional, é a possibilidade de ser atingido ou ter seu patrimônio lesado por uma terceira pessoa que provoca as reações que vão desde a adesão a fortes aparatos de segurança à vontade de eliminar o “sujeito perigoso” do convívio social. De certo, apesar de haver uma distribuição de certa forma arbitrária em torno do que constitui uma conduta danosa, talvez possamos referir àquilo que Michel Misse chamou de “núcleo forte”, ou seja, crimes que, de modo geral, são capazes de gerar sensação de insegurança em praticamente todas as parcelas da população e responsáveis por aquilo que se costuma referir como violência urbana. Conforme pontua o autor: Na modernidade, esse núcleo forte, que produz reação social relativamente homogênea, tende a se constituir a partir da noção de violência criminal. Definidos como indiferença à alteridade - o homicídio com crueldade, o assassinato de crianças, o estupro com morte, o latrocínio ou o sequestro com morte - são alguns exemplos de cursos de ação (designados aqui pela sua representação jurídica) dificilmente enquadráveis numa perspectiva social de divergência, onde uma disputa de significados morais arrefeça estrategicamente a acusação de desvio (MISSE, 1999, p. 50).

Ainda que não seja possível falar em unanimidades a respeito da valoração de algumas dessas condutas, são elas que permeiam o imaginário social constitutivo do problema ‘violência urbana’. Essa violência, antes de constituir um evento que se materializa no mundo concreto, é 42

representada pela sociedade. Como teorias do senso comum, as representações sociais não guardam necessariamente relação direta com os eventos da realidade. São significados a ela atribuídos. Sendo assim, há na sociedade representações sobre o fenômeno da criminalidade que, se de um lado derivam da experiência com alguma agressão, de outro, alimentam-se fortemente do imaginário social sobre o crime, sobre o criminoso, sobre a vítima. Dito de outra forma: o sentimento de insegurança, assim como a violência urbana, são representações contidas no plano simbólico. Se os índices de criminalidade são manipulados e a “propaganda do medo” entra em ação, não se pode por isso negar que exista o medo. Trata-se do famoso Teorema de Thomas “se um homem define uma situação como real, ela é real em suas conseqüências” (apud MISSE, 1999, p. 110). Neste sentido Luiz Antônio Machado da Silva pondera: Como conseqüência desta observação, vale ressaltar um segundo ponto. As afirmativas acima, se corretas, reduzem a importância das freqüentes discussões sobre a magnitude real do incremento das práticas relativas à violência urbana, bem como sugerem a irrelevância de considerações sobre a “paranóia” da violência, apresentada como uma falha na percepção das populações urbanas, induzida pelo tratamento dado pela mídia ao crime violento. Do ponto de vista aqui adotado, estas são falsas questões, pois o que caracteriza a violência urbana, como qualquer construção simbólica, é justamente o fato de que ela constitui o que descreve. E, mais importante, a noção de violência urbana, como já foi dito, não se refere a comportamentos isolados, mas à sua articulação como uma ordem social (característica que permanece quer se venha a demonstrar ou não sua relação com o crescimento quantitativo do crime comum violento). (MACHADO, 2004) (Grifos nossos)

Luiz Antônio Machado vai procurar, nesse ensaio, chamar atenção para o fato de a representação da violência ser parte integrante de seu objeto, de modo que, a constatação (que eventualmente seja feita) de que as pessoas sentem medo em vão ou porque são manipuladas não anula o fato de que o sentimento de insegurança exista e promova reações. Dentre essas reações, podemos referir à opinião reticente aos direitos humanos. 3. MEDO E SENTIMENTO DE INSEGURANÇA Se definirmos segurança como o estado de espírito daquele que crê estar ao abrigo e longe do perigo (LAGRANGE, 2008, p. 280), resta a delimitação de que perigo se está falando. A noção de sentimento de insegurança é, portanto, ampla e comporta múltiplas acepções. Nesse início de século, várias foram as conotações que o termo passou a adquirir, de modo a afirmar Zygmund Baumann (2008, p. 9) que “vivemos numa era de temores”. Terrorismo, epidemias, desemprego, violência nas grandes cidades, incertezas sobre o futuro, quebra da seguridade social. Todos esses elementos são compatíveis com a noção de sentimento de insegurança e representam perigos dos quais o homem moderno não mais se sente protegido. Pensemos mais especificamente o medo da violência. Esse medo não necessariamente deriva da experiência. É com base nesta ideia que Hugues Lagrange traz o conceito de medo derivado (LAGRANGE, 2010). Após realizar uma enquete sobre vitimização e sentimento de insegurança na cidade de Grenoble, na França, Lagrange concluiu que 77% das pessoas que afirmavam ser sua cidade perigosa, nunca haviam vivido3 uma experiência violenta. A enquete seguiu procurando compreender se havia ligação entre medo e vitimização e a conclusão foi a de que não era possível estabelecer esse liame e que, aliás, o sentimento de insegurança era crescente entre aquelas pessoas mais idosas e que menos saíam de casa, isto é, que menos se expunham ao perigo. 3  Lagrange chama atenção para o fato de o termo “vivido” remeter a uma representação da realidade e não necessariamente a um fato da realidade. Desse modo, aoresponder que nunca viveu uma violência, o entrevistado já possui uma representação e uma interpretação do fenômeno.

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Lagrange constatou ainda que o medo cresce entre aqueles cidadãos que mais se isolam e que rompem com laços sociais (que não saem de casa a não ser para cumprir obrigações como o emprego, a escola, a universidade etc). O medo derivado consiste naquele que é sentido ainda que não haja ou que nunca tenha havido uma situação concreta de perigo. Sendo assim, é possível que moradores de uma cidade partilhem um grande medo de ações truculentas ainda que objetivamente não sejam grandes os índices de crimes violentos praticados naquela localidade. É o caso, conforme demonstrou a pesquisa de Lagrange, da cidade de Grenoble. Para analisar o sentimento de insegurança, não adianta se debruçar, portanto, sobre possíveis fatores de medo em uma sociedade. Conforme pontua Lagrange (1995, p. 36) “uma enquete sobre o medo não pode consistir em uma enumeração de coisas peníveis e violentas”. O medo prescinde da violência e esta não necessariamente desencadeia sentimento de insegurança. É neste ponto em específico – da criação de medo desligado da experiência - que ganham importância os estudos que examinam o desempenho da mídia na formação de uma cultura do medo em nossa sociedade, afinal a imprensa possui um papel central na difusão de crimes que ela escolhe para publicizar e na criação de estereótipos e preconceitos sobre os indivíduos que praticam aqueles crimes mais valorizados como “maus” na sua agenda. Neste sentido, Patrícia Bandeira de Melo afirma que “levados a construir sua agenda pessoal a partir da agenda jornalística, os indivíduos reproduzem as histórias rocambolescas e fantasmagóricas contadas pela imprensa. Neste processo, reforçam as sensações de perigo e os riscos incalculáveis de serem vítimas” (MELO, 2010, p. 115), ressaltando que o medo é uma condição psicológica do indivíduo que se torna coletiva porque não é fruto de uma experiência individual, em seu campo privado, mas de uma experiência mediada, não necessariamente direta, e cujo processo de mediação é cultural porque se dá via imprensa” (2010, p. 202).

A mídia é um campo fundamental na compreensão da formação de um trauma cultural do medo no Brasil, afinal ela não costuma fazer uma cobertura dos crimes em consonância à objetiva incidência destes, criando muitas vezes falsas ideias sobre a quantidade desses crimes, gerando um medo que alguns autores apontam como irracional4. A mídia seria capaz de manipular a opinião, fazendo suscitar um medo coletivo que, sem ela, estaria circunscrito a determinados grupos que, de fato, estão expostos à criminalidade violenta. 4. OS DIREITOS HUMANOS POSTOS EM XEQUE E O SENTIMENTO DE INSEGURANÇA Uma das consequências da percepção da violência urbana é, como vimos afirmando, a distância que se estabelece entre aqueles sujeitos que se julgam “bons” em relação às chamadas “classes perigosas”. Porém, para além desses reconhecimentos negativos, procurei trabalhar aqui a hipótese de que as representações sobre a violência urbana produzem e reforçam opiniões contrárias à afirmação de direitos humanos, sobretudo quando estes são dirigidos ao disciplinamento do sistema punitivo. Esta afirmação traz implícita a ideia de que os direitos humanos não são verdades autoevidentes e que a sensibilidade para aceitá-los não é inerente à condição humana, precisando ser socialmente construída. “Os direitos humanos são uma conquista da sociedade moderna, podendo também ser caracterizados como uma construção ou invenção da modernidade”, afirma Marcelo Neves (2004, p. 149). No direito penal e processual penal, esses direitos humanos passaram a ser considerados ainda nos textos dos representantes da Escola Clássica, dentre os quais o clássico “Dos delitos 4  Barry Glassner possui obra de enorme referência na temática do medo. O autor trabalhou esse fenômeno nos Estado Unidos, sobretudo na era Bush, apontando-o como uma das grandes armas que detinha o governo para justificar atitudes de endurecimento de leis penais em relação aos nacionais – com políticas na linha do zero tolerance-, mas, sobretudo, em relação aos imigrantes. Glassner possui a máxima: “perigo algum é pequeno o suficiente que não possa ser transformado em pesadelo nacional”, com a qual orienta a sua crítica à cultura do medo no país de Tio Sam. GLASSNER, Barry. Cultura do medo. São Paulo: Francis, 2003, p. 31.

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e das penas”. Nele, encontram-se discursos que impunham a necessidade de se construir um sistema punitivo mais eficaz e que garantisse ao cidadão segurança, sem os excessos das penas medievais e com o abandono da tortura. Recusemos ou não as pretensões humanistas das reformas oitocentistas, nos termos da desconfiada tese foucauldiana anti-humanista teórica, o fato é que o poder punitivo e as dogmáticas penal e processual penal passaram por modificações que fizeram sedimentar conceitos ligados à limitação do poder punitivo. O princípio da legalidade, por exemplo, que aparece no texto de Cesare Beccaria em 1764, é consagrado em diversas cartas de direitos nos séculos XVIII e XIX e até hoje constitui a premissa básica para a construção dos sistemas penais de democracias (BARATTA, 2004, p. 305; FERRAJOLI, 2002, p. 74). No processo penal, buscou-se superar o modelo inquisitivo de processo, trazendo para ele garantias como a ampla defesa, contraditório e publicidade. Um modelo garantista de justiça penal tem como objetivo central a limitação do estado punitivo, seja em sua esfera material (o que punir), seja na forma (como punir). Como situa Amílton B. de Carvalho e Salo de Carvalho (2002, p. 20): Representando um elogio à racionalidade jurídica, a teoria do garantismo penal pressupõe o direito como única alternativa à violência dos delitos e das penas, cuja existência apenas se justifica se percebido como mecanismo de tutela do indivíduo contra as formas públicas e privadas de vingança

A epistemologia garantista visa criar condições para controlar a intervenção do Estado punitivo, levando em consideração que alguma margem de discricionariedade diante dos textos é inevitável, mas que é preciso criar mecanismos para reduzir e tornar controlável a atividade decisória. Todo sistema punitivo garantista deve estar então assentado em certos princípios, dentre os quais o da legalidade, culpabilidade jurisdicionalidade, dentre outros. Boa parte desses princípios não resiste, digamos assim, a um minuto de realidade e acabam por desempenhar uma função simbólica de legitimação de uma justiça estruturalmente desigual e violenta. No Brasil e na América Latina, conforme refere Lola Aniyar de Castro, convive com o sistema legalmente positivado uma funcionalidade extraoficial truculenta e violadora de direitos humanos: o controle social formal é exercido praticamente sem que se leve em conta o funcionamento prescrito para o controle formal estabelecido, através dos operativos policiais, a prisão preventiva como pena antecipada, as execuções extrajudiciais e a lei de vadios e malfeitores (CASTRO, 2005, p. 75)

Essa justiça subterrânea não é extraordinária, mas acompanha o cotidiano do funcionamento da justiça penal. Ainda assim, os discursos favoráveis a um sistema de justiça garantista e limitado estão acossados em meio a um turbilhão de falas que acusam os direitos humanos de ser “privilégios de bandidos”. Como é possível associar direitos humanos que se afirmam como universais a privilégios? O período de redemocratização do país protagonizou, provavelmente, um dos momentos mais frutíferos em discussões a respeito de direitos humanos. Os movimentos sociais, que até a década de 1970 eram identificados como movimentos de pauta única (oposição e organização da classe operária face à burguesia), passam a concentrar lutas de outras minorias, levando-os a serem denominados de “novos movimentos sociais” com o fortalecimento das ações feministas, de homossexuais, de negros, de índios, dentre outras, deu fôlego às discussões sobre direitos humanos. A isso se somou uma pauta a respeito das mazelas do sistema punitivo brasileiro, o qual parte da classe média e alta politizada brasileira havia tido o desprazer de conhecer no período militar, experiência esta que foi, segundo Oliveira, fundamental para a inserção, na pauta da esquerda, de uma consciência das precárias condições a que se submetiam os presos comuns e dos próprios direitos humanos. O autor explica: 45

(...) não resta dúvida de que houve uma mudança no ‘espírito’ de uma parte expressiva da cultura política de esquerda no Brasil dos anos 70 pra cá – mudança essa, a meu ver, em parte devida às duras provas a que foram submetidos vários dos seus militantes (OLIVEIRA, 1992, p. 3).

Teresa Caldeira explica que houve uma tentativa de transpor as reivindicações dos movimentos populares que apoiaram presos políticos para a realidade dos condenados comuns, tendo a investida fracassado por diversas razões. Primeiramente, os presos comuns, ao contrário de minorias que se afirmavam à época (mulheres, homossexuais, negros etc), não possuíam uma identidade a defender, eram bandidos, criminosos não de crimes injustos (que lesam a liberdade de expressão, de imprensa...). Em razão disso, foi preciso que a bandeira em defesa dos presos comuns fosse hasteada por setores externos a eles como a igreja, os juristas e intelectuais. Estes ao defenderem os direitos humanos foram acusados de defensores de bandidos e, em uma dedução lógica perversa, os próprios direitos humanos passaram a ser entendidos como coisa de bandido. Caldeira aponta que houve uma forte campanha de setores conservadores em São Paulo contra a afirmação do que seriam verdadeiros privilégios para marginais e que grande parte dessa campanha apelava para o uso da sensação de insegurança, que, na década de 80, passava a figurar como aspecto relevante do cotidiano das pessoas. Assim, conclui a autora (CALDEIRA, 1991, p.1), de reivindicação democrática central no processo da chamada abertura política, defendida por amplos setores da sociedade, os direitos humanos foram transformados, no contexto de discussões sobre a criminalidade, em ‘privilégios de bandidos’ a serem combatidos pelos homens de bem.

Foi em meio a esse quadro que a constituição federal de 1988 consagrou garantias processuais penais. Contudo, como os documentos nada dizem sobre suas consequências, essas garantias são em alguns contextos vistas como problemáticas e, até mesmo, como uma das causas para a manutenção dos altos índices de criminalidade. A uma pesquisa recentemente elaborada e desenvolvida pela Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República (2008), 43% dos entrevistados, responderam concordar com a frase “bandido bom é bandido morto”. Sobre a favorabilidade a algumas políticas públicas de combate à violência, 73% se mostraram a favor de endurecer as condições dos presidiários (como? É uma boa questão), 71% concordam com a redução da maioridade penal, 70% aderem à adoção da pena perpétua e 45% são favoráveis à pena de morte. Alguns desses números se repetem em pesquisas nacionais de opinião pública executadas pelo instituto Datafolha, consoante veremos em seguida. O medo da criminalidade urbana nos últimos vinte anos galvanizou as opiniões a respeito do tratamento que deve ser dispensado a bandidos. À ocorrência de um crime bárbaro e que provoca clamor público se sucede uma multiplicidade de posicionamentos sobre qual medida se adotar, muitas das quais diversas das que prevê a nossa legislação, de maneira que temas como pena de morte, redução de maioridade penal, prisão perpétua, tortura e “baculejos” policiais são sempre recorrentes e apontados como soluções ideais. De um modo geral, o tema dos direitos humanos é visto com certa antipatia. Como nos lembra Oliveira (2008, p. 269): Nesse cenário de grandes acenos e esperanças, onde era legítimo esperar que o país finalmente ingressasse numa fase nova de respeito aos direitos humanos mais elementares, não é, entretanto, o que tem acontecido: o tema dos direitos humanos, depois de uma fulgurante e bem sucedida aparição no cenário político brasileiro a partir de meados dos anos 70, no contexto da luta contra o regime militar, chega ao início do século XXI, no Brasil, carregando consigo o incômodo rótulo de ‘privilégios’ de bandidos

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O status de privilégio de bandidos que adquirem direitos fundamentais (muitos dos quais que nada têm a ver com a justiça criminal) é atribuído, de modo geral, por indivíduos das diversas classes sociais do país, conforme se conclui das pesquisas de opinião sobre o tema. Aliás, é comum que nas pesquisas se verifique “um desdém popular em relação aos direitos humanos” (OLIVEIRA, 2009, p. 36) e um posicionamento mais duro em relação aos mesmos vindo, justamente, da classe mais propícia a sofrer violações a seus direitos fundamentais por esse próprio sistema punitivo, a classe pobre. O sentimento de insegurança coloca em xeque a justiça. Ele normalmente é acompanhado de uma demanda ao Estado no sentido de cobrar deste o resgate ou a manutenção da ordem na sociedade. As penas exemplares e rígidas são invocadas como necessárias para restabelecer essa ordem ferida ainda que não sejam funcionais do ponto de vista do controle da criminalidade. O medo da violência e a percepção da escalada do crime está fortemente ligado ao respaldo a sanções mais severas, porque estão alicerçados na exigência de restabelecimento da ordem. Por isso, ao surgimento de uma cultura do medo sucederia invariavelmente uma adesão a políticas rígidas de controle social ou, em outros termos, o crescente sentimento de insegurança costuma estimular o sentimento de impunidade e a percepção de que o Estado precisa punir mais. Com esta hipótese trabalhou Hugues Lagrange, procurando entender como o recrudescimento do problema da violência urbana pode pôr em risco conquistas como a garantia de direitos fundamentais. Lagrange vai tentar relacionar o apoio à pena de morte e o aumento da criminalidade. Segundo Lagrange, “a escolha pela pena de morte, que mobiliza os valores mais pessoais, fortemente enraizados em opções morais, mostra-se sensível à pressão dos fatos” (1995, p. 163), sensível, pois, ao crescimento do medo da criminalidade violenta. O autor explica (1995, p. 163164): Se o valor dissuasivo da pena de morte não é demonstrado, o desejo de ordem que ele testemunha encontra, por outro lado, uma justificativa no contexto de evolução do crime. (...) Esta medida (a pena de morte) do medo global é, de longe, a expressão mais coerente da necessidade de restabelecimento da ordem e da autoridade.

A adesão à pena de morte é entendida como uma variável derivada da sensação de impunidade, bem como o aumento efetivo da criminalidade é um fator associado ao sentimento de insegurança. Assim, se o apoio àquela medida punitiva cresce em uma sociedade, é porque as pessoas estão partilhando de um sentimento de que o Estado não está reprimindo a criminalidade com eficácia. Lagrange constata que, nos Estados Unidos, o apoio à pena de morte aumenta em mais de 15% de 1967 a 1990, passando de 40% a 70% o total de opiniões favoráveis a essa medida. No mesmo período, a criminalidade violenta cresceu consideravelmente e quase que no mesmo ritmo que o apoio à pena capital, demonstrando haver uma correspondência clara entre aadesão a penas rígidas e apercepção do crescimento da violência. Lagrange ressalta que estabelecer o apoio à pena de morte como uma variável dependente da alteração dos índices de criminalidade pode ser uma conclusão equivocada, haja vista estar a adesão a esse tipo de medida muito mais ligada a um sentimento de insegurança do que aos reais números da criminalidade, afinal o medo, como vimos, não possui necessária correspondência com a experiência com o crime. Desse modo, o apoio à pena de morte pode estar simplesmente relacionado a uma campanha midiática massiva. 5. A OPINIÃO PÚBLICA E O SISTEMA DE JUSTIÇA PENAL A provocação feita por Pierre Bourdieu em “A opinião pública não existe” é perspicaz: opinião pública é um artefato puro e simples cuja função é dissimular que o estado da opinião em um dado momento do tempo é um sistema de forças, de tensões e que não há nada mais inadequado para representar o estado da opinião do que uma percentagem (BOURDIEU, 1972)

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Pesquisas de opinião produzidas a respeito do sistema punitivo podem estar francamente relacionadas a demandas de modificações legislativas na seara penal, servindo de suporte para legitimá-las. Ao mesmo tempo, não podemos ignorar outras importantes advertências feitas em relação a esse tipo de enquete. Destacamos o fato de a formulação das perguntas poder alterar significativamente o resultado. Perguntar se uma pessoa é a favor da pena de morte pode ser diferente de questionar se em um caso específico, ela seria a favor de matar fulano dessa ou daquela maneira, isto é, trazer aspectos da realidade para uma pergunta que está em uma dimensão meramente abstrata do tipo “você é a favor da pena de morte”. Julian Roberts e Trevor Sanders trabalham com a seguinte hipótese em um estudo opinião pública a respeito de sentença condicional no Canadá: a hipótese sendo testada foi a de que apoio público a respeito da sentença condicional iria crescer se as condições específicas do cumprimento da sentença fossem salientadas aos respondentes (ROBERTS, SANDERS, 2000, p. 201)

Feitas essas ressalvas e interpretando com cautela seus dados, cremos que essas pesquisas representam, de alguma maneira, as percepções das pessoas em uma sociedade. Dito isto, passemos à avaliação de algumas delas. Há duas propostas político-criminais que se mostram especialmente sensíveis ao alvoroço em torno da midiatização de um delito e da sensação de insegurança: a adoção de pena de morte e a redução da maioridade penal. Como a opinião pública se comporta em relação a esses temas? Estariam essas opiniões relacionadas à cultura do medo? O único instituto que, no Brasil, realiza pesquisas em âmbito nacional sobre pena de morte é o DATAFOLHA, que disponibiliza resultados de pesquisas desde 1991. Antes disso, há um verdadeiro vácuo sobre o que pensa a população sobre essa medida punitiva. A última pesquisa sistemática sobre o tema feita pelo instituto foi em 2008. Como detalharemos adiante, as opiniões a respeito da pena de morte não variaram muito nos anos em que a pesquisa foi realizada pelo DATAFOLHA, porém apresentaram alguns picos significativos que podem ser explicados pela ocorrência, nesses anos, de crimes que chocaram a opinião pública e refletiram diretamente nas enquetes realizadas. Segundo dados fornecidos pelo Instituto de Pesquisa, a adesão à pena de morte variou no período de 1991 a 2008 de 48% a 47%, apresentando o menor percentual de apoio em 2008 e os maiores em 1993, 1995 e 2007, chegando as opiniões favoráveis a alcançar 55% dos entrevistados. TABELA 1 – Opiniões favoráveis à adoção da pena de morte (%) Ano %

1991 48

1993 55

1995 54

2000 48

2002 51

Fonte: DATAFOLHA

2003 50

2007 55

2008 47

De um modo geral, o apoio à pena de morte é expressivo. As explicações para tanto podem estar relacionadas a fatores diversos: midiatização excessiva de situações problemáticas violentas, o escasso acesso à justiça de boa parte da população, o desconhecimento em relação ao sistema punitivo, a exploração do ‘problema da impunidade’, uma cultura de violência nas relações interpessoais, a truculência corriqueira de forças estatais na abordagem com a comunidade, a desconfiança em relação ao poder judiciário, dentre muitos outros, incluindo o sentimento de insegurança. O sentimento de insegurança parece se estabelecer de modo permanente em uma sociedade que vivencia uma cultura do medo, como a brasileira, o que, talvez, explique os altos índices de adesão à pena capital. O exame da conjuntura que envolve as pesquisas sobre pena de morte parece reforçar a hipótese de que a aceitação de certos direitos fundamentais está intimamente ligada a uma sensibilidade que o medo da violência ajuda a perder. Vejamos. A pesquisa em 1993 se realizou entre os dias 2 e 4 de fevereiro, pouco mais de um mês após o assassinato de Daniela Perez, atriz morta pelo ator Guilherme de Pádua, que contracenava com ela na novela “De Corpo e Alma” da Rede Globo. A morte de Daniela causou grande comoção pública e foi amplamente midiatizada, gerando campanhas de diversas naturezas acusando o Estado 48

como incapaz de lidar com homicidas, dentre elas a de alteração da Lei de Crimes Hediondos, que, à época, não previa o homicídio como delito hediondo5. Após o assassinato de Daniela Perez, iniciou-se uma grande movimentação para a coleta de assinaturas com o objetivo de propor à Câmera dos Deputados um projeto de lei de iniciativa popular que pugnava pela modificação na Lei n° 8072 de 1990. Pela primeira vez, no Brasil, a sociedade fazia uso de uma ação de iniciativa popular, prevista na constituição como forma de permitir instrumentos de participação direta no processo político-legislativo. A lei proposta foi aprovada e publicada em setembro de 1994, de modo que as discussões em torno do assassinato de Daniela, bem como da hediondez do crime de homicídio persistiu fortemente até pelo menos o final de daquele ano, o que pode explicar a persistência, em 1995, de um percentual alto de adesão à pena de morte, visto que, neste ano, as entrevistas ocorreram no mês de março. Possivelmente a proximidade entre a pesquisa DATAFOLHA e o assassinato de Daniela em 1993 e a permanência dos debates em prol da modificação da lei de crimes hediondos nos anos seguintes tenha alterado consideravelmente a adesão à pena capital, haja vista ter o apoio a essa medida sido reduzido nos anos seguintes, alcançando novamente em 2000 o patamar de 48% dos entrevistados. Isto reforça a ideia de que a proximidade, seja física ou temporal, ao crime mantém vivo um sentimento de vingança que se reflete sobremaneira na reação contra o criminoso. A pesquisa foi realizada novamente em 2002 e 2003 e registrou pequenos aumentos, tendo 51% e 50%, respectivamente, dos entrevistados se posicionado favoravelmente à pena de morte. Apenas em 2007 o DATAFOLHA repetiu a consulta, registrando novamente 55% de opiniões de apoio, uma alta considerável em relação às enquetes anteriores. Interessante notar que em 2007 a pesquisa DATAFOLHA se realizou entre os dias 20 e 30 de março de 2007, um mês depois da morte da criança João Hélio, um crime bárbaro que foi amplamente midiatizado e provocou uma revolta coletiva, mais uma vez, encetando-se debates a respeito “da leniente legislação penal”. Talvez esse caso em específico possa justificar aquele aumento que, como disse, não se manteve nos anos seguintes. Esses dois momentos são fortemente elucidativos daquilo que afirmamos anteriormente: a mídia é capaz de gerar clamor público quando aborda incessantemente determinados crimes. Isso ocorreu nos casos Daniela Perez e João Hélio. No entanto, o desdém em relação aos direitos humanos fica claro com a forte adesão à pena de morte em todos os anos em que houve pesquisa. Se de um lado isso está associado à forma como a criminalidade é tratada nos veículos de comunicação, tem, de outro, estreita ligação com o aumento da sensação de insegurança, verificada em pesquisas sobre o tema, conforme pontuamos acima. O medo da violência é capaz de gerar um estado de permanente revolta e irracionalidade concernente ao problema da criminalidade. Quando um crime bárbaro vem à tona, essa revolta apenas se acentua. No que toca à redução da maioridade penal, os achados são semelhantes. Muito menos sistemáticas que as pesquisas sobre pena de morte, as que abordam a redução da maioridade penal também demonstram, quando realizadas, forte adesão da população. A última dela, realizada em abril de 2013 pelo DATAFOLHA apenas na cidade de São Paulo, demonstra uma adesão ao projeto de 93% dos entrevistados. Assim como verificado acima, essas pesquisas, quando realizadas após a ocorrência de crimes emblemáticos ou fortemente midiatizados, podem sugerir uma adesão mais emocionada a essas políticas. Neste último caso, a pesquisa se realizou após a enxurrada de notícias sobre crimes supostamente envolvendo adolescentes, dentre os quais da dentista Cinthya Magaly Moutinho de Souza, assassinada com uso de fogo em seu consultório médico e o do adolescente Victor Hugo Deppman, morto durante um assalto em frente a sua residência. Em 2004, outra pesquisa de opinião conclui que 84% da população brasileira era favorável à redução da maioridade penal. Destaque-se que a pesquisa ocorreu entre os dias 8 e 15 de dezembro de 2003, praticamente um mês após o crime que envolveu o casal Liana Friedenbach e Felipe Caffé, perpetrado por um grupo de pessoas, que envolvia o, à época adolescente, Champinha. De 7 a 8 de agosto de 2006, nova pesquisa foi realizada pelo DATAFOLHA e a redução aparece novamente com 84% de adesão. É possível imaginar que, de um modo geral, há uma boa recepção em torno desse tipo de 5  O que, aliás, é muito interessante. O latrocínio figurava na primeira versão da lei de crimes hediondos como o primeiro dentre os delitos daquela natureza e o homicídio, não.

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medida, embora os percentuais de concordância possam subir muito quando fatos sociais envolvendo adolescentes geram forte clamor. 6. UMA ÚLTIMA REFLEXÃO. O CASO DO “MENINO DO POSTE” E A PESQUISA DE OPINIÃO Em janeiro de 2014, um adolescente de 15 anos, negro e morador de rua foi amarrado a um poste, pelo pescoço, com uma corrente de bicicleta. O menino teria supostamente tentado praticar um furto, quando foi alvo de justiceiros. O caso repercutiu na mídia e nas redes sociais e chegou até mesmo a receber apoio público da jornalista Raquel Sheherazade que, em jornal da emissora SBT, afirmou que o “contra-ataque aos bandidos é o que chamo de legítima defesa coletiva de uma sociedade sem Estado contra um estado de violência sem limite”. O “menino do poste” é o retrato de muitas tragédias brasileiras. A tragédia do racismo, do abandono e da justiça sumária privada. No Rio de Janeiro, desde a década de 1950, a atuação de grupos de extermínio famosos como o Esquadrão da Morte e a Escuderie Le Cocq, fazem meninas e meninas de rua como vítimas. A cifra desses homicídios, certamente, nós jamais conheceremos. O curioso é que, embora a fala da jornalista não tenha sido isolada, em pesquisa realizada pelo instituto DATAFOLHA, na cidade do Rio de Janeiro, a ação dos justiceiros mereceu o repúdio de 79% dos entrevistados. 17% concordaram com a ação e 5% não respondeu. Importante destacar que, entre pessoas negras, 12% afirmou ter sido correta a atitude dos justiceiros e entre pessoas que se declararam brancas, esse percentual subiu para 21%. O menino do poste foi alvo de uma pena infamante e corporal aplicada sumariamente a um sujeito que guarda as características do estereótipo criminoso responsável pela criminalidade violenta. É negro, é adolescente e perambulava pelas ruas de um bairro nobre, Copacabana, supostamente praticando furtos e roubos. Ainda assim, a medida a ele imposta foi rechaçada. Será que, quando somos colocados frente a frente com a acusado ou o apenado, a nossa sensibilidade em torno de medidas drásticas não se altera? Falar vagamente em apoio à pena de morte pode ser muito mais fácil do que ver a morte e ver a pessoa que será morta. Talvez os indagados na pesquisa tenham simplesmente se sentido constrangidos em declarar apoio à ação contra o adolescente. Todavia, e quiçá essa hipótese possa se confirmar em outras pesquisas, quando nos deparamos com a crueldade das medidas que abstratamente dizemos apoiar, podemos mudar de postura e opinião, confirmando a hipótese dos trabalhos de Roberts e Sanders. 7. CONCLUSÃO A adesão a propostas de expansão do sistema punitivo é, em média, alta no Brasil e acaba por alcançar os patamares mais elevados justamente em contextos de publicização de crimes violentos letais que causam clamor público. Isso está em grande medida ligado à abordagem sensacionalista da mídia, mas não está desligado do sentimento de insegurança, o qual se sedimenta todos os dias com experiências diretas ou indiretas com o crime e atingem cumes máximos quando certos casos vêm à tona, gerando um processo de identificação com ele ou mesmo, de pura revolta. O sentimento de insegurança traz consequências consideráveis para a forma de organização da vida de cada cidadão. Como aponta Zaluar, Os efeitos mais evidentes dessa postura não são os muros altos, grades, fechaduras, alarmes e cadeados, mas o descrédito no trato com estranhos e a descrença na participação democrática. A idealização de uma comunidade de semelhantes encolheu os horizontes sociais, restringindo o mundo significativo e de confiança (ZALUAR, 1995, p.13)

Para a democracia, talvez o pior dos efeitos da cultura do medo seja o fato de ela vir acompanhada de uma necessidade de neutralização do perigo, ainda que em níveis concretos isso signifique a exclusão e o extermínio do outro. Entretanto, nem tudo que dissemos apoiar seria algo que estaríamos dispostos a vivenciar. O caso da pesquisa sobre o “menino do poste” será um alento? 50

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DIREITOS HUMANOS REPRODUTIVOS E REPRODUÇÃO MEDICAMENTE ASSISTIDA: LIBERDADE DE REPRODUZIR (?)

Luciana Brasileiro1

1. A REPRODUÇÃO HUMANA A reprodução humana, é tema fulcral da vida em sociedade. Não podemos pensar em continuidade da raça humana, sem vislumbrar a necessária reprodução e nela, refletir o papel feminino em diversos momentos da história, até os dias atuais. Historicamente, a reprodução humana era vista como um dever da mulher -, o que, aliás, Beauvoir2, considera que foi o elemento que a colocou numa situação de inferioridade em relação ao homem -, hoje é vista como um direito assegurado. Diante dos avanços tecnológicos que, em termos de velocidade, ultrapassam os limites do Direito, nos deparamos com inúmeras mudanças, ao longo dos tempos em relação ao tema. Autores como Malinovski (1973, p. 39) e Lévi-Strauss (1996, p. 268), registraram a existências de sociedades matriarcais, o primeiro, nas tribos trobriand, onde a reprodução era definida pela mulher, cabendo ao homem se submeter ao ato sexual; o segundo, em tribos indígenas brasileiras, onde a criança passava a primeira infância apenas na companhia materna. Em ambas as situações, os papéis de pai se assemelhavam: lhes cabia divertir os filhos, e tão somente. Com as sociedades patriarcais, em uma vertente oposta, essa reprodução era imposta à mulher, que reunia consigo o dever de cuidados com a prole. Quanto mais numerosa a família, maior o número de pessoas a trabalhar na propriedade. A fecundidade era determinante para a manutenção da família, resumida ao casamento. Nos dias atuais, a inserção da mulher no mercado de trabalho, a sua independência e o alcance de tratamento isonômico, aliados à tecnologia, lhe permitem não só o controle da fecundidade, mas também a decisão da maternidade, independente, inclusive, de uma figura que exercerá o papel paterno. Diante de tanta segregação vivida pela mulher durante o período civilizatório, no Brasil, por 1 Mestre em Direito Privado pela UFPE. Advogada. Professora Universitária. 2  Beauvoir afirmou que “a maternidade destina a mulher a uma existência sedentária; é natural que ela permaneça no lar enquanto o homem caça, pesca e guerreia”(BEAUVOIR, 2009, p. 108).

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exemplo, desde a colonização até 1960, pelo menos, diversos movimentos ebuliram a busca pelos seus direitos, dentre eles, os direitos humanos reprodutivos. 2. DIREITOS HUMANOS REPRODUTIVOS Os direitos reprodutivos tiveram seu conceito legitimado a partir de dois importantes documentos: o Plano de Ação da Conferência Internacional sobre a População e Desenvolvimento, no Cairo, 1994 e a Declaração e Plataforma de Ação da IV Conferência Mundial sobre a Mulher, em Pequim, 1995. A partir de então, o desafio dos países participantes, inclusive o Brasil, foi observar os princípios basilares dos documentos e implementar ações no sentido de assegurar o pleno exercício dos direitos reprodutivos pelos cidadãos. Os documentos tiveram alcances distintos, sendo o primeiro direcionado a casais, adolescentes, mulheres solteiras, homens e pessoas idosas; e o segundo, a mulher, em específico. Esses direitos são considerados Direitos Humanos e assim foram tratados pela primeira vez na Conferência Internacional de Direitos Humanos, celebrada em Teerã, em 1968, quando homem e mulher já eram iguais em dignidade. O parágrafo 18 da Declaração de Viena de 1993 fez constar, ainda, os direitos humanos das mulheres e das meninas, inseridos nesse contexto, os direitos reprodutivos e sexuais. A intenção de erradicar toda e qualquer forma de discriminação pelo gênero tem por base a dignidade humana. O artigo ainda estimula a adoção de medidas legais e ações nacionais e internacionais nas áreas de desenvolvimento socioeconômico, educação, maternidade, saúde e assistência social. Com a busca pela erradicação da discriminação baseada no gênero, outras ações surgiram no sentido de reafirmar a necessidade de proteção da mulher, mas foi, consoante mencionado, o Plano de Cairo, que ressaltou no plano internacional, o conceito dos direitos reprodutivos, enquanto direitos humanos, já que traçou um plano de metas com a finalidade de atingir a igualdade de gênero. Eles decorrem, primordialmente, do Direito Humano à Saúde e não se restringe à mera possibilidade de reproduzir, mas sim, regula situações que envolvem as relações privadas e públicas: Os Direitos Reprodutivos são constituídos por certos direitos humanos fundamentais, reconhecidos nas leis internacionais e nacionais. Além das leis, um conjunto de princípios, normas e institutos jurídicos, e medidas administrativas e judiciais possuem a função instrumental de estabelecer direitos e obrigações, do Estado para o cidadão e de cidadão para cidadão, em relação à reprodução e ao exercício da sexualidade (VENTURA, 2004, p.19).

Flávia Piovesan acrescenta ainda uma fusão entre esses direitos e os direitos sexuais, assim definidos, como “o livre exercício da sexualidade e da reprodução humana, sem discriminação, coerção ou violência”3. A saúde reprodutiva foi definida no §7.1 da Plataforma de Cairo e ratificada pela Plataforma de Ação de Pequim (C.94) como sendo: A Saúde Reprodutiva é um estado de completo bem-estar físico, mental e social em todas as matérias concernentes ao sistema reprodutivo, suas funções e processos, e não a simples ausência de doença ou enfermidade. A Saúde Reprodutiva implica, por consegüinte, que a pessoa possa ter uma vida sexual segura e satisfatória, tendo a capacidade de reproduzir e a liberdade de decidir sobre quanto e quantas vezes deve fazê-lo. Está implícito nesta última condição o direito de homens e mulheres de serem informados e de terem acesso aos métodos eficientes, seguros, aceitáveis e financeiramente compatíveis de planejamento familiar, assim como a outros métodos de regulação de fecundidade a sua escolha e que não contrariem a Lei, bem como o direito de acesso a serviços apropriados de saúde que propiciem às mulhe3 PIOVESAN, Flávia. Direitos Reprodutivos como Direitos Humanos. Disponível em: . Acesso em: 10 jan., 2014.

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res as condições de passar em segurança pela gestação e parto, proporcionando aos casais uma chance melhor de ter um filho sadio.4

Não é demais ressaltar que essas políticas têm em vista, principalmente, o combate às inúmeras formas de violência sofrida pelas mulheres, bem como a necessidade de erradicação da prática de políticas agressivas de controle de natalidade, como ocorre, por exemplo, na China, onde o governo implantou a política do filho único, chegando inclusive a aplicar multa na hipótese de descumprimento. Mas não se esgotam em um único foco de atuação. Os direitos reprodutivos são amplos, e incluem o acesso ao progresso científico, para prevenção e tratamento da esterilidade, como prevê o §7.6 da Plataforma de Cairo5, que previu um prazo até 2015 para que os países signatários disponham de serviço de assistência à saúde reprodutiva, bem como tratamentos da esterilidade, dentre outros, observando-se, sempre, a paternidade responsável e o planejamento familiar. Os dois documentos ainda ressaltaram que as medidas a serem tomadas devem considerar a “promoção do exercício responsável desses direitos por todos os indivíduos, e que esse sentido de responsabilidade deve ser a base primordial das políticas e programas estatais e comunitários na área de saúde reprodutiva, inclusive planejamento da família”, destacam o§7.3 da Plataforma de Cairo6 e C.95 da Plataforma de Pequim7. Como visto anteriormente, o direito em tela está intrinsecamente vinculado à autonomia da vontade, onde apenas a mulher/homem/casal, podem definir sobre a liberalidade de procriar, contudo, deve o Estado possibilitar, através de políticas públicas, o acesso à informação, orientação e tratamento. Não é demais salientar que as medidas acima foram tomadas com base no espírito da isonomia. Reconhecida a vulnerabilidade da mulher em relação ao homem, foi prioridade o alcance da dignidade em ambos os sexos, fomentando-se, inclusive, a participação do homem nas tarefas domésticas e criação dos filhos, através de um ideal de paternidade responsável. O tema também foi tratado em 1979 pela Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação contra a Mulher, das Nações Unidas. Pertinente à Convenção, destaque-se o que prevê o art. 12: Os Estados-partes adotarão todas as medidas apropriadas para eliminar a discriminação contra a mulher nas esfera dos cuidados médicos, a fim de assegurar, em condições de igualdade entre homens e mulheres, o acesso a serviços médicos, inclusive referentes ao planejamento familiar.

Flávia Piovesan indica “os delineamentos iniciais dos direitos reprodutivos”: a) eliminar a discriminação contra a mulher nas esfera da saúde (vertente repressiva/punitiva) e b) assegurar o acesso a serviços de saúde, inclusive referentes ao planejamento familiar (vertente promocional).8 4 PATRIOTA, Tânia. Relatório da Conferência Internacional sobre população e desenvolvimento – Plataforma de Cairo. Disponível em: . Acesso em: 10 jan., 2014. 5 PATRIOTA, Tânia. Relatório da Conferência Internacional sobre população e desenvolvimento – Plataforma de Cairo. Disponível em:. Acesso em: 10 jan., 2014. 6 PATRIOTA, Tânia. Relatório da Conferência Internacional sobre população e desenvolvimento – Plataforma de Cairo. Disponível em:. Acesso em: 10 jan., 2014. 7  VIOTTI, Maria Luiza Ribeiro. Declaração e Plataforma de Ação da IV Conferência Mundial Sobre a Mulher. Disponível em: . Acesso em: 07 set., 2012. 8  PIOVESAN, Flávia. Direitos Reprodutivos como Direitos Humanos. Disponível em: . Acesso em: 10 jan., 2014.

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Ratificando os tratados internacionais, a Constituição Federal de 1988, em seu art. 226, §7o, reconhece o planejamento familiar como direito e institui ao Estado a obrigação de propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito. Em 1996, a Lei nº 9.263, regulamentou o planejamento familiar. A referida lei trouxe à baila a discussão acerca da interferência do Estado nas relações privadas, haja vista que sua função supera a esfera educativa e promocional e alcança aquela da fiscalização, pois lhe cabe também verificar se estão sendo atendidos os ditames legais. Não obstante a lei venha regulamentar o preceito constitucional, a realidade se apresenta assaz distinta da norma. Visualizar os Direitos Reprodutivos como Direitos Humanos, é antes de tudo, conforme alerta Flávia Piovesan: transpor e implementar, no plano local, os recentes avanços obtidos na esfera internacional, conferindo prevalência aos parâmetros internacionais e constitucionais para a efetiva proteção dos direitos reprodutivos, enquanto direitos nacional e internacionalmente assegurados.9

É de palmar importância compreender os Direitos Reprodutivos como um complexo, haja vista que o mesmo assegura direitos como concepção e contracepção. Nesse sentido, a Lei do Planejamento Familiar no Brasil, é bastante compreensiva, contudo, as políticas públicas não asseguram a aplicação efetiva da norma. A referida lei decorre do reconhecimento dos Direitos Reprodutivos como Direitos Humanos, conferidos, aqui, em especial, à mulher, vítima de violência, de planos, inclusive públicos, de incentivo ou repressão à reprodução, conferindo-lhe a possibilidade de exercício da liberdade de reprodução. Entretanto, não é demais destacar que a dita liberdade não pode, jamais, ser dissociada da responsabilidade. 3. PLANEJAMENTO FAMILIAR 3.1 Lei do Planejamento Familiar O Planejamento Familiar, garantido pelo art. 226, §7º da Constituição Federal, impõe ao Estado o dever de propiciar recursos, educacionais e científicos garantidores de seu exercício. Além do uso de técnicas de contracepção, cabe ainda o poder público, a oferta de métodos e tratamentos de concepção, ambas reguladas atualmente, pela lei nº 9.263/96. O civilista Paulo Lôbo esclarece que o planejamento é “direito de todo cidadão, e não apenas do casal, como referido na Constituição” (LOBO, 2011, p. 218). A autora Maria Cláudia Crespo Brauner define planejamento familiar: Sob a designação de planejamento familiar está implícita a ideia de regulação de nascimentos, de contracepção, de esterilização e de todos os outros meios que agem diretamente sobre as funções reprodutoras do homem e da mulher e, especialmente, sobre a saúde de ambos (BRAUNER, 2003, p. 15).

O governo, através da lei, criou programas de concepção e contracepção que são atualmente ofertados pelo Sistema Único de Saúde-SUS, e todo cidadão pode se valer das técnicas previstas em lei. As técnicas de contracepção, envolvem atendimento especializado em clínicas da mulher, cirurgias de laqueadura e vasectomia, bem como a conscientização da população carente de métodos caseiros de contracepção, além da distribuição de anticoncepcionais e preservativos. No que pertine à infertilidade, o Ministério da Saúde instituiu a Política Nacional de Atenção Integral em Reprodução Humana Assistida, do Ministério da Saúde, que prevê o apoio do SUS para o tratamento das patologias, executadas pelassecretarias estaduais e municipais, através da 9  PIOVESAN, Flávia. Direitos Reprodutivos como Direitos Humanos. Disponível em: . Acesso em: 10 jan., 2014.

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Portaria 426/GM de 22 de março de 2005, que regula a competência para a implantação das técnicas no sistema público de saúde. A portaria levou em consideração seis fatores, quais sejam: a) necessidade de estruturação dos SUS para aplicação das técnicas de reprodução humana; b) o disposto na Constituição Federal, em seu art. 226, §7º e a Lei do Planejamento Familiar, que assegura a utilização de todas as técnicas cientificamente viáveis de concepção e contracepção; c) a coleta de dados da Organização Mundial de Saúde-OMS e demais sociedades científicas, de que aproximadamente 8% a 15% dos casais apresentam problemas de infertilidade; d) Que as técnicas de reprodução assistida contribuem para a diminuição da transmissão vertical e/ou horizontal de doenças infectocontagiosas, genéticas, entre outras; e) A necessidade de estabelecimento de mecanismos de regulação, fiscalização, controle e avaliação da assistência prestada aos usuários do SUS; e f) A necessidade de estabelecimento de critérios mínimos para o credenciamento e a habilitação dos serviços de referência de média e alta complexidade em reprodução humana10. A portaria regula, então, o uso das técnicas de reprodução humana assistida pelo SUS, prevendo que as secretarias estaduais e municipais deverão implantar, executar e fiscalizar o sistema. Contudo, importa salientar que a referida portaria se aplica apenas para o uso de técnicas de reprodução humana medicamente assistida por um casal. No entanto, ela não foi implementada, em razão da necessidade de um estudo de impacto financeiro, já que os tratamentos de fertilidade humana possuem alto custo. Num outro vértice está a Lei do Planejamento Familiar, que prevê o planejamento à família em seu art. 1º, como direito de todo cidadão. Ao contrário daquela, esta não faz menção apenas ao casal, mas sim, à mulher, o homem ou o casal, senão vejamos: Art. 2º Para fins desta Lei, entende-se planejamento familiar como o conjunto de ações de regulação da fecundidade que garanta direitos iguais de constituição, limitação ou aumento da prole pela mulher, pelo homem ou pelo casal.

A lei dedica um número maior de artigos para a contracepção, uma vez que essa é a maior preocupação, do ponto de vista do interesse social, haja vista a necessidade de controle dos altos índices de gravidez indesejada que, muitas vezes, resulta em abortos clandestinos. No entanto, menciona a possibilidade de constituição de prole pela mulher, pelo homem, ou pelo casal, que estariam, portanto, autorizados a, de forma autônoma, ter um projeto parental, ao contrário do que prevê a Constituição Federal, conforme já mencionado. Muito embora tenha a questão do Planejamento Familiar, sido introduzida no ordenamento jurídico pela Constituição, carecendo, destarte, de lei ordinária que regulasse, o que fez a lei em questão, é necessário que se observe a orientação dada pela norma constitucional ao tema, no sentido de ser o planejamento uma decisão de um casal e não uma opção para um eventual planejamento individual. 3.2 Liberdade de reprodução A liberdade é princípio garantido constitucionalmente e está vinculada ao tema em análise, promovido pela possibilidade de cada cidadão escolher se pretende, ou não ter filhos. A garantia reside no fato de que ninguém poderá ser coagido a procriar ou ainda, a deixar de fazê-lo. Essa ideia nos remete à noção de liberdade jurídica, qual seja, a autonomia privada. 10 PORTARIA 426/GM de 22 de março de 2005. Disponível em: www.brasil.gov.br/sobre/saude/saude-da-mulher/planejamento-familiar. Acesso em: 22 set., 2013.

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Antes, contudo, é necessário refletir sobre a liberdade, dotada de forte conteúdo filosófico. A autora Maria Celina Bodin de Moraes, ao buscar o conceito de liberdade, encontra um único ponto para o qual todos os filósofos convergiram em relação à liberdade: a noção de responsabilidade. Segundo a autora, “quando há uma, há outra, e a recíproca também é verdadeira” (MORAES, 2010, p. 184). Ela aponta ainda, como fundamental para entender a liberdade, compreender o livre-arbítrio, que consiste na possibilidade do sujeito “querer o que se quer” (MORAES, 2010, p. 184). Kant definiu o livre arbítrio como sendo “a escolha que pode ser determinada pela razão pura”, ou seja, a liberdade estaria vinculada à independência do ser “determinado por impulsos sensíveis”(KANT, 2008, p. 63). O filósofo ainda remete à ideia da liberdade às leis morais, que poderão ser jurídicas ou éticas, sendo as primeiras, aquelas que conformam ações externas às leis e as éticas, as que unem as leis jurídicas ao que justifica/determina as ações. Kant baseia sua ideia de liberdade à ausência de coerção e independente de impulsos, que ele vincula ao arbítrio animal. Assim, embora soframos interferências de diversos estímulos com frequência, temos, na liberdade, a possibilidade de escolher. Bodin associa a liberdade à dignidade humana, esclarecendo a conhecida divisão kantiana sobre os valores: preço e dignidade (MORAES, 2010, p. 184). Estando a dignidade como intrínseca ao ser humano, a faculdade lhe garantiria a proteção contra a coerção. A nossa Constituição Federal, ao assegurar no inciso II do art. 5º, que “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”, está resguardando a liberdade de todos, dentro do sistema legal. Paulo Lôbo define a liberdade, no Direito, como sendo “o direito de ser livre, desde o nascimento até à morte, o direito de não estar subjugado a outrem, o direito de ir e vir, salvo a restrição em virtude do cometimento de crime”. O autor ainda registra que a violação desse direito de personalidade, gera o direito de reclamar uma indenização por danos morais11. Atrelado ao conceito de liberdade, está o de autonomia, em especial no que toca ao direito privado. A autodeterminação assegura a todo indivíduo o direito de direção nas decisões individuais, cabendo ao Estado a mínima intervenção nessas relações, de sorte que não haja violação de privacidade. Pietro Perlingieri, entende a autonomia privada dentro de qualquer relação, privada ou negocial, inclusive aquelas relações existenciais, senão vejamos: Uma definição usual, a ser considerada, no entanto, como mero ponto de partida para em seguida desenvolver as respectivas críticas, entende por autonomia privada, em geral, o poder, reconhecido ou concedido pelo ordenamento estatal a um indivíduo ou a um grupo, de determinar vicissitudes jurídicas como consequência de comportamentos – em qualquer medida – livremente adotados (PERLINGIERI, 2008, p. 335).

A liberdade reside no tema em apreço e tem direta vinculação ao planejamento familiar, estando tipificada no art. 9º da Lei 9.263/96, que põe à disposição os métodos de concepção e contracepção, desde que sejam eles aceitos cientificamente sem colocar em risco a vida e a saúde das pessoas, assegurando-lhes a liberdade de opção. Planejar ter, ou não ter filhos, estaria dentro do conceito de liberdade de reprodução. Além disso, o indivíduo é ainda dotado de liberdade na escolha do método de contracepção, mas há polêmica quanto à concepção. O Conselho Federal de Medicina é o único a regular eticamente no Brasil o uso das técnicas de reprodução assistida e o faz através da Resolução nº 1.957/10, que revogou integralmente o contido na Resolução nº 1.358/1992. O Código Civil Brasileiro só faz referência ao tema ao tratar das presunções de filiação. O primeiro dos princípios gerais da Resolução do CFM, prevê que as técnicas de reprodução deverão ser utilizadas apenas quando houver problemas medicamente identificados: 11  LÔBO, Paulo Luiz Netto. Danos morais e direitos da personalidade. Disponível em: . Acesso em: 22 set., 2013.

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1 – As técnicas de reprodução assistida (RA) têm o papel de auxiliar na resolução de problemas de reprodução humana, facilitando o processo de procriação quando outras terapêuticas tenham se revelado ineficazes ou consideradas inapropriadas. (g.n.)

Aparentemente, a Resolução vedaria, portanto, hipóteses como o projeto individual de maternidade/paternidade, ou ainda, um projeto homoparental. A Resolução anterior direcionava o uso das técnicas apenas às mulheres, e a atualmente vigente se adequou às conformações familiares definidas na Constituição Federal, considerando o contexto de pluralidade de entidades familiares, contemplando que os pacientes das técnicas, são todas as pessoas capazes: 1358/1992 II - USUÁRIOS DAS TÉCNICAS DE RA 1 - Toda mulher, capaz nos termos da lei, que tenha solicitado e cuja indicação não se afaste dos limites desta Resolução, pode ser receptora das técnicas de RA, desde que tenha concordado de maneira livre e consciente em documento de consentimento informado. 2 - Estando casada ou em união estável, será necessária a aprovação do cônjuge ou do companheiro, após processo semelhante de consentimento informado. 1957/2010 II - PACIENTES DAS TÉCNICAS DE RA 1 - Todas as pessoas capazes, que tenham solicitado o procedimento e cuja indicação não se afaste dos limites desta resolução, podem ser receptoras das técnicas de RA desde que os participantes estejam de inteiro acordo e devidamente esclarecidos sobre o mesmo, de acordo com a legislação vigente.

Não há dúvidas de que a Resolução do CFM foi ponderada no sentido de limitar o uso das práticas médicas apenas em última hipótese. Entrementes, a Lei do Planejamento Familiar não inibe a liberdade do paciente de escolha do método de concepção. Sendo a Resolução uma norma que visa estabelecer apenas critérios éticos de utilização das referidas técnicas pelos médicos, estaria ela sujeita à lei. Assim, cabe ao indivíduo, no caso em análise, à mulher, se utilizando de sua liberdade, escolher como pretende planejar a concepção. Sendo assim, está autorizada, por lei, a eleger a técnica de reprodução assistida para uma “produção independente”. Essa liberdade de reprodução, no entanto, pode ter um outro vértice, bastante perigoso, de “mercantilização”, haja vista que os tratamentos de reprodução assistida têm um altíssimo custo, o que possibilita que apenas pessoas que gozam de estabilidade financeira possam se submeter aos tratamentos, quando esses não são subsidiados pelo SUS. Os avanços tecnológicos não são acompanhados pela norma pátria, que quedou engessada perante a progressão científica e, inevitavelmente, não prevê a regulamentação dessas práticas no país. Pior, o Poder Judiciário assiste silente ao patente desrespeito à norma constitucional, que apenas prevê o direito à procriação de forma livre, mas não abre sendas para a prática da sexagem, ou seja, escolha de sexo, ou cor dos olhos, tipo de pele e cabelo. Tais procedimentos, inclusive, fogem da seara da infertilidade, que deveria ser o principal foco do tratamento. A relação de consumo gerada entre médico e paciente, ultrapassa as fronteiras da prestação do serviço médico, na medida em que se oferecem técnicas para seleção da espécie humana e não há nenhum proibitivo legal específico em vigor, mas tão somente uma regra ética. Partindo do princípio de que o projeto parental está afeto à autonomia privada, caberia ao paciente definir se pretende, ou não, se submeter à prática de sexagem. Urgente delimitar o que prevê o direito à procriação e quais são suas barreiras limítrofes. José Oliveira Ascensão revela sua preocupação com a garantia do atendimento ao interesse do nascituro: Mas nenhum direito é absoluto. Semelhante direito teria pelo menos de se conciliar

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com os direitos dos outros. No caso, parece muito mais importante acentuar que há que entrar em conta com os direitos do novo ente, que não pode em caso nenhum ser considerado um mero instrumento para a satisfação dos objectivos alheios. (...) Isto implica que se pressuponha que haja um casal no destino do novo ser. Afastaria, por exemplo, a mulher solteira (ASCENSÃO, 1994, p. 98).

À mesma corrente se filia Eduardo de Oliveira Leite (1995), ao ensinar que a Constituição Federal, em seu artigo 226, §4º apenas prevê o reconhecimento de entidades familiares formadas pelo pai ou mãe com seus filhos. Porém, não é intenção da norma que seja criada uma nova modalidade de família, que já se constitua, naturalmente, sem um dos genitores, pois ambos são necessários para o desenvolvimento dos filhos. Afasta-se o invocar precipitado e equivocado do art. 226, §4º do texto constitucional como argumento legitimador da inseminação artificial da mulher “independente” e livre. Essa possibilidade é alcançada pelas técnicas de reprodução assistida, sem a necessidade da presença de um pai, pois a mulher está autorizada, sozinha, a se submeter aos métodos de inseminação, já que não há lei que a proíba de fazê-lo. 4. A REPRODUÇÃO MEDICAMENTE ASSISTIDA O problema da fertilidade não é atual e sempre preocupou o homem, qualquer que fosse a sua origem. Não ter filhos representaria uma ameaça à espécie humana, estando o ser humano fadado à extinção. Entender o estágio atual requer uma análise do tempo, para que cheguemos à conclusão de que os tratamentos de reprodução humana medicamente assistida decorrem, em verdade, do culto aos deuses. A mulher infértil sempre foi motivo de preocupação e muitas vezes de preconceito em sociedades menos desenvolvidas. As deusas da fertilidade, na maioria das vezes representadas por mulheres grávidas eram cultuadas para trazerem filhos. Até o momento em que o homem pôde compreender as causas de infertilidade humana, as mulheres sofreram, em diversas culturas, toda sorte de discriminação. A Pesquisadora de Harvard, Debora Spar, registra que: De acordo com essa lógica, as mulheres como Raquel não tinham filhos porque, de alguma forma, não mereciam tê-los, porque Deus tinha determinado que eram indignas de conceber. E os homens casados com mulheres indignas eram, em muitas culturas, livres de as matar ou abandonar. Na Índia antiga, um homem podia amarrar a sua mulher estéril e atear-lhe fogo. Na China, uma esposa sem filhos não tinha direito a morrer em casa. Noutros países – em certas regiões da Grécia, da Turquia e do Bali – dependendo do espírito da época e do credo dos governantes, as mulheres estéreis eram forçadas a suicidar-se, ‘desonradas, odiadas e maltratadas’ por sociedades para as quais infertilidade era sinónimo de impiedade (SPAR, 2007, p. 30).

A procriação sempre representou um dever social imposto, normalmente à mulher. Simone de Beauvoir, em sua obra “O Segundo Sexo” chegou a afirmar que a repressão sobre a necessidade de procriação, exercida nas mulheres, caracteriza uma espécie de violência, quando menciona que “viola-se mais profundamente a vida de uma mulher exigindo-se dela filhos do que regulamentando as ocupações dos cidadãos; nenhum Estado ousou jamais instituir o coito obrigatório” (BEAUVOIR, 2009, p. 93). A fertilidade já foi relacionada à bruxaria. No séc. XV a publicação dos julgamentos das bruxas (Hammer of the Witches) lhes atribuía como pecado as práticas de tornar homens impotentes bem como a prática de esterilização e castração. Em seguida, se acreditou que a prática frequente do sexo, poderia levar à infertilidade. A conclusão adveio de que os “ventres movediços” podiam evitar a concepção, como ocorria com as meretrizes. Então, a conclusão dos religiosos era de que as mulheres inférteis se equiparavam às prostitutas, o que fomentava o desejo de ter filhos: 60

(as mulheres) bebiam poções de urina de mula e sangue de coelho e cobriam-se de ervas que se acreditava induzirem a gravidez. Beijavam árvores, deslizavam por pedras e banhavam-se em água salobra, tida como semelhante ao sangue do parto. Quando tudo o mais falhava, rezavam, adoptavam ou, à semelhança de Raquel, arranjavam outra mulher para gerar o ‘seu’ filho (SPAR, 2007, p. 31).

Com o passar do tempo e a incessante busca da fertilidade, a maioria dos tratamentos se mostraram lucrativos e deu margem a uma série de caras invenções. Debora Spar registra o caso do escocês James Graham, criador de uma terapia baseada em impulsos elétricos, que ganhou maior repercussão após, aparentemente, ter curado a Duquesa de Devonshire. Na época, ele montou o Templo da Saúde, onde realizava “tratamentos” em homens e mulheres, todos com estímulos elétricos (SPAR, 2007, p. 33). Foi apenas a partir do séc. XIX que teve início a associação entre infertilidade e condição clínica, afastadas as técnicas rústicas de cura desse mal. A reprodução assistida representou, sem dúvida, um dos maiores avanços da ciência. É oriunda de inúmeras pesquisas, iniciadas no final do século XIX, primeiramente com técnicas rudimentares para contribuir com a reprodução natural, tais como bálsamos, banhos elétricos, entre outros, já mencionados, que já custavam fortunas. Esses dados históricos, nos levam a refletir, que durante todo o tempo em que o homem tentou curar a infertilidade, o fez na expectativa de dar filhos a quem não os podia ter naturalmente. Assim, aqueles casais que eram diagnosticados como inférteis, precisavam recorrer a técnicas de reprodução e pagar para ter filhos. A título de registro, uma noite na “cama celestial”, também criação de James Graham, custava o equivalente a, nos dias de hoje, U$37.500 (SPAR, 2007, p. 34). Muito embora estivesse arraigado no ser humano o sentimento de solidariedade àqueles que não podiam procriar, alguém pensou na venda de um bálsamo fertilizador, alguém criou o aluguel da cama celestial, alguém ofereceu ao comércio da medicina, a técnica da proveta. Em 1978, nascia na Inglaterra Louise Brown, o primeiro bebê de proveta do mundo, sendo importante mencionar que a descoberta de uma possível fertilização extra corpórea surgiu em 1944, quando John Rock, especialista em fertilidade, conseguiu fazê-lo, in vitro12. E os tratamentos são caros. Os nossos tribunais já chegaram a se pronunciar contrariamente à concessão de fertilização in vitro pelo Sistema Único de Saúde, alegando que o procedimento “transcende à saúde, para chegar à felicidade da mulher”13. As atuais técnicas de reprodução medicamente assistida possibilitam, com recursos sofisticados, inúmeras “opções” àqueles que as utilizarão. Dentre eles, a possibilidade de escolha de sexo, ou cor dos olhos, tipo de pele e cabelo, bem como a “fabricação” de crianças imunes a doenças como diabetes, miopia, resistentes a obesidade e maior capacidade de aprendizado. Merece destaque a matéria de capa da Revista Super Interessante de fevereiro de 2012, que noticiou: “Como fazer um superbebê: Eles serão projetados por cientistas, terão imunidade contra doenças e a aparência que os pais escolherem. Conheça os bebês de laboratório – porque um dia você vai ter um. E eles já começaram a nascer”14. As pesquisas indicam que o procedimento, intitulado Diagnóstico Pré-Implantacional – DPI, “permite escanear o DNA de embriões com poucos dias de vida retirando uma célula deles”. A matéria registra pesquisa realizada na Universidade John Hopkins, nos EUA: Em 2006, quase metade das clínicas de DPI americanas já oferecia o serviço de escolha do sexo do bebê. Outro levantamento, da Universidade de Nova York, mostrou que 10% dos entrevistados fariam o procedimento para garantir ‘melhorias’ como habilidade atlética, e 12%., inteligência superior no bebê. Já existe até um nome

12  Disponível em: . Acesso em: 23 set., 2012. 13  BRASIL, TJSP, AC 994.09.234287-2, Relator: Ribeiro da Silva, DJ: 05/05/2010. Disponível em: . Acesso em: 07 jan., 2013. 14  SUPER INTERESSANTE, fevereiro de 2012, ed. 301, tiragem 416.153 exemplares, p.42-51.

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para essas crianças: são os designer babies, ou bebês projetados15.

No Brasil, embora a Resolução 2013/2013 do CFM proíba expressamente a prática de sexagem, expressão utilizada para a escolha das características fenotípicas do bebê, um escândalo envolveu o renomado médico Roger Abdelmassih. O Ministério Público de São Paulo, após apurar inúmeras provas, constatou que ele praticava em seu consultório médico a troca de materiais genéticos à revelia dos clientes; venda de material genético. Ele vendia óvulos de doadoras por cerca de R$ 5.000,00 (cinco mil reais) a unidade; criação de óvulos transgênicos, consistente na retirada do citoplasma do óvulo da paciente com mais de 35 anos e preenchia a célula com um citoplasma de óvulo de uma outra mulher, com menos de 30 anos, o que poderia gerar crianças com três DNAs diferentes; bem como a prática da sexagem, que possibilitava aos pais a escolha do sexo do bebê16. O método de reprodução medicamente assistida, por sua vez, é consolidado na solidariedade, uma vez que a infertilidade é considerada por muitos como sinônimo de fracasso. O mesmo médico em obra de sua autoria, ao relatar o caso Pelé (ABDELMASSIH, 1999, p. 18)17, denominou de “frutos sociais” a procura por sua clínica após o sucesso do procedimento empregado ao casal. Ele refere que o fato do caso ter chegado à mídia fez com que muitas pessoas passassem a acreditar que poderiam também ter filhos, o que fomentou o que hoje é considerado um mercado, no qual o Brasil ocupa o terceiro lugar do turismo reprodutivo, por oferecer o tratamento com menos custo18. Os fatos acima revelados, chamaram a atenção ao fato de que não há uma fiscalização efetiva das clínicas que oferecem o serviço no Brasil, não obstante seja a ANVISA – Agência Nacional de Vigilância Sanitária o órgão competente para a observância do cumprimento da ordem legal nesses casos19. Num universo completamente alheio a essas circunstâncias, o Direito se restringe a regular esses procedimentos conforme o primeiro dos princípios gerais da Resolução 2013/2013 do Conselho Federal de Medicina, o qual preconiza que as técnicas de reprodução assistida têm o papel de auxiliar na resolução dos problemas de reprodução humana, facilitando o processo de procriação quando outras terapêuticas tenham se revelado ineficazes ou consideradas inapropriadas. REFERÊNCIAS ABDELMASSIH, Roger. Tudo por um bebê. Rio de Janeiro: Globo, 1999. BEAUVOIR, Simone de. O Segundo Sexo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2009. BRASIL. Portaria 426/GM de 22 de março de 2005. Disponível em: . Acesso em 22 set., 2013. _____. TJSP, Apelação Cível nº 994.09.234287-2, Relator: Ribeiro da Silva. Julgado em: 05 maio, 2010. Disponível em: . Acesso em 07 jan., 2013. BRAUNER, Maria Cláudia Crespo. Direito, Sexualidade e Reprodução Humana: conquistas médi15  SUPER INTERESSANTE, 2012, p.44. 16  SANCHES, Mariana. CPI da Reprodução Assistida é criada em São Paulo. Disponível em: . Acesso em: 19 set., 2012. 17  O jogador de futebol, após o casamento com a esposa Assíria, queria ter filhos, mas havia se submetido a cirurgia de vasectomia há 14 anos e a tentativa de reversão foi frustrada. O autor do livro, após procedimento de inseminação artificial, conseguiu que o casal tivesse filhos gêmeos. 18 FERTILIZAÇÃO entra na rota do turismo brasileiro. Disponível em:. Acesso em: 17 set. 2012. 19  PAGGI, Matheus. Fiscalização de clínicas de reprodução será intensificada. Disponível em: . Acesso em: 19 set., 2012.

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cas e o debate bioético. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. COSTA, Camilla; GARATTONI, Bruno. Como fazer super bebês. SUPER INTERESSANTE, fevereiro de 2012, ed. 301, tiragem 416.153 exemplares. FERTILIZAÇÃO entra na rota do turismo brasileiro. Disponível em:. Acesso em 17 set., 2012. KANT, Immanuel. A metafísica dos costumes. São Paulo: Edipro, 2008. LÉVI-STRAUSS, Claude. Tristes Trópicos. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. LÔBO, Paulo, Direito Civil: Famílias. São Paulo: Saraiva, 2011. _____. Danos morais e direitos da personalidade. Jus Navigandi. Disponível em: . Acesso em 22 set., 2013. MALINOWSKI, Bronislaw. Sexo & Repressão na sociedade selvagem. Petrópolis: Vozes, 1973. MORAES, Maria Celina Bodin de. Na medida da pessoa humana: estudos de direito civil-constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2010. PAGGI, Matheus. Fiscalização de clínicas de reprodução será intensificada.Disponível em:. Acesso em 19 set., 2012 PATRIOTA, Tânia. Relatório da Conferência Internacional sobre população e desenvolvimento – Plataforma de Cairo. Disponível em:. Acesso em 10 jan., 2014. PERLINGIERI, Pietro. O direito civil na legalidade constitucional. Rio de janeiro: Renovar, 2008. PIOVESAN, Flávia. Direitos Reprodutivos como Direitos Humanos. Disponível em: . Acesso em 10 jan., 2014. SANCHES, Mariana. CPI da Reprodução Assistida é criada em São Paulo. Disponível em: . Acesso em: 19 set., 2012. SPAR, Debora, L. O Negócio de Bebés: Como o dinheiro, a ciência e a política comandam o comércio da concepção. Coimbra: Almedina, 2007. VENTURA, Miriam. Direitos reprodutivos no Brasil. São Paulo: Câmara Brasileira do Livro, 2004. VIOTTI, Maria Luiza Ribeiro. Declaração e Plataforma de Ação da IV Conferência Mundial Sobre a Mulher. Disponível em: . Acesso em: 07 set., 2012.

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A RESPONSABILIDADE PENAL DECORRENTE DA EPISIOTOMIA COMO VIOLAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS

Natália Barroca1

1. INTRODUÇÃO O presente trabalho tem por objetivo o estudo sob o prisma jurídico das consequências oriundas do procedimento de episiotomia, tanto sob o enfoque do profissional médico, como sob o da paciente. Considerado, inicialmente, na literatura médica como um procedimento excepcional, a episiotomia ganhou adeptos e passou a ser utilizada de forma rotineira e com pouca (ou nenhuma) consciência da paciente sobre a realização de tal ato cirúrgico. Este processo evolutivo vem causando danos às pacientes indiscriminadamente e sem responsabilização do profissional. O tema episiotomia ainda é escasso, o que temos é uma visão tecnicista dos profissionais da área de médica que se preocupam com a doença, ao invés da saúde. Neste sentido, entendem Paulo Alexandre e Rosângela da Silva2 que “é mais ‘mais fácil’ advogar pela utilização da episiotomia, que tem intervir para ‘auxiliar’ o períneo da mulher, do que defender a prática de exercícios no sentido de prevenir a ocorrência de lacerações perineais e necessidade do emprego da mesma”. Visamos, aqui, explicitar a reverberação da episiotomia realizada sem o consentimento livre e esclarecido da paciente, como estas questões caracterizam a violação ao direito humano à saúde, à integridade física da parturiente e quais são as possíveis soluções ao tema.

1 Mestranda em Direitos Humanos pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Especializada em Direito Penal e Processual Penal. Professora titular em disciplinas de Direito da Faculdade Metropolitana do Grande Recife e pelo Instituto de Ensino Superior de Olinda (IESO). Coordenadora do Núcleo de Direito Penal da Escola da Superior de Advocacia da Ordem dos Advogados do Brasil, Seccional Pernambuco. Colunista semanal em Direito à Saúde na rádio JC News 90,3FM. Site: www.nataliabarroca.com.br E-mail: [email protected] 2  SANTOS, Rosangela da Silva; SÃO BENTO, Paulo Alexandre de Souza. Realização da episiotomia nos dias atuais à luz da produção científica: uma revisão. Disponível em: Acesso em: 13 mai. 2010. p.558.

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2 BASES LITERÁRIAS MÉDICAS DO ESTUDO DA EPISIOTOMIA 2.1. A origem do procedimento: (des)necessidade e (des)aconselhamento do meio facilitador da expulsão do nascituro e redutor da morbidade e mortalidade materna e fetal Originária na Irlanda, a episiotomia foi introduzida na literatura médica em 1742 por Felding Ould, que defendia que o procedimento deveria ser utilizado, como meio auxiliar, somente em partos difíceis e assim foi considerada e até o século XX. O termo “episiotomia” foi originariamente sugerido por Carl Braun, em 1857. Apenas no início do século XX a episiotomia foi tratada como procedimento de rotina após a publicação do artigo de Pomeroy, em 1918, intitulado “Deveríamos cortar e reparar o períneo de todas as primíparas?” e, reforçando a defesa deste autor, Joseph DeLee defendeu o parto como processo patológico, sugerindo o uso de fórceps profilático, necessitando – para tanto – a episiotomia média-lateral precoce. Conforme a defesa de DeLee, a realização da episiotomia tem como fim salvar a gestante do esforço do parto e do longo período expulsivo, além de preservar a integridade física da musculatura pélvica e da entrada vulvar, evitar pressões no cérebro do bebê causadas pelo assoalho pélvico, prevenir prolapso uterino e restabelecer as condições virginais, evitando, assim, possíveis rupturas. Contudo, não houve embasamento em pesquisa científica por meio de evidências para que DeLee defendesse sua tese. Foi na década de 1980 que começaram a surgir ensaios clínicos casuais e controlados acerca do uso rotineiro da episiotomia. Com as evidências encontradas, constatou-se o inverso da defesa de tese de DeLee e o desenvolvimento de vários estudos nessa mesma linha (TOMASSO et al, 2002, p. 115-121). 2.2. Definição médica do procedimento A episiotomia, etimologicamente, significa o corte do pube. É considerada, atualmente, como sendo um “alargamento do períneo, realizada por incisão cirúrgica durante o último período do trabalho de parto, com tesoura ou lâmina de bisturi, requerendo sua sutura para correção” (CARVALHO; SOUZA; MORAES FILHO, 2010, p. 265-270). Por sutura, neste caso, entenda-se a episiorrafia. O procedimento admite três execuções: lateral, médio-lateral e mediana (também conhecida como perineotomia). A lateral praticamente não tem sido usada mais em razão da vasta vascularização desta região e da probabilidade de lesão dos feixes internos da musculatura elevatória do ânus. Mais comumente utilizada, a episiotomia médio-lateral tem como área de abrangência a pela, a mucosa vaginal, a aponeurose superficial do períneo, as fibras dos músculos bulbocavernoso e as do transverso superficial do períneo, além das fibras internas elevadas do ânus, por vezes. No procedimento de episiotomia mediana tem-se a vantagem da menor perda sanguínea e a fácil reparação, sendo considerada menos invasiva e mais respeitosa à integridade anatômica do assoalho muscular. Também se constata que causa um menor desconforto doloroso e raramente ocasiona dispareunia (OLIVEIRA; MILIQUINI, 2005, p. 289). 2.3. Indicações e critérios Um estudo, em Portugal, constatou que: nos últimos vinte anos, múltiplos trabalhos tem tentado definir melhor as indicações e seqüelas associadas à episiotomia; a maioria conclui não haver suporte para acreditar que a sua prática generalizada diminua, por exemplo, o risco de lesão grave do períneo, melhore a sua cicatrização, previna a lesão fetal ou reduza o risco de incontinência urinária (BORGES; SERRANO; PEREIRA, 2009, p. 448).

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Indica-se a episiotomia “quando a cabeça fetal está suficientemente baixa, a ponto de distender o períneo, porém, antes de ocorrer uma distensão exagerada”, entretanto, “não se pode ser realizada cedo demais, pois, deve-se prevenir um sangramento excessivo”(BORGES; SERRANO; PEREIRA, 2009, p. 448). Evitar que a mulher permaneça deitada diminui a duração do trabalho de parto e decresce o risco de sofrimento fetal em razão de aumentar a intensidade e a eficácia das contrações. O desrespeito deste simples procedimento ocasiona em um aumento da taxa de episiotomia, a justificativa decorre do fato de que “na posição dorsal horizontal, há pressão da veia cava inferior, que diminui o fluxo sanguíneo de oxigênio para o feto”(BORGES; SERRANO; PEREIRA, 2009, p. 448). Ao contrário do que deveria ser considerado, uma exceção, o procedimento de episiotomia se tornou rotina:

Praticada em cerca de 80% dos partos, quando o ideal seria em 20%, a incisão está na mira das autoridades de saúde desde que a Medicina Baseada em Evidências provou que, na maioria dos casos, não protege nem a mãe nem o bebê. Ao contrário, seria responsável por um número maior de infecções pós-operatórias, hemorragias e até rebaixamento da bexiga. Esse último seria um dos fatores que levam à incontinência urinária na maturidade e ocorre porque o obstetra dificilmente consegue recompor a região pélvica como antes (STRINGUETO, 2011, p. 1).

A episiotomia é considerada como um procedimento comum na área obstétrica, superada somente pelo corte e pinçamento do cordão umbilical, justificando-se no intuito de evitar traumas perineais, prevenção da morbimortalidade infantil, problemas ginecológicos (retocele, cistocele, relaxamento da musculatura pélvica, afrouxamento pélvico, danos de prolapso e de incontinência urinária)(STRINGUETO, 2011, p. 1). O uso restrito do procedimento revela um risco de menor proporção no tocante às morbidades clinicamente relevantes, tais como trauma perineal e complicações de cicatrizações. Além do mais, a seletividade permite – ainda – um fator vantajoso também ao setor público, mediante a racionalização de gastos, aproximadamente, US$ 15 a 30 milhões (apenas na esfera brasileira), conforme estimativa de estudos da área. 3. RESPONSABILIDADE PENAL DO PROFISSIONAL MÉDICO E O DIREITO À INTEGRIDADE CORPORAL DA PARTURIENTE O exercício da medicina não decorre de poderes divinos, é ciência. Já dizia William Osler “medicine is a science of uncertainty and an art of probability” (tradução nossa: “a medicina é uma ciência da incerteza e uma arte de probabilidade”). A prática médica é tipificada em razão de falha na prestação do serviço, respondendo por dolo ou por culpa. A imputação da responsabilização médica requer a caracterização da pessoalidade do profissional, além da comprovação do dano ocorrido – por ação ou omissão – negligentemente, imprudentemente ou imperitamente, tendo em vista que o Código de Defesa do Consumidor estabelece que a responsabilidade médica é subjetiva, fundada na culpa que deverá ser comprovada pelo(a) autor(a) da demanda (art. 14, §4º). É princípio fundamental, constituído no inciso XIX, do Código de Ética Médica, em seu Capítulo I, que “o médico se responsabilizará, em caráter pessoal e nunca presumido, pelos seus atos profissionais, resultantes de relação particular de confiança e executados com diligência, competência e prudência”. O referido diploma normativo também prevê que é vedado ao médico “causar dano ao paciente, por ação ou omissão, caracterizável como imperícia, imprudência ou negligência” (art.1º, do Capítulo III) e, ainda, determina que “a responsabilidade médica é sempre pessoal e não pode ser presumida” (parágrafo único do citado art. 1º). Mesmo que a vontade dolosa nestes casos de lesão corporal decorrente de episiotomia seja de difícil constatação uma vez que, na grandiosa maioria dos casos, a comunidade médica não apresenta qualquer justificativa para o animus laedendi na prática do procedimento obstétrico em estudo. 66

O profissional médico tem o dever jurídico de responder pelos atos que impliquem em erros em técnicas ou procedimentos ligados diretamente à saúde e integridade física da paciente. A lesão corporal culposa tem como causa de aumento de pena o dano que resulta em inobservância de regra técnica profissional. Neste sentido, observamos que o grau de reprovabilidade do ato, para a fixação da pena, leva em consideração a maior ou menor gravidade do descuido havido, bem como, a maior ou menor previsibilidade da ocorrência do evento lesivo (MARTINS COSTA in FREITAS, 2011, p. 656). Embora não exista um estudo estatístico acerca do litígio judicial brasileiro referente à responsabilização médica, percebe-se o aumento das demandas por negligência e imperícia processadas pelo Conselho Federal de Medicina; em uma década, este número aumentou sete vezes (MARTINS-COSTA in FREITAS, 2011, p. 669). A episiotomia é ato cirúrgico e assim sendo, é ato médico. Importante salientar que estamos analisando, tão somente, os casos decorrentes de erros médicos. São estes que repercutem na seara jurídico-penal, ora estudada. Em termos de resultados adversos, nem tudo é erro médico, existem acidente imprevisível e mal incontrolável. O acidente imprevisível é o infeliz fato, que no dizer de Genival Veloso constitui “o resultado lesivo é oriundo de caso fortuito ou força maior, durante o ato médico ou em face dele, porém incapaz de ser previsto e evitado, não só pelo autor, mas por outro qualquer, em seu lugar” (FRANÇA, 2010, p. 63). Por mal incontrolável, aduz o citado autor que é aquele proveniente de uma situação incontida e de curso inexorável, cuja consequência é decorrente de sua própria natureza e evolução, em que as condições atuais da ciência e a capacidade profissional ainda não oferecem solução(FRANÇA, 2010, p. 63).

Na caracterização da responsabilidade da culpa médica, o profissional descumpre com seus deveres, como o de informação, de cuidado, de assistência, de vigilância, de bom atendimento, entre outros. Além de violar um dever de conduta, cujo resultado poderia ou deveria conhecer e evitar. No ramo obstétrico, em especial nos casos de procedimento de episiotomia, convém-nos o estudo da responsabilidade penal derivada dos delitos de lesões corporais em que a integridade física e/ou a saúde da parturiente é/são ofendido(s). A classificação da gravidade em simples, grave ou gravíssima não é levada em consideração já que estamos tratando da modalidade culposa. Não se excluirá do ato médico obstétrico resultante em lesão corporal, o ressarcimento financeiro em razão do dano causado a ser pleiteado no âmbito civil. Também não se excluirá a responsabilização ética, com fulcro administrativo e natureza moral. Resvalando a esfera processual penal, o exame de corpo de delito, direto ou indireto, será indispensável ao caso, em atenção ao art. 158, do Código de Ritos Penais. A ausência do exame acarretará em nulidade insanável do processo (art. 564, III, b, do CPP). A episiotomia desnecessária desrespeita os direitos humanos na área de saúde e constitui uma violência de gênero. A paciente tem seus direitos mitigados, é afastada da tomada decisória quanto à realização de tal procedimento, perdendo sua autonomia e ganhando mutilação genital. Não só o direito à integridade física da parturiente deve ser observado, a humanização e integralidade na assistência à saúde também. A dignidade humana da mulher foi posta de lado aos que defendem o uso do procedimento rotineiramente. Aliena-se o profissional e incute-se nele a ideia da maternidade como linha de produção, despersonalizando a mulher (objetivando a perspectiva final do bem-estar do feto) e utilizando excessivas intervenções com o intuito de acelerar o trabalho de parto, práticas condenáveis pela Organização Mundial de Saúde (DIAS; DESLANDES in DESLANDES, 2006, p. 357-359). Em geral, o médico não está isento de cometer erros, assim como qualquer outro profissional. Contudo, recomenda-se que divida sua responsabilidade decisória acerca dos procedimentos a serem realizados com seus pacientes, informando-os quanto às formas de tratamentos e os prováveis riscos e resultados de cada um. A responsabilidade criminal do médico ainda representa uma pequena quantidade diante do 67

montante de ações judiciais sobre responsabilidade médica. 4. A NECESSIDADE DO PRÉVIO CONSENTIMENTO LIVRE E INFORMADO PARA O PROCEDIMENTO DE EPISIOTOMIA O médico, como qualquer outro profissional, deve pautar sua conduta profissional nos estreitos laços da ética, da moral e da lei. É necessário lembrar que a classe médica e de saúde ainda entendem, em sua maioria, que a episiotomia é um dos excepcionais entendimentos realizado sem qualquer consentimento prévio da paciente. O consentimento, além de respeitar a vontade da paciente, exime a responsabilidade do profissional de saúde. No mais das vezes, a episiotomia ocasiona traumas estéticos que reclamam cirurgias reparadoras, para além de acarretar incontinência urinária e fecal, instalar quadro infeccioso e comprometimentos de cicatrizes. Indubitavelmente, ela tem trazido danos de monta e, pior do que isto, tem encontrado resistência na mitigação do uso, sobretudo na latina-américa. Conforme a literatura médica, “se as pacientes forem completamente informadas sobre os benefícios e riscos, é improvável que consintam em realizar a episiotomia de forma rotineira” (DIAS; DESLANDES in DESLANDES, 2006, p. 357-359). E vamos além nas observações, “uma pesquisa colombiana mostrou, a partir revisões sistemáticas e estudos aleatórios, que a prática rotineira da episiotomia não encontra suporte científico. Ela não previne a ocorrência de lacerações perineais, e pior, favorece a aparição de lesões de 3º e 4º graus” (DIAS; DESLANDES in DESLANDES, 2006, p. 357-359). Atrelado ao consentimento informado e à escolha esclarecida, temos o respeito ao princípio bioético que traduz o direito à autonomia da paciente. Trata-se, concomitantemente, de um dever do médico e de um direito da paciente. Por ser um procedimento interventivo com sérios riscos à parturiente, o profissional médico responde na proporção do seu silêncio acerca das complicações de tal operatório. É fato que o descumprimento do dever de informação médica deve ser avaliado casuisticamente, em razão de urgência de atendimento e das condições de chegada da paciente ao nosocômio. A conduta médica deve ser pautada nos princípios basilares essenciais da relação médico-paciente, observando – além do princípio da autonomia e do princípio da justiça – os princípios essenciais, disciplinados no Capítulo Inaugural do Código de Ética Médica (Resolução nº 1.931/2009) tal como o da beneficência: “o médico guardará absoluto respeito pelo ser humano e atuará sempre em seu benefício”; e o da não maleficência: “Jamais utilizará seus conhecimentos para causar sofrimento físico ou moral, para o extermínio do ser humano ou para permitir e acobertar tentativa contra sua dignidade e integridade” (ambos constante no inciso VI, do Capítulo I, do CEM). O princípio da autonomia norteia o respeito à liberdade de escolha do paciente e está atrelado ao consentimento livre e informado do paciente. Aduz Maluf (2010, p. 11) que a autonomia “seria a capacidade de atuar com conhecimento de causa e sem qualquer coação ou influência externa”. Goldim e Protas (2008, p. 813) estabelece que “a autonomia pressupõe o respeito às opiniões e escolhas individuais, a menos que elas sejam gravemente prejudiciais para o próprio indivíduo ou para outras pessoas” e esclarecem ainda que pode ela “estar reduzida devido ao estágio do ciclo no qual o indivíduo se encontra, por perda parcial ou total dessa capacidade, em decorrência de doenças orgânicas ou mentais, ou por circunstâncias sociais que restrinjam a sua liberdade”. Citando os ensinamentos de Locke e Kant, aduzem Dantas e Coltri (2010, p. 82) que o princípio da autonomia tem seus principais fundamentos na história do direito e da filosofia, onde John Locke “pugnava pelo direito à proteção contra intervenções médicas não consentidas”, enquanto que Immanuel Kant lecionava como requisito fundamental a liberdade de escolha. Para a caracterização do conceito de autonomia, segundo Beauchamp e Childress, mister se faz a orientação seguida por todas as teorias da autonomia, que consideram essenciais às condições de: “(1) liberdade (independência de influências controladoras)” e “(2) qualidade do agente (capacidade de agir intencionalmente)”(BEAUCHAMP; CHILDRESS, 2011, p.138). No dizer de Dworkin (2009, p. 319), a autonomia “estimula e protege a capacidade geral das 68

pessoas de conduzir suas vidas de acordo com uma percepção individual de seu próprio caráter, uma percepção do que é importante para elas”. A importância do respeito à autonomia do indivíduo deve ser observado como princípio que traduz a autoridade controladora do próprio poder decisório pessoal. Funda-se na dignidade da pessoa e baseia-se na autodeterminação do paciente em relação à sua vida e à sua saúde, tendo o poder de buscar e escolher o tratamento que melhor lhe convier, sendo necessárias para a escolha, as devidas informações prestadas pelo profissional da área médica para que o consentimento seja exercido de forma plena (CEZAR, 2012, p. 139). A competência acerca da percepção sobre a impossibilidade do paciente em tomar decisão é do médico, sendo de igual forma responsável em “tomar iniciativas quando não exista definição quanto a quem seja o seu representante, ou mesmo quando haja conflito entre a vontade do paciente incapaz e a de seu representante” (CEZAR, 2012, p. 140). Neste sentido, aduz o artigo 24 do Código de Ética Médica – Resolução CFM nº 1.931/2009: “Deixar de garantir ao paciente o exercício do direito de decidir livremente sobre sua pessoa ou seu bem-estar, bem como exercer sua autoridade para limitá-lo”. Maluf (2010, p. 316) citando Venosa, conceitua o consentimento como sendo o direito do paciente de participar de toda e qualquer decisão sobre tratamento que possa afetar sua integridade psicofísica, devendo ser alertado pelo médico dos riscos, benefícios das alternativas envolvidas e possibilidades de cura, sendo manifestação do reconhecimento de que o ser humano é capaz de escolher o melhor para si sob o prisma da igualdade de direitos e oportunidades.

Cumpri-nos esclarecer que o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) possui requisitos de admissibilidade e deve-se observar – quando de sua elaboração – as exigências contidas no art. 104 do Código Civil pátrio (“I – agente seja capaz; II – objeto lícito, possível, determinado ou determinável; III – forma prescrita ou não defesa em lei”), para validar o ato jurídico, além de outras específicas conforme seja o caso. A permissividade do exercício regular de direito, excludente da ilicitude prevista no art. 23, III do Código Penal, apenas deve ser levada em consideração se houver um consentimento válido da paciente ou de seu representante legal para que seja possível a realização da episiotomia, bem como, da episiorrafia. Não se trata apenas de informar acerca da realização do procedimento, a paciente deve compreendê-lo, bem como, as suas consequências para, então, exercer a faculdade de consenti-lo ou optar por outra intervenção/alternativa (como, por exemplo, a realização de cesariana). Apenas o consentimento do ofendido, obtido de forma válida, exclui a ilicitude do fato, afastando a antijuridicidade da conduta lesiva corporal à parturiente. Podemos até imaginar que a obrigatoriedade do TCLE para a realização do procedimento de episiotomia pode causar uma burocratização, ou ainda, nos questionaremos em que momento ele ocorrerá. Mas temos que destacar que a maternidade é um momento prazeroso tanto à mulher, como ao casal e à família em geral, a chegada do novo ser de acontecer de forma segura e sem repercussões negativas momentâneas ou futuras. A informação acerca da possibilidade de realização da episiotomia pode acontecer tanto durante o pré-natal, como durante o parto. O cotidiano moldará as situações conforme elas ocorram, permitindo que, em algum momento, o profissional de saúde possa elaborar o TCLE para anexação ao prontuário da paciente. 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS O cuidar do ser humano exprime a atenção aos seus valores e a sua dignidade, como ser totalitário, biopsicossocial e espiritual, harmonizando a saúde humana e o desequilíbrio provocado pela doença. O contato direto com o paciente reflete os anseios por ele, identifica-o, estabelece uma relação empática traduzida na ética da alteridade. A saúde deve ser entendida além do prisma epistemológico dos direitos humanos, não apenas em sua forma de tratamento em razão do acometimento de doença, mas também como cuidado integral, sendo um direito de todos. Isto quer dizer que o cuidar exige a atenção à dignidade 69

humana em sua completude da saúde, priorizando a prevenção, focada no ser humano; e não na doença em si, sem percepção do ser que está acometido da enfermidade. Na relação médico-paciente, o diálogo é imprescindível para a boa tomada de decisões. Mais do que isto, é um direito da paciente obter informações sobre seu estado, prognóstico, diagnósticos, possíveis tratamentos indicados ao caso, suas consequências e prováveis riscos e complicações, etc. Tanto a episiotomia desnecessária, quanto a cesárea forçada desrespeitam os direitos humanos na área de saúde e constituem uma violência de gênero. A paciente tem seus direitos mitigados, é afastada da tomada decisória quanto à realização de tais procedimentos, perdendo sua autonomia e ganhando mutilação genital/cicatriz cesariana, além de trauma psicológico, que a acompanhará por longas datas. Não só o direito à integridade física da parturiente deve ser observado, a humanização e integralidade na assistência à saúde também. A dignidade humana da mulher é posta de lado aos que defendem o uso da episiotomia ou do parto cesáreo, rotineiramente. Aliena-se o profissional e incute-se nele a ideia da maternidade como linha de produção, despersonalizando a mulher (objetivando a perspectiva final do bem-estar do feto) e utilizando excessivas intervenções com o intuito de acelerar o trabalho de parto, práticas condenáveis pela Organização Mundial de Saúde. A forma de nascimento, como direito assegurado à gestante, está prevista – até mesmo – na Convenção Americana de Direitos Humanos, na qual o Brasil é signatário (artigo 1º - Obrigação de respeitar os direitos. 1. Os Estados-partes nesta Convenção comprometem-se a respeitar os direitos e liberdades nela reconhecidos e a garantir seu livre e pleno exercício a toda pessoa que esteja sujeita à sua jurisdição, sem discriminação alguma, por motivo de raça, cor, sexo, idioma, religião, opiniões políticas ou de qualquer outra natureza, origem nacional ou social, posição econômica, nascimento ou qualquer outra condição social). O agir beneficente do médico, sem o norteamento livre, esclarecido e consentido da paciente para a intervenção médica de um parto cesáreo ou um parto normal com episiotomia, apenas deve desconstituir um ilícito se estiver ele diante de um iminente perigo de vida. A mudança do atual quadro para prevenção de episiotomias desnecessárias requer transformações na assistência à saúde da parturiente. O compartilhamento da decisão de realização do procedimento por parte do médico com a paciente é a recomendação fundamental nesta temática. Treinamentos e atualizações sobre as diretrizes baseadas em evidências na obstetrícia tanto por parte dos médicos, quanto por parte das instituições hospitalares, devem ser realizadas objetivando à humanização dos cuidados prestados à mulher durante o período gestacional, parto e pós-parto. Salientando que configura negligência (modalidade de culpa) a não atualização ou atualização deficiente do profissional de saúde. A integridade, tanto física como emocional, da mulher deve ser preservada, evitando uma banalização da dor. Cabem, ainda, estratégias educativas a fim de informar a mulher quanto aos seus direitos como paciente-parturiente, encorajando-as à escolha de práticas não invasivas e alternativas ao procedimento (como práticas de exercícios e deambulação), visando à redução do uso da episiotomia. REFERÊNCIAS BEAUCHAMP, Tom L.; CHILDRESS, James F. Princípios de Ética Médica. Trad. Luciana Pudenzi. São Paulo: Edições Loyola, 2011. BORGES, Bárbara Bettencourt; SERRANO, Fátima; PEREIRA, Fernanda. Episiotomia: uso generalizado versus selectivo. Disponível em: . Acesso em: 29 mai. 2009. CARVALHO, Cynthia Coelho Medeiros de Carvalho; SOUZA, Alex Sandro Rolland; MORAES FILHO, Olímpio Barbosa. Episiotomia seletiva: avanços baseados em evidências. FEMINA. Maio 2010. vol 38. nº 5. p. 265-270. 70

CEZAR, Denise Oliveira. Pesquisa com medicamentos. Aspectos bioéticos. São Paulo: Saraiva, 2012. DANTAS, Eduardo; COLTRI, Marcos. Comentários ao Código de Ética Médica. Resolução CFM nº 1.931, de 17 de setembro de 2009. Rio de Janeiro: Editora GZ, 2010. DIAS, Marcos Augusto Bastos; DESLANDES, Suely Ferreira. Humanização da assistência ao parto no serviço público: reflexão sobre desafios profissionais nos caminhos de sua implementação. In: DESLANDES, Suely Ferreira (org.). Humanização dos cuidados em saúde: conceitos, dilemas e práticas. Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 2006. p.351-369. DWORKIN, Ronald. Domínio da vida: aborto, eutanásia e liberdades individuais. Trad.: Jefferson Luiz Camargo. 2ª ed. São Paulo: Editora WMF Martins de Fontes, 2009. FRANÇA, Genival Veloso. Comentários ao Código de Ética Médica. 6ªed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2010. GOLDIM, José Roberto; PROTAS, Júlia Schneider. Psicoterapias e bioética. In: Psicoterapias: abordagens atuais. 3ª ed. Aristides Volpato Cordioli (org.) Porto Alegre: Artmed, 2008. p.809-829. MALUF, Adriana Caldas do Rego Freitas Dabus. Curso de Bioética e Biodireito. São Paulo: Atlas, 2010. MARTINS-COSTA, Judith. Entendendo problemas médico-jurídicos em ginecologia e obstetrícia. In: FREITAS, Fernando. Rotinas em obstetrícia. Porto Alegre: Artmed, 2011. p.653-670. OLIVEIRA, Sonia Maria Junqueira V. de; MILIQUINI, Elaine Cristina. Freqüência e critérios para indicar a episiotomia. Revista da Escola de Enfermagem da USP. vol.39 no.3 São Paulo. Set. 2005. p.288-295. SANTOS, Rosangela da Silva; SÃO BENTO, Paulo Alexandre de Souza. Realização da episiotomia nos dias atuais à luz da produção científica: uma revisão. Disponível em: Acesso em: 13 mai. 2010. STRINGUETO, Kátia. Episiotomia. Disponível em: Acesso em: 27 jan. 2011. TOMASSO G, ALTHABE F, CAFFERATA M, ALEMÁN A, SOSA C, BELIZÁN J. Devemos seguir haciendo la episiotomia em forma rutinaria? Revista Obstetrícia e Ginecologia. Venezuela, 2002 jun; 62(2): p.115-121.

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CONTRIBUIÇÕES DA NEUROCIÊNCIA E DA BIOLOGIA À FILOSOFIA DO DIREITO

Hugo de Brito Machado Segundo1

1. INTRODUÇÃO Durante muito tempo ouviu-se a afirmação de que o conhecimento científico deve ser meramente descritivo de uma realidade objetiva. Essa ideia, aliás, talvez esteja ainda hoje presente no âmbito do senso comum, no imaginário popular a respeito da figura do cientista. Mesmo sem discutir, ainda, essa visão da ciência e da atividade do pesquisador, o que importa é que dela decorre, no campo da ciência jurídica, a defesa da necessidade de afastamento do chamado “direito natural”, que teria todos os atributos capazes de impossibilitar uma análise científica, a saber: subjetividade, caráter emocional, impossibilidade de demonstração empírica etc. Ética, moral e direito natural seriam assuntos para uma discussão filosófica, talvez, mas nunca elementos a serem considerados em uma abordagem científica do direito. Diz-se talvez porque, como se sabe, mesmo a Filosofia foi ameaçada pelo paradigma positivista, que, no âmbito do Direito, pretendeu substituí-la pela Teoria Geral do Direito, dotada de igual pretensão universalista, mas supostamente alheia a questões metafísicas (RADBRUCH, 1997, p. 73). O presente trabalho tem a finalidade de retornar a esse antigo problema. Não tanto questionando a apontada visão do conhecimento científico, o que se faz brevemente, mas verificando como o atual estado da arte da neurociência e da biologia evolutiva põe em xeque a visão da “acientificidade” do direito natural, mesmo se mantido o paradigma epistemológico positivista. Além de relatar como algumas descobertas em tais áreas permitem uma consideração científica de sentimentos morais e de seus reflexos e tratamentos no âmbito das sociedades humanas, pretende-se, ao final, examinar criticamente como essas constatações podem contribuir para uma adequada compreensão do fenômeno jurídico. Permitir-se-á, com isso, uma abordagem das contribuições da neurociência e da biologia à Filosofia do Direito, entrando-se, ainda que sumariamente, no debate 1  Mestre em Direito pela Universidade Federal do Ceará.Doutor em Direito Constitucional pela Universidade de Fortaleza.Membro do ICET – Instituto Cearense de Estudos Tributários.Professor de Processo Tributário (graduação) e de Epistemologia Jurídica (Pós-Graduação) na Faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará, de cujo Programa de Pós-Graduação (Mestrado/Doutorado) é Coordenador. Visiting Scholar da Wirtschaftsuniversität, Viena, Áustria.

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relativo a uma suposta superação da Filosofia pela Ciência, a qual seria tanto maior quanto mais esta última desvenda os segredos do cérebro humano. 2. ACIENTIFICIDADE DO DIREITO NATURAL NO PARADIGMA EPISTEMOLÓGICO POSITIVISTA Não é o propósito deste artigo proceder a longo apanhado histórico a respeito do positivismo e suas ramificações ou divisões no âmbito da ciência jurídica (veja-se, para tanto, BOBBIO, 1995). Talvez seja suficiente, aqui, saber que, à luz de uma perspectiva positivista de ciência, visto o conhecimento científico como necessariamente descritivo e objetivo, ele somente poderia se ocupar de objetos cujas características seriam lógica ou empiricamente verificáveis. O que estivesse fora desse quadrante seria considerado metafísico, emocional e subjetivo. Essa, como se sabe, é a principal razão pela qual a ciência do direito de cunho positivista recusa-se a examinar questões relacionadas à justiça ou ao chamado “direito natural”. Cabe ao cientista moderno aceitar “a realidade como ela é, procurando compreendê-la com base numa concepção puramente experimental” (BOBBIO, 1996, p. 135-136), razão pela qual se podem examinar normas, decisões judiciais, comportamentos, fatos sociais, mas não os valores a partir dos quais tais realidades poderiam ser julgadas. Importante pilar dessa visão de mundo reside na distinção entre juízos de fato e juízos de valor, e na impossibilidade destes serem extraídos daqueles, decorrentes da clássica alusão de David Hume à “falácia naturalista” (HUME, 2000, Livro 3, Parte 1, Seção 1, § 27, p. 509). Por meio dos juízos de fato, objetivos, se descreve a realidade, como é. Por meio dos juízos de valor, se julga a realidade, como boa ou ruim, a partir de um ideal de como ela deveria ser. O conhecimento científico seria composto dos primeiros, devendo evitar ou afastar, tanto quanto possível, os segundos, sendo certo que não é porque as coisas são de determinada maneira que se deve concluir, necessariamente, que elas devem ser dessa maneira (KANT, 1998, p. 137). Daí a necessidade de o cientista do direito descrever o direito posto, tal como é, sem se preocupar em como ele deveria ou poderia ser. Embora existam, é certo, divergências sobre o que se deve considerar como tal, se as normas, se as práticas dos juízes, ou o comportamento da sociedade em face dessas normas, de qualquer modo essas visões convergem em um ponto: são dados “postos”, passíveis de exame “objetivo”. Ao cientista interessaria a validade, não o valor de uma ordem jurídica. Não se está, convém esclarecer, defendendo como correta essa visão do direito natural ou das teorias jusnaturalistas. Sabe-se, por certo, que há autores que defendem formas contemporâneas de jusnaturalismo, as quais não se encaixam no aludido estereótipo. É o caso, por exemplo, de Dworkin (1982) e de John Finnis (2007). Em verdade, o que se almeja, neste tópico, é revisitar a visão caricata que têm do jusnaturalismo seus principais detratores positivistas, ainda que ela possa padecer ou decorrer da chamada “falácia do espantalho”, assim entendida aquela segundo a qual se constrói versão caricata da ideia que se pretende objetar, para facilitar a crítica. Pretendese, com isso, mostrar que mesmo ela pode merecer revisão, em face de alguns achados da biologia e da neurociência. 3. POSSÍVEIS CRÍTICAS A ESSE PARADIGMA A visão de ciência jurídica resenhada no item anterior suscita algumas críticas. Pode-se, aceitando a referida ideia de ciência, questionar a sua suficiência, defendendo a necessidade de a abordagem por ela propiciada ser complementada por outras aproximações do mesmo fenômeno, como a filosófica, por exemplo. A objeção mais profunda, porém, talvez seja a que atinge as próprias premissas epistemológicas do paradigma positivista. Realmente, sabe-se que o conhecimento científico não se desenvolve a partir de desinteressadas observações da realidade objetiva, feitas por um sujeito distinto e separado dela, que se limita a descrevê-la. Valores guiam o empreendimento científico já a partir da eleição e da identificação do objeto a ser estudado. Do contrário, ver-se-iam estudiosos dedicados à contagem dos grãos de areia existentes em determinada praia, ou do número de azulejos existentes no banheiro da Universidade na qual lecionam, da mesma forma como e em igual quantidade com que se veem pesquisadores tentando descobrir maneiras de interromper o desenvolvimento das células 73

de um tumor maligno, por exemplo, ou compreender as causas da violência urbana ou da pobreza. Em verdade, o conhecimento se desenvolve a partir de problemas, e do teste de soluções possíveis para esses problemas. E isso ocorre mesmo na mais primitiva forma de vida. A interação com o meio é inerente a qualquer sistema, e pressupõe a existência de informação. Por outras palavras, um sistema, para ser entendido como tal e interagir com o meio que o circunda, necessita de informações sobre si mesmo, sobre esse meio, e sobre como reagir diante dele. Para fugir do calor extremo, danoso à sua estrutura molecular e, por conseguinte, à sua subsistência, é preciso que o ser vivo conheça a temperatura do ambiente que o cerca e quão adequada ou inadequada ela é. O primeiro problema que se coloca para a formação do conhecimento, portanto, é a sobrevivência. É para resolvê-lo que, no processo de seleção natural dos seres vivos, surgem as mais diversas soluções, em um processo de tentativa e erro. Veja-se que se pode cogitar de conhecimento, usando-se a palavra em um sentido mais amplo, como se fez no parágrafo anterior, embora não se pressuponha, ainda, necessariamente, consciência. Uma bactéria, nesse sentido, “conhece” as formas de obter alimento, digeri-lo e a partir dele gerar energia, reproduzir-se etc., ainda que, enquanto ser unicelular, obviamente não possua consciência. Há, porém, informação, tanto armazenada em seu interior quanto obtida do meio externo a partir de suas interfaces com ele. Essa informação e a maneira de lidar com ela são armazenadas em seu código genético (AFTALIÓN, VILANOVA, RAFFO, 2004, p. 41-47), no qual o conhecimento referente à formação e ao funcionamento do sistema vai sendo registrado ao longo de milhares de gerações. Os seres dotados das melhores informações, assim entendidas aquelas mais adequadas à sobrevivência, subsistem e geram descendência, fazendo com que ao longo de milhões de anos enorme quantidade de informação (sobre como fabricar, manter e regenerar células, tecidos, órgãos, sistemas etc.) seja selecionada, aprimorada e armazenada no DNA de cada ser vivo. Poder-se-ia afirmar, em oposição, que não é desse conhecimento que se cogita quando se está a tratar de ciência. Essa objeção, contudo, não procede, pois o conhecimento humano não se desenvolve de forma tão diferente. De fato, entendido de forma mais estrita, como a relação estabelecida entre um sujeito que conhece e um objeto que é conhecido, em face da qual o sujeito constrói uma imagem desse objeto, ou como o produto – sempre inacabado – dessa relação, não se pode negar que ele se desenrola em termos análogos aos verificados no âmbito do processo seletivo, do qual, em última análise, é um produto (RIDLEY, 2010, p. 5). Realmente, o cérebro humano dispõe de uma compreensão do mundo que o cerca, a qual é composta de informações que lhe são trazidas por sentidos imperfeitos – ou apenas bons o suficiente para permitir a sobrevivência (NICOLELIS, 2011, p. 452) –, e interpretadas a partir de précompreensões surgidas a partir de experiências passadas do mesmo indivíduo ou de antepassados seus (POPPER, 2009, p. 108; NOZICK, 2001, p. 108; GAZZANIGA, 2011, p. 51). Essa compreensão é sempre imperfeita e, nessa condição, provisória, estando sujeita a constante processo de confirmação ou retificação. O ser humano tem consciência de que seus sentidos eventualmente o enganam a respeito da realidade que o cerca, mas dispõe apenas deles para acessar essa realidade, pelo que sujeita constantemente a testes as impressões que obtém dela (RESCHER, 2003, p. 83). Com isso, a neurociência tem confirmado, de algum modo, afirmações feitas por teóricos da hermenêutica muito tempo antes, como Husserl e Gadamer, por exemplo. Com o aparecimento, ao longo do processo evolutivo, de neurônios espelho, que permitem ao indivíduo que os possui colocar-se no lugar do outro, vendo nesse outro alguém como ele e imaginando, nesse contexto, o que pode estar pensando ou sentindo, surgiram figuras como a empatia, os sentimentos morais, e, no que mais de perto interessa à formação do conhecimento humano, a linguagem (RAMACHANDRAN, 2011, p. 117). A partir daí, fez-se possível aplicar o mesmo processo de seleção natural às ideias. Em vez de desaparecer o indivíduo que teria em seu DNA registrada a forma inadequada de resolver um problema colocado à sobrevivência, este poderia observar – ou ouvir, ou ler - outro que teria descoberto uma forma mais adequada de resolvê-lo. Daí por que se disse, linhas atrás, que o conhecimento humano, embora diferente, é produto direto do processo seletivo, de algum modo refletindo-o. De uma forma ou de outra, isso mostra que primeiro se colocam problemas, em face dos quais surgem propostas de solução, calcadas em pré-compreensões do indivíduo em relação ao problema e às formas de resolvê-lo. Tais pré-compreensões podem decorrer de experiências havi74

das por antepassados e refletidas no respectivo DNA, formadoras de instintos em face dos quais se tem um registro prévio de como reagir diante de tais situações (GAZZANIGA, 2011, p. 51), ou de experiências passadas do mesmo indivíduo, mantidas em sua memória. Mas, sejam decorrentes de instintos, experiências passadas ou observação de experiências havidas por terceiros, essas propostas são tentadas, e selecionadas as melhores. Não existe solução definitiva, pois sempre pode surgir outra, mais adequada ou eficiente. Essa, como se sabe, é a base da epistemologia falibilista de Karl Popper (POPPER, 2001, p. 17), sendo a forma como se desenrola o processo de seleção natural e como acontece a própria cognição humana, em geral. Não há razão para se entender que o conhecimento científico se processe de modo radicalmente distinto, até porque, ainda que este tenha maior preocupação com a sistematicidade, ele não deixa de ser espécie do gênero cognição humana. Por outro lado, sabe-se que a realidade é mais complexa que a humana capacidade de compreendê-la, o que leva o cérebro a simplifica-la, eliminando ou desprezando partes dela consideradas irrelevantes para a finalidade para a qual se quer a compreensão. Assim, alguém que pretenda “apenas descrever” uma parcela da realidade deverá, partindo das razões que justificam essa “mera descrição”, escolher quais aspectos serão destacados, e quais serão ignorados. E mais: na determinação dos limites entre o objeto descrito e as demais parcelas da realidade, deverá escolher, novamente levando em conta os propósitos da descrição, quais aproximações e “arredondamentos” deverá fazer. Exemplificando, se alguém deseja “descrever” a distância entre Fortaleza e Recife, alguns metros, ou mesmo quilômetros, certamente serão desprezados, em uma referência aproximada, caso a descrição tenha por finalidade apenas calcular a quantidade de horas necessárias para se percorrer o trajeto de avião. Caso, porém, seja da altura de um indivíduo, para a aquisição de uma roupa, precisão maior será exigida, mas ainda assim centímetros ou mesmo milímetros poderão ser desprezados (DEEMTER, 2010, p. 81), milímetros esses todavia essenciais ao aluno que indaga qual o tipo de lapiseira do colega que lhe pede grafite emprestado, se 0.5 ou 0.7. Assim, ainda que se entenda que o empreendimento científico seria “descritivo” da realidade, tal como ela é, é preciso admitir quevalores guiam a eleição do que será descrito e a determinação dos aspectos a serem levados em conta na descrição. Essa descrição, por sua vez, consiste em uma “reconstrução” da realidade pelo sujeito que a estuda, feita com o propósito de confirmar, ou corrigir, construção anterior a respeito dessa mesma realidade, sabidamente imperfeita. Não se pode, portanto, categoricamente afastar a consideração de valores, mesmo que se pretenda uma ciência “descritiva”, até porque, aliás, a própria ideia de que os valores devem ser afastados do labor do estudioso é, ela própria, marcadamente orientada por valores, sendo, nessa condição, contraditória. De tudo isso, extraem-se, em síntese, as seguintes conclusões, que deitam por terra as premissas epistemológicas de uma visão positivista de ciência: (i) a realidade não é “meramente descrita” pelo sujeito que a estuda, mas reconstruída por ele, através de sentidos imperfeitos, que fornecem ao cérebro informações a serem interpretadas a partir de pré-compreensões instintivas ou conscientes; (ii) o estudioso escolhe qual parcela da realidade irá descrever, e para que ela será descrita, finalidade que o leva a desprezar alguns aspectos do objeto descrito quando da feitura da descrição; (iii) precisamente por ser o conhecimento formado por reconstruções imperfeitas da realidade, ele é provisório e essencialmente retificável. O mais notável, porém, é que mesmo para quem insistir em se manter no paradigma epistemológico positivista, eventualmente encontrando sólidas razões para afastar cada uma dessas objeções, o que não será discutido aqui (veja-se, a propósito, MACHADO SEGUNDO, 2014), será difícil manter a tese de que juízos de fato e juízos de valor são passíveis de separação estanque, e de que sentimentos morais são emocionais e subjetivos e, nessa condição, incompatíveis com uma análise científica meramente descritiva. A dificuldade, no caso, origina-se nas mais recentes descobertas da biologia e da neurociência, das quais se ocupa o próximo item deste trabalho. 4. BIOLOGIA, NEUROCIÊNCIA E SENTIMENTOS MORAIS A biologia contemporânea tem revelado, de forma contundente, que o processo de seleção natural não está relacionado, de forma necessária, a comportamentos egoístas. Isso, aliás, já era 75

afirmado por Darwin, mas, nas últimas décadas do Século XX, estudos com diversos primatas demonstraram, empiricamente, a presença, sobretudo em mamíferos superiores, de rudimentos de instituições políticas e de sentimentos morais (WAAL, 1996; 2013). Quando Richard Dawkins, por exemplo, faz alusão metafórica ao “gene egoísta”, em sua clássica obra de igual nome (DAWKINS, 1989), refere-se à ação de algo que compõe o DNA situado no interior das células, algo que não pode, por razões óbvias, ter “motivações” – egoístas ou não – para seus “atos”. Ação que pode, no entanto, levar à seleção de indivíduos dotados de aparatos neurológicos que permitam o surgimento de comportamentos genuinamente altruístas (WAAL, 1996, p. 117). De rigor, as relações estabelecidas entre os seres vivos, na luta pela sobrevivência, envolvem o que em Teoria dos Jogos se conhece por “jogo de soma não-zero”. Jogos de “soma zero” são aqueles nos quais se um participante ganha pontos, o outro os perde em igual quantidade, de modo a que a soma da pontuação de todos seja sempre zero. Já os jogos de soma não-zero envolvem a possibilidade de um dos participantes ganhar pontos sem que isso implique, por si só, prejuízo, desvantagem ou desfavor para os demais. É o caso da sobrevivência, pois não necessariamente para que um ser sobreviva, ou obtenha alimentos ou se reproduza será preciso que todos os demais seres vivos presentes no mesmo ambiente fracassem nessas mesmas tarefas. Daí o surgimento, natural nos jogos de soma não-zero, da figura da cooperação (AXELROD, 2010). Considerando que comportamentos cooperativos favorecem a sobrevivência dos grupos de indivíduos que os adotam, eles são naturalmente selecionados até mesmo entre seres desprovidos de consciência, como é o caso de insetos ou de bactérias (AXELROD, 2010, p. 19 e ss; GREENE, 2013, p. 57-58). Mas justamente porque esses comportamentos cooperativos viabilizam a sobrevivência dos grupos de indivíduos que os adotam, eles levaram à seleção natural de aparatos neurológicos e sensoriais que, entre outras funções, são capazes de incrementar essa cooperação, tornando-a mais eficiente e complexa. Essa é a base, por exemplo, não só para que os animais, em geral, tenham instintos de proteção em relação à prole e a parentes próximos (kin selection), os quais levam à preservação de indivíduos com carga genérica semelhante, mas para o próprio surgimento de um aparato neurológico – em mamíferos superiores como chimpanzés, bonobos, lobos e golfinhos – capaz de propiciar sentimentos morais que viabilizam a vida em comunidade (WAAL, 1996, p. 88). Parece claro, de fato, que a vida em grupo é menos difícil que aquela conduzida de forma isolada, e a conveniência de organizar-se em grupos será tanto maior quanto maior for a cooperação dos membros desse grupo. Por outro lado, como pode acontecer de alguém “de fora” inserir-se nesse grupo, ou mesmo de indivíduos que o integram não cooperarem da mesma forma que os demais, foram naturalmente selecionados, também, mecanismos destinados a que os indivíduos reconheçam aqueles que cooperam ou não cooperam e lembrem de interações anteriores mantidas com esses indivíduos e dos comportamentos por eles assumidos. Mas não basta reconhecer e lembrar, até porque, em grupos grandes, pode ocorrer de a pessoa “enganada” em uma relação nunca mais ter a oportunidade de interagir novamente com quem a enganou. Daí a necessidade de que tais comportamentos causem impressões, positivas ou negativas, em quem deles deve lembrar em interações futuras, mas também em terceiros que os testemunham, que os devem reprimir ou sancionar, se for o caso. Surgem, assim, figuras como a reputação e a confiança (PINKER, 1998; AXELROD, 2010, p. 14; WAAL, 1996, p. 113; GREENE, 2013, p. 112). Assim como um alimento nutritivo provoca o prazer, e um estragado ou venenoso pode provocar enjoo ou nojo, por obra do processo de seleção natural, comportamentos que positivamente viabilizam a coesão e a harmonia do grupo provocam sensações agradáveis, tanto quando são observados quanto quando praticados, levando a que sejam apreciados e incentivados. E os que conduzem ao resultado inverso produzem sentimentos negativos, que levam os demais a reprimi-los ou censurá-los. Daí dizer-se que os sentimentos morais têm origem na seleção natural, algo hoje relativamente pacífico entre biólogos (RUSE, 1986; HAUSER, 2006; WAAL, 2013; DAWKINS, 1989; 2006). Nessa ordem de ideias, autores como Joshua Greene (GREENE, 2013) partem de tais noções biológicas para revisitar conhecidas questões morais, como aquelas relacionadas ao trolley dilema, assim entendido o conhecido experimento mental, usado por estudiosos de filosofia moral (v.g., SANDEL, 2009), no qual um vagão desgovernado corre por trilhos nos quais trabalham cinco operários, mas cujo curso pode ser desviado para um caminho alternativo, no qual está tra76

balhando apenas um operário. Seria moralmente correto acionar um desvio e, assim, matar uma pessoa para salvar cinco? É bastante frequente a resposta positiva, nesse caso: sim, seria correto alterar o curso do vagão para salvar cinco pessoas, ainda que com isso se provoque a morte de uma. Seguem-se, então, modificações no experimento, como aquela na qual, em vez de um desvio, cogita-se de empurrar alguém corpulento sobre os trilhos, para morrer atropelado pelo vagão e interromper seu curso, salvando as cinco pessoas situadas ao final dos trilhos. Dessa vez, porém, a maior parte das pessoas às quais é narrado o experimento considera incorreta ação de empurrar e provocar a morte da pessoa corpulenta, ainda que assim se salvem cinco pessoas ao custo da vida de uma, exatamente como na primeira formulação do experimento. Há vasta literatura na qual se desenvolve discussão filosófica em torno desse problema, perquirindo-se em torno das distinções entre as duas situações e de seus reflexos no estudo de teorias utilitaristas, kantianas etc. Dawkins (2006, p. 214) e Hauser (2006, passim), por exemplo, veem na repulsa em empurrar o sujeito corpulento, ainda que para salvar cinco vidas, um reflexo do imperativo categórico kantiano, pois o problema estaria em usar o sujeito como coisa, equiparando-o a uma pedra; na situação em que o vagão é desviado, o sujeito que morre ao final da rota alternativa não é usado como meio, sendo a sua morte apenas um indesejado efeito colateral negativo. Aliás, caso o sujeito não estivesse ao final do trilho, o desvio poderia ser feito e o salvamento dos cinco trabalhadores aconteceria de igual forma. Joshua Greene (GREENE, 2013), porém, utiliza as já apontadas noções de biologia, aliadas a descobertas de neurociência e brain imaging,avaliando em tempo real o funcionamento do cérebro das pessoas submetidas ao citado experimento mental do trolley car, para tentar dar resposta menos especulativa e mais empiricamente fundamentada a essas questões, investigando por que em alguns casos a ação que leva à morte de uma pessoa para salvar cinco nos parece correta, e em outros não, sem que muitas vezes consigamos explicar as razões para isso. Ele discorda de que a explicação seja simplesmente o caráter inato de algo como o imperativo categórico kantiano, e para tanto procede a nova alteração no experimento. Suponha-se que a rota alternativa na qual está o trabalhador sozinho não seja “sem saída”, mas em verdade conduza o vagão novamente ao mesmo trilho principal onde ao final estão os outros cinco trabalhadores que devem ser salvos. Nesse caso, a ausência daquele que trabalha sozinho tornaria inócuo o desvio: o vagão retornaria ao trilho principal e mataria os cinco trabalhadores. Assim, com essa mudança, a presença do trabalhador sozinho, no desvio, passa a ser o obstáculo (tal como uma pedra, ou o sujeito corpulento a ser empurrado nos trilhos), a impedir o retorno do vagão para matar os cinco colegas. Ainda assim, sem sabermos bem porque, optamos por fazer o desvio nesse caso, ou pelo menos o desvio nos parece menos repugnante, mesmo com a alteração, do que a alternativa de empurrar alguém sobre os trilhos, ainda que para atingir a mesma finalidade de matar um para salvar cinco. Para Greene, o que ocorre, na verdade, é que fomos biologicamente selecionados para ter certa repulsão por atos que têm a violência como fim imediato, como empurrar alguém para a morte, mas não termos igual capacidade de percepção em relação àqueles atos nos quais a morte de alguém aparece como fim remoto, indireto ou mediato, e não como o objetivo mais imediato. Pode-se estabelecer, nesse contexto, rica e importante discussão a respeito de formas conscientes e inconscientes de reações humanas diante de questões morais, que Greene (2013, p. 320) estuda a partir das ideias de Daniel Kahneman (KAHNEMAN, 2011) relacionadas às duas formas de comportamento humano, por ele batizadas de “automático” e “manual”. O comportamento automático, preponderantemente intuitivo e, em alguma medida – mas não só –, instintivo, é eficiente e rápido diante de problemas iguais aos que levaram à sua formação, seja na seleção de comportamentos inconscientes de antepassados, seja na formação de memórias inconscientes em razão de experiências passadas do mesmo indivíduo; mas incapaz de manejar situações novas e inusitadas (sobre o instinto e sua rigidez, confira-se MIRANDA, 1937, p. 19; GREENE, 2013, p. 341). Já o comportamento manual, dito consciente ou racional, é mais lento, envolve maior esforço cognitivo, mas, por sua vez, é flexível, sendo capaz de lidar com situações novas. Uma amostra disso pode ser colhida quando se está tentando aprender algo como dirigir, que envolve toda atenção consciente para ações como pisar em pedais e passar marchas; depois de alguma prática, porém, o sujeito dirige apenas pensando para onde deseja ir, mas sem conscientemente pensar em qual marcha engatar ou em qual dos pedais pisar. Nessa sua forma automática de conduzir-se, o ser humano possui – moldados por milhões 77

de anos de seleção natural – mecanismos que o impelem a colaborar com pessoas por ele vistas como de seu mesmo grupo. Na relação do indivíduo com os seus semelhantes, sentimentos de cooperação permitem que, na relação entre o “eu” e o “nós”, nem sempre o primeiro seja privilegiado em relação aos segundos. Daí por que, às vezes, as pessoas têm manifestações de genuíno altruísmo desinteressado, ou experimentam alguma satisfação ao testemunhar atos dessa natureza, mesmo em benefício de outras pessoas com as quais não têm laço de parentesco ou das quais nada esperam em troca (WAAL, 1996, p. 144). A isso se credita, atualmente, a origem dos sentimentos morais. O problema é que esses mesmos mecanismos deixam de funcionar, ou não funcionam tão bem, quando esse “outro” é visto como alguém externo ao grupo, fazendo surgir não o conflito entre eu x nós, mas entre nós x eles. Nesse caso, tais mecanismos, geradores dos sentimentos morais, não promovem o mesmo altruísmo, mas um sentimento de competição e, não raro, de rivalidade e destruição. Por outras palavras, a evolução selecionou comportamentos cooperativos e sentimentos que os favorecem nas relações intragrupais, mas não naquelas intergrupais. Isso se reflete, por exemplo, nas religiões, que não raro pregam comportamentos altruístas em relação ao “semelhante”, conceito geralmente não lembrado por muitos crentes no que tange àqueles que professam cultos diversos dos seus. Joshua Greene defende, em tais situações, que se adote a mesma solução utilizada pelo cérebro quando dois de seus mecanismos automáticos entram em conflito, conduzindo a resultados divergentes: o acionamento do modo manual. A título de exemplo, quando lemos uma palavra grafada de uma cor, mas que designa outra (p.ex., a palavra “vermelho”, escrita em cor azul), e somos provocados a dizer rapidamente qual cor está escrita, parte de nosso sistema automático de funcionamento cerebral nos impele a pronunciar o nome da cor das letras que formam a palavra (“azul”), mas outra parte indica como resposta o significado dessas mesmas letras em conjunto (“vermelho”). Quando isso ocorre, diante da divergência de comportamentos indicados pelo sistema intuitivo, o sistema “manual” assume o comando e, conscientemente (e muito mais esforçada e lentamente), verifica qual das respostas está de acordo com o que foi perguntado, escolhendo a que corresponde ao significado das letras e não à sua cor. Da mesma forma como é aplicado no caso de soluções divergentes apresentadas por setores distintos de um mesmo cérebro, que operam em “modo automático”, que Greene chama de conflito intracraniano de soluções intuitivas, defende ele que isso seja também feito no caso de conflitos intercranianos, ou seja, conflitos entre soluções apresentadas pelo modo automático ou intuitivo de pessoas diferentes (GREENE, 2013, p. 693). Quando o sistema automático das pessoas não é competente para fornecer respostas convergentes, em face de o conflito se estabelecer entre sistemas morais dos diferentes grupos nos quais estão inseridas (v.g., cultura brasileira x cultura árabe, no que tange aos direitos da mulher), seria o caso de acionar o sistema manual, consciente e racional, capaz de julgar a mais adequada solução. O problema que se pode colocar, nesse caso, é o de saber qual seria a melhor solução “racional”, vale dizer, qual seria o metacritério para julgar os vários sistemas morais naturalmente existentes em cada sociedade. Essa, na verdade, é a grande questão da Filosofia Moral e da teoria dos Direitos Humanos, na atualidade, a qual mostra que os referidos achados da biologia e da neurociência estão muito longe de tornar superadas as discussões filosóficas (CORTINA, 2011). Afinal, por que alguns de nossos sentimentos morais, moldados pela seleção natural, deveriam ser alimentados, enquanto outros precisariam ser reprimidos? E mais: qual o critério a ser utilizado para identificar uns e outros? Para Greene, a solução a ser adotada, nesse caso, deve ser aquela obtida por meio de um raciocínio utilitarista. Afinal, racionalmente, a melhor solução, no caso de conflitos morais, seria aquela capaz de trazer a maior felicidade ao maior número de pessoas. Em síntese, no caso de questões “fáceis”, em relação às quais não há conflitos morais, não havendo divergência ou disputa ente teses opostas, é possível confiar no sistema automático e nos sentimentos morais dele decorrentes, representantes da forma mais adequada que o processo de seleção natural encontrou para formar grupos coesos e cooperativos. Entretanto, havendo disputa entre posicionamentos morais opostos, decorrente do fato de as pessoas terem concepções radicalmente diversas sobre como proceder (decorrentes, no mais das vezes, do fato de enxergarem o outro como alguém “diferente”, e não “do mesmo grupo”), seria o caso de acionar o sistema automático e, na visão de 78

Greene, defender a solução compatível com uma resposta utilitarista para o problema, adotando aquela solução que maximize a felicidade do maior número de pessoas. 5. CONSEQUÊNCIAS PARA O ESTUDO DO DIREITO NA CONTEMPORANEIDADE As conclusões a que biólogos, neurologistas, psicólogos e até teóricos da inteligência artificial têm chegado, nas últimas décadas, em estudo transdisciplinar geralmente intitulado de “neurociência”, são induvidosamente perturbadoras, além de capazes de conduzir a uma revolução na forma como se estudam questões éticas. As questões éticas, porém, não precisam, por conta dos achados da neurociência, ser resolvidas apenas por biólogos, ou neurologistas. Aliás, outra importante revelação da neurociência está em sua própria formação: um novo setor do conhecimento originado da interação de especialistas de áreas diversas, que passaram a dialogar em relação aos pontos de interseção de seus estudos, permitindo avançar além das fronteiras onde as possibilidades de suas especialidades se estavam esgotando. Uma só pessoa não pode estudar em profundidade todos os assuntos, mas não é por isso que deve ignorar o que em outras áreas se tem investigado e concluído. Da mesma forma como teóricos da cognição e até da inteligência artificial (CHRISTIAN, 2013) podem interagir com neurologistas, o mesmo talvez se aplique, por igual, a juristas e filósofos do direito. Assim, é possível, por certo, fazer objeções às ideias de Greene e de outros biólogos ou neurocientistas que se ocuparam do tema, rapidamente resenhadas no item anterior deste texto, notadamente no que tange às conclusões não especificamente biológicas a que ele chega. Por exemplo, embora Greene faça uma defesa bastante competente da filosofia utilitarista, podem ser feitos alguns aprimoramentos às suas ideias, além de se poderem extrair algumas conclusões mais práticas e imediatas para o estudo do Direito na contemporaneidade. Como a concepção que cada um faz do que seja a felicidade pode mudar, bem como a respeito dos meios ou elementos que conduzem a ela, talvez seja mais adequado substituir a maximização da felicidade, proposta por Greene, pela maximização das liberdades, como faz, com muita propriedade, Amartya Sen, por sinal outro competente crítico do utilitarismo (SEN, 2000). Afinal, com liberdade, cada um pode decidir o que entende por felicidade e quais os melhores caminhos para persegui-la, atendendo, de uma forma ou de outra, mas mais eficientemente, o próprio ideal utilitarista. Por outro lado, embora a neurociência esteja a reforçar a ideia sobre o quão tênue e nebulosa é a distinção entre juízos de fato e juízos de valor, ou proposições descritivas e proposições valorativas, não se pode dizer que ela perdeu inteiramente o sentido e a utilidade. Tanto que Greene, para evitar a falácia naturalista denunciada por Hume, reconhece que diante de desacordos morais, decorrentes da insuficiência dos mecanismos naturais que nos impelem à cooperação intragrupal mas não intergrupal, é preciso encontrar uma solução consensual. À míngua de um metacritério “dado”, seja pela natureza ou por Deus, e diante do caráter insatisfatório da solução – aliás, da não-solução – relativista, em face da qual a inexistência de padrões faria qualquer solução igual a um jogo de dados (GREENE, 2013, p. 684), ele precisa ser “construído” consensualmente, a partir de uma base comum (common ground) em torno da qual todos estejam de acordo, base que para Greene seria a ideia de que se deve maximizar a felicidade das pessoas. Não se evita, porém, a falácia naturalista. Afinal, por que devemos perseguir ou prestigiar esses sentimentos morais, em determinados casos, e por quais motivos devemos recorrer a outras soluções, quando eles não conduzem ao altruísmo ou à cooperação como resultado, ou quando há conflito entre as soluções por eles ditadas a pessoas diversas? Para dar uma resposta a essa questão, ainda que se consiga grande “objetividade” no estudo de questões morais, será preciso reconhecer o caráter não meramente descritivo da ciência, à qual cabe, também, propor soluções e aprimoramentos à realidade descrita. Isso impõe uma revisão do próprio paradigma positivista no âmbito da epistemologia. A propósito, independentemente da utilidade de se recorrer a um metacritério para resolver conflitos morais, outra inteligente forma de minimizar as falhas do “modo automático” de agir, que levam a esses conflitos, é o recurso à ideia, defendida por Amartya Sen, segundo a qual, no mundo contemporâneo, todos fazemos parte de vários grupos diferentes ao mesmo tempo, o que 79

deve ser levado em conta para que se consiga uma solução não violenta para os conflitos morais (SEN, 2006). Se, no passado remoto, nossos antepassados nômades viviam em pequenos grupos com indivíduos com os quais deveriam cooperar para sobreviver, e os grupos rivais eram encontrados muito raramente, sendo quase sempre fonte de perigo, no mundo contemporâneo a individualidade de alguém é determinada por muitos fatores diferentes, os quais colocam essa pessoa, ao mesmo tempo, inserida em grupos os mais diversos. Para fazer uso de um exemplo, um professor, torcedor do Flamengo, ateu, pai de uma criança com deficiência visual, e de ideologia liberal, pode ser “rival” de um sujeito que se declara torcedor do Fluminense, se consideradas as respectivas preferências esportivas. O mecanismo automático de conduzir questões morais do referido professor não lhe daria maiores inclinações ao altruísmo ou à cooperação com esse sujeito, se apenas a rivalidade futebolística fosse levada em consideração. Caso, porém, percebessem ambos terem filhos com deficiência visual, ou ambos defenderem ideologia liberal, a empatia decorrente da identidade nesse outro grupo poderia minimizar ou neutralizar aquela rivalidade. De uma maneira ou de outra, tais ideias revelam, de forma clara, que é possível, mesmo dentro de um paradigma “descritivo” e “empírico”, tratar de questões éticas ou morais, investigando sua origem e fundamentos, e trabalhando maneiras de utilizá-los em proveito de uma mais adequada solução de questões morais que, de outro modo, poderiam ser vistas como insolúveis ou mesmo impossíveis de serem estudadas e discutidas. Saber como deveriam ser utilizados os conhecimentos sobre tais sentimentos morais, ou quais deles deveriam ser alimentados (altruísmo) e quais deveriam ser minimizados (hostilidade a pessoas “diferentes”, vistas como de “outro grupo”), por certo passa por reflexões filosóficas, mas não se pode dizer, simplesmente, que sentimentos morais sejam metafísicos e por isso impossíveis de análise científica. Vê-se, com isso, o quão tênue e nebulosa é a divisão entre juízos de fato e juízos de valor. Ainda se pode trabalhar com ela, naturalmente, até porque alguém poderia dizer, não sem alguma dose de razão, que nem todos os produtos da seleção natural devem ser pela humanidade otimizados e incrementados. Dela deriva, afinal, também a agressividade, além de uma série de outros instintos e sentimentos que não raro tentamos inibir ou minimizar. Se os sentimentos morais naturalmente selecionados nos dão os fundamentos das várias “morais positivas” existentes ao redor do mundo, exame racional desses mesmos sentimentos, de seus objetivos e, em face destes, de suas falhas, talvez no permita a construção de uma metamoralidade que auxilie na solução de conflitos entre sistemas morais diferentes. E, como se disse antes, ela talvez esteja relacionada à maximização das liberdades dos indivíduos. Poder-se-ia dizer, porém, que a discussão aqui não deveria girar em torno da moral, mas do Direito Natural. As palavras moral e direito natural, porém, talvez possam ser empregadas como sinônimas, notadamente quando se trata de encontrar um paradigma ideal a partir do qual uma ordem jurídica positiva possa ser avaliada. A origem natural de tais sentimentos morais – e sua insuficiência, a ser complementada com metamoralidade racionalmente fundamentada para resolver eventuais situações de conflito – aplica-se por igual à ideia de direito natural, que experimenta, com isso, mais um renascimento2. De outro turno, os apontados neurônios espelho, que permitem ao ser humano colocar-se na perspectiva do outro, não só viabilizaram sentimentos morais e empatia, mas também a criação de realidades institucionais, assim entendidas aquelas que somente existem na medida em que pactuadas intersubjetivamente (SEARLE, 2005, p. 103). Surge, assim, a cultura, e, com ela, figuras como o dinheiro e o direito, os quais somente existem porque sua existência é pactuada intersubjetivamente. Para que seja assim reconhecido pelos que a ele se submetem, o Direito, enquanto ordem jurídica, deve ter conteúdo próximo àqueles que essas pessoas reputam desejável. Obviamente, coincidência completa seria impossível, sendo utópica e inalcançável. Mas isso não inibe a que se procure a aproximação possível. Quanto maior a proximidade, maior o grau de reconhecimento de uma ordem jurídica, que assim se distancia, para quem a ela se submete, do mero uso organizado da força. Nesse contexto, liberdade, igualdade e democracia figuram como possíveis bases universais 2  A escola do Direito Natural – diz Michel Villey, já reproduzindo o pensamento de Batiffol – “por mais que se a condene, ela renasce das cinzas. É um ‘cadáver que não se cansa de ressuscitar’ (H. Batiffol).” (VILLEY, 2003, p. 310).

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em face das quais toda ordem jurídica se deve organizar, de modo a corresponder, em conteúdo, àquilo que os que a ela se submetem esperam (MACHADO SEGUNDO, 2010, p. 87 e ss). Permite-se, com isso, que esse “direito natural”, que nos é inerente por força do processo evolutivo que gerou a própria espécie humana, esteja de algum modo presente em suas disposições, e que seja, em suas insuficiências, corrigido e aperfeiçoado para tornar mais eficaz a ordem jurídica. Pode-se dizer que, em alguma medida, o que se disse acima incorre, também, em uma falácia naturalista. Afinal, por que pretender construir uma ordem jurídica mais eficaz, e reputada como mais justa por quem a ela se submete? A elevada indeterminação do conceito de justiça não deveria sugerir o abandono dessas pretensões? Na verdade, não. Médicos não reputam menos científica uma pesquisa que pretenda tornar mais indolor ou rápido um procedimento cirúrgico, ou que incremente o bem estar do paciente, por mais subjetivos que esses conceitos eventualmente possam ser. O mesmo pode ser dito de pesquisa destinada a fabricar carros mais econômicos e seguros, ou fontes de energia mais baratas e menos poluentes. Se o Direito é uma realidade institucional, medidas que incrementem o reconhecimento de uma norma como expressão do Direito, e não como o mero exercício da força, destinam-se a torná-lo mais perfeito enquanto instrumento, ideal que também inspira os que se dedicam ao estudo de outras parcelas da realidade. Não que se deva confundir por completo o direito que é com aquele que deveria ser, para quem o estuda. Em verdade, trata-se de descrevê-lo, como se entende que ele é, mas fazê-lo de modo a permitir seu aprimoramento, para que se aproxime do que deve ser. Ainda que existam, seja no plano das “moralidades positivas”, seja no da “moralidade crítica ou ideal”, esta última entendida como um metacritério para o julgamento dos vários sistemas morais encontrados em cada sociedade, divergências, isso por si só não deveria ser causa para o abandono da discussão, no que tange aos valores que devem orientar a crítica e o aperfeiçoamento da realidade. Primeiro, porque divergências também há no âmbito das ciências supostamente mais descritivas e objetivas, como a física e a biologia. A par de desacordos irrazoáveis, como o dos que negam a seleção natural e afirmam serem os fósseis o registro dos animais que não lograram êxito em subir na Arca de Noé, há mesmo desacordos fundados e atualmente não solúveis, como entre os teóricos da física em torno de questões fundamentais na compreensão do universo. E isso não é motivo para que tais disciplinas sejam consideradas inferiores, subjetivas ou impossíveis de serem debatidas (ZIMMERMAN, 2010, p. 100; TERSMAN, 2006, p. xi). Questões morais não são equivalentes a meros gostos pessoais, tanto que se apresentam razões para a defesa de pontos de vista diversos (BENN, 1998, p. 5). Além disso, o fato de haver divergência quanto à solução ideal para certos problemas não significa que igual dificuldade se coloque para todo tipo de dilema moral. A falta de consenso sobre uma solução ideal não impede que se resolvam situações em relação às quais há acordo quanto à necessidade de serem corrigidas (SEN, 2009, p. 104 e ss; LUKES, 2008, 154). Podem ser discutidas, portanto, de forma aberta e falibilista, com apoio em dados empíricos e experimentais, mas, independentemente deles, de forma científica. 6. CONSIDERAÇÕES FINAIS Sentimentos morais afiguram-se atualmente menos “metafísicos” do que pareciam a cientistas, notadamente cientistas sociais, de algumas décadas ou séculos atrás. Sem esquecer o caráter falseável dessa afirmação, como de qualquer outra que se pretenda científica, é possível determinar-lhes a origem, a razão de ser, e, inclusive, as falhas ou insuficiências. A partir dessas noções, talvez seja possível cogitar-se de (mais) um renascimento das ideias relacionadas ao “direito natural”, abrindo-se novas oportunidades de discussão do tema e de sua interação com a construção e a interpretação da ordem jurídica positiva. Entre essas oportunidades está a pesquisa por mecanismos capazes de solucionar os conflitos decorrentes do contraste de padrões culturais e morais distintos, um dos dilemas mais atuais da contemporaneidade. A melhor forma para dirimir tais questionamentos parece ser a que maximiza a liberdade – e não propriamente a felicidade – do maior número de pessoas, em uma perspectiva aperfeiçoada do utilitarismo, sendo essa opção, porém, reconhecidamente prescritiva, o que, por si só, não deveria ser causa para o seu abandono. Não se está, com isso, a preconizar um retorno do jusnaturalismo clássico, ou a defesa de um ideal de justiça eterno e imutável. Mas tais ideias autorizam a que, pelo menos, juízos morais 81

sejam vistos como algo menos abstrato e subjetivo, de modo a que se incrementem discussões em torno deles, de seus fundamentos, e de sua possível relação com o direito posto, sem com isso se incorrer no receio de perda de “cientificidade”. Tampouco se está sugerindo, convém frisar, que os sentimentos morais, moldados pela seleção natural, determinam tudo no que tange ao comportamento humano. A rigor, a biologia contemporânea tem mostrado que o ser humano é mais animal do que imagina, e que os demais animais têm características ou traços que antes se imaginavam exclusivamente humanos. O que ocorre, em verdade, é que a fronteira entre humanos e outros animais é gradual e turva, como se dá com praticamente todas as separações que vemos no mundo fenomênico. É claro que há componentes humanos que nos fazem distintos, ainda que de forma quantitativa e não qualitativa, os quais permitem o surgimento da cultura e, com ela, de diferenças nas formas como tais sentimentos são implementados no tempo e no espaço. Da mesma maneira como há um fundamento biológico para o surgimento da linguagem, que dá origem, não obstante, a línguas, idiomas ou dialetos os mais diversos, existe uma inclinação natural do ser humano a certos nutrientes, que, todavia, faz surgirem pratos típicos diversos em diferentes partes do mundo. O mesmo se dá com os sentimentos morais. REFERÊNCIAS AXELROD, Robert. A evolução da cooperação. Tradução de Jusella Santos. São Paulo: Leopardo, 2010. AFTALIÓN, Enrique R.; VILANOVA, José; RAFFO, Julio. Introducción al derecho. Buenos Aires: Abeledo-Perrot, 2004. BENN, Piers. Ethics. London: UCL, 1998. BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico. tradução e notas de Marcio Pugliesi, Edison Bini e Carlos E. Rodrigues. São Paulo: Icone, 1995. CHRISTIAN, Brian. O humano mais humano. O que a inteligência artificial nos ensina sobre a vida. Traduação de Laura Teixeira Mota. São Paulo: Companhia das Letras, 2013. CORTINA, Adela. Neuroética y neuropolítica. Sugerencias para la educación moral. Madrid: technos, 2011. DAWKINS, Richard. The god delusion. London: Bantam Press, 2006. _______. The selfish gene. 2.ed. New York: Oxford University Press, 1989. DEEMTER, Kees Van. Not exactly: In praise of vagueness. Oxford: Oxford University Press, 2010. DWORKIN, Ronald. ‘Natural law’ revisited. University of Florida law review, Florida, v. XXXIV, n.2, p. 165-188, winter of 1982. FINNIS, John. Lei natural e direitos naturais.Tradução de Leila Mendes. Rio Grande do Sul: Unisinos, 2007. GAZZANIGA, Michael S. Who’s in charge? Free will and the Science of the brain. New York: Harper Collins, 2011. GREENE, Joshua. Moral Tribes. New York: Penguin, 2013. HAUSER, Marc. Moral minds. New York: Harper Collins, 2006. HUME, David. Tratado da natureza humana. 2.ed. Tradução de Déborah Danowski. São Paulo: Unesp, 2000. KAHNEMAN, Daniel. Thinking, fast and slow. New York: Farrar, Straus and Giroux, 2011. 82

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DOXA UNIVERSALISTA DOS DIREITOS HUMANOS E SEUS PARADOXOS: POR UMA CRÍTICA AO DIREITO NA ATUALIDADE1

Daniel Carneiro Leão Romaguera2 João Paulo Allain Teixeira3

1. INTRODUÇÃO A temática abordada consiste na aferição dos paradoxos e aporias da concepção contemporânea dos Direitos Humanos, ao serem confrontados os valores consignados pelo discurso prevalente e a realidade vivenciada. Nesse escopo, identificam-se as práticas suportadas pelos Direitos Humanos em meio à violência externalizada nesses valores. Parte-se da análise entre constitucionalismo e democracia na dita pós-modernidade, das concepções, política e jurídica e suas tensões. Com o sentido de afligir a desconsideração da ideologia por trás da aparência dos Direitos Humanos, vê-se, a temática em questão de formação da doxa dos Direitos Humanos. Para tanto, faz-se imperioso atentar as relações de poder desconsideradas, sem as quais, jamais, a criação dos Direitos Humanos poderia ser concebida. Sob esse viés, propõe-se a análise das práticas manifestadas ao longo da tradição imperia1 A gênese deste Artigo também foi utilizada para publicação nos anais do IV Congresso do ABRASD - I encontro Moinho Jurídico: http://www.abrasd.com.br/biblioteca/anais/anaisIVcongabrasd.pdf. Foram feitas alterações no sentido de atualizar e trazer novas discussões ao texto. 2 ¹ Mestrando da UNICAP em programa de Mestrado-Sanduíche na UNISINOS, sob a orientação do Prof. João Paulo Fernandes de Souza Allain Teixeira e da Profª. Fernanda Frizzo Bragato. Email: [email protected] 3  Professor Adjunto do Centro de Ciências Jurídicas da Universidade Federal de Pernambuco (CCJ/UFPE),  Professor do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco (PPGD/UFPE), Professor da Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP), Professor do Mestrado em Direito da Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP), Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Direito da UNICAP. Doutor e Mestre em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).

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lista do “velho continente”4, de como, o eurocentrismo conduziu a formação do senso prático na contemporaneidade. Nesse ínterim, busca-se a demonstração das origens coloniais dos Direitos Humanos. Isto porque, a lógica que suportou as violações e praticas extirpadoras iniciadas no processo colonial não foi deixada de lado. Em absoluto. De tal forma, a hipótese é de que não houve qualquer tipo de ruptura, mas reprodução da proposta civilizatória em meio às novas formas de dominação. Dito isto, o ideal do projeto racional moderno pautado nos valores europeus foi determinante a produção da doxa, o que se percebe das diversas manifestações de violência ao longo dos processos de colonização, independência e consequente dos países colonizados. A romper, inclusive, com o mito da libertação e autonomia dos estados-nação. Para isso, mister retomar questões quanto ao processo histórico conduzido pelo ocidente, de forma a questionar o discurso tradicional, destaca-se a geopolítica do conhecimento. Desse modo, cumpre-se com o ofício de genealogia, ao apontar-se os processos coloniais como eventos fundantes à concepção de modernidade. De sua contextualização, percebe-se que os direitos humanos integram o centro moral de império, a fomentar praticas contrárias aos ideais que professam, isso porque, sua particularidade foi transcendida. Cumpre ressaltar, que submerge a essa ideologia relações de forças suportadas pelos axiomáticos inquestionáveis da humanidade, conduz-se ao niilismo desses direitos quando a concepção de humanidade universal os antecede, visto que, promovem e legalizam o desejo individual. Parte-se, da aferição das aporias e paradoxos ante a realidade fática que circunscreve o discurso prevalente de Direitos Humanos. 2. DA DOXA HUMANISTA: PARADOXOS, APORIAS E CONTRADIÇÕES A motivação acadêmica à temática pretendida, parte da relevância em investigar a formação da doxa dos direitos humanos em meio a práticas dominantes observadas a partir do projeto colonialista conduzido pelos países europeus. De pronto, há que se fazer menção a imperiosa necessidade de romper com a tradição de ortodoxia da história do ocidente. Vê-se, que, o discurso se manifesta nas estruturas de poder inserto à realidade política e social que o circunscreve. Em razão disso, o prospectado é a investigação acerca da projeção hegemônica alcançada pelos Direitos Humanos, identificam-se as aporias na lógica de campo e os intentos por trás desses direitos. Desse modo, padecem de entendimento da dimensão social em que se encontram, trata-se de perspectivismo histórico, consigna Heiner Bielefeldt: (...) interpretá-los retroativamente como direitos humanos implícitos ou potenciais significaria adotar a ingenuidade do pensamento histórico teleológico que, conforme Kaviraj, deságua numa cobrança essencialista-cultural da idéia dos direitos humanos, ou em algo como um Espírito do Ocidente. (BIELEFELDT, 2000, p. 149)

De igual maneira, a obra de Augustin Cochin nos revela a necessidade de aferição dos fenômenos sociais em atento aos fatores de poder determinantes à sua existência. Em evidência, faz crítica à percepção valorativa do iluminismo, quanto aos aspectos sociais propulsores para difusão 4  Expressões como essa nos permite constatar que a história é construída pelo vencedor, revelam o problema da epistemologia e produção do saber. Necessário se faz retomar o processo histórico expansionista do Ocidente, em que a história foi/é construída pelo vencedor. Logo, vê-se o eurocentrismo, pois a produção do saber está atrelada a civilização prevalente (por exemplo, Revolução Francesa, Bill of Rights, Constituição Americana, Renascimento e etc.). Faz-se menção a análise da geopolítica do conhecimento conduzida por Walter Mignolo (MIGNOLO, 2002), influenciada pela crítica feita ao historicismo por Foucault, ao perceber que os embates sociais e conflitos são inerentes às estruturas sociais, pois “(...) não há sujeito neutro. Somos forçosamente adversários de alguém”. (FOUCAULT, 2000, p. 59) A perceber, o conhecimento como objeto de disputa relacionada ao poder e as circunstâncias de sua produção.

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dos interesses prevalentes: O corpo, Ia société de pensée, explica o espírito, as convicções compartilhadas. A Igreja precede aqui, e cria, o seu Evangelho; está unida para a verdade, não pela verdade. A Regeneração, o Iluminismo, era um fenômeno social, não um fenômeno moral ou intelectual. (COCHIN, 1921, p.14)

Sob essa gênese tornar-se-á perceptível os fatores que levaram a solidificação dos valores morais do ocidente. Nesses termos, não se quer desconsiderar a importância de institutos como, por exemplo, o contrato social, a vontade geral, declarações de direitos, por serem inegáveis elementos instituidores da ordem estatal moderna5. Contudo, não por expor aquilo que o mundo moderno concebe em seu âmago, mas, sim, por serem capazes de suportar práticas sociais determinantes à apropriação de poder, em que subjaz a legitimação das práticas dominantes6. As ressalvas acusadas são resilientes na obra de Costas Douzinas7, acerca da tendência universalizante dos direitos humanos, pois conduz a leitura em perspectiva da sua produção. Adotada esta postura crítica, a hipótese é de que os direitos humanos revelam contrassensos visto que não conduzem aos ideais humanitários professados, pois, selecionam os afortunados e definem sua humanidade. A tendência homogeneizante dos Direitos Humanos é trazida como problemática pelo autor, quando realizada a leitura em perspectiva da sua produção. Adotada esta postura crítica, os Direitos Humanos revelam contrassensos visto que não conduzem aos ideais humanitários professados, pois, selecionam os afortunados e definem sua humanidade. De tal modo, veremos, que a concepção do humano é construída dessa maneira. Ressalta-se que, cabe compreender a força do soberano na atualidade em que se afirma. Nesse sentido, tem relação com os demais afluentes da ordem social, a destacar os direitos humanos em meio à globalização econômica, constitucionalismo democrático, ambiente político e as leis internacionais. De como, a concepção humanista é força motriz das práticas dominantes e institui o limite de responsabilização da ordem global ao “humano” que professa em sua ideologia8. É, para além do conteúdo transcendental tido por inerente à significação desses direitos, que se percebe a dissimulação das relações de poder que os permeia: A irrealidade ontológica do homem abstrato dos direitos conduz inexoravelmente à sua utilidade limitada. Direitos abstratos são, assim retirados de seu lugar de aplicação e das circunstâncias concretas das pessoas que sofrem e se ressentem de que eles não conseguem corresponder a suas reais necessidades (DOUZINAS, 2007, p. 166). 5  Ao criticar o liberalismo, Costas Douzinas revela a crosta dominante e o idealismo moderno: “O mundo em que habitam é um lugar atmocêntrico, constituído por contratos sociais e posturas originais motivados pela cegueira subjetiva dos véus da ignorância, atribuídos a situações de discursos ideais e que retornam a uma certeza pré-moderna de respostas corretas únicas a conflitos morais e jurídicos.” (DOUZINAS, 2007, p. 15) 6  Revela-se a: “(...) funcionalização da ciência, a par da sua transformação na principal força produtiva do capitalismo, diminuiu-lhe a radical e irreversivelmente o seu potencial para uma racionalização emancipatória da vida individual e colectiva.” (SOUSA SANTOS, 2000, p. 119) 7  São diversos os escritos que que auxiliam à fundamentação da hipótese proposta e ao enfrentamento do problema em evidência, tais quais: “O fim dos direitos humanos”; “Athens Revolting: Three Meditations on Sovereignty and One on Its (Possible)”; “Human Rights and Empire. The Political Philosophy of Cosmopolitanism”; “Human Rights and Postmodern Utopia”; “Human Rights at the End of the History”; “Humanity, military humanism and the new moral order”; “Oubliez Critique”; “Critical Jurisprudence”; “Sublime Law: On Legal and Aesthetic Judgements”; “The Legality of the Image”; “Justice miscarried: Ethics and aesthetics in law postmodern theory”; “Violence, Justice, Deconstruction”; “New Critical Legal Thinking: Law and the Political”; Philosophy and Resistance in the Crisis: Greece and the Future of Europe”. 8  Douzinas destaca as feições subjetiva e institucional dos direitos humanos, pois: “(...) ajudam a constituir o sujeito (jurídico) livre e ao mesmo tempo subordinado à lei (...) mas os direitos humanos são também um discurso e uma prática poderosos no Direito Nacional e Internacional”. (DOUZINAS, 2007, p. 22)

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Segundo Costas Douzinas os direitos humanos que ao seu nascedouro (à época, os direitos do homem, ou seja, naturais de feição liberal) consistiam em valores que foram opostos à opressão e dominação na Revolução Francesa, vêm a fazer parte do discurso triunfal da atualidade. O referenciado autor indica o momento a ser observado diante da lógica de institucionalização desses direitos, em revisão feita pela Universidade de Melbourne: A história dos direitos humanos fez da resistência à dominação e opressão seu fim principal. No entanto, a partir de modernidade precoce em diante, os direitos naturais sustentaram a soberania do Estado moderno. Esta tendência foi reforçada na pós-modernidade e os direitos humanos tornaram-se a ordem moral de um novo império em construção (MELBOURNE UNIVERSITY LAW REVIEW, 2002, p. 445,tradução nossa)9.

É nessa acepção que os Direitos Humanos vêm a constituir o centro dominante da contem-

poraneidade em meio à formação de uma doxa. Segundo Bourdieu, a doxa consiste na produção de um senso prático homogeneizante e indiscriminadamente seguido, que se dá com o alcance da submissão de forma universal do ponto de vista particular: A doxa é um ponto de vista particular, o ponto de vista dos dominantes, que se apresenta e se impõe como ponto de vista universal; o ponto de vista daqueles que dominam dominando o Estado e que constituíram seu ponto de vista em ponto de vista universal ao criarem o Estado (BOURDIEU, 1996. p. 120).   

Dito isto, a lógica dos direitos humanos por ser uma ideologia, não está à margem de críticas, nas palavras de Douzinas, da “crítica da ideologia”. (DOUZINAS, 2007, p. 21). Muito embora: “(...) atribuímos ao mundo uma crença jamais profunda do que todas as crenças (no sentido comum) já que ela não se pensa como uma crença.” (BOURDIEU, 1996, p. 144). Nesse sentido, busca-se analisar a expansão do discurso humanista, o que se deu com a dominação do terceiro mundo pelo continente europeu que não se trata apenas do aspecto econômica (de mercado), mas do empreendimento moderno de colonização de mundo. Muito embora, seja determinante a leitura marxista do capitalismo global, é preciso levar em consideração o domínio colonial10. A concepção de “transmodernidade” de Enrique Dussel nos permite identificar que a modernidade não se limitou ao locus temporal do continente europeu, observa-se, também, o que Immanuel Wallerstein denominou de “universalismo europeu”: O que estamos usando como critério não é o universalismo global, mas o universalismo europeu, conjunto de doutrinas e pontos de vista éticos que derivam do contexto europeu e ambicionam ser valores universais globais – aquilo que muitos de seus defensores chama de lei natural – ou como tal apresentados (WALLERSTEIN, 2007, p. 60).

É por isso que a crítica deve exceder as reminiscências do âmbito ordenado da pós-modernidade, José-Manuel Barreto:

9 Thehistory of human rights has made resistance to domination and oppression their main end. However from early modernity onwards, natural rights underpinned the sovereignty of the modern state. This trend has been strengthened in post modernity and human rights have become the moral order of a new empire under construction. (MELBOURNE UNIVERSITY LAW REVIEW, 2002, p. 455) 10  Como o centro do capitalismo mundial, a Europa não só tinha assumido controle de todas as regiões de mercado, mas também era capaz de impor o seu domínio colonial sobre as regiões e populações do planeta, incorporando-as ao sistema-mundo e seu modelo específico do Poder. (QUIJANO, 2008 p. 540, tradução nossa)

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(...)é evidente na noção de ‘transmodernidade’, uma ideia formulada por Enrique Dussel a fim de ir além da teoria “pós-moderna”- que consiste em uma perspectiva crítica que visa transcender a modernidade a partir dela e dessa crítica pós-moderna, que, ao fazê-lo, continua a ser uma crítica eurocêntrica da modernidade (BARRETO, 2013, p. 34, tradução nossa).11

Nota-se, que, as expressões “europeu” e “eurocentrismo” não estão atreladas tão somente ao aspecto geográfico, mas, possuem acepção geopolítica, o que nos remete a forma de dominação pautada na produção do modelo da modernidade expansivista do norte global. (CONNELL, 2011, p. 10) Assim como, o “ocidente”, pois, nem todos os países ou manifestações deste espaço geográfico representam a metódica colonialista, em absoluto12. Mister consignar, que o esforço do “progresso evolucionista” em atrelar que os Direitos Naturais aos Direitos Humanos, de certa forma o foi para garantir o ideal universalista da lei natural. Nesse diapasão, Douzinas afirma acerca dos Direitos Humanos, que, o discurso profano fixa serem estes direitos atribuídos às pessoas em razão da sua condição de ser humano independente de qualquer outro aspecto. Com isto, o direito à tutela de bens jurídicos seriam conferidos às pessoas não por causa de sua filiação ao estado, nação ou comunidade, mas, por sua humanidade. Acontece que, o que vemos é um discurso não humanitário, mas humanizador. Isto porque, as ações desses direitos selecionam os afortunados, consequentemente, define a humanidade do homem. Ações estas, que decorrem da luta social e da concorrência dos agentes, pois os direitos humanos são definidores da humanidade, e nada tem de inerente ao ser humano. É uma ordem de corpos que permite as desigualdades, o poder disciplina os corpos, mas também os faz surgir. Nas palavras de Michel Foucault: “(...) no corpo como máquina: no seu adestramento, na ampliação de suas aptidões, na extorsão de suas forças, no crescimento paralelo de sua utilidade e docilidade, na sua integração em sistemas de controle eficazes e econômicos.” (FOUCAULT, 1988, p. 151). Diante dessa acepção, tem-se como imprescindível atentar aos processos colonialistas promovidos pelos países europeus no curso da modernidade. De como, as praticas espúrias da colonização permitiram a construção do humano na ideologia hodierna. Inicialmente, cumpre observar a ruptura que submerge a dimensão de humanidade nesse processo dito por civilizatório, entre os colonos e colonizados: A discussão do mundo colonial pelo colonizado não é um confronto racional de pontos de vista. Não é um discurso sobre o universal, mas a afirmação desenfreada de uma singularidade admitida como absoluta. O mundo colonial é um mundo maniqueísta. (FANON, 1968, p. 30)

Não é por outra razão, que o projeto da modernidade conduz a formação de grupos minoritários e vulneráveis, pois o colonizado – produto/subalterno/invisível – não é o sujeito racional, livre e autônomo professado pela modernidade13. 11 This is evident in the notion of ‘transmodernity’, an idea formulated by Enrique Dussel in order to go beyond ‘postmodern’ theory—a critical perspective that aims at transcending modernity from within and that, in doing so, remains a Eurocentric critique of modernity. (BARRETO, 2013. p. 34) 12  Cabe pontuar que a definição dessa lógica tem relação direta com o eurocentrismo, na medida em que “(...) não se refere a todos os modelos de conhecimento de todos os europeus em todas as épocas (...) pelo contrário há uma específica racionalidade ou perspectiva na produção do conhecimento que se fez hegemônica globalmente (...)”. (QUIJANO, 2008, p. 549, tradução nossa). 13  Perceptível à divisão do mundo colonial, em duas partes, através da sujeição pelo racismo e inferiorização do outro, relata Frantz Fanon: “Este, mundo dividido em compartimentos, êste mundo cindido em dois, é habitado por espécies diferentes. A originalidade do contexto colonial reside em que as realidades econômicas, as desigualdades, a enorme diferença dos modos de vida não logram nunca em mascarar as realidades econômicas (...) as realidades humanas. (...) Quando se observa em sua imediatidade o contexto colonial, verifica-se que o que retalha o mundo é antes de mais nada o fato de pertencer ou não a tal espécie, a tal raça.” (FANON, 1986, p. 29)

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Nesses termos, produz-se o subhumano, inumano e até antihumano: Não basta ao colono afirmar que os valôres desertaram, ou melhor jamais habitaram, o mundo colonizado. O indígena é declarado impermeável à ética, ausência de valores, como também negação dos valôres. É, ousemos confessá-lo, o inimigo dos valôres. Neste sentido, é o mal absoluto (FANON, 1968, p. 31).

De tal modo, a hipótese é de que a concepção humanista e os direitos humanos partem desses ideais universais para formar o sujeito concreto do humano desde as práticas colonizadoras. Nesse sentido, a lógica das violações e praticas extirpadoras iniciadas no processo colonial não foram deixadas de lado, manteve-se a proposta imperialista durante todo o processo da civilização moderna. Em resgate remissivo, busca-se fazer o link da passagem ao pós-colonialismo e a formação do senso comum dos Direitos Humanos: A segunda metade do século XX foi um período de descolonização em massa pelo mundo afora. A causa e a consequência imediatas dessa descolonização foram uma mudança importante na dinâmica do poder no sistema interestados, como resultado do alto grau de organização dos movimentos de libertação nacional. (...) A linguagem retória então a um conceito que veio a ter novo significado e força na época pós-colonial: os direitos humanos (WALLERSTEIN, 2007, p. 42/43).

Em meio ao: (...) contexto de crescente desigualdade entre o Norte e o Sul, os Estados periféricos e semiperiféricos estão a ficar cada vez mais limitados – como vítimas ou como parceiros – ao cumprimento das determinações do capital financeiro e industrial transnacional, determinações, por sua vez, estabelecidas pelas organizações internacionais controladas pelos Estados centrais (SOUSA SANTOS, 2000, p. 155).

Feitas essas incursões, veremos no capítulo seguinte que é preciso ter em mente como se deu o progresso europeu e, de como essa penúria persiste no mundo globalizado, nas palavras de Frantz Fanon: “O bem-estar e o progresso da Europa foram construídos com o suor e o cadáver dos negros, árabes, índios e amarelos. Convém que não nos esqueçamos disto.” (FANON, 1968, p. 77)14. No prefácio da obra “Os condenados da terra” de Frantz Fanon, Jean-Paul Sartre realizou diagnóstico do humanismo europeu: Encaremos primeiramente êste inesperado: o strip-tease de nosso humanismo. Ei-lo inteiramente nu e não é nada belo: não era senão uma ideologia mentirosa, a requintada justificação da pilhagem; sua ternura e seu preciosismo caucionavam nossas agressões (SARTRE, 1968, p. 16).

Nesse diapasão, é preciso relocar o papel do colonialismo na construção da modernidade, ao percebermos a correspondência do projeto imperialista dos países europeus e o ideal civilizatória da modernidade: “A história do sistema-mundo moderno tem sido, em grande parte, a história da expansão dos povos e dos estados europeus pelo resto do mundo.” (WALLERSTEIN, 2007, p. 29). 14  A raça permaneceu como critério determinante de sujeição política e construção dos espaços sociais, desde o início dos processos coloniais em que a: “(...) raça tornou-se o critério fundamental para a distribuição da população mundial em categorias, lugares e papéis na estrutura da nova sociedade do Poder”. (QUIJANO, 2008, p. 535, tradução nossa) (...) race became the fundamental criterion for distribution of the world population into ranks, places, and roles in the new society’s structure of Power. (QUIJANO, 2008, p. 535)

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Sem abandonar a crítica ao aparato dominante da modernidade, faz-se relação com a praxis imperialista. Acerca da sujeição à Lei Moderna, cito trecho da obra de Peter Fitzpatrick a denotar o falso transcendental e universal do humano, com a compreensão da identidade e abrangência dos valores morais a partir do iluminismo: Esse mundo recentemente criado entra em confronto com um reino mítico de sentido fechado, ainda que múltiplo, um reino em que a origem e a identidade estão localizadas no plano transcendente. No Iluminismo, o transcendente foi trazido para a terra. O “ser humano” teria de ser a medida do ser humano. Não havia mais necessidade de mediação mítica entre o real e o transcendente. O sentido fora então unificado. O transcendental e o limite que ele impunha ao pensamento e à existência representavam os freios temerosos que os homens haviam imposto a si mesmos em eras passadas. (...) A realidade e suas divisões não mais obtinham sua identidade do seu lugar dentro de uma ordem mítica abrangente - elas eram manifestações de um processo de descoberta e realização. Quando esse processo atinge os limites de sua apropriação do mundo, o Iluminismo cria os verdadeiros monstros ao quais ele se contrapõe tão assiduamente. Esses monstros da raça e da natureza indicam os limites exteriores, o “outro” intratável contra o qual o Iluminismo volta a vacuidade do universal e, nessa oposição, confere ao seu próprio projeto um conteúdo palpável. Uma existência esclarecida é aquilo que o outro não é. A lei moderna foi criada nessa disjunção (FITZPATRICK, 2007, p. 74).

A unificação é conduzida nesse arbítrio demonstrado pelo autor, suportada pela mítica valorativa dos ideais humanistas tem-se a predisposição dominante. Para tanto, é imperioso analisar os institutos atrelados à visão moderna de mundo, traz-se a título de exemplo, soberania, lei, território, estado... Não porque esses institutos denotam explicitamente a concepção de modernidade, mas, sim, como âmago capaz de iludir e dissimular as práticas espúrias da colonização. Dessa concepção, o contrassenso legal desponta ser fator determinante à construção política da sociedade democrática e suas discrepâncias. Nesses termos, a constatar que os processos de colonização são eventos basilares e fundantes do projeto modernista europeu, propõe-se re-tomar a história dos direitos humanos: (…) engloba uma interpretação diversa da filosofia da história em que a teoria dos direitos humanos tem sido baseada habitualmente ou implicitamente, e dá a luz a um novo paradigma em que os eventos da Conquista da América e a colonização do mundo também são reconhecidas como pedras de toque da história moderna. O desenvolvimento de uma nova versão da história dos direitos no contexto da história do mundo, traz para a consciência quinhentos anos de mobilização utópica dos direitos naturais, dos Direitos do Homem e dos direitos humanos para resistir ao imperialismo (BARRETO, 2013, p. 07, tradução nossa)15.

A tornar frutífero esse esforço crítico, demanda-se a análise da geopolítica do conhecimento, para consequente estorno do ponto vista dominante, em busca da produção de uma(s) contramemória(s) à história incorporada, e, assim, repensar a teoria dos direitos humanos. Para além do eurocentrismo, atenta-se às margens (contraponto histórico dos oprimidos): Este distinto pano de fundo histórico e geopolítico pode modificar os termos, conceitos e agenda da teoria e da prática dos direitos humanos. O intérprete é consciente também do fato de que sua perspective -a do terceiro-mundo- posiciona-se 15 (…) encompasses a different interpretation of the philosophy of history in which human rights theory has been customarily or implicitly based on, and gives birth to a new paradigm in which the events of the Conquest of America and the colonization of the world are also recognized as key signposts of modern history. Developing a new version of the history of rights in the context of world history, it brings into consciousness five hundred years of utopian mobilization of natural rights, the Rights of Man and human rights to resist imperialism. (BARRETO, 2013, p. 07)

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em desacordo com outra perspective- a da Europa. A crítica ocorre nesta mudança de pontos de vista, que ao mesmo tempo cria as condições para tentar uma abordagem nova e independente da tradição dos direitos naturais e humanos, para assim possibilitar um diálogo entre estes dois pontos de vista (BARRETO, 2013, p. 07, tradução nossa)16.

Sob tal viés crítico, é concebida a investigação reflexiva capaz de atender as exigências de uma genealogia combativa ao eurocentrismo desses direitos. Acerca disso, pertinente se faz a perspectiva desconstrutivista, destaco trecho do escrito “Força de Lei” de Jacques Derrida, vê-se a necessidade de questionar a memória incorporada: (…) em nome de uma exigência mais insaciável de justiça, à reinterpretação de todo o aparelho dos limites nos quais uma história e uma cultura puderam confinar criteriologia (DERRIDA, 2010, p. 36). A demonstrar esse tipo de investigação, o autor aborda o conceito de emancipação que permeia o direito, em remissão à mitologia iluminista e ao projeto racionalista da modernidade17, na busca de uma contramemória: Nada me parece menos perempto do que o clássico ideal emancipatório. (...) não se pode desqualificá-lo hoje (...) é verdade que também é necessário, sem renunciar a esse ideal, pelo contrário, reelaborar o conceito de emancipação, de franqueamento ou de libertação, levando em conta as estranhas estruturas que descrevemos neste momento. Mas, para além, dos territórios hoje identificáveis da jurídico-politização em grande escala geopolítica, para além de todos os desvios arrazoados e interesseiros (...) outras zonas devem abrir-se constantemente, que podem a primeira vista parecer zonas secundárias ou marginais. Essa margem significa também que uma violência e um terrorismo ou outras formas de sequestro estão em ação (DERRIDA, 2010, p. 57).

O que pode ser feito na democracia, pois a mesma abre possibilidades, que em seu exercício devem ser extrapoladas, cito: A democracia é, para Derrida, o único regime ou quase-regime político aberto a sua historicidade na forma de transformação política, e aberto à sua própria reconceitualização por meio da autocrítica, chegando até e incluindo a idéia e o nome ‘democracia’. (NAAS, 2006. p. 33)

Nota-se que, é no deslocamento das estruturas que reside o democrático para Derrida. Procura-se, neste artigo, adotar também a perspectiva desconstrutivista com relação aos Direitos Humanos18. 16 This distinct historical and geopolitical background can modify the terms, concepts and agenda of the theory and practice of human rights. The interpreter is also conscious of the fact that her perspective—that of the Third World— stands at variance with another perspective—that of Europe. The critique occurs in this shifting of viewpoints, which at the same time creates the conditions for attempting a novel and independent approach to the tradition of natural and human rights, as well as for making possible a dialogue between these two points of view. (BARRETO, 2013, p. 07) 17  “Emancipação significa para os modernos o abandono progressivo do mito e do preconceito em todas as áreas da vida e a substituição destes pela razão. Em termos de organização política, libertação significa a sujeição do poder a razão da lei.” (DOUZINAS, 2007, p. 23). 18  Derrida denominou de desconstrução como uma possibilidade de justiça, de questionar os valores humanistas em face do espaço residente entre a regulação estabelecida pelo direito e a justiça, a perceber que o: “(...) direito é essencialmente desconstrutível, ou porque ele é fundado, isto é, construído sobre camadas textuais interpretáveis e transformáveis (e esta é a história do direito, a possível e necessária transformação, por vezes a melhoria do direito), ou porque seu fundamento último, por definição não é fundado. Que o direito seja desconstruível, não é uma infelicidade. Pode-se mesmo encontrar nisso a chance política de todo o progresso histórico. Mas o paradoxo que eu gostaria

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Logo, cabe compreender os Direitos Humanos em consideração da realidade social em que se inscrevem. Nesse sentido, a reprodução indiscriminada da ideologia dominante dos direitos humanos tem relação com os demais afluentes do mundo hodierno, pois tais direitos se projetam como discurso moral hegemônico, conjuntamente com a globalização econômica e as leis internacionais. Primeiramente, constata-se o cenário de estados-nação que possuem constituições democráticas, pois para que exista a nação-estado é inexpugnável definir seus limites, com a exclusão de outras pessoas, povos e nações. A concepção de soberania opera na lógica de inclusão/exclusão. Em destaque, aponta-se que o constitucionalismo consiste no movimento de apreensão política à formação e condução dos estados democráticos na dita modernidade, suplantado por valores que se projetam como universais. Sempre apto a conter os conflitos sociais através do controle de governo, por isso não se pode repartir a “constituição” do “governo”, vê-se uma conjunção de fatores que continua a ser negada. Ainda, da análise das praticas constitucionais, identifica-se o aspecto temporal. Percebe-se, a lógica prevalente parte da reminiscência do futuro para justificar as praticas políticas de dominação do presente, afirma-se no agora. Ao passo que, fomenta praticas de poder contrárias aos valores que propugna, a questão democrática tende a esvaecer-se. Tem-se por contínuo o controle de liberdade. Não por menos, a representação democrática e sua validação constitucional enfraquece a possibilidade de promoção para além desse âmbito. Tratar-se-á da análise da democracia no por vir de Jacques Derrida, acerca da afirmação do político nos espaços de sua criação. Nos propõe que a democracia deve sair desse âmbito, que não passa de usurpação de justiça, deve opor-se a pretensa ordem constitucional em que se governa sob os auspícios da soberania popular. Dessa forma, procura-se apontar o que é dissimulado e ocultado pelos direitos humanos acerca de suas praticas violentas, com isso, enfrentar o debate de como a ideologia não conduz aos ideais que professa. Através dessa análise, permite-se demonstrar a formação da doxa dos Direitos Humanos, como imperativo prevalente e inquestionável da nova ordem, com ênfase na violência incorporou as praticas constitucionais democráticas. Para tanto, faz-se necessária abordagem do projeto imperialista do universalismo europeu19, em remissivo aos processos de colonização. Os direitos com sua feição dissimulada de significação, suplantados pela ontologia de seus valores, vem a constituir principal fonte degovernamentalidade no mundo contemporâneo, isto porque, o espaço político reside em sua discrepância: (...) suas pressuposições ontológicas, os princípios de igualdade e liberdade, e seu corolário político, a pretensão de que o poder políticos deve estar sujeito às exigências da razão e da lei, agora passaram a fazer parte da principal ideologia da maioria dos regimes contemporâneos e sua parcialidade foi transcendida (DOUZINAS, 2007, p. 19).

O discurso abduz que todos têm esses direitos, fato é que os direitos humanos triunfaram em momento histórico que revela flagrantes violações a seus princípios. Para isso, as estruturas dominantes reduzem às pessoas a sintéticas entidades capazes de integrar a lógica desses direitos. Conclui Costas Douzinas: de submeter à discussão é o seguinte: é esta estrutura desconstrutível do direito ou, se preferirem, da justiça como direito, que assegura também a possibilidade de desconstrução.” (DERRIDA, 2010, p. 27) 19  “O universalismo europeu é o conceito que define essa realidade: conjunto de doutrinas e pontos de vista éticos que derivam do contexto europeu e ambicionam ser valores universais globais – aquilo que muitos de seus defensores chamam de lei natural – ou como tal são apresentados. É uma doutrina oralmente ambígua porque ataca os crimes de alguns e passa por cima dos crimes de outros, apesar de usar critérios que se afirmam como naturais.” (WALLERSTEIN, 2007, p. 59).

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A diferença entre o triunfo da ideologia dos direitos humanos e do desastre de sua prática é a melhor expressão de cinismo pós-moderno, a combinação de iluminação com resignação e apatia e, com um forte sentimento de impasse político e claustrofobia existencial, de uma ausência no meio da sociedade mais móvel (DOUZINAS, 2000, p. 12, tradução nossa)20.

Nessa visão, não se pode ignorar as dissimulações dos direitos humanos, propõe-se a compreensão crítica de que: “(...) são o fado da pós-modernidade, a energia das nossas sociedades, o cumprimento da promessa do iluminismo de emancipação e autorrealização”. (DOUZINAS, 2007, p. 13). Ao atentar que os direitos humanos são consignados às pessoas por causa de sua posição social, as violações dos valores são consignadas a título simbólico ante a distribuição de capital, pois, apenas certas pessoas tem humanidade. Vê-se, pois, que as pretensões morais desses direitos não comportam concordância com a leitura empírica, afirma Gabriel Marcel: “(...) que a vida humana nunca foi tão universalmente tratada como uma comodidade perecível tal qual em nossa própria época.” (MARCEL, 1964, p. 94, tradução nossa)21. Segundo Douzinas: “Se o século XX é a era dos direitos humanos, seu triunfo é, no mínimo, um paradoxo. Nossa época tem testemunhado mais violações de seus princípios do que qualquer uma das épocas anteriores e menos iluminadas” (DOUZINAS, 2007, p. 20). Nesse pesar: “(...) é como se o luto, mais do que a comemoração, virasse a cara do final do milênio” (DOUZINAS, p. 24). Mais recentemente, o que se poderia chamar de uma nova ordem humanitária22, na qual o sofrimento das pessoas não é computado: “As “vitórias em nome da liberdade e da democracia” no Afeganistão e no Iraque confirmaram isso. Essas vitórias foram afogadas em um naufrágio dos direitos humanos para as pessoas locais”. (DOUZINAS, 2007, p. 15) O desafio é por desmascarar a instituição liberal dos direitos humanos, em tentativa de permitir a desconstrução e consequente resgate de tais direitos para além de seu âmbito de validação, através da investigação proposta busca-se demonstrar que: Quando os apologistas do pragmatismo decretam o fim da ideologia, da história ou da utopia, eles não assinalam o triunfo dos direitos humanos; ao contrário, eles colocam um fim nos direitos humanos. O fim dos direitos humanos chega quando eles perdem o seu fim utópico. (DOUZINAS,2007, p. 13)

Apesar da clara tendência dos juristas em atribuir as debilidades e abusos na democracia constitucional a um déficit de efetividade social, como simplório percalço no funcionamento das instituições, não é a compleição das relações de poder e do maquinário constitucional. Tem-se a moldura dos direitos humanos para adequação aos fins políticos desejados, em que: “(...) o paradoxo é o princípio organizador dos direitos humanos.” (DOUZINAS, 2007, p. 13) Almeja-se, assim, resistir à dominação e a opressão institucional. Ao constatar que, os Direitos Humanos perdem este objetivo, ou possibilidade, quando constituem a versão contemporânea de missão civilizatória europeia, pois cumprem com o papel de ideologia política prevalente. 3. COLONIALISMO E FORMAÇÃO OCIDENTAL DOS DIREITOS HUMANOS Neste início do capítulo, destaca-se o paradoxo que diz respeito à dimensão universal do 20 The gap between the triumph of human rights ideology and the disaster of their practice is the best expression of postmodern cynicism, the combination of enlightenment with resignation and apathy and, with a strong feeling of political impasse and existential claustrophobia, of an exitlessness in the midst of the most mobile society. (DOUZINAS, 2000, p. 12) 21  “(...) that human life has never been as universally treated as a vile nad perishable commodity as during our own era.” (MARCEL, 1964, p. 94) 22  Na qual, os direitos humanos e suas relações estão atrelados a política global: “encontram-se entranhados (...) suas reivindicações adotadas, absorvidas, e reflexivamente seguradas contra objeções.” (DOUZINAS, 2007, p. 16)

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ideal de humanidade, isto porque, não contém significado estático e inquestionável. De tal forma, questiona-se sua condição de fonte moral capaz de justificar a produção dos Direitos Humanos23. Para tanto, identifica-se a concepção de humanidade nos processos coloniais, como suporte transcendental à construção do humano. Por mais que se afirmem como inerentes esses direitos, as vicissitudes são inegáveis, o que poderia parecer “contraditório”, pois aquele que o promove é o seu maior violador24: De um testemunho judicial às vicissitudes da saga direitos humanos, percebe-se que estes não são simplesmente “um conceito ocidental”. Como mostra as evidências históricas, o Ocidente tem sido também um inimigo -o mais mortal?- À sua existência. Tanto quanto o Ocidente produziu tratados, manifestos e documentos legais que consagram esses direitos, como também foi o deflagrador em grande escala de crimes inomináveis como o colonialismo –longo período de “violação dos direitos humanos”- bem como as atrocidades nazistas. (BARRETO, 2013, p. 18, tradução nossa)25

Diante disso, permite-se conceber que o poder e a moralidade humanitária não estão distantes um do outro. Em absoluto. O conhecimento moral produzido revela-se adstrito às praticas dominantes, pois o campo de produção pressupõe e constitui ao mesmo tempo relações de poder: “Não há relação de poder sem a correlativa constituição de um campo de conhecimento, nem qualquer conhecimento que não pressuponha e constitua ao mesmo tempo relações de poder.” (FOUCAULT, 1979, p. 27, tradução nossa)26. Portanto, revela-se outro paradoxo quanto à oposição de poder e moralidade. Destaca-se, atualmente, a mesma dialética entre Direitos Humanos e soberania, bem como, império e cosmopolitanismo. O curso da humanização não se opôs a dominação e concentração de poder, que se deu na ocupação da colônia, sua libertação e consequente inclusão no âmbito internacional como estado-nação. Da fala de Robert Cooper, consultor do governo britânico, podemos perceber o viés do imperialismo pós-moderno: O que é necessário, então, é um novo tipo de imperialismo, um aceitável para o mundo de direitos humanos e valores cosmopolitas. Já podemos discernir o seu contorno: um imperialismo em que, como tudo o imperialismo, tem por objetivo trazer ordem e organização, mas que repousa hoje sobre o princípio do voluntariado (COOPER, 2002, tradução nossa)27. 23  Questiona Lynn Hunt acerca do paradoxo de autoevidência desses direitos: “(...) afirmação de autoevidência, crucial para os direitos humanos mesmo nos dias de hoje, dá origem a um paradoxo: se a igualdade dos direitos é tão autoevidente, por que essa afirmação tinha de ser feita e por que só era feita em tempos e lugares específicos? Como podem os direitos humanos são universais se não são universalmente reconhecidos?” (HUNT, 2009, p. 18) 24  Para Derrida, o État Voyou, Rogue State, ou Estado Vadio é: “(...) o Estado que não respeita os seus deveres de Estado diante da lei da comunidade mundial e as obrigações do direito internacional, o Estado que ultraja o direito – e que troca do Estado de direito.” (DERRIDA, 2005, p. 33) E, o que poderia ser uma surpresa, mas não é, que segundo Derrida os Estados Unidos da América é o maior Rogue State, afinal exerce a razão do mais forte em oposição ao discurso prevalente, quando não contempla seus interesses. 25 For a judicious witness to the vicissitudes of the human rights saga they are not simply “a Western concept”. As historical evidence shows, the Occident has been also an enemy―the deadliest?―to their existence. As much as the West has produced treatises, manifestos and legal documents that enshrine rights, the Occident has also been the perpetrator of large scale and unspeakable crimes such as that of colonialism―an age long “violation of human rights”―as well as the Nazi atrocities. (BARRETO, 2013. p. 18) 26  “There is no power relation without the correlative constitution of a field of knowledge, nor any knowledge that does not presuppose and constitute at the same time power relations.” (FOUCAULT, 1979, p. 27) 27 What is needed then is a new kind of imperialism, one acceptable to a world of human rights and cosmopolitan values. We can alerady discern its outline: an imperilism which, like all imperialism, aims to bring order and organisation but which rests today on the voluntary principle.(COOPER, 2002)

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Esse voluntarismo é o elemento simbólico capaz de permitir o controle e vigilância da liberdade, temos a manifestação de poder simbólico para a representação de mundo, característico da experiência dóxica: O poder de constituir o dado pela enunciação, de fazer ver e fazer crer, de confirmar ou de transformar a visão do mundo e, deste modo, a ação sobre o mundo poder quase mágico que permite obter o equivalente daquilo que é obtido pela força (física ou econômica), graças ao efeito específico de mobilização, só se exercer se for reconhecido, quer dizer, ignorado como arbitrário. (BOURDIEU, 2006, p.14)

Dito isto, não quer dizer que sejam eliminados conflitos, de maneira alguma, averígua-se que a operacionalidade atual dos Direitos Humanos não afasta a guerra das relações de poder, mas, conduzem a produção de insopitáveis conflitos que são dissimulados em seu poder simbólico.28 Muito embora, retire-se o véu de completude do direito sobre as relações sociais, através da normatividade internacional e roupagem jurídica do constitucionalismo: (...) a alegação de que as relações de poder podem ser plenamente traduzidas para a linguagem da lei e dos direitos nunca foi totalmente digna de crédito e agora está mais esfarrapada do que nunca. Estamos sempre enredados em relações de força e reagimos às exigências do poder que, como Foucault argumento convincentemente, são colocadas em prática e estão disfarçadas em formas jurídicas (DOUZINAS, 2007, p. 25).

Trata-se de problema observado por Rancière quando da exclusão da “parte que não tem parte” (RANCIÈRE, 1996). Por exemplo, para ilustrar o papel do científico na manifestação dominante na contemporaneidade, traz-se a recente situação dos índios guarani-kaiowás na sociedade brasileira, o que nos revela a expansão do controle pela inclusão humanista, em que “a vigilância assimétrica tende a gerar o papel do “educador”, e não a de um de mero expert em coerção (embora os dois papéis não estejam obrigatoriamente em oposição)” (BAUMAN, 2010, p. 74). Contrariamente a história produzida pelo homem europeu29, pugna-se por retirar o polo discursivo do centro europeu, e atentar aos aspectos marginalizados pela história incorporada em busca de um resgate crítico das práticas anticolonialistas desses direitos. Pois, não se pode almejar o idealismo de um retorno às origens, mas, resistência à violência e institucionalização presente. Nesse sentido, aponta-se aspecto do processo colonial espanhol na América latina, o debate Las Casas e Sepúlveda30, que nos permite compreender os métodos de operacionalização da ideologia dominante. Atenta-se, ao aspecto excludente do universalismo, pois é capital para o direito tornar algo absoluto e depois estabelecer seus limites31. 28  Ao ser avaliado o cenário recente, com os eventos de nossa época suportados pelo humanismo que se concebe fazer relação com a mácula colonialista: a) o catálogo de direitos humanos para exportação; b) imposição dos ideais democráticos; c) legitimação do soberano nos estados-nação; d) noção de guerra justa; e) combate ao terrorismo; f) modelo de economia capitalista; g) demonização do comunismo; h) guerras neocoloniais no oriente médio; i) os embates étnicos na África; j) guerra de Kosovo; Iraque; Afeganistão k) guerra do Vietnã; l) financiamento das milícias africanas; m) desenvolvimentismo nuclear e exploração do petróleo; n) dumping social; o) o controle das fronteiras e imigração; p) ajuda humanitária; q) mercado financeiro; r) proliferação das multinacionais e exportação de bens; dentre outros. 29  Na pós-modernidade prevalece à formalização por um conjunto de experts (eurocêntricos), nas palavras de Boaventura de Sousa Santos: A hegemonia do conhecimento-regulação significou a hegemonia da ordem, enquanto forma de saber, e a transformação da solidariedade – a forma de saber do conhecimento emancipação – numa forma de ignorância (...). (SOUSA SANTOS, 2000, p. 119) Veremos, no momento pertinente, como o campo científico define o espaço regulador em oposição a qualquer possibilidade de emancipação. 30  Importante situar o momento de Bartolomé de Las Casas (1484-1566); Juan Ginés de Sepúlveda (1489-1565); bem como, Francisco Suárez (1548-1617); Francisco de Vitoria (1483-1546) que serão mencionados em breve. 31  Referência ao texto de Enrique Dussel, intitulado “Las casas, Vitoria and Suárez, 1514-1317” que integra a obra:

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Ginés de Sepúlveda concebeu que o colonizado deve ser dizimado e sacrificado por seus próprios males, por ser inumano e representar o mal, tem de ser extirpado. Para ele, a sujeição dos indígenas é justa, pois implica na própria preservação dos ideais cristãos e condução do processo civilizatório da humanidade. (cf. DUSSEL, 1993) Em oposição, Bartolomé de Las Casas professou crítica ao método de Encomienda (submissão dos indígenas a ordem religiosa através da escravidão para salvação de suas almas), pois reconheceu a importância da catequização, de submissão aos ideais europeus e cristãos sem a violência que segundo ele iria extirpar a possibilidade de humano dos indígenas. (LAS CASAS, 1986) Ainda com base na concepção de direito natural, pois o indígena possui liberdade para aquiescer ou não os direitos naturais. De tal forma, a imposição de violência física não implicava na promoção dos ideais cristãos, mas ao uso desmedido da força que conduz à sujeição do outro. Entretanto, apesar dessa abertura para a não aceitação, as tribos indígenas não deixaram de ter selvagens inferiorizados, consequentemente, sujeitos a inclusão no discurso humanista para adoção da imagem do europeu. Conforme vimos, em Las Casas, não pela força impositiva das armas. Conclui-se, que, cada qual, mostrou-se servível a agregar o ideal humanista europeu. Muito embora, caiba destacar o manifesto contrário à violência física sem limites de Las Casas e a possibilidade de consideração da alteridade. Muitos referenciam tal posicionamento como a primeira grande crítica à modernidade. (cf. WALLERSTEIN, 2007) Cabe mencionar também, Francisco de Vitória, com a concepção universalista através da racionalidade dos direitos naturais, capaz de justificar a sujeição e exclusão do indígena no domínio do estado moderno. Ao justificar o indígena tão somente quando reconhecida “sua” humanidade pelo discurso racional. Nesse sentido, conferiu aporte à ordem universal, na qual os direitos tem relação com as construções ideológicas prevalentes. Não seria absurdo, compreender a dilação de Vitória em suporte da formação da lei internacional e promoção dos direitos naturais pelos europeus, pois, todo um plexo de relações de exploração e expansionismo econômico passou a ser legitimado na jurisdição internacional. A partir disso, faz-se ligação histórica dos eventos coloniais aos Direitos Humanos, pois o exercício de violência e operacionalidade das instituições preserva ambos os métodos de tratativa para com o subalterno. Às vezes com uma violência corporal, ou, através da submissão institucional e simbólica, conjugadas em nome dos Direitos Humanos. Sem esquecer-se do dever de genealogia, em contraposição a história produzida pelo homem europeu, pugna-se por retirar o polo discursivo da razão eurocêntrica, e atentar aos aspectos marginalizados pela história incorporada em busca de um resgate crítico das praticas anticolonialistas desses direitos. Dito isto, faz-se a ligação histórica dos eventos coloniais através da percepção de contexto social que suplanta as praticas particulares, as quais, foram capazes de resultar na hegemonia dos Direitos Humanos: “(…)Na medida em que essa conexão é feita, é evidente que a teoria hegemônica dos direitos humanos é o fruto de uma perspectiva particular fundamentada em um contexto histórico e geográfico.” (BARRETO, 2013, p. 05, tradução nossa)32 Walter Mignolo, ao conceber o conceito de geopolítica do conhecimento impele seja deixado de lado o foco na origem da verdade, pois se dá nas relações de poder e conhecimento, necessária à percepção dos rastros históricos das construções de verdades. Anuncia José-Manuel Barreto: A geopolítica do conhecimento é uma epistemologia contextualista na medida em que encontra na política e na história os fundamentos para o conhecimento. No entanto, a geopolítica do conhecimento não busca localizar a fonte de “verdade” em um quadro sócio-econômico com as implícitas fronteiras nacionais, mas no meio da história do mundo moderno considerada como um todo - se afasta da história do capitalismo mundial, ou, o que é o mesmo, imperialismo moderno, ou seja, a his“Human Rights from a Third World Perspective: Critique, History and International Law”, organizada por José-Manuel Barreto. 32 (…) such a connection is made, it is evident that the hegemonic theory of human rights is the offspring of a particular perspective grounded on a historical and geographical context.”(BARRETO, 2013, p. 05)

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tória das relações entre impérios e colônias desde o final do século XV (BARRETO, 2013, p. 03, tradução nossa)33.

Há de se pontuar que a secção temporal colonialista abrange uma tradição de cinco séculos: (...) desde o início da modernidade, em momentos e lugares diferentes, as ideias de direitos naturais e direitos humanos têm sido aproveitadas pelos povos colonizados a se opor ao imperialismo e aos abusivos regimes nacionais, empreendimento cultural e político que já constitui longa tradição de cinco séculos (BARRETO, 2013, p. 19, tradução nossa)34.

A mencionar, a conquista da América como marco divisor da modernidade para o descolonialismo, em contrariedade a cronologia acadêmica tradicional (que enaltece o contexto intraeuropeu, renascimento, as revoluções liberais…): “Um dos princípios fundamentais da historiografia dos direitos neste horizonte de compreensão é a ideia segundo a qual a história dos direitos humanos na modernidade começa com a conquista da América.” (BARRETO, 2013, p. 20, tradução nossa)35. Com ênfase em perspectiva das praticas intermitentes a partir do processo de colonização busca-se demonstrar as origens coloniais dos Direitos Humanos. É por isso que se tem por necessário opor-se ao que foi construído, ao homem europeu dos Direitos Humanos que há em cada um dos colonizados, resultante do processo de colonização: Assim a Europa multiplicou as divisões, as oposições, forjou classes e por vezes racismos, tentou por todos os meios provocar e incrementar a estratificação das sociedades colonizadas. Fanon não dissimula nada: para lutar contra nós, a antiga colônia deve lutar contra ela mesma. (SARTRE, 1968, p. 06)

Destaca-se, o contexto revolucionário em San Domingo no Haiti concomitante à Revolução Francesa, na obra “Os jacobinos negros: Toussaint L’Ouverture e a revolução de São Domingos” escrito por C. L. R. James.(C.L.R., 2000) Tal evento antecedeu a tão cultuada Revolução Francesa. Não é novidade, Frantz Fanon fez minuciosa leitura do processo de colonização dos países africanos, principalmente da Argélia, ao iniciar sua obra: O mundo colonial é um mundo dividido em compartimentos. Sem dúvida é supérfluo, no plano da descrição, lembrar a existência de cidades indígenas e cidades européias, de escolas para indígenas e escolas para europeus, como é supérfluo lembrar o apartheid na África do Sul. (FANON, 1968, p. 27)

Em consequência dessa discrepância tem-se a repercussão da imagem do ser no outro, constrói-se o europeu de cada colonizado, são os “frankensteins” criados pelo colonialismo: O olhar que o colonizado lança para a cidade do colono é um olhar de luxúria, 33 The geopolitics of knowledge is a contextualist epistemology in as much as it finds in politics and history the grounds of knowledge. However, the geopolitics of knowledge does not locate the source of “truth” in a socioeconomic framework with implicit national borders, but in the milieu of the history of the modern world considered as a whole—it departs from the history of world capitalism or, what is the same, modern imperialism, in the history of the relations between empires and colonies since the late Fifteenth century. (BARRETO, 2013, p. 03) 34 (…) since the very beginning of modernity, at different times and in different places, the ideas of natural rights and human rights have been seized upon by colonized peoples to oppose imperialism and abusive national regimes, a cultural and political endeavor that already constitutes a five centuries long tradition. (BARRETO, 2013, p. 19) 35 One of the key tenets of the historiography of rights in this horizon of understanding is the idea according to which the history of human rights in modernity starts with the Conquest of America.”(BARRETO, 2013, p. 20)

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um olhar de inveja. Sonhos de posse. Tôdas as modalidades de posse: sentar-se à mesa do colono, deitar-se no leito do colono, com a mulher dêste, se possível. O colonizado é um invejoso. O colono sabe disto; surpreendendo-lhe o olhar, constata amargamente mas sempre alerta: “Êles querem tomar o nosso lugar.”: É verdade, não há um colonizado que não sonhe pelo menos uma vez por dia em se instalar no lugar do colono. (FANON, 1968, p. 29)

A divisão sequer é mascarada no colonialismo, Fanon constata que a infraestrutura econômica é igualmente uma superestrutura, isto porque: “A causa é conseqüência: o indivíduo é rico porque é branco, é branco porque é rico. (...) A espécie dirigente é antes de tudo a que vem de fora, a que: não se parece com os autóctones, “os outros”.”(FANON, 1968. p. 30) De igual maneira, Aníbal Quijano, quando trata da situação da anglo-américa: “(...) isto foi, acima de tudo, através de uma associação quase exclusiva de brancura com os salários e, é claro, com as posições de maior grau na administração colonial” (QUIJANO, 2008, p. 537)36. Logo, há que se fazer uma relação com a necessidade de questionar o colonialismo para além do limite territorial, tanto é, que, a divisão de fronteiras, ante a consequente independência da colônia, não afasta sua herança maldita. Para que se permita romper com esse plexo dominante é imprescindível questionar a história hegemônica, aquela que foi produzida pelo vencedor, o europeu: “O colono faz a história. Sua vida é uma epopéia, uma odisséia. Êle é o comêçoabsoluto: “Esta terra, fomos nós que a fizemos”: É a causa contínua: “Se partirmos, tudo estará perdido, esta terra regredirá à Idade Média”. (...) O colono faz a história e sabe que a faz.” (FANON, 1968, p. 38) A gênese dos processos históricos de colonização nos revela que a exploração inicial de matéria prima, a humilhação e continua submissão do colonizado durante a ocupação territorial não se mantém, visto que as práticas violentas conduzem a deturpações do sistema inicialmente infirmado (FANON, 1968, p. 50). Tais práticas implicam em uma insatisfação generalizada, capaz de deflagrar movimentos de oposição ao regime colonial. Em resposta, o País colono sagra pela contenção violenta, até certo ponto. Portanto, quando o regime colonial e a escravização local não mais se sustenta, o colono vê uma alternativa econômica viável na transição colonial, que resultou na autonomia territorial da colônia: O capitalismo, em seu período de: desenvolvimento, via nas colônias uma fonte de matérias-primas que, manufaturadas, podiam espalhar-se no mercado europeu. Depois de uma fase de acumulação do capital, impõe-se hoje modificar a concepção da rentabilidade de um negócio. (FANON, 1968, p. 38)

Em detrimento dos auspícios econômicos e êxito do projeto de dominação, tem-se o término do massacre37: Pobre colono: eis sua contradição posta a nu. Deveria, dizem, como faz o gênio, matar as vítimas de suas pilhagens. Mas isso não é possível. Não é preciso também 36  “(...) This was, above all, through a quasi-exclusive association of whiteness with wages and, of course, with the high-order positions in colonial administration.” (QUIJANO, 2008, p. 537) 37  A relação entre a viabilidade econômica e os processos e dominação, fazem parte de uma leitura conjugada das práticas coloniais, na América vê-se a tratativa conferida ao indígena, tanto é que: “Quando Cortez deve dar sua opinião acerca da escravização dos índios, encara o problema de um único ponto de vista: o da rentabilidade do negócio(...).” (TODOROV, 2011, p. 189). Afinal, a própria existência do indigenato passou a ser afetada: “Lembraremos que em 1500 a população do globo deve ser da ordem de 400 milhões, dos quais 80 milhões habitam as Américas. (…) Se a palavra genocídio foi alguma vez aplicada com precisão a um caso, então é esse. É um recorde, parece-me, não somente em termos relativos (uma destruição da ordem de 90% ou mais), mas também absolutos, já que estamos falando de uma diminuição da população [nativa] estimada em 70 milhões de seres humanos. Nenhum dos grandes massacres do século XX pode comparar-se a esta hecatombe.” (TODOROV, 2011, p. 192).

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que as explore? Não podendo levar o massacre até ao genocídio e a servidão até ao embrutecimento, perde a cabeça, a operação de desarranjo e uma lógica implacável há de conduzi-la até à descolonização. (SARTRE, 1968, p. 06)

Até porque, em dado momento, é insustentável a fruição lucrativa do colono durante a ocupação, em meio a inúmeras atrocidades e à submissão do colonizado, tal processo de dominação que impele força física foi deixado de lado: Por esse motivo os colonos veem-se obrigados a parar a domesticação no meio do caminho: o resultado, nem homem nem animal, é o indígena. Derrotado, subalimentado, doente, amedrontado, mas só até certo ponto, tem êle, seja amarelo, negro ou branco, sempre os mesmos traços de caráter: é um preguiçoso, sonso e ladrão, que vive de nada e só reconhece a força. (SARTRE, 1968, p. 06)

A denotar que, em regra, apesar dos esforços conduzidos pelo povo dominado, não consegue alcançar a ruptura com o sistema de exploração, mas contemporizações. Mas o que permite a aceitação dessa transposição à independência de forma “harmônica”?! O resultado da própria construção do colonizado como espelho distorcido do europeu, com o desejo de assumir sua posição: Prevalece a crença de que os povos europeus atingiram um alto grau de desenvolvimento em conseqüência de seus esforços. Provemos então ao mundo e a nós mesmos que somos capazes de iguais realizações. Êsse modo de colocar o problema da evolução dos países subdesenvolvidos não nos parece justo nem razoável (FANON,1968, p. 76).

Segundo Quijano o posicionamento do dominante diante da exploração laboral e da produção tem relação com o interesse do capital e os gastos realizados na escala de um mercado global, ao englobar os institutos da escravidão, servidão, trabalho assalariado, dentre outros. Em oposição à linearidade tradicional, não se pode considerar tais formas de controle do trabalho como integrantes de uma cadeia progressiva da história civilizatória, devem ser considerados no momento e contexto de sua implementação (QUIJANO, 2008, p. 537)38. Todas essas foram implementadas conjuntamente na América para cumprir com o interesse do capitalismo e às exigências do mercado global: Escravidão, na América, foi deliberadamente estabelecida e organizada como uma ordem de comodidade para produzir bens ao mercado mundial e para servir aos propósitos e necessidades do capitalismo. Da mesma forma, a servidão imposta aos índios, inclusive a redefinição das instituições da reciprocidade, foi organizada a fim de servir os mesmos fins: produzir mercadorias para o mercado global. A produção independente de comodidade foi estabelecida e expandida para os mesmos fins (QUIJANO, 2008, p. 550, tradução nossa)39.

Dessa forma, o controle de labor tem relação com o modelo de poder, desde o colonialismo até o capitalismo globalizado, veremos que a colonialidade persiste nas relações de dominação: 38  Na colonização da América, a dizimação dos indígenas conduziu a um momento de insustentabilidade do regime estabelecido e dos métodos de colonização, o que levou ao término dos regimes da encomiendas, para a servidão. (cf. QUIJANO, 2008, p. 538) 39 “Slavery, in America, was deliberately established and organized as a commodityin order to produce goods for the world market and to serve the purposes and needs of capitalism. Likewise, the serfdom imposed on Indians, including the redefinition of the institutions of reciprocity, was organized in order to serve the same ends: to produce merchandise for the global market. Independent commodityproduction was established and expanded for the same purposes.” (QUIJANO, 2008, p. 550)

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No processo histórico de constituição da América, todas as formas de controle e exploração de trabalho e da produção, bem como o controle de apropriação e distribuição de produtos, girava em torno da relação entre capital e salário e do mercado mundial. Estas formas de trabalho incluído escravidão, servidão, pequena produção mercantil, regime de trocas, e os salários. Em tal assembléia, cada forma de controle do trabalho não era uma mera extensão de seus antecedentes históricos. (...) pois não foram deliberadamente estabelecidas e organizadas para produzir mercadorias para o mercado mundial; (...) e nem se limitaram a existir simultaneamente no mesmo espaço/tempo, mas cada um deles foi também articulada ao capital e seu mercado (QUIJANO, 2008, p. 536, tradução nossa)40

Mantém-se, o êxito colonialista: O bem-estar e o progresso da Europa foram construidos com o suor e o cadáver dos negros, árabes, índios e amarelos. Convém que não nos esqueçamos disto. Quando um país colonialista, coagido pelas reivindicações de independência de uma colônia, proclama diante dos dirigentes nacionalistas: “Se querem a independência, ei-la, voltem à Idade Média”, o povo recém-emancipado tende a aquiescer e aceitar o repto (FANON, 1968, p. 77).

E, o que parecia para os colonizados um processo de independência capaz de romper os laços com o colono, em razão do domínio econômico que conduz a impossibilidade de disputa com o antigo mundo, logo, “a apoteose da independência transforma-se em maldição da independência.” (FANON, 1968, p. 77). Então, após a “libertação” dessas colônias, os Países têm suas práticas econômicas restritas a disputa de restos, explico. Estão aptos a explorar seus produtos locais resultado dos métodos de produção ultrapassados com relação ao país colono, que, permite-se lucrar com o fato de que: “a economia nacional do período da independência não é reorientada.” (FANON, 1968, p. 127). Sempre passos atrás, essa atividade econômica desenvolve-se para a migração forçada e a urbanização, tendo por base, praticas indesejáveis de serem realizadas no território das potências imperialistas, o que conduz a uma massa de explorados sem qualificação técnica e condições de vida precárias ante a exploração dos detentores de capital. A concluir que as praticas dominantes do imperialismo também estão presentes no âmbito do estado-nação fruto do processo de colonização. Destaca-se, o papel da burguesia colonizada41 resultante da transferência de ordem neocolonialista: Como vemos, não se trata de uma vocação de transformar a nação, mas prosaicamente de servir de correia de transmissão a um capitalismo encurralado na dissimulação e que ostenta hoje a máscara neocolonialista. A burguesia nacional vai deleitar-se, sem complexos e com tôda dignidade, no papel de procuradora da bur40  “In the historical process of the constituion of America, all forms of control and explotation of labor and production, as well as the control of appropriation and distribution of products, revolved around the capital-salary relation and the world market. These forms of labor included slabery, serfdom, petty-commodity production, recirpocity, and wages. In such na assemblage, each form of labor control was no mere extension of its historical antecedents. (...) they were deliberately established and organizaed to produce commodities for the world market; (...) they did not merely exist simultaneously in the same space/time, but each one of them was also articulated to capital and its market.” (QUIJANO, 2008, p. 536) Ou seja, os índios continuaram a ser a mão-de-obra controlada, inferiorizados com relação ao europeu. Mas, em tal momento apenas passaram a fazer jus a salários. Inclusive, inferiories aos brancos em atribuições que não eram de seu interesse realizar como detentor do capital desenvolver. 41  Cabe noticiar a profusão de ditaduras no leste, na Ásia, com a reprodução dos modelos ocidentais: “A violência liberada pelo colapso do comunismo foi outra vez contida pelos novos governos e pelas novas máfias no leste, que têm a mesma aparência dos governos e das máfias do Ocidente.” (DOUZINAS, 2007, p. 25) Faz-se referência ao filme “The act of killing”, documentário que retrata a situação na Indonésia, com a perseguição ao comunismo e a formação das ditaduras.

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guesia ocidental (FANON, 1968. p. 127).

Não é de se espantar, a diversão “censurada” nos países colonizados42: Se se deseja uma prova dessa eventual transformação dos elementos da burguesia ex-colonizada em organizadores de parties para a burguesia ocidental. vale a pena evocar o que se passou na América Latina. Os cassinos de Havana, do México, as praias do Rio, as meninas brasileiras, as meninas mexicanas, as mestiças de treze anos, Acapulco, Copacabana, são ,estigmas dessa depravação da burguesia nacional (FANON, 1968, p. 128)43.

A hipótese é de que o humanismo tem relação com a divisão de mundo pelo racionalismo moderno, em que a matriz colonial revela a sujeição do outro aos padrões prevalentes, para tanto é invisibilizado e legitimada sua exclusão. Afinal, o negro; o índio; o nativo; o escravo; o pobre; o estrangeiro; o homossexual; a mulher; não são pensados pela noção central de sujeito de direitos, qual seja, o homem europeu. É por isso tudo, que, na tentativa de descolonização não se pode desconsiderar a espúria condição dos países em razão da colonização, adverte Fanon quanto à cautela a ser tomada para evitar a ilusão de que tais práticas foram ultrapassadas: A descolonização, sabemo-lo, é um processo histórico, isto é, não pode ser compreendida, não encontra a sua inteligibilidade, não se torna transparente para si mesma senão na exata medida em que se faz discernível o movimento historicizante que lhe dá forma e conteúdo (FANON, 1968. p. 179).

A referida obra analisada do autor trata de manifesto capaz de revelar os perigos dos diversos mecanismos e operacionalizações hábeis a sustentar o sistema imperialista, que se expandiu, conforme esse escrito, ao discurso hegemônico de Direitos Humanos. É, a partir da crítica à concepção universalista da modernidade e ao colonialismo, que se permite analisar as violações e exclusão promovida pelo humanismo dos Direitos Humanos. 4. CONCLUSÃO Destacou-se, no presente artigo, o posicionamento crítico de Costa Douzinas acerca dos Direitos Humanos, pois, sofreram uma mutação de uma possível defesa contra o poder para a modalidade de suas operações, que não se reconhece como tal, pois, sucedem ao fim da história, e, apesar de não possuírem um significado comum, unificam as mais díspares pessoas e instituições na ordem global. Os Direitos Humanos tem origem particular no âmbito Europeu, mas almejam atingir submissão de forma universal com a doxa. Percebe o autor, um cinismo pós-moderno visto que esses valores estão em contínua discrepância com as praticas que legitima, é patente, à disparidade entre o discurso simbólico e a realidade vivenciada. Em contrariedade a tradição eurocêntrica, apontou-se a perspectiva descolonialista em análise do poder geopolítico na produção desses direitos, perceptível na obra de José-Manuel Barreto, dentre outros. Propõe-se, a partir de investigação histórica, demonstrar a experiência doxa infirmada nes42  Praticas vedadas nas potências civilizadas, são escancaradas nas áreas oriundas do processo de colonização (prostituição, exploração sexual, uso de drogas, festas...), é o paraíso do pecado para os moradores do céu. (cf. FANON, 1968, p. 160/189) 43  Em específico, a fruição do empresariado dos Estados Unidos na América latina: “Atenda uma vez convém ter diante dos olhos o espetáculo lamentável de certas repúblicas da América Latina, Com um simples bater de asas, os homens de negócios dos Estados Unidos, os grandes banqueiros, os tecnocratas desembarcam “nos trópicos” e durante oito a dez dias afundam-se na doce depravação que lhes oferecem suas “reservas”. (FANON, 1968. p. 128)

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ses direitos que se estendeu aos Países de terceiro mundo. Assim sendo, abandonou-se a crença incorporada nas práticas ditas civilizadas. Fez-se análise do relato historiográfico de Frantz Fanon acerca das diversas etapas do processo de colonização, em meio ao projeto imperialista de dominação conduzido pelos Países Ocidentais. Em oposição, busca-se romper com o plexo estruturante desses direitos, propôs-se a desconstrução conforme os escritos de Jacques Derrida. A despeito disso, tem-se crítica comprometida em questionar as práticas ditas por civilizatórias residentes na cruzada cultura inserta ao ideal racional do homem moderno. Para tanto, é imperioso analisar os influxos das relações de poder e a violência simbólica como pano de fundo aos Direitos Humanos. Com isso, demover o ideal humanista em remissivo a sua construção expansiva. Verifica-se, que, os Direitos Humanos constituem a moral determinante da concepção prevalente em meio à formação da doxa, que tem relação imperiosa com os processos colonialistas. REFERÊNCIAS BAUMAN, Zygmunt. Legisladores e intérpretes. Rio de Janeiro: Zahar, 2010. BARRETO, José-Manuel. Human Rights from a Third World Perspective: Critique, History and International Law. Newcastle: Cambridge Scholars Publishing, 2013. BIELEFELDT, Heiner. Filosofia dos direitos humanos. São Leopoldo: Unisinos, 2000. BOURDIEU, Pierre. Razões Práticas: sobre a teoria da ação. Campinas: Papirus, 1996. ______. O Poder Simbólico. 12. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2006. C.L.R. James. Os jacobinos negros:Toussaint L’Ouverture e a revolução de São Domingos.São Paulo: Boitempo, 2000. COOPER, Robert. The New Liberal Imperialism, Sunday 7, april 2002 12.13 BST, www.theguardian.com/world/2002/apr/07/1, 2002, acessado em 19/09/2013. DERRIDA, Jacques. Força de Lei. Trad.: Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Martins Fontes, 2010. ______. Vadios. Tradução. Fernanda Bernardo. Ed. Terra Ocre, Coimbra. 2005. DOUZINAS, Costas. O fim dos direitos humanos. São Leopoldo: Unisinos, 2007. ______. The End of Human Rights: Critical Legal Thought at the Turn of the Century. Oxford: Hart Publishing, 2000. ______. Os paradoxos dos direitos humanos, palestra proferida no Brasil, UFPR, traduzida por Caius Brandão, em 2012. ______. Athens Revolting: Three Meditations on Sovereignty and One on Its (Possible) Dismantlement. Law And Critique, London, v. 21, n. 3, p.261-275, nov. 2010. DUSSEL, Enrique. 1492: o encobrimento do outro: a origem do mito da modernidade. Petrópolis: Editora Vozes, 1993. FANON, Frantz. Os condenados da terra. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968. FITZPATRICK, Peter. A mitologia na lei moderna. São Leopoldo: Unisinos, 2007. FOUCAULT, Michel. Discipline and Punish: The Birth of the Prison. New York: Pantheon, 1977. ______. História da Sexualidade: a vontade de saber. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1988. 103

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TEORIAS JURÍDICAS CONTEMPORÂNEAS: UMA ANÁLISE CRÍTICA SOB A PERSPECTIVA INSTITUCIONAL

Rafael Bezerra de Souza1 Carlos Bolonha2

1. INTRODUÇÃO Nas últimas décadas a teoria do direito e a teoria constitucional têm-se debruçado na busca persistente por um padrão decisório consensual, que represente a superação do paradigma jurídico positivista, bem como, propicie a utilização de critérios interpretativos racionais, universais e objetivos que limitem a discricionariedade judicial, ao tempo que assegure a garantia de direitos fundamentais, a segurança jurídica e a legitimidade das decisões3. 1 Advogado. Mestrando em Direito pela Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ (Rio de Janeiro-RJ, Brasil). Pesquisador do Laboratório de Estudos Teóricos e Analíticos sobre o Comportamento das Instituições (LETACI/FND/ UFRJ). E-mail: [email protected]. Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rua Moncorvo Filho, 8, Praça da República, Centro, 20211-340, Rio de Janeiro, RJ, Brasil. 2  Professor Adjunto da Faculdade Nacional de Direito e do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro. (Rio de Janeiro-RJ, Brasil). Coordenador do Grupo de Pesquisa: Laboratório de Estudos Teóricos e Analíticos sobre o Comportamento das Instituições (LETACI/FND/UFRJ) E-mail: carlosbolonha@direito. ufrj.br. Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rua Moncorvo Filho, 8, Praça da República, Centro, 20211-340, Rio de Janeiro, RJ, Brasil. *Este artigo fora publicado na edição n° 43, jul./dez. 2013, da Revista Direito, Estado e Sociedade, organizada pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC Rio), sendo elaborado no âmbito do Laboratório de Estudos Teóricos e Analíticos sobre o Comportamento das Instituições (LETACI). São financiadores do presente trabalho o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), no âmbito da concorrência do Edital Universal nº 14/2013 (Processo nº 483289/2013-2), e a Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ), no âmbito da concorrência do APQ-1, 2013 (Processo nº E-26/111.351/2013). 3  Como síntese deste intento teórico no sentido de desenvolver limites para a interpretação constitucional - apesar do equívoco de parcela considerável dos juristas brasileiros – tem-se a teoria sustentada por Robert Alexy, a qual apresenta o princípio da proporcionalidade como método de aplicação dos direitos fundamentais, estes, entendidos a partir de uma estrutura principiológica como mandados de otimização, quando concretizados, colidem com outro(s) direito(s) fundamental(is). Posteriormente, como resposta às inúmeras críticas recebidas, dentre elas a de Jürgen Habermas, no sentido de inexistir parâmetro racional para o sopesamento de direitos fundamentais, o referido autor reformulou a sua Lei da Ponderação, traduzida em fórmula de base matemática, propondo a ideia de representação

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Seguindo esta tendência, ecoa na doutrina constitucional brasileira forte influência de teorias normativas que se enquadram nas chamadas Teorias Constitucionais Contemporâneas4, especificamente o Neoconstitucionalismo e o Novo Constitucionalismo Latinoamericano, centrados no alargamento da Jurisdição Constitucional - sob a primazia do Poder Judiciário - e no fortalecimento do Poder Constituinte e na ampliação dos atores constitucionais - sob a primazia da soberania popular, respectivamente. Em contrapartida, o Constitucionalismo Contemporâneo (HIRSCHL, 2009, p. 139)5, principalmente a partir do começo do século XXI, vem adotando uma nova perspectiva acerca da análise das instituições jurídicas, a qual tem sido caracterizada como Virada Institucional6. Esta nova perspectiva metodológica considera que apesar dos teóricos constitucionalistas, em parte, haverem procedido um importante trabalho inicial de viés institucionalista na década de 1970, a doutrina jurídica até o momento ainda permanece em estado de cegueira quando do trato de certas questões institucionais(SUNSTEIN;VERMEULE, 2002, p. 48)7. Com efeito, a proposta da perspectiva institucional, típica da matriz norte-americana, lança mão de um viés pragmático, através do qual se vislumbra a consideração comportamental e funcional das instituições políticas, com foco na análise do desempenho da atividade institucional8, argumentativa como elemento de racionalidade discursiva para fundamentar a legitimidade do Tribunal Constitucional. Cf. ALEXY, 2007, pp. 53-54; 2008, pp. 576-593. 4  O termo utilizado acima, Teorias Constitucionais Contemporâneas, deve ser entendido em referência às teorias normativas que têm orientado a atuação das Cortes Superiores, com ênfase no fortalecimento da jurisdição constitucional sensível à força normativa da Constituição, à aplicação direta de suas normas e à interpretação das leis e fatos conforme as normas constitucionais. Estas possuem como ponto de partida a pergunta: como os juízes devem julgar?, bem como, enfatizam o papel preponderante do intérprete no processo de interpretação-aplicação constitucional. 5  Evidenciando a transição do Estado Democrático de Direito para o chamado Estado Constitucional de Direito, o Constitucionalismo Contemporâneo consolidou-se a partir do fim da II Guerra Mundial, possuindo como traços marcantes: a centralidade da Constituição, a supremacia judicial, e, nos últimos anos, a ascensão, o protagonismo e a hipertrofia institucional do Poder Judiciário no Brasil e em alguns países centrais, vislumbrando-se o desenvolvimento de uma pretensa onda global rumo à constitucionalização (HIRSCHL, 2009, p. 139). 6  O presente trabalho adota uma abordagem institucionalista contemporânea, sem perder de vista a contribuição das visões clássicas do Institucionalismo, desenvolvidas por Maurice Hauriou, Massimo La Torre, Santo Romano e Carl Schmitt, considerado como Velho Institucionalismo Jurídico. Esta postura renovada, considerada como Novo Institucionalismo Jurídico, mormente na década de 1990, possui como obras de referência: SUNSTEIN; VERMEULE, 2002, p. 2. Atualmente, são obras de referência para esta teoria institucional, as seguintes contribuições, entre outras: VERMEULE, Adrian.Mechanisms of Democracy: Institutional Design Writ Small. Cambridge, MA: Oxford University Press, 2007; PILDES, Richard. LEVINSON, Daryl. Separation of Parties, Not Powers. Harvard Law Review, Cambridge, v. 119, n. 1, 2006; WALDRON, Jeremy. The Core of the Case Against Judicial Review. The Yale Law Journal, New Haven, v. 115, n. 1344, 2006; VERMEULE, Adrian. Judging Under Uncertainty: an institutional theory of legal interpretation.Cambridge, MA: Harvard University Press, 2006; SUNSTEIN, Cass. A Constitution of Many Minds: Why the Founding Document Doens’t Means What It Meant Before. Princeton: Princeton University Press, 2009; POSNER, Eric; VERMEULE, Adrian. The Executive Unbound: after the madisonian republic. New York: Oxford University Press, 2011. Mais recentemente, VERMEULE, Adrian. The System of the Constitution. Cambridge, MA: Oxford University Press, 2011. Na doutrina brasileira, para o entendimento da Virada Institucionalista no âmbito das Ciências Sociais, as concepções clássicas e contemporâneas do Institucionalismo Jurídico. Cf. CAMARGO, M. L.; VIEIRA, J. R.; TAVARES, R. S.; RE, M. C.; CARVALHO, F. M.; PAIVA, C.; SOARES, B.; GAMA, F. A prática institucional e a representação argumentativa no caso Raposa Serra do Sol [primeira parte]. Revista Forense, Rio de Janeiro, v. 408, pp. 02-19, mar./abr. 2010. 7  Trata-se de importante objeto de pesquisa da Teoria Institucional, cujo foco são os processos de interpretação da Constituição e das normas infraconstitucionais, observando-se os desdobramento dessas atividades institucionais em um contexto jurídico-político. No trecho a seguir, Vermeule e Sunstein sintetizam o conceito de questões institucionais, enfatizando os conceitos de capacidades institucionais e efeitos sistêmicos: “Here as elsewhere, our minimal submission is that a claim about appropriate interpretation is incomplete if it does not pay attention to considerations of administrability, judicial capacities, and systemic effects in addition to the usual imposing claims about legitimacy and constitutional authority” (SUNSTEIN;VERMEULE, 2002, p. 48). 8  A compreensão da dimensão da atividade institucional sustentada pela Virada Institucional concebe que o problema da legitimidade constitucional não se limita à dimensão normativo-interpretativa, pautada em critérios de teorias sobre interpretação, deliberação e decisão de uma Corte Constitucional, mas sim na consideração dos resultados obtidos a partir do desempenho das diversas instituições democráticas, mediante a adequação de seus desenhos institucionais.

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em detrimento do já extenuante debate acerca do problema da legitimidade constitucional, realizado sob a dimensão normativo-interpretativa. Assim sendo, a problemática central do presente estudo resta evidenciada na insuficiência dos tradicionais paradigmas teórico-constitucionais para a compreensão da realidade constitucional contemporânea, haja vista a negligência da dimensão prática do comportamento das instituições políticas e dos seus rebatimentos em outras esferas de interesse (jurídica, administrativa, democrática, etc.), em face da cegueira institucional na consideração das capacidades institucionais e efeitos sistêmicos. Neste diapasão, a partir da crítica em relação às chamadas visões perfeccionistas (SUNSTEIN, 2006, p. 3)9, reafirma-se a necessidade de superação dos velhos dilemas dicotômicos já incessantemente debatidos pela doutrina, tais como o da supremacia do Legislativo vs. supremacia do Judiciário e das tradicionais teorias de interpretação constitucional com foco restrito à norma jurídica. Em face do exaurimento da corriqueira afirmação da doutrina constitucional brasileira de que o problema da ausência de legitimidade político-constitucional das Cortes Constitucionais pode ser suprido apenas argumentativamente e da ingênua crença de que é possível superar a tradicional tensão entre constitucionalismo e democracia apenas a partir de sofisticações intermináveis de artifícios de interpretação normativa, sustenta-se como principal hipótese que as teorias normativas perfeccionistas, prescritivas e ideais representativas do modelo principialista de interpretação-aplicação constitucional, sob os auspícios de uma suposta efetivação plena dos direitos fundamentais, acabam por negligenciar a prática constitucional, o funcionamento das instituições e seus processos decisórios, assim como, a própria atividade institucional, fato este que evidenciaria a necessidade de substituição do critério da racionalidade argumentativa pelo da atividade institucional no debate relacionado aos limites democráticos da jurisdição constitucional. Discute-se, assim, a tentativa de transição de um paradigma cuja ênfase é dada na lógica binária reducionista de supremacia do Judiciário ou do Legislativo(SILVA et al., 2010, p. 14) focada na análise de critérios de interpretação e deliberação, ou seja, na discussão de se um Poder Constitucional deve ou não rever os atos do outro, e neste caso, a intensidade com que a revisão deve ocorrer (SUNSTEIN;VERMEULE, 2002, p. 38), para uma abordagem acerca da atividade institucional do ponto de vista jurídico-político, na qual se atenta tanto para o desempenho de funções e competências infra-institucionais, quanto para a relação dialógica interinstitucional (BOLONHA; EISENBERG; RANGEL, 2011, p. 289). O objetivo do presente estudo é apresentar uma consideração crítica acerca das insuficiências do modelo principialista de interpretação-aplicação constitucional, característicos do Neoconstitucionalismo e do Novo Constitucionalismo Latinoamericano, considerados aqui como sendo teorias normativas perfeccionistas, prescritivas e ideais, bem como, a partir da análise dessas vertentes teóricas apontar para uma visão alternativa, amparada na Teoria Institucional, que auxilie na compreensão dos desenhos e mecanismos institucionais quando do processo decisório. Por fim, cabe a ressalva epistemológica de que o fato das referidas teorias jurídicas contemporâneas não serem suficientemente sensíveis à dimensão institucional de interpretação constitucional, não as invalidam enquanto doutrina jurídica, sendo forçoso reconhecer os avanços alcançados no plano da eficácia normativo-constitucional dos direitos fundamentais. 2. DA SUPERAÇÃO DO POSITIVISMO JURÍDICO À “HERCÚLEA” PRINCIPIOLOGIZAÇÃO DO DIREITO BRASILEIRO: INSUFICIÊNCIAS DE UMA ABORDAGEM PERFECCIONISTA,

9  Sunstein apresenta síntese para a compreensão de uma abordagem perfeccionista da constituição: the view that the Constitution should be construed in a way that makes it best, and in that sense perfects it. Imagine a society— proudly called Olympus—in which the original public meaning of the document does not adequately protect rights, properly understood. Imagine that the text is general enough to be read to provide that protection. Imagine finally that Olympian courts, loosened from Thayerian structures, or from the original understanding, or from minimalism, would generate a far better account of rights and institutions, creating the preconditions for both democracy and autonomy. In Olympus, a perfectionist approach to the Constitution would be entirely appropriate(SUNSTEIN, 2006, p. 3).

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PRESCRITIVA E IDEAL A partir da segunda metade do século XX, o pensamento jurídico vivenciou a superação histórica do Jusnaturalismo10 e o fracasso jurídico-político do Positivismo Jurídico11, ensejando profundas reflexões acerca da discussão de um novo marco epistemológico para o Direito. Assim sendo, a teoria do direito viu-se diante da chamada Virada Kantiana12, através da qual se evidenciou uma (re)aproximação entre o direito e a moral, característica do paradigma pós-positivista13. Considerando tal guinada principiológica do pensamento jurídico, é importante ressaltar a influência de dois estudiosos norte-americanos na reinserção da questão moral no âmbito da Filosofia Política e do Direito, defendendo a justiça como valor imprescindível às sociedades contemporâneas: John Rawls14 e Ronald Dworkin15. Em uma postura de reformulação da teoria dos princípios desenvolvida por Ronald Dworkin desde a década de 1960, o jurista alemão Robert Alexy16, a partir de uma reconstrução da jurisprudência do Tribunal Constitucional alemão dos anos 10  O conceito Jusnaturalismo é plurívoco, do qual decorre a existência de variadas correntes que remontam desde a Antiguidade até os dias atuais. A menção expressa no presente trabalho faz alusão especificamente ao Jusnaturalismo Racionalista, doutrina contemporânea ao Iluminismo e ao processo de Codificação do Direito. Para uma breve compreensão da “evolução” histórica do jusnaturalismo, Cf. BOBBIO, Norberto et al. 1991, pp. 655-656 e BARCELLOS, 2000, pp. 8-9. 11  Segundo Luís Roberto Barroso, o Positivismo Jurídico pretendeu ser uma teoria do Direito, na qual o estudioso assumisse uma atitude cognoscitiva (de conhecimento), fundada em juízos de fato. No entanto, o fetiche da lei e o legalismo acrítico, seus subprodutos, serviram de disfarce para autoritarismos de matizes variados, consubstanciando-o em verdadeira ideologia, movida por juízos de valor, haja vista ter se tornado não apenas um modo de entender o Direito, como também de querer o Direito. Para a análise de algumas características desta importante corrente do pensamento jurídico, bem como suas variações, dentre elas o normativismo de Hans Kelsen. Cf. BARROSO, 2009, p. 3-46. Para uma visão renovada sobre o Positivismo Jurídico, dissociado da ideia convencional de uma postura essencialmente formalista na doutrina brasileira. Cf. STRECK, Lenio Luiz. Aplicar a “letra da lei” é uma atitude positivista? Novos Estudos Jurídicos, Itajaí, v. 15, n. 1, pp. 158-173, 2010; DIMOULIS, Dimitri. A relevância prática do positivismo jurídico. Revista Brasileira de Estudos Políticos, Belo Horizonte, n. 102, pp. 215-253, jan./jun. 2011; STRUCHINER, Noel. Posturas interpretativas e modelagem institucional. A dignidade (contingente) do formalismo jurídico. In: SARMENTO, Daniel (Org.). Teorias Contemporâneas de Direito Contitucional. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2009, pp. 463 – 482; “A quem cabe a escolha?” Sobre a importância de distinguir os métodos alternativos de interpretação jurídica. Direito, Estado e Sociedade, Rio de Janeiro, v. 36, pp. 6-23, jan./jun. 2010. Na doutrina estrangeira. Cf. SCHAUER, Frederick. Playing by the rules. OUP: Oxford, 1991. 12  Este conceito desenvolvido por autores alemães (kantische Wende) retrata o fenômeno do retorno à influência da filosofia de Kant, com a fundamentação moral dos direitos humanos e a busca da justiça fundada no imperativo categórico. Cf. BARROSO, 2009, p. 28. 13 O Pós-positivismo fundamentado na ascensão dos valores, no reconhecimento da normatividade dos princípios e na essencialidade dos direitos fundamentais propiciou a reintrodução dos ideais de justiça e legitimidade no estudo da teoria do direito, identificou as incompletudes das concepções normativas de cunho semântico de Hans Kelsen e de Herbert Hart e apontou para a interpretação construtivista do direito, o direito como integridade e o romance em cadeia de Ronald Dworkin. Em contrapartida às teses positivistas – a tese das fontes do direito (teste de pedigree), da separação entre o direito e a moral e da discricionariedade judicial – reconhece a relação intrínseca entre o direito e a moral, a não sujeição das normas/princípio ao teste de pedigree, já que elas não se sujeitariam ao tudo ou nada e nem poderiam ser identificadas por sua origem, mas sim por seu conteúdo ou força argumentativa, a indeterminação do direito evidenciada na incompletude da teoria da interpretação na resolução dos chamados hard cases, onde não haveria norma exatamente aplicável pelo juiz. Assim, ao invés de tese da discricionariedade judicial, valer-se-ia das diretrizes e dos princípios, daí a defesa da teoria da adjudicação. Para uma esclarecedora análise dos paradigmas positivista e pós-positivista. Cf. CALSAMIGLIA, 1998, pp. 209-220. 14  Para a compreensão do pensamento de John Rawls e a ideia de justiça como equidade. Cf. RAWLS, 2000; 2002. 15  Para a compreensão da teoria dworkiniana, do debate acerca dos princípios jurídicos e a distinção em relação às regras e a crítica à versão mais poderosa do positivismo jurídico, qual seja, a Teoria do Direito de H.L.A Hart, na opinião do próprio Ronald Dworkin, ver o famoso artigo de sua autoria publicado em 1967, sob o título É o Direito um Sistema de Regras?, incorporado ao capítulo 2 da obra Taking Rights Seriously e o El postscript de Hart y el sentido de la filosofia política, capítulo 7 da obra La Justicia com toga. 16  No trecho a seguir, Juliana Neuenschwander caracteriza o entendimento de Alexy sobre princípios, regras e ponderação: “Para ALEXY, os princípios são obrigações de otimização, enquanto as regras têm um caráter de obrigação definitiva. Assim, para os princípios a ponderação é a forma característica da aplicação do direito, ao passo que, para as normas, é aplicada a subsunção”(MAGALHÃES, 1994, p. 102).

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1970, criticou a tese de que as regras seriam aplicadas de acordo com a disjunção excludente do tudo ou nada, logo, válida ou inválida, reformulando-a; concebeu os princípios como mandados de otimização, associando-os à noção de proporcionalidade e ponderação/sopesamento(NEVES, 2013, p. 63) e se dissociou da tese da unidade da solução justa, que pretende oferecer uma única decisão correta ou o melhor julgamento, que deve ser encontrada apenas pelo juiz Hércules17. Tais doutrinas de forte apelo acadêmico e que disseminaram rapidamente o apego a valores jurídicos suprapositivos - no qual a realização de direitos fundamentais desempenha papel central - evidenciam uma postura de individualismo metodológico18, que tenta explicar a ação social coletiva através das escolhas individuais, e (retro)alimentam a aporia do tradicional paradoxo entre constitucionalismo e democracia, agora, sobre uma nova roupagem: entre as chamadas Teorias do Consenso, as quais argumentam que a criação de regras constitucionais básicas de uma democracia devem reger-se pela lógica do consenso, e as Teorias do Dissenso, as quais privilegiam o princípio majoritário e até abordagens descontrutivistas/pós-modernas19. Neste contexto, fora notória a ampla recepção pelo direito constitucional brasileiro de teorias alienígenas, consubstanciada na recorrência do debate entre regras e princípios; da constitucionalização do direito; dos princípios e métodos de interpretação constitucional; das técnicas hermenêuticas de ponderação ou sopesamento e da teoria da argumentação jurídica, a maioria delas tendo como ponto comum a aposta no protagonismo dos juízes. Sem dúvida, há uma vasta literatura jurídica teorizando acerca destas temáticas, restando quase uma dicotomia no âmbito acadêmico entre apoiadores e críticos, bem como certa trivialização em sua abordagem (STRECK, 2011a, p. 8)20. Não é outra a percepção de Streck (2011a, p. 8)21 ao afirmar que o advento de uma nova Constituição exigira novos modos de análise: no mínimo, uma nova teoria das fontes, uma nova teoria da norma, uma nova teoria interpretativa e, fundamentalmente, uma teoria da decisão (teoria da validade). Como resultado, para a elaboração da análise crítica ora pretendida, cabem considerações propedêuticas acerca da importação irrefletida e acrítica de construções teóricas desenvolvidas em sua origem em países com experiência e cultura constitucionais e institucionais diversas da nossa, sem a observância de apropriada recepção ao ordenamento jurídico pátrio (NEVES, 2006)22. 17  Ao invés desta teoria forte dos princípios proposta por Dworkin, Alexy defende uma tese fraca ou mitigada, a qual aceita a existência da resposta correta, mas não concorda que ela possa ser sempre alcançada. Neste sentido, uma teoria dos em uma ordem fraca deve observar três elementos: um sistema de condições de prioridade; um sistema de estruturas de ponderação; e um sistema de prioridades prima facie. Cf.ALEXY, 1988, p. 146. 18  Jon Elster definiu o individualismo metodológico como “a doutrina de que todos os fenômenos sociais (suas estruturas e mudanças) são, em princípio, explicáveis somente em termos do indivíduo – suas preferências, objetivos e crenças”. Cf. ELSTER, 1982, p. 453 apud HODGSON, 2007, p. 97. Sob uma abordagem neo-institucionalista, o individualismo metodológico possibilitaria uma perspectiva reducionista do fenômeno social, pois, segundo esta postura: a) Social phenomena should be explained entirely in terms of individuals alone, and b) Social phenomena should be explained in terms of individuals plus relations between individuals. Assim, na visão de Hodgson, para uma compreensão holística dos fenômenos sociais, deve-se buscar um institucionalismo metodológico, o qual foca nas instituições e hábitos que moldam e são moldados pelos indivíduos, a partir da sua interação indivíduo-instituição. Cf. HODGSON, 2007. 19  Como exemplo do que consideramos Teoria do Consenso, Cf. HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. Tradução de Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003. Em contrapartida, como exemplo de Teoria do Dissenso, Cf. WALDRON, Jeremy. Law and disagreement. New York: Oxford University Press, 1999. O presente trabalho adota a perspectiva de Marcelo Neves, a qual caracteriza a sociedade moderna como pautada não pelo consenso, mas pelo dissenso conteudístico decorrente de uma esfera pública pluralista, na qual os conteúdos valorativos e as visões de mundo discrepantes se entrechocam. Cf. NEVES, 2006, pp. 148-149. 20  Streck identifica marcadamente a existência de incentivo doutrinário de três posturas ou teorias de origem estrangeira: a jurisprudência dos valores, o realismo norte-americano (com ênfase no ativismo judicial) e a teoria da argumentação de Robert Alexy. 21  O respectivo autor arremata pontuando que: “nossa tradição jurídica esta(va) assentada em um modelo liberal-individualista (que sempre operou com os conceitos oriundos das experiências da formação do direito privado francês e alemão), em que não havia lugar para direitos de segunda e terceira dimensões. Do mesmo modo, não há(via) uma teoria constitucional adequada às demandas de um novo paradigma jurídico” (STRECK, 2011a, p. 8). 22 Prefácio.

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O conceito reserva do possível23-24 é o exemplo mais emblemático na prática jurídica e constitucional brasileira da incorporação distorcida de técnicas criadas para reduzir o espectro de discricionariedade judicial, mediante a adoção de parâmetros racionais, objetivos e pretensamente universalizáveis, os quais muitas vezes reproduzem efeito inverso, mascarando procedimentos decisórios arbitrários e voluntaristas(CABALLERO, C.; TAVARES, R.S., 2010, p. 157). Outro aspecto importante diz respeito à exigência de ponderação ou sopesamento nos casos de colisão entre princípios constitucionais, a qual revela a noção idealista do mandamento de ponderação otimizante, que somente poderia ter um significado prático se concebêssemos o juiz monológico (juiz Hércules dworkiniano25-26) ou uma intersubjetividade orientada consensualmente para a busca de solução dos chamados hard cases, mediante argumentação racional, asseguradas condições ideais do discurso27. A supracitada abordagem, todavia, certamente, é de manifesta subestimação da complexidade constitucional em sociedades hipercomplexas, haja vista que durante o processo político-decisório os indivíduos normalmente discordam a respeito dos meios de concretização das finalidades públicas28, bem como, negligencia um dissenso estrutural29 a partir das inúmeras expectativas de comportamento humano decorrentes das variadas possibilidades de leituras morais baseadas em princípios(NEVES, 2013, pp. 141-142). No que tange à racionalidade das decisões tomadas com base em princípios constitucionais colidentes, observa-se certo caráter de falibilidade30, haja vista a possibilidade de fatos jurídicos com características idênticas serem entendidos de maneira diversa, em face do casuísmo judicial nas decisões de hard cases, aceito pela jurisprudência de matriz principiologista, norteada pelas 23  Referido conceito tem sua origem em construção jurisprudencial do Tribunal Constitucional alemão e fora utilizado pela primeira vez em decisão conhecida como Numerus Clausus – BverfGE 33, 303 (333), a qual tratou do direito ao acesso ao ensino superior diante do problema da restrição do número de vagas nas Universidades Públicas. Para uma análise mais detalhada do problema da transposição deste conceito para a prática constitucional brasileira de forma acrítica, desvirtuando seu propósito original, com base nas realidades histórico-sociais e político-econômicas do Brasil e da Alemanha, Cf. KRELL, Andreas Joachim. Direitos sociais e controle judicial no Brasil e na Alemanha: os (des)caminhos de um direito constitucional comparado. Porto Alegre: S.A. Fabris, 2002. 24  De acordo com a concepção original do Tribunal Constitucional Alemão, a reserva do possível estabeleceria o que o indivíduo pode, racionalmente falando, exigir da coletividade, no intuito de evitar exigências acima de um certo limite básico social, cabendo ao Legislador o juízo primário. No entanto, a doutrina e jurisprudência brasileira, de forma diversa, associa a promoção dos direitos sociais à disponibilidade de recursos orçamentários, a partir da qual seseguem diferentes concepções ativistas acerca da possibilidade de controle judicial dos direitos sociais e das políticas públicas. Cf.GONÇALVES, 2011, p. 328-329. 25  O “tipo ideal” do “juiz Hércules” é caracterizado por Dworkin como “um juiz imaginário, de capacidade e paciência sobre-humanas, que aceita o direito como integridade”. Cf. DWORKIN, 2007, p. 287. 26  Marcelo Neves propõe aproximação conceitual entre o modelo contrafactual de ponderação otimizante e a noção de única/melhor decisão correta, defendidas respectivamente por Robert Alexy e Ronald Dworkin. Cf. NEVES, 2013, p. 141. 27  Alexy considera que uma resposta correta para cada caso apenas poderia ser admitida se recorrermos a cinco idealizações da teoria do discurso: a) tempo ilimitado; b) informação ilimitada; c) clareza lingüística conceitual ilimitada; d) capacidade e disposição ilimitada para a mudança de papéis e e) carência de pré-concepções ilimitada. ALEXY, 1988, p. 151. 28  Waldron, considerando o dissenso como inerente ao processo decisório em sociedades pluralistas: “The specification of social goals – to which participatory rights are supposed (on his account) [de John Elster] – is not only intensely controversial in modern society; it is of course the primary subject matter of the very politics that participatory rights are supposed to constitute. Those who claim participatory rights are demanding the right to participate in resolving controversies of exactly this sort”. (…) But since people disagree about what rights we have or ought to have, the specification of our legal rights has to be accomplished through some political process”. Cf. WALDRON, 1999, p. 243. 29  Neves identifica como fator desencadeador deste dissenso estrutural a ideia de dupla contingência, a qual evidencia que em razão de controvérsias jurídicas que envolvem princípios constitucionais colidentes sempre haverá perspectivas antagônicas, sem que se possa contar nem com o convencimento (do auditório universal) de todos os destinatários atuais epotenciais da Constituição nem com a persuasão (do auditório particular) dos envolvidos efetivamente na solução do caso. Cf. NEVES, 2013, p. 142. 30  O conceito de falibilidade é desenvolvido por Neves no esteio do conceito sistêmico de contigência, de origem luhmanniana.

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técnicas de ponderação/sopesamento. Na esteira deste processo decisório, decisões ad hoc tendem a afastar, relativizar ou violar direitos e garantias fundamentais, a partir da superação das próprias regras constitucionais por construções jurisprudenciais, constituindo severa ameaça ao Estado Democrático de Direito. Ainda, em face destas teorias de interpretação jurídica de cunho moral altamente complexas e abstratas31, observam-se decisões judiciais baseadas em princípios igualmente abstratos, negligenciando os problemas institucionais32 relacionados ao procedimento de interpretação e concretização do direito, em seu aspecto operacional, pelas múltiplas instituições estatais concretas. No esforço de demonstrar a inutilidade e/ou limites concretos das teorias abstratas na resolução de desacordos acerca do método interpretativo apropriado a concretização do texto constitucional, Vermeule aponta para um sério problema destas visões contemporâneas: o típico equívoco da tentativa de transição direta de conceitos ou premissas políticas e morais de alto nível de abstração (tais como: compromisso com a democracia, dignidade da pessoa humana, justiça, equidade, etc.) para conclusões sobre arranjos institucionais ou abordagens interpretativas (VERMEULE, 2006, p. 13). Com efeito, mesmo com a forçosa consideração de que pessoas razoáveis concordam com a maioria dos princípios constitucionais33 - fato que evidenciaria certa perspectiva perfeccionista outrora rechaçada - essa concordância no plano valorativo não necessariamente se materializa no desenho institucional, plano prático, ou seja, o acordo sobre princípios básicos não se reflete em um segundo nível, de maior especificidade. Em face deste gap operacional, surge a necessidade de se buscar uma perspectiva institucional que auxilie na compreensão dos desenhos e mecanismos institucionais quando do processo decisório. 3. NEOCONSTITUCIONALISMO34E NOVO CONSTITUCIONALISMO LATINOAMERICA31  Em um olhar crítico das teorias de interpretação jurídicas abstratas: Typically interpretive issues are debated at high level of abstraction, by asking questions about the nature of interpretation, or by making large claims about democracy, legitimacy, authority, and constitutionalism. But most of the time, large-scale claims of these kinds cannot rule out any reasonable view about interpretation. Cf. SUNSTEIN; VERMEULE, 2002, p. 2. 32  Acerca dos problemas institucionais. Cf. BOLONHA; EISENBERG; RANGEL, 2011. 33  Reiterando a perspectiva epistemológica supracitada, o presente estudo trabalha sob um paradigma da impossibilidade de consenso sobre um determinado modelo de sociedade universalmente aplicável, haja vista que, no plano da Filosofia Política, as sociedades contemporâneas são marcadas pela complexidade e pelo pluralismo, bem como, pela existência de profundos “desacordos morais razoáveis” entre inúmeras “doutrinas abrangentes”. Cf. NETO, 2006. Este entendimento, inclusive, norteou importante turnpoint na Teoria da Justiça de Rawls, ao conceber como um dos objetivos centrais da teoria política contemporânea “compreender como é possível existir, ao longo dotempo, uma sociedade estável e justa de cidadãos livres e iguais profundamente divididos por doutrinas religiosas, filosóficas e morais razoáveis, embora incompatíveis”. Cf. RAWLS, 2000. p. 25. No trecho a seguir, Kok-Chor Tan sintetizao conceito Rawlsiano de burdens of judgments: A reasonable disagreement for Rawls is a disagreement of a particular sort. It is a disagreement that stems from differences over deep philosophical, moral, or religious comprehensive views and commitments. These commitments can give rise to reasonable disagreements because they involve what Rawls calls “the burdens of judgments” concerning the epistemological and ontological status of these metaphysical, moral, and philosophical claims, and hence are irresolvable differences. Cf. TAN, 2006, p. 90. 34  A terminologia Neoconstitucionalismo fora utilizada pioneiramente pela jurista italiana Suzanna Pozzolo durante conferência em Buenos Aires, concebendo-o como “um certo modo antijuspositivista de se aproximar o direito”. Cf. DUARTE; POZZOLO, 2010, p. 77. Todavia, faz-se necessária a ressalva epistemológica de que resta inconsistente qualquer tentativa de categorizar de modo uniforme o presente fenômeno constitucional, haja vista as variadas formas de entendê-lo e interpretá-lo já consagradas em doutrina nacional e estrangeira. Neste sentido, Miguel Carbonell, em coletânea clássica sobre o tema, o define como Neoconstitucionalismo (s), tendo em vista as múltiplas possibilidades de construção e constituição desse movimento. Cf. CARBONELL, 2006, p. 75. Ainda, na doutrina nacional, Eduardo Moreira propõe classificação didática para a devida compreensão do novel paradigma: a) Neoconstitucionalismo teórico; b) Neoconstitucionalismo filosófico; c) Neoconstitucionalismo político e Neoconstitucionalismo total. Cf. MOREIRA, 2008, pp. 21-22. Ver também sobre o tema: MARMELSTEIN, George. Curso de direitos fundamentais. São Paulo: Atlas, 2ª edição, 2009; SARMENTO, Daniel. SOUZA NETO, Cláudio Pereira (orgs.). A constitucionalização do direito – fundamentos teóricos e aplicações específicas. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2007; BARROSO, Luís Roberto (org.). A nova interpretação constitucional: ponderação, direitos fundamentais e relações privadas. Rio de Janeiro: Renovar, 3ª edição revista, 2008.

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NO35: APONTAMENTOS SOBRE OS EQUÍVOCOS DO FASCÍNIO DA DOUTRINA BRASILEIRA No plano da teoria do direito e da teoria constitucional observou-se o disseminar do debate em torno da constitucionalização do direito36 e do Neoconstitucionalismo37 na doutrina constitucional brasileira. Em paralelo, a contextualização do atual momento político latinoamericano, a partir de profundas mudanças sociais, políticas e institucionais vivenciadas principalmente em países andinos (Equador, Bolívia e Colômbia), despertou o olhar acadêmico para as inovações normativas implementadas em suas constituições, sob o conceito de Novo Constitucionalismo Latinoamericano38. Partindo-se da leitura dos estudos produzidos pelos professores Roberto Viciano Pastor e Rubén Martínez Dalmau39, os quais promovem o cotejo entre o chamado Neoconstitucionalismo e o Novo Constitucionalismo Latinoamericano, o presente trabalho, em face dos pontos de aproximação entre as referidas correntes de pensamento jurídico40, considerá-las-á como teorias normativas perfeccionistas, prescritivas e ideais, restando aplicadas a consideração crítica supracitada acerca das insuficiências do modelo principialista de interpretação-aplicação constitucional. Referido paradigma normativo tem influenciado fortemente o pensamento jurídico brasileiro, evidenciando verdadeiro fascínio da doutrina nacional pela principiologia jurídico-constitucional, marcadamente, em relação à ponderação ou sopesamento entre valores, bens ou princípios; proporcionalidade e razoabilidade e métodos de interpretação constitucional41. 35  São características desse novo paradigma constitucional elencam-se: a) a originalidade dos institutos previstos no texto constitucional; b) a limitação da atuação do poder constituído; c) rigidez constitucional; d) o fomento à participação popular, mediante o desenvolvimento de novos instrumentos de democracia participativa e cidadania ativa, em revisão do modelo de democracia representativa, baseado na representação política através de partidos políticos. Como atributo peculiar ao Novo Constitucionalismo Latinoamericano tem-se a) o reconhecimento e o empoderamento da população indígena, historicamente marginalizada dos processos político-decisórios, fato evidenciado na fundação do chamado Estado Plurinacional da Bolívia, no qual as 36 etnias indígenas são reconhecidas como nações; b) a coexistência da jurisdição Indígena Campesina com a Jurisdição Ordinária; c) a composição mista do Tribunal Constitucional Plurinacional. Cf. VICIANO. R. P; DALMAU. R. M., 2010, pp. 24-26 e 34-35. 36  Este fenômeno também é concebido na doutrina estrangeira, nas palavras do jurista italiano Riccardo Guastini, como impregnação da constituição no ordenamento jurídico. GUASTINI, 2006, p. 49. Na doutrina nacional é referido por Eduardo Moreira como a invasão da constituição. 37  Moreira apresenta a seguinte síntese acerca das características da referida vertente teórica: a) a presença invasora da constituição; b) o protagonismo judicial, ao invés da supremacia parlamentar; c) a revisão completa da teoria da interpretação, da teoria da norma e da teoria das fontes do direito; d) a ênfase nos princípios e nos direitos fundamentais; e) a técnica da ponderação e Estado Ponderador de normas constitucionais; f) o pensar o direito no plano da justificação/fundamentação da criação e aplicação do direito (influência da Teoria da Argumentação Jurídica) e g) a pretensão de correção como critério racional regulador do direito. Cf. MOREIRA, 2008, p. 38-39. 38  Para uma devida análise acerca do constitucionalismo contemporâneo na América Latina. Cf.GARGARELLA. R. & COURTIS. C. El nuevo constitucionalismo latinoamericano: promesas e interrogantes. CEPAL: Santiago de Chile, 2009; VICIANO. R. P; DALMAU. R. M. Aspectos generales del nuevo constitucionalismo latinoamericano.In: Corte Constitucional do Equador para el período de transición. El nuevo Constitucionalismo latinoamericano. 1ª ed. Quito, 2010; YRIGOYEN. R. Z. Y. El Pluralismo Jurídico en la historia constitucional latinoamericana: de la sujeción a la descolonización, 2010. 39  Referidos estudiosos são considerados os precursores do desenvolvimento teórico do chamado Novo Constitucionalismo Latinoamericano, tendo trabalhado in loco como assessores constituintes dos processos constitucionais do Equador, Bolívia e Venezuela. 40  Consideram-se como pontos de aproximação entre o Neoconstitucionalismo e o Novo Constitucionalismo Latinoamericano: a) a constitucionalização do ordenamento jurídico; b) a rigidez constitucional; c) a força normativa dos princípios e a sua presença abundante nas constituições; d) constituições analíticas/prolixas, em razão da busca da permanência da vontade do constituinte, face à necessidade de estabilidade institucional). Para analisar comparativamente os pontos de aproximação e tensão entre, ver quadro ilustrativo constante no nosso trabalho: VIEIRA, José Ribas; SANTOS, Fabiana de Almeida Maia; MARQUES, Gabriel Lima; SOUZA, Rafael Bezerra de; DIAS, Sérgio Bocayuva Tavares de Oliveira. Impasses e alternativas em 200 anos de constitucionalismo latino-americano. RECHTD. Revista de Estudos Constitucionais, Hermenêutica e Teoria do Direito, São Leopoldo, v. 5, pp. 122-132, jul./dez. 2013. 41  Neves associa este fascínio aos processos de democratização e constitucionalização que ocorreram nas últimas décadas do século XX, na América Latina, especialmente no Brasil, após um longo período de regimes autoritários que retiraram liberdades civis e políticas. Cf. NEVES, 2013, p. 171.

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Esta postura tem sido alvo de inúmeras críticas que apontam para o equívoco da consideração dos princípios constitucionais e da ponderação como ultima ratio para a resolução dos problemas constitucionais(NEVES, 2013, p. 175). Neste sentido, Silva42 identifica o sincretismo metodológico como marca do atual estágio da discussão sobre interpretação constitucional na doutrina brasileira, haja vista a ausência nos estudos baseados no paradigma em questão de análises jurisprudenciais concretas que comprovem a possível aplicação prática de métodos e princípios de interpretação constitucional largamente difundidos na doutrina e jurisprudência brasileira. Em contrapartida, na esteira da análise prática da correlação entre previsão constitucional a partir de transposição de modelos alienígenas - e resultado fático, Fábio Nadal(2006, p. 93-102), apoiado em dados estatísticos, ao confrontar a realidade fática e a determinação constitucional expressa sobre a educação e a saúde, assevera que não existe correspondência direta entre estas variáveis, pois outros são os fatores que preponderam no suporte dado pelo Estado. Ainda, no presente estudo, o autor também demonstra que o percentual de desenvolvimento humano não tem correspondência com a natureza e a forma de organização das constituições, já que entre os primeiros de uma lista mundial aparecem países com Constituições sintéticas, analíticas, e até com Constituição histórica – caso do Reino Unido. No mesmo sentido, estudo elaborado pelo advogado Octavio Luiz Motta Ferraz, teve por objetivo a análise dos efeitos do fenômeno da judicialização da política43 na saúde brasileira, em face do crescimento exponencial, nos últimos anos, do número de decisões judiciais que determinam ao Poder Público o custeio de tratamentos de saúde ou fornecimento de medicamentos com base na aplicação do princípio da dignidade da pessoa humana. Como resultado, concluiu-se que, a despeito da pretensa efetivação plena dos direitos fundamentais advinda com a judicialização da saúde, as ações judiciais para a obtenção de remédios no Brasil estão concentradas em áreas ricas e focam excessivamente em tratamentos de alto custo, que não favorecem pessoas com as piores condições socioeconômicas, bem como aumentam as desigualdades do sistema de saúde brasileiro44. A ausência de uma conexão sólida entre a ordem normativa e a prática jurídico-constitucional evidencia a inconsistência jurídica das diversas formulações da teoria constitucional em torno da devida relação recíproca entre prática e dogmática jurídica ou teoria do direito refletida no abuso da utilização de princípios e na ponderação desmedida45, os quais sugerem uma equivocada superioridade intrínseca destes sobre as regras constitucionais46. 42  Como síntese da ideia desenvolvida pelo conceito de sincretismo metodológico tem-se a adoção de catálogos de princípios e métodos de interpretação, propostos por doutrinas e práticas constitucionais diversas – no presente estudo, especificamente no caso do Neoconstitucionalismo, pode-se citar a matriz constitucional alemã, enquanto que no caso do Novo Constitucionalismo Latinoamericano cite-se a matriz constitucional andina – e transplantados para o Brasil como se constituíssem algo universal, não passando, muitas vezes de discussão meramente teórica, sem o devido apego ao rigor dogmático, teórico e metodológico. SILVA, 2005, p. 182. 43  A judicialização da política é concebida por Hirschl como “o recurso cada vez maior a tribunais e a meios judiciais para o enfrentamento de importantes dilemas morais, questões de política pública e controvérsias políticas”. Cf. HIRSCHL, 2009, p. 140. Sobre as distinções entre ativismo e judicalização: TASSINARI, Clarissa. Jusridição e Ativismo Judicial: limites da atuação do Judiciário. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2013; BARROSO, Luis Roberto. Judicialização, Ativismo Judicial e Legitimidade Democrática. Disponível:em: . Acesso em: 15 set 2013; VALLE, Vanice Regina Lírio do (org.). Ativismo Jurisprudencial e o Supremo Tribunal Federal. Laboratório de Análise Jurisprudencial do STF. Curitiba: Juruá. 2009. 44  Ferraz afirma que “a judicialização garante a poucos, aos que têm acesso mais fácil ao Judiciário, benefícios que o Estado não pode dar a toda a população, já que os recursos são necessariamente escassos”. Em outro estudo de sua autoria ainda não publicado a desigualdade é traduzida em números: os cinco Estados com melhor Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) concentram quase 75% dessas ações em nível federal, embora representem cerca de 45% da população do país. Ressalta que “como a taxa de sucesso dessas ações é altíssima, o privilégio dos que buscam os tribunais não é baseado em nenhuma concepção de justiça, mas exclusivamente na habilidade de recorrer ao Judiciário - algo que os mais pobres e necessitados não possuem”. Cf. FERRAZ, 2009, pp. 33-45. 45 Streck lista mais de quarenta desses standards jurídicos, enfatizando tratar-se de resultado de construção voluntarista por parte de juristas descomprometidos, em sua maioria, com a deontologia do direito. STRECK, 2011b, pp. 477-489. 46  NEVES alerta para o equívoco do afastamento de regras constitucionais a partir da invocação retórica de princípios, sob a pretensa observância da teoria da argumentação de Alexy citando-o diretamente: “Isso traz à tona a ques-

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Ainda, quanto à prática-constitucional brasileira, cabe o registro de um fenômeno peculiar a nossa realidade constitucional contemporânea, qual seja, o panprincipiologismo, caracterizado pela utilização da ponderação como um verdadeiro princípio. Segundo Streck47, os tribunais nacionais fazem um uso equivocado da teoria da argumentação alexyana, utilizando-a como se fosse um enunciado performativo, uma espécie de álibi teórico capaz de fundamentar os posicionamentos mais diversos. Por fim, ressalte-se que na própria Alemanha, berço do modelo principialista de interpretação-aplicação constitucional, há indícios de que a chamada Jurisprudência dos Valores48 está sendo paulatinamente superada(NEVES, 2013, p. 187), evidência maior de que devemos sair do estado de deslumbramento diante daquilo que vem de fora e do “novo”, que desde há muito não é mais novo(SILVA, 2005, p. 140). 4. A VIRADA INSTITUCIONALISTA NA TEORIA INTERPRETATIVA: UM OLHAR SOBRE OS DESENHOS INSTITUCIONAIS DE PEQUENA ESCALA Antes de dar início a análise da perspectiva institucional, cabe a ressalva de que o seu crescente interesse dar-se-á pela unilateralidade da doutrina constitucional brasileira, mormente por parte dos adeptos das chamadas teorias modernas da interpretação constitucional. Estas teorias normativas acabam por ignorar debates profícuos ao desconsiderar que os debates acerca da principiologia e metodologia de interpretação constitucional são meramente parte da questão constitucional(NEVES, 2013, p. 141). A respectiva postura revela a preocupação excessiva com uma abordagem meramente teórica, bem como o foco apenas em uma única instituição: o Poder Judiciário, desconsiderando a análise acerca do desempenho de suas funções e competências intra-institucionais (inputs) e a sua relação dialógica interinstitucional (outputs)(BOLONHA; EISENBERG; RANGEL, 2011, p. 289). A justificativa para a apontada insuficiência da abordagem perfeccionista, prescritiva e ideal típicas das teorias de interpretação jurídica modernas estaria na desconsideração das chamadas questões institucionais, haja vista sua tradicional perspectiva focada na figura do intérprete, a qual possui como questionamento central: como determinado texto jurídico pode ser melhor interpretado?, ao invés de como os juízes reais devem interpretá-lo?49. Referida insuficiência ilustrada no estudo empírico supracitado sobre a judicialização da saúde no Brasil reflete a cegueira institucional50, característica das teorias normativas modernas, tão da hierarquia entre os dois níveis. A resposta a essa pergunta somente pode sustentar que, do ponto de vista da vinculação à constituição, há uma primazia do nível das regras. [...]. É por isso que as determinações estabelecidas no nível das regras têm primazia em relação a determinações alternativas com base em princípios”. NEVES, 2013, p.192. 47  Este conceito desenvolvido por Streck encontra-se sintetizado no trecho a seguir: “é um subproduto do neoconstitucionalismo à brasileira, que acaba por fragilizar as efetivas conquistas que formaram o caldo de cultura que possibilitou a consagração da Constituição brasileira de 1988. Esse pan-principiologismo faz com que – a pretexto de se estar aplicando princípios constitucionais – haja uma proliferação incontrolada de enunciados (standards) para resolver determinados problemas concretos, muitas vezes ao alvedrio da própria legalidade constitucional”. Cf. STRECK, 2011a, pp. 11-12. 48  A tese principal da Jurisprudência dos Valores difundida no Brasil dentre outros autores por Luis Roberto Barroso, Ana Paula de Barcellos e Daniel Sarmento concebe que “a Constituição é uma ordem concreta de valores”, sendo o papel dos intérpretes o de encontrar e revelar esses interesses ou valores. STRECK, 2011a, p. 10. 49  Para os referidos autores “the central question is not “how, in principle, should a text be interpreted?” The question instead is “how should certain institutions, with their distinctive abilities and limitations, interpret certain texts?”. Cf. SUNSTEIN; VERMEULE, 2002, p. 2. 50  São três os tipos de cegueira institucional que desconsideram à análise das instituições concretas tratados por Vermeule: a) out-and-out philosophizing:an account of interpretation from resolutely noninstitutional premises, particulaly high-level political concepts like “democracy”, “authority” or “integrity”or abstrations about the character of legal language. Philosopher-lawyers like Ronald Dworkin are the paradigm here;b) stylized institutionalism:here the interpretative theorist talks about comparative institutional competence, but in a stylized or a stereotyped way, on the basis of abstract visions of “legislatures”, “agencies” and “courts’”. (…) In these and other versions, stylized institutionalism proceeds by reference to conceptual claims about the essential features of legislatures, courts and agencies, rather than by the reference to empirical claims about institutions in particular legal systems; c)asymmetrical institutionalism: a distinct but related mistake is to take a cynical or pessimistic view of some institutions and an

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especificamente, no presente estudo, do Neoconstitucionalismo e do Novo Constitucionalismo Latinoamericano, haja vista a negligência de considerações institucionais. Observa-se que as teorias normativas em tela focalizam a investigação do fenômeno constitucional centradas no alargamento da Jurisdição Constitucional, desprestigiando a atividade propriamente dita das instituições jurídico-sociais. Assim sendo, resta negligenciada a análise do desempenho da atividade institucional, face à desconsideração das capacidadesinstitucionais e dos efeitos sistêmicos. Constatada a insuficiência dos tradicionais paradigmas teórico-constitucionais para a compreensão da realidade constitucional contemporânea e a partir da crítica em relação às chamadas visões perfeccionistas, Vermeule aponta como modelo de estrutura e atividade institucional a ser adotado pelo Estado Democrático de Direito o second-best democracy (aquilo que efetivamente pode alcançado através da atividade institucional), ao invés do first-best (mera idealização da atividade institucional), tendo em vista que as instituições no plano operacional se deparam com limitações por elas ignoradas51. Importante contribuição, sob viés pragmático, trazida pela Virada Institucional52, são os conceitos de institutional design writ largee mechanisms of democracy53, no fito de auxiliar na compreensão do papel e da configuração dos desenhos e mecanismos institucionais, bem como na construção de mecanismos que possam constituir alternativas à dicotomia supremacia do Legislativo vs. supremacia do Judiciário e às tradicionais teorias de interpretação constitucional com foco restrito à norma jurídica, permitindo a contribuição cooperativa de outras esferas – seja de poder político organizado, seja da sociedade. Em análise da arquitetura institucional54 proposta pelo Neoconstitucionalismo e pelo Novo Constitucionalismo Latinoamericano55, tem-se que ambas teorias normativas focalizam desenhos constitucionais de larga escala, tais como: a separação de poderes, a soberania popular, supremacia da constituição, etc. Ao passo que, ao contrário do paradigma de rupturas institucionais ou profundas reformas, característicos destas práticas constitucionais, o conceito de mechanisms of unjustifiably rosy view of others. Cf. VERMEULE, 2006, p. 16. 51  Apontando a inerência de certo grau de limitação e/ou incapacidade das instituições sociais, da qual decorreria a temeridade para um regime democrático da atribuição de tamanho poder deliberativo a uma única instituição, haja vista a possibilidade de verificação de efeitos sistêmicos negativos. Cf. BOLONHA; EISENBERG; RANGEL, 2011, p. 301. 52  Vermeule e Sunstein sintetizam a noção de Virada Institucional no trecho a seguir: Those who emphasize philosophical arguments, or the idea of holistic or intratextual interpretations, seem to us to have given far too little attention to institutional questions. Here as elsewhere, our minimal submission is that a claim about appropriate interpretation is incomplete if it does not pay attention to considerations of administrability, judicial capacities, and systemic effects in addition to the usual imposing claims about legitimacy and constitutional authority. But we have also suggested the possibility that in constitutional law, an assessment of those issues might lead to convergence, on appropriate methods, from those who disagree about what ideal judges should do. Cf. SUNSTEIN; VERMEULE, 2002, p. 48. 53  Vermeule explicita os temas relacionados ao conceito de institutional design writ large no trecho a seguir: the debate center on massa elections, the separation of powers, federalism, and other large-scale institutional structures”. Em contrapartida, ao relacionar o conceito de mechanisms of democracy e institutional design writ small, sintetiza-o como “a repertoire of small-sclae institutional devices and innovations that promote democratic values against the background of standard large-scale institutions. Cf. VERMEULE, 2007, pp. 1-2. 54  Na doutrina nacional, em uma abordagem interdisciplinar, Carvalho propõe a constituição de uma nova arquitetura institucional, que possua como pano de fundo o redimensionamento do desenho institucional do Estado brasileiro, pressupondo-se não mais a centralidade do debate teórico na figura de um ou outro titular, mas sim, o reconhecimento de que nenhum dos sujeitos constitucionais se revela, por si só, apto a solucionar profundos dissensos. Cf. CARVALHO, 2004, pp. 115-126). Apontando para a necessidade de discussão de um novo arranjo nas relações institucionais entre os Poderes Constitucionais e de uma maior participação da Sociedade Civil no processo político-decisório. Cf. SILVA, Cecília de Almeida; MOURA, Francisco; BERMAN, José Guilherme; VIEIRA, José Ribas; TAVARES, Rodrigo de Souza; VALLE, Vanice Regina Lírio. Diálogos institucionais e ativismo. 1°. Ed. Curitiba: Juruá, 2010. 55  Um olhar comparativo das experiências constitucionais vivenciadas recentemente nos países andinos que referenciam o Novo Constitucionalismo Latinoamericano revela importantes elementos comuns, especialmente em relação à forma como organizam o desenho institucional. Neste sentido, Couso apresenta síntese “intentando identificar el ‘hilo conductor’ que une al diseño constitucional de Venezuela, Bolivia y Ecuador, este pareciera ser la concentración del poder político en torno al Ejecutivo, de manera de dotarlo de facultades suficientes como para avanzar en transformaciones económico-sociales profundas”. Cf. COUSO, 2013, p. 12.

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democracy trabalha na lógica de rearranjo/rearquitetura institucional, por entender que o esforço em identificar mecanismos já existentes, ou tentar conceber novos mecanismos, em uma esfera mais reduzida de desenho institucional se apresenta como uma saída democrática mais estratégica e eficaz do que a alcançada com alterações em arranjos de maior escala56. 5. CONCLUSÃO A análise das teorias jurídicas contemporâneas, a partir da Teoria Institucional, possibilita um novo olhar, sob perspectiva holística, para a compreensão do fenômeno constitucional. Enquanto a agenda acadêmica do final do século XX mais parece um trabalho sísifico, tão eterno quanto inútil, uma vez que se encontrara pautada na busca persistente por um padrão decisório consensual que representasse a superação do paradigma jurídico positivista, bem como, propiciasse a utilização de critérios interpretativos racionais, universais e objetivos limitadores da discricionariedade judicial, a perspectiva institucional nos possibilita o contraste à unilateralidade metodológico-interpretativa da constituição. O presente estudo, nesta linha de pensamento, teve por objetivo a rediscussão do papel da Constituição, apontando para a necessidade de rearranjo da arquitetura institucional em busca de uma configuração adequada para as instituições democráticas, a partir da superação de tradicionais concepções interpretativas e da construção de um processo político-decisório estável, simétrico, menos ativista, mais dialógico, por parte dos sujeitos constitucionais. No âmbito da teoria do direito e da teoria constitucional, o Poder Judiciário, sem dúvidas, apresenta-se como um ator destacado da defesa e garantia de direitos fundamentais. Todavia, em sociedades complexas e pluralistas não se pode atribuir estaticamente a apenas um Poder Constitucional a definição do sentido da constituição, bem como desconsiderar a dimensão prática do funcionamento e do comportamento das instituições políticas, seus processos decisórios e seus rebatimentos em outras esferas de interesse. Por fim, deve-se manter vigilante para que a compreensão da tarefa de investigação do papel das instituições jurídicas e de concretização da constituição não reedite o estado de deslumbramento diante daquilo que vem de fora e do “novo”, nem o debate academicista, de cunho teórico. Apontar para os limites e as complexidades dos novos desafios para a construção de uma teoria e práxis constitucional que fortaleça as instituições democráticas brasileiras já nos remeteria ao pensamento do ensaísta francês R. Caillois (1946): Il n’y a pas d’efforts inutiles. Sisyphe se faisait les muscles57. REFERÊNCIAS ALEXY, Robert. Sistema jurídico, principios jurídicos y razón práctica. Traducción de Manuel Atienza.  DOXA, Alicante, n. 05, pp. 139-151, 1988. Disponível em: . Acesso em: 15 set.2013. ______. Constitucionalismo discursivo. Tradução de Luis Afonso Heck. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007. ______. Teoria dos Direitos Fundamentais. Tradução de Virgílio Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros Editores, 2008. ALMEIDA, Maíra V.; RANGEL, Henrique. Os Efeitos Sistêmicos na Teoria Institucional. In: Congresso Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Direito, 2012, Rio de Janeiro. Anais do Congresso Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação - 2012.2, 2012. BARCELLOS, Ana Paula. As relações da filosofia do direito e a experiência jurídica. Uma visão dos 56 ALMEIDA; RANGEL, 2012, p. 12. 57  “Não existem esforços inúteis. Sísifo ganhava músculos” (tradução nossa). Cf. CAILLOIS, 1946.

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“MOVIMENTO BRASILEIRO DA EFETIVIDADE CONSTITUCIONAL”: CONSIDERAÇÕES SOBRE A ADOÇÃO DOS POSTULADOS NEOCONSTITUCIONALISTAS NO BRASIL

Flávia Santiago Lima1

1. NOTAS INTRODUTÓRIAS: DA PREMÊNCIA DA AVALIAÇÃO DOS PRESSUPOSTOS TEÓRICOS E DA OPERATIVIDADE DOS POSTULADOS NEOCONSTITUCIONALISTAS O constitucionalismo atual adquiriu seus contornos iniciais nos Estados Unidos do século XIX, quando o célebre caso Marbury x Madison estabeleceu a premissa da hegemonia do texto superior como norma estruturadora da produção do direito. Nos países filiados à tradição romano-germânica, este modelo fortaleceu-se com a redemocratização da Europa após a Segunda Grande Guerra. Além da previsão de constituições extensas, foram concebidos os tribunais constitucionais, aptos a assegurar os valores nelas inscritos. Diante do sucesso europeu e do fortalecimento da Suprema Corte Norte-Americana, a “revolução constitucional” (CAPPELLETTI, 1996, p. 14-15) irradiou-se pelo Ocidente e, juntamente com a expansão da economia de mercado, é considerada um fenômeno mundial, a abranger distintas tradições jurídicas. O presente texto insere-se neste debate e pretende avaliar o constitucionalismo a partir da sua expressão teórica nos países de tradição ibérica – a festejada fórmula neoconstitucionalista, que busca compreender – ou promover – a aceitação da preponderância constitucional enquanto alicerce das instituições estatais, a determinar as condições de exercício do poder político. O constitucionalismo, além de seus aspectos descritivos, parece pretender mais. Constituiria um “movimento” de matizes ideológicos, teóricos e metodológicos (COMANDUCCI, 2003, p. 76), cujo objetivo é operar uma transformação da cultura jurídica, para fazer frente ao fenômeno da constitucionalização dos ordenamentos nacionais. Intenta, ainda, avaliar as repercussões da sua proposta na prática dos tribunais e demais atores jurídicos e até nas demais relações sociais (GUASTINI, 2003, p. 49). 1 Doutora em Direito pela UFPE (2012). Mestre em Direito pela UFPE (2006). Advogada da União, com exercício na Procuradoria Regional da União - 5ª Região. Professora da Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP).

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As contribuições dos autores identificados com o neoconstitucionalismo tiveram enorme acolhida entre os doutrinadores brasileiros, que vislumbram na concretização de parte dos direitos previstos na Constituição de 1988 a oportunidade de romper com a tradição de desigualdades que caracteriza a sociedade brasileira. Não por acaso, Cláudio Pereira de Souza Neto (2003, p. 14) observa uma mobilização jurídica e política, cujo objetivo é desenvolver mecanismos dogmáticos e processuais para concretização do texto constitucional, ao qual denominou de “constitucionalismo brasileiro da efetividade”. Em detrimento dos louváveis objetivos deste comprometimento teórico, defende-se aqui a necessidade de analisar a validade teórica e a operatividade dos postulados neoconstitucionalistas. Assim, busca-se avaliar a adoção deste movimento pelos constitucionalistas brasileiros e a correspondência das suas pretensões com as características do texto constitucional vigente no Brasil. 2. NEOCONSTITUCIONALISMO E SUAS VERTENTES: PRESSUPOSTOS PARA A CARACTERIZAÇÃO DOS SISTEMAS JURÍDICOS CONSTITUCIONALIZADOS A experiência constitucionalista do século XX é assentada, ao lado das perspectivas políticas e filosóficas que a nortearam, em extensa e variada produção teórica jurídica. Como visto, nos meios acadêmicos ibero-americanos, o conjunto de teorias que intentam uma reaproximação entre as dimensões descritiva e prescritiva na Teoria Geral do Direito (ARIZA, 2003, 164-ss) é denominado preferencialmente de neoconstitucionalismo. Como assevera Paolo Comanducci (2003, p. 75), os termos “constitucionalismo” e “neoconstitucionalismo” são bastante ambíguos e se prestam a representar uma teoria e/ou ideologia e/ou método de análise do direito, além de modelos constitucionais. Segundo o autor, o mero uso destes sentidos mostra-se suficiente para delinear a diferença entre neoconstitucionalismo e constitucionalismo, pois este seria uma ideologia, talvez respaldada no jusnaturalismo, mas que não constituía uma Teoria do Direito. Tampouco exibia uma pretensão metodológica, num período marcado pelo positivismo jurídico. Em contrapartida, o neoconstitucionalismo caracteriza-se por esta dimensão tríplice: ideologia, teoria e metodologia. Numa concepção preliminar, tem-se que o neoconstitucionalismo refere-se a determinados aspectos estruturais, que repercutem numa renovada cultura jurídica. Implica, primordialmente, numa noção forte da intervenção jurídica, e se caracteriza pela aceitação de uma “constituição invasora”, que impregna gradualmente toda a legislação e acaba por transformar o sistema jurídico. Isto porque a implementação parcial ou integral das condições necessárias para a sua realização dá-se segundo um processo histórico que pode ser mais ou menos longo, cambiante de acordo com o sistema jurídico estudado. Riccardo Guastini, ao enumerar as condições que determinado sistema deve satisfazer para ser considerado “impregnado” pela normativa constitucional, assevera a existência de condições necessárias para esta constatação, ao lado de outras que permitem aferir a intensidade desta constitucionalização. Assim, a previsão de uma constituição rígida e da sua garantia jurisdicional é pressuposto indispensável. Já o reconhecimento da força normativa da constituição e a repercussão das instâncias judiciais no processo político denotam um ordenamento altamente influenciado pela constituição (GUASTINI, 2003, p. 49). No plano jurídico, os neoconstitucionalistas identificam a concepção de Estado de Direito com o reconhecimento da supremacia constitucional, que condiciona a interpretação das demais normas do ordenamento e determina os conteúdos da legislação ordinária2. As normas constitucionais não podem ser derrogadas, modificadas ou ab-rogadas por quaisquer outros dispositivos. A constituição possui normatividade, o que pressupõe a aceitação do seu caráter vinculante aos poderes públicos e aos particulares. As relações jurídicas são intermediadas pelos princípios e direitos constitucionalizados, ainda que reconhecido o alto grau de abstração. Aceita-se, assim, o forte caráter principiológico e genérico das normas constitucionais, que 2  “Uma das perspectivas que ganha força é a da denominada “filtragem constitucional”, que reconhece a preeminência normativa da constituição frente às demais normas do ordenamento jurídico. Fala-se, nesta seara, numa unidade formal do sistema, com o reconhecimento do aspecto hierárquico-normativo, como numa unidade material ou axiológica, que remete a interpretação de qualquer instituto jurídico ao parâmetro constitucional.” (SCHIER, 2008, p. 3)

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decorre do seu alcance mais amplo, em virtude dos objetivos colimados e dos valores nelas implícitos. Estas peculiaridades redundaram, inclusive, na (re)formulação de uma Teoria da Constituição, encarregada da discussão da interpretação e aplicação dos seus preceitos. Foram exploradas as especificidades da matéria, pois os preceitos constitucionais são diferentes das disposições legislativas ordinárias, ao estabelecer os fundamentos do ordenamento jurídico (BARACHO, 1984, p. 108). Como lembra Inocêncio Mártires Coelho (1997, p. 78), as constituições enunciam princípios ou critérios gerais de valoração, e seu conteúdo depende da densificação e concretização por parte do intérprete aplicador, que deve exercer uma atuação criativa, adequando-se às mutações dos valores nelas expressos (CAPPELLETTI, 1992, p. 130). Constata-se, conseqüentemente, um grande esforço da doutrina juspublicista em trazer novos elementos para a formação de uma “Nova Hermenêutica Constitucional” (BONAVIDES, 1999, p. 258). Defende-se que a eficácia das normas constitucionais - independentemente de sua estrutura ou conteúdo normativo - permite sua aplicação direta em alguns momentos, a garantir sua efetividade sem intervenção de qualquer órgão legislativo. A imperatividade constitucional não conferiria, a rigor, um espaço de discricionariedade ao legislador na densificação dos seus mandamentos. Dessarte, entende-se que as deliberações públicas – estatais ou não – estariam submetidas aos inafastáveis conteúdos constitucionais. Isto porque os direitos fundamentais nelas previstos, que formam uma espécie de núcleo intangível do Estado, representariam uma “esfera” do que pode ser decidido ou não, e podem “legitimar” ou “deslegitimar” uma determinada atuação estatal. A própria democracia, no neoconstitucionalismo, justificar-se-ia pela capacidade operacional de um determinado sistema político e/ou seu ordenamento jurídico tornar(em) efetivos os direitos fundamentais (FERRAJOLI, 2000, p. 22-25). Ao mesmo tempo, a constituição, ao exigir esta “guarda” especial, por abrigar em seu texto importantes decisões acerca de determinado grupo social, deve ter sua força normativa afirmada (BARROSO, 2005), por uma jurisdição forte e adequada. Demanda-se uma nova visão dos poderes estatais, especialmente do poder judiciário, que passa a exercer uma função de garantia do cidadão, em contraponto aos demais - executivo e legislativo -, ainda que estes estejam legitimados democraticamente pelas maiorias, já que seus membros são investidos pelos processos eleitorais. A preponderância do texto, e dos acordos nele contidos, irradia-se pelas gerações ulteriores, que sofrem limitações nas tentativas de alterá-lo, diante da relevante rigidez nos processos de reforma. Para os neoconstitucionalistas, é precisamente a dificuldade de promover mudanças nas regras que favorece e fortalece a imperatividade dos seus mandamentos (SANCHÍS, 2003, p. 101, ss). Esta construção teórica redunda na supervalorização do Direito Constitucional, ramo jurídico que encerra, hoje, as discussões em torno da dimensão política do direito (BERCOVICI, 2003, p. 109-112). É reconhecida a insuficiência de uma teoria jurídica meramente descritiva para entender a expansão do direito nas sociedades ocidentais, que se restringiria, nos moldes tradicionais, tão-somente a reproduzir as normas jurídicas, sem atentar para seu necessário caráter prospectivo. Deste modo, o neoconstitucionalismo significa uma ruptura com os padrões jurídicos conhecidos, e impõe uma nova visão. Como bem expõe Luigi Ferrajoli (2000, p. 23-34), um dos seus maiores expoentes, a partir da descrição do seu parâmetro garantista para o direito, el paradigma del Estado constitucional de derecho – o sea, el modelo garantista – no es otra cosa que esta doble sujeción del derecho al derecho, que afecta a ambas dimensiones de todo fenómeno normativo: la vigencia y la validez, la forma y la sustancia, los signos e los significados, la legitimación formal y la legitimación sustancial o, si se quiere, la “racionalidad formal” y la “racionalidad material” weberianas.

Verifica-se que, além de descrever os ordenamentos jurídicos, numa análise preponderantemente dogmática, o neoconstitucionalismo pretende trazer um novo método, uma nova teorização 122

do direito, que inegavelmente guarda um amparo ideológico, no sentido da defesa das potencialidades da normatividade constitucional. Diante da multiplicidade de significados da expressão e da grandiosidade deste projeto acadêmico, nos próximos itens passa-se à análise de dois aspectos desta teorização: sua metodologia (ou o conjunto de métodos que compõem esta pretensão) e sua influência ideológica. 3. PÓS-POSITIVISMO E NEOCONSTITUCIONALISMO: A DEFESA DA CENTRALIDADE DOS PRINCÍPIOS NA ORDEM CONSTITUCIONAL E REDEFINIÇÃO DAS COMPLEXAS RELAÇÕES ENTRE DIREITO E MORAL Enquanto teorização, o neoconstitucionalismo almeja descrever as conseqüências da constitucionalização, atribuindo-lhe características próprias, como a existência de uma constituição “invasora”, a positivação dos direitos fundamentais, a “onipresença” dos princípios e regras constitucionais e peculiaridades da interpretação e aplicação destas normas. Verifica-se um certo consenso quanto aos aspectos descritivos de um ordenamento constitucionalizado. Todavia, há divergências quanto à forma de abordagem destes sistemas. Como alerta Paolo Comanducci (2003, p. 83-87), alguns entendem que o neoconstitucionalismo tem o mesmo método – mas um objeto modificado – do positivismo; ao passo que outros autores defendem uma mudança radical de metodologia de abordagem, diante do novo objeto de estudo. Haveria, assim, um neoconstitucionalismo positivista de matriz italiana, mais aproximado de um “positivismo inclusivo”, que tem como expoentes os multicitados Paolo Comanducci e Riccardo Guastini, Susana Pozzolo e José Juan Moreso; e o neoconstitucionalismo não positivista, respaldado na obra de Robert Alexy, que parece concentrar a maioria dos autores,como Gustavo Zagrebelsky, Alfonso Garcia Figueroa, Santiago Sastre Ariza (MAIA, 2008, p. 7). Fala-se, por isso, da existência de vários neoconstitucionalismos, como no título da obra que contém parte considerável dos artigos citados no presente texto. Embora alguns neoconstitucionalistas, como Luigi Ferrajoli (p. 8), concebam sua formulação como o reforço ou a própria representação do positivismo em sua forma mais perfeita 3, fato é que a maioria dos autores visualiza nesta teoria ou neste conjunto de teorias um afastamento do positivismo tradicional (FIGUEROA, 2003, p. 164-165). Deste modo, o neoconstitucionalismo ampara-se em variada produção teórica, que parece convergir em um ponto: as dificuldades do positivismo metodológico – útil na formatação liberal-burguesa – na compreensão dos ordenamentos permeados por um projeto moral e ideológico diversificado. A Teoria do Direito deve aceitar os valores ínsitos às normas positivadas e a interferência dos juízos morais na interpretação. Por fim, cabe-lhe revelar o caráter preponderantemente prático que deve nortear seus estudos (ARIZA, 2003, p. 245). A corrente que atenta para a ineficiência do método positivista é denominada de pós-positivista e tem como uma de suas idéias-chave a superação da dicotomia direito natural x direito positivo (BONAVIDES, 1999, p. 258). Defende, também, a normatividade dos princípios jurídicos, que antes eram vistos como enunciados de cunho suprapositivo ou derivações da lei. Assim, a norma jurídica pode ser geral (estabelecida para uma infinidade de atos) ou especial (rege tão-somente atos ou fatos). O princípio é geral porque comporta uma série indefinida de aplicações. O reconhecimento da normatividade dos princípios os situa como espécie do gênero norma jurídica, juntamente com as regras, ocupando um papel de superioridade frente a estas. Esta é a perspectiva adotada por Robert Alexy e Ronald Dworkin, cujos principais trabalhos são constantemente citados pelos autores neoconstitucionalistas. Regras e princípios explicitam um dever ser, podendo ser formulados com a ajuda das expressões deontológicas de mandato, permissão e proibição4, sendo razões e juízos concretos 3  Interessa notar que Paolo Comanducci (2003, p. 88) entende que Ferrajoli assinala um conteúdo normativo para a ciência jurídica, recaindo numa adesão ao neoconstitucionalismo ideológico. A ciência jurídica, ademais, abrangeria a Dogmática Jurídica e a Teoria do Direito, que passam a exercer um papel político, incompatível com um modelo explicativo. O modelo de Ferrajoli seria ideal, o que lhe afasta de uma abordagem teórica do direito. 4  Diversamente, Canotilho (2000, p. 1052) defende que as regras implicam em mandatos, pois os princípios teriam

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(ALEXY, 1997, p. 83). Assim, a normatividade dos princípios está assentada na sua positividade, vinculatividade, pois são autênticas normas, que obrigam e têm eficácia positiva – conduzem a determinadas soluções em cada caso, segundo a finalidade perseguida - e negativa sobre comportamentos públicos ou privados. Sabe-se que as decisões, regras ou mesmo subprincípios que se contraponham a princípios serão inválidos, por contraste normativo (ESPÍNDOLA, 1999, p. 59). Ao lado dos princípios e regras, as normas jurídicas ainda comportam uma dimensão axiológica, os valores ou fins – conforme prefere denominá-los Dworkin. Osprincípios e valores são geralmente relacionados. Os tribunais constitucionais, quando se referem aos princípios, costumam-se reportar aos valores e vice-versa. Afirma-se, até, que o cumprimento gradual dos princípios tem seu equivalente na realização dos valores (DWORKIN, 1978, p. 24-25). Princípios e regras têm métodos de interpretação específicos, a exigir a identificação dos enunciados normativos dentre estas categorias. A doutrina principiológica encarrega-se de definir critérios de diferenciação, como o da generalidade, determinabilidade dos casos de aplicação, remissão à idéia de direito, importância para o ordenamento jurídico, entre outras. Estes, porém, mostram-se insuficientes na análise dos casos concretos, pois careceriam de objetividade. Os princípios são reconhecidos como mandados de otimização, pois seu cumprimento depende das necessidades reais e das jurídicas (ALEXY, 1997, p. 86). Somente os princípios possuem a dimensão do valor. Oprincípio pode ser válido para uma determinada relação concreta, um problema legal, mas não estipula uma solução particular. E quem houver de tomar a decisão levará em conta todos os princípios envolvidos, elegendo um deles, o que não implica na invalidade do outro. Assim, é o critério do peso que define a diferença entre uma regra ou princípio (DWORKIN, 1978, p. 27). A solução quando princípios estão envolvidos difere dos critérios fornecidos pela hermenêutica tradicional, como o da especialidade ou da norma mais recente. É bastante divulgada a afirmação de que os princípios colidem, ao passo que as regras são conflitantes. O critério do peso exige a análise de acordo com as peculiaridades e circunstâncias do caso concreto, estabelecendo-se entre os princípios uma relação de precedência condicionada. As circunstâncias indicam as condições sob as quais um princípio precede o outro. Devem ser observadas, porém, as condições sob as quais se produz uma lesão a um direito fundamental, devendo tal fato ser evitado. Pesa, nesta hipótese, uma proibição “jusfundamental”. A questão deve ser resolvida mediante uma lei de colisão, que coloca que as condições sob as quais um princípio precede ao outro, constituindo o pressuposto de fato de uma regra que expressa a conseqüência jurídica do princípio precedente. Infere-se daí o caráter diferenciado prima facie dos princípios, pois um princípio não determina como resolver a relação entre sua razão e uma que lhe é oposta. Os princípios carecem de determinação com respeito aos seus contrapostos e as possibilidades fáticas (ALEXY, 1997, p. 87-94). Para Dworkin (1978, p. 26-27), as regras válidas são aplicáveis na medida do tudo ou nada e os princípios contêm uma razão que indica uma direção, mas não predeterminam uma decisão. As regras também estão sujeitas às exceções, por vezes até dos princípios. Mas o fato é que um princípio pode ser deixado de lado quando um oposto tem peso maior. Em contrapartida, isso não acontece com a regra, que não é afastada quando o princípio que a “sustenta” é hierarquicamente inferior a outro princípio. Tampouco com a suposição de uma carga de argumentação em benefício de um determinado princípio se equipara a seu caráter prima facie, bem como uma regra que traga esta carga de argumentação libera o princípio da necessidade de condições de precedência. Os princípios são razões prima facie e as regras são razões, a menos que se estabeleçam exceções, definitivas. Tecidas estas considerações, para que diante do caso concreto seja escolhida a solução mais justa, propõe-se o uso da máxima de proporcionalidade, que envolve a avaliação da adequação, necessidade (postulado do meio mais benigno) e proporcionalidade em sentido estrito (ponderação propriamente dita). Esta máxima de proporcionalidade, em sentido estrito, é dedutível do caráter de princípio dos direitos fundamentais. Já as noções de necessidade – que preconiza a solução que envolva o menor prejuízo – e de adequação - adequação entre meios e fins -, referem-se às possibilidades fáticas (ALEXY, 1997, p. 89-106). apenas uma função genérica. Já as normas de direitos, liberdades e garantias teriam aplicabilidade direta.

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O reconhecimento da preponderância dos princípios privilegia a ponderação, voltada ao caso concreto. A interpretação é reconhecida como uma atividade criadora e, por conseguinte, são aceitos maiores espaços de discricionariedade aos operadores jurídicos e à função jurisdicional. Há quem se refira, como Perez Luño (1996, p.14), à idéia de “direito judicial”, caracterizado pelo protagonismo dos magistrados na conformação do direito, para adaptá-lo às transformações sociais. Portanto, a incorporação de conteúdos morais na estrutura normativa constitucional através dos princípios permite redefinir as complexas relações entre direito e moral. Neste sentido, deve-se pontuar que a distinção entre as ordens normativas constitui-se um dos parâmetros fundamentais do positivismo jurídico clássico. A constitucionalização de valores morais sob a fórmula normativa de princípios abriu uma ampla margem para o reconhecimento da influência desta ordem ética no direito positivo. Mais que espécies normativas, tem-se a centralidade dos princípios na ordem constitucional. Sob esta concepção, portanto, reabilita-se a dimensão axiológica no direito, por influência de um princípio tido como universal – a dignidade humana. 4. ASPECTOS IDEOLÓGICOS DO NEOCONSTITUCIONALISMO Constatado que o positivismo metodológico não atende adequadamente aos novos e relevantes fins atribuídos ao direito, os neoconstitucionalistas defendem a necessidade de uma nova ciência comprometida com referidos aspectos. Método e ideologia estão, portanto, relacionados. Não por acaso, Humberto Ávila (2009, p. 187) aponta fundamentos (ou características) comuns às diversas acepções da expressão neoconstitucionalismo, que guardam entre si um encadeamento lógico necessário: normativo (preferência normativa ou teórica pelos princípios, em detrimento das regras jurídicas); metodológico (os princípios exigem, para sua aplicação, a técnica da ponderação); axiológico (a ponderação demanda o privilégio da justiça particular frente à justiça geral) e organizacional (a individualização da aplicação necessita de um judiciário forte, predominante em relação ao poder legislativo). É freqüente o emprego da expressão “movimento” para definir o neoconstitucionalismo, mostrando, entre seus principais aspectos, sua faceta ideológica, ao lado da busca por uma teorização e uma metodologia diferenciadas. O objetivo, comumente apregoado, é o de operar uma transformação da cultura jurídica (GUASTINI, 2003, p. 47-ss). Nesta ideologia, destaca-se a preferência pela defesa dos direitos fundamentais. A limitação do poder estatal, objetivo do constitucionalismo clássico, é posta em segundo plano, pois hoje se exige dos poderes legislativo e judiciário a concretização dos direitos fundamentais constitucionais, além da valorização dos mecanismos estatais de tutela destes. A conexão entre direito e moral é tão forte, que autores como Alexy, Dworkin e Zagrebelsky defendem um dever moral de obedecer a constituição e a diferença entre sua interpretação e dos demais ramos jurídicos. Os juristas são exigidos a tomar uma “posição mais ativa e comprometida com a melhor realização do Estado constitucional democrático de direito”, justificada pelo consenso em torno dos valores constitucionalizados, que “dinamizariam um patriotismo constitucional a suprir a ideia de nação” (MAIA, p. 15-16). A construção teórica do neoconstitucionalismo, especialmente, depende desta mobilização. O positivismo científico, do qual a maioria dos seus autores busca se afastar, era caracterizado justamente pelo apego à “neutralidade” e à função descritiva. Distanciar-se do positivismo redunda na aceitação de uma ciência jurídica prescritiva, que inscreve sua relevância a partir dos compromissos que assume (ARIZA, 2003, p. 251). A afirmação de um neoconstitucionalismo ideológico, todavia, abre margem para relevantes ponderações quanto a este projeto. Além da inevitável crítica sob o aspecto da legitimidade democrática das suas pretensões, que deferem ao direito e suas instituições um acentuado papel político, tem-se ainda a complexa relação entre as esferas jurídica e moral. A ponderação de princípios constitucionais e a aceitação da interpretação moral da constituição diminuem consideravelmente o grau de certeza do direito. A afirmação do direito submeter-se-ia às preferências éticas do juiz individual (POZZOLO, p. 352-353). Por isso, além de apontar os inevitáveis problemas desta “moral objetiva”, a ser aplicada pelos magistrados, Comanducci (2003, p. 91-3) critica a pretensão de reduzir a indeterminação do direito por princípios que acabam por ampliá-la, ainda que tais princípios prestem-se a objetivos 125

recomendáveis. A individualização das decisões, por sua vez, pode comprometer a função da justiça geral, que assegura uniformidade de tratamento e estabilidade do sistema, cujo princípio da segurança jurídica depende de inteligibilidade, estabilidade e previsibilidade (ÁVILA, 2009, p. 199). 5. O “CONSTITUCIONALISMO BRASILEIRO DA EFETIVIDADE” E O ENGAJAMENTO ACADÊMICO PELA CONCRETIZAÇÃO DA PAUTA REDISTRIBUTIVA DA CONSTITUIÇÃO DE 1988 Com amparo no debate europeu, a expressão neoconstitucionalismo tornou-se freqüente no vocabulário jurídico brasileiro. Inúmeros são os trabalhos jurídicos destinados à descrição do fenômeno da constitucionalização do direito no Brasil, e suas repercussões nos mais diversos ramos jurídicos. O trabalho de Luís Roberto Barroso, “Neoconstitucionalismo e constitucionalização do Direito: o triunfo tardio do direito constitucional no Brasil”, de 2005, publicado em incontáveis veículos doutrinários, mostra-se um dos principais inventários do protagonismo das normas constitucionais. A discussão sobre os conteúdos constitucionais encontra respaldo no texto vigente que, amparado por um projeto redemocratizante, positivou os mecanismos da democracia representativa e participativa. A previsão dos meios de canalização das expectativas da “comunidade de intérpretes”, como o amplo rol de legitimados a propor ação direta de inconstitucionalidade e os mecanismos de defesa popular dos direitos coletivos e difusos (ação civil pública e ação popular) ou ainda, as possibilidades de reclamações aos poderes públicos, permitem aferir que o texto constitucional previa os futuros embates sobre seu conteúdo. São os instrumentos de participação previstos na CF-88 que, segundo Cittadino, asseguram aos cidadãos o status de autores do direito, e não meros destinatários das normas jurídicas. O trabalho de conversão dos preceitos constitucionais em realidade política é “tarefa de responsabilidade de uma cidadania juridicamente participativa que depende, é verdade, da atuação dos tribunais, mas sobretudo do nível de pressão e mobilização política que sobre eles se fizer” (CITTADINO, 2002, p. 37-39). A positivação de princípios de conteúdo mais aberto e a constante remissão à posterior regulamentação em lei ordinária das questões constitucionais mais palpitantes delegou alguns debates para o futuro, na expectativa de que os arranjos políticos permitissem a concretização de algumas daquelas normas. E, diante da complexidade da sociedade brasileira, as esperanças em torno do resultado destes arranjos dependiam do ponto de vista defendido. E se, no âmbito das constituições pluralistas, cada setor representa uma determinada interpretação do direito, alinhada com seus interesses, no caso brasileiro, há diversos caminhos interpretativos na experiência posterior à promulgação da Constituição. Há setores que discordam das suas diretrizes e outros que procuram retirar do texto toda a carga eficacial possível. Os primeiros recorrem às “teses e interpretações despistadoras”, e apoiados na tradição privatista, passam a supervalorizar os textos infraconstitucionais. Já os segundos partem em busca da efetividade e enfatizam os valores e princípios adequados às suas pautas políticas. Desde 1988, os diversos grupos capitanearam as interpretações sobre os conteúdos constitucionais. Defende-se até a existência de um “movimento político teórico” sem precedentes na história jurídica brasileira - o “constitucionalismo brasileiro da efetividade”. O objetivo deste movimento de dimensões jurídicas e políticas é desenvolver mecanismos dogmáticos e processuais para efetivação do texto constitucional, com a aceitação do seu caráter emancipatório. Para Cláudio Pereira de Souza Neto, esta mobilização conjuga elaboração teórica e uma perspectiva de ação, assumindo caráter nitidamente político. Em termos históricos, somente poderia ser comparada com a discussão que resultou na redefinição do instituto do Habeas Corpus, ainda no século XIX. Assume-se, assim, que a “luta” política pela eficácia constitucional é também uma busca jurídica (SOUZA NETO, 2003, p. 14-17) Para Raymundo Juliano Feitosa (2003, p. 253), é um reflexo do constitucionalismo na América Latina, em que “as normas, ao lado de possuírem capacidade prescritiva e vinculante, são consideradas uma expressão de desejos, ou seja, o norte, o horizonte para onde se deseja conduzir o processo social”. 126

O interessante no direcionamento ao campo da efetividade constitucional (principalmente dos direitos sociais) das esperanças progressistas de parte da doutrina é que a solução dos problemas brasileiros, até o inicio dos anos 90, era vista sob “um discurso mais alternativo, em alguns casos até anti-estatal”. Como bem observa João Maurício Adeodato (2003, p. 88), “os acontecimentos posteriores os fizeram agarrar-se à constituição, que se tornou uma espécie de âncora das novas esperanças bem-intencionadas”. No mesmo sentido, Feitosa (FEITOSA, p. 246-247) também critica os “exageros” na visão transformadora e até “messiânica” do texto e da jurisdição constitucional. O direcionamento dos anseios ao Judiciário é acompanhado pela expectativa quanto ao desempenho, pela instituição, de um papel ativo na tutela dos parâmetros constitucionais, a condicionar e limitar as deliberações públicas “contrárias” à natureza dos princípios e normas da lei fundamental. Conforme acentua Campilongo (CAMPILONGO, 1994, p. 49), “o juiz não aparece mais como o responsável pela tutela dos direitos e situações subjetivas, mas também como um dos titulares da distribuição de recursos e da construção de equilíbrio entre interesses supra-individuais.” Expressivos e importantes autores, amparados pelas contribuições do neoconstitucionalismo, caminharam para a formulação de uma nova teoria jurídica no Brasil. Como exemplo destes esforços, Streck (2002, p. 91-93) cataloga as mais relevantes pesquisas, a abranger diversas áreas, que têm por escopo a reformulação dos pressupostos de estudo do direito, em aproximadamente 3 (três) páginas de seu livro. Destacam-se as formulações de Andreas Krell (2002, p. 15) que, ao combater alguns dos argumentos levantados contra a atuação judicial, defende que a noção de uma cidadania reivindicatória pode sim ser compatibilizada com uma instituição apta a cumprir sua função constitucional. Isto porque, enquanto os outros poderes são justificados pelos processos eleitorais, o Judiciário extrairia sua legitimidade da realização dos fins prescritos no art. 3° da Constituição Federal de 1988. Esta é a posição de Jônatas Moreira de Paula (2002, p. 51-61), que afirma que os princípios do mencionado dispositivo são marcos do ordenamento e paradigma essencial para a interpretação e concretização da CF-88, o que excluiria a neutralidade dos juízes para sua implementação. Sob referido parâmetro, quando a questão submetida à apreciação diz respeito àqueles objetivos, deve o judiciário avaliar as escolhas do gestor público. O juiz não poderia limitar-se a declarar um direito material. Se necessário for, deve constituir o direito objetivo, protetivo de direito subjetivo, que se torna eficaz na eventualidade de ser cometida uma sanção jurídica em caso de descumprimento. Considera-se, deste modo, o processo como instrumento de efetivação da ordem jurídica, pois é através dele “que se confere eficácia forçada a direitos materiais espontaneamente ineficazes” (PAULA, 2002, p. 112). Outros expoentes, como Comparato, direcionaram seustrabalhos para a análise das possibilidades jurídicas de controle da atividade do Executivo, de forma a garantir que os compromissos constitucionais sejam incorporados à prática dos poderes. O autor defende o controle de constitucionalidade de políticas públicas, confrontando as regras que estruturam o desenvolvimento da atividade administrativa e as decisões de governo com os objetivos constitucionais. A análise jurídica da decisão administrativa abrangeria os instrumentos escolhidos para a intervenção e também a finalidade almejada. Segundo o autor, constatada a inconstitucionalidade da política adotada, todas as leis e atos normativos executórios seriam atingidos, mas os atos já praticados sob a vigência da política questionada seriam preservados. Para evitar os prejuízos decorrentes da invalidação de uma política pública em andamento, o autor propõe a viabilidade do controle prévio das decisões administrativas, que teria, além do óbvio efeito desconstitutivo, natureza injuntiva ou mandamental. (COMPARATO, 1997, p. 21-22). A doutrina que sustenta o controle e até a imposição coercitiva de políticas publicas pelo Poder Judiciário, evidentemente, sofre severas críticas. Tais questionamentos freqüentemente são respaldados pela noção de democracia, considerando que o Judiciário não detém legitimação popular para interferir nas decisões tomadas pelos poderes majoritários, o que seria incompatível com o sistema representativo previsto no art. 1º, parágrafo único da CF-88. Observa-se, deste modo, que os postulados do neoconstitucionalismo, especialmente da sua vertente ideológica, encontraram ampla aceitação nos meios jurídicos brasileiros e se converteram 127

num dos marcos para a compreensão do ordenamento jurídico pátrio. Como toda nação periférica, é natural que a doutrina brasileira esteja “sobredeterminada pelos influxos especulativos das culturas jurídicas mais maduras” (MAIA, p. 2). Por outro lado, o histórico de desigualdade social e política da sociedade brasileira mostrou-se um fator de reforço do empenho pela normatividade constitucional. Persiste, porém, o questionamento acerca da operatividade do neoconstitucionalismo enquanto marco teórico aplicável à interpretação da Constituição de 1988, em confronto com as características da norma vigente. Nesta seara, tem-se as considerações de Humberto Ávila, no sentido de avaliar os principais aspectos do neoconstitucionalismo. Para o autor, o fundamento normativo desta concepção consiste na idéia de que as constituições utilizam-se “exclusiva” ou “preferencialmente” dos princípios, dando preferência a esta espécie normativa. Esta predileção do constituinte fundamentaria o emprego da ponderação enquanto método, implicando na prevalência da justiça particular frente à justiça geral e, por fim, num Poder Judiciário forte. A análise do texto normativo da Constituição de 1988, porém, atinge o argumento central, pois a preferência por um modelo analítico denota a opção pelo estabelecimento de regras, com a clara função de “eliminar ou reduzir problemas de coordenação, conhecimento, custos e controle do poder”, numa espécie de ponderação “pré-legislativa”. Tem-se, claramente, mais regras que princípios. Assim, a tese da constituição principiológica sofreria um empecilho de ordem cientifica, que denota a “sobreposição de enunciados doutrinários” ao invés de descrição do sistema jurídico, o que transformaria o neoconstitucionalismo em ideologia ou movimento, ao invés de teorização ou método, que não esconderia, em verdade, uma certa “subserviência à doutrina estrangeira”(ÁVILA, 2009, p. 189-192). 6. CONCLUSÕES: PONDERAÇÕES SOBRE AS PRETENSÕES NEOCONSTITUCIONALISTAS E AS DIFICULDADES NA INTERPRETAÇÃO DOS DISPOSITIVOS DA CONSTITUIÇÃO DE 1988 Conforme foi possível verificar nas linhas precedentes, o neoconstitucionalismo é um empreendimento acadêmico ambicioso. Propõe uma nova visão, ao descrever os ordenamentos jurídicos e as conseqüências da sua constitucionalização, espelhando uma teorização e uma metodologia distintas. São poucos os pontos em comum entre as diversas correntes albergadas pela expressão. Estas atendem às mais diversas tradições jurídicas e se mostram demasiadamente contraditórias. Referida fragmentação metodológica demanda a consideração das especificidades de cada um dos universos que compõem a expressão. As teorias e métodos, nesta seara, parecem confundir-se com seu aspecto ideológico, na exigência de um dever moral dos juristas com a efetividade das escolhas constitucionais. A indeterminação entre o neoconstitucionalismo ideológico e teórico conflui numa pretensão transformadora da realidade que certamente exige a avaliação das conseqüências deste projeto. Destaca-se, assim, a dúvida acerca da operatividade dos sistemas altamente influenciados pelo discurso neoconstitucionalista, seja na sua prática ou por seus resultados, para alcançar a efetividade de algumas promessas constitucionais e justificar referido projeto, tão questionável sob o aspecto democrático. Sabe-se que mesmo os defensores da normatividade constitucional têm dificuldades em formular uma direção “correta” a ser considerada na abordagem dos “valores constitucionais”. As constituições pluralistas, em seu texto normativo, obstaculizam este tipo de aproximação, ao estabelecer uma diversidade ideológica, ou, nas palavras de Gustavo Zagrebelsky (1999; p. 13-14), uma “proposta de soluções e co-existências possíveis”, que não pode ser traduzida num projeto rigidamente ordenador da vida social. Algumas destas novas constituições exprimem, ao lado da previsão de um projeto redistributivo, a defesa de interesses que são antagônicos a esta pretensão. A Constituição Brasileira, por exemplo, caracterizada por sua riqueza programática e razões redemocratizantes, carrega pontos de divergência, a permitir que as mais diversas expectativas, decisões e doutrinas sejam criadas em seu nome. Isto porque o constituinte, que não podia estabelecer um projeto pré-determinado de vida em comum, optou por ratificar suas condições de 128

realização, adotando certo relativismo em alguns dos seus preceitos. A norma superior, assim, é vista como uma plataforma a garantir legitimidade para que cada um dos setores sociais inicie a competição para imprimir ao Estado uma orientação (ZAGREBELSY, 1999, p. 13-14). Não se pode prever qual aspecto será ressaltado na atividade interpretativa dos tribunais e demais agentes jurídicos, o que põe à prova os pressupostos de submissão da atividade política ao direito, por vezes movidos pelo bem-intencionado interesse em atingir as vantagens transformadoras da concretização de um projeto constitucional essencialmente indefinido quanto aos seus fins. A amplitude do universo constitucional compreende uma fragmentação metodológica que parece impedir a definição de uma “teoria adequada” para a interpretação. No caso brasileiro, trata-se apenas de uma conseqüência de uma sociedade complexa. Nestes termos, a defesa de uma materialidade constitucional não dispõe de elementos aptos a garantir a efetivação de determinados direitos em detrimento de outros. A caracterização neoconstitucionalista, ao promover a relevância das normas constitucionais, sem a necessária consideração destes aspectos, assume o risco de se desvencilhar da sua pretensão descritiva dos ordenamentos jurídicos, numa confusão entre o aspecto simbólico-discursivo e sua prática jurídica. Referidos fatores, se não considerados, repercutem precisamente nas condições de concretização deste projeto. REFERÊNCIAS ADEODATO, João Maurício. Jurisdição constitucional à brasileira: situação e limites. SCAFF, Fernando Facury (org.). Constitucionalizando direitos: 15 anos da Constituição Brasileira de 1988. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 75-96. ALEXY, Robert. Teoría de los derechos fundamentales. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1997. ARIZA, Santiago Sastre. La ciencia jurídica ante el neoconstitucionaismo. In: CARBONELL, Miguel (org.). Neoconstitucionalismo (s). Madrid: Trotta, 2003, p. 239-258. ÁVILA, Humberto. “Neoconstitucionalismo”: entre a “Ciência do Direito” e o “Direito da Ciência”. SOUZA NETO, Cláudio Pereira de; SARMENTO, Daniel & BINENBOJM, Gustavo (orgs.). Vinte Anos da Constituição Federal de 1988. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, p. 187-202. BARACHO, José Alfredo de Oliveira. Processo constitucional. Rio Janeiro: Forense, 1984. BARROSO, Luís Roberto. Neoconstitucionalismo e constitucionalização do Direito. O triunfo tardio do Direito Constitucional no Brasil. Jus Navigandi, Teresina, ano 9, n. 851, 1 nov. 2005. Disponível em: . Acesso em: 16 jan. 2007. BERCOVICI, Gilberto. A constituição dirigente e a crise da teoria da constituição. BERCOVICI, Gilberto et al. Teoria da constituição: estudos sobre o lugar da política no direito constitucional. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003, p. 75-150. BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. São Paulo: Malheiros, 1999. CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. Coimbra: Almedina, 2000. CAPPELLETTI, Mauro. O controle judicial de constitucionalidade das leis no direito comparado. Porto Alegre: SAFE, 1992. CAPPELLETTI, Mauro. ¿Renegar de Montesquieu? La expansión y la legitimidad de la “justicia constitucional”. Revista Española de Derecho Constitucional, a. 6, n. 17, p. 9-47, mayo/ago, 1996. CITTADINO, Gisele. Judicialização da política, constitucionalismo democrático e separação de poderes. VIANNA, Luiz Werneck (org.). A democracia e os três poderes no Brasil. Belo Horizonte: UFMG; Rio de Janeiro: IUPERJ/FAPERJ, 2002, p. 17-42. 129

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O OUTRO LADO DA CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO CONTROLE DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA: ANÁLISE A PARTIR DO DIREITO À SAÚDE



Glauco Salomão Leite1 Marcelo Labanca Corrêa de Aráujo2

1. INTRODUÇÃO O fenômeno da “constitucionalização” do direito tem sido apontado como uma das consequências de um novo paradigma emergente do modelo de Estado Democrático de Direito, que remonta aos processos de redemocratização verificados em diversos países ocidentais a partir do final da Segunda Guerra Mundial. Mas este fenômeno guarda estreira relação com a expansão do Poder Judiciário, que passou a ocupar espaços antes comummente enquadrados na esfera política. Nesta perspectiva, é importante ter em mente que Constituição Federal de 1988 tem sido vista como o grande marco jurídico da “constitucionalização”do direito no país. Ocorre que, como se verá, “constitucionalizar” certo conteúdo siginifica retirá-lo da esfera de deliberação política ordinária e, ao mesmo tempo, eleva o poder da jurisdição constitucional. É nesse contexto que se pretende questionar até que medida as políticas públicas, resultantes de decisões advindas das instâncias políticas e elaboradas para concretizar os comandos constitucionais, podem ser controladas judicialmente. Em países que ainda não atingiram graus satisfatórios de fruição de direitos sociais básicos, como é o caso do Brasil, tem sido comum se exigir uma postura mais ativa da jurisdição constitucional na tentativa de diminuir o fosso que separa a realidade (mundo do “ser”) da normatividade constitucional (mundo do “dever-ser”). Daí, não é raro se falar na necessidade de o juiz ter que ser mais “político”, no sentido de “progressista”, o que representa, na prática, prover aquilo que os demais poderes deixaram de prover. Diante de tal cenário, pretende-se fazer uma abordagem sobre o modo de atuação do Supremo Tribunal Federal (STF) no âmbito de ações judiciais , em particular a partir de decisões proferidas em pedidos de suspensão de segurança e cassação de antecipações de tutela, quando 1  Doutor em Direito Público pela UFPE. Mestre em Direito Constitucional pela PUC/SP. Prof. de Direito Constitucional da Universidade Católica de Pernambuco e da Universidade Federal da Paraíba. Membro da Comissão de Estudos Constitucionais da Ordem dos Advogados do Brasil – Seccional Pernambuco. 2  Mestre e Doutor em Direito (UFPE). Professor de Direito Constitucional da Universidade Católica de Pernambuco (Graduação e Mestrado). Procurador do Banco Central. Vice-Presidente da Comissão de Estudos Constitucionais da Ordem dos Advogados do Brasil – Seccional Pernambuco.

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relacionadas ao controle de políticas públicas realizadoras do direito fundamental à saúde. Para tanto, far-se-á uma abordagem sobre significado do fenômeno da “constitucionalição”, realçando sua ligação com o alargamento do espaço judicial. Em seguida, serão analisados os principais questionamentos que surgem nas demandas em torno direito à saúde, destcando porque os direitos prestacionais, como o direito à saúde, possuem efetividade mais baixa que outros direitos fundamentais. Com isso, poder-se-á apontar alguns indicadores que precisem o limites da atuação do Poder Judiciário em tais matérias. 2. DA “CONSTITUCIONALIZAÇÃO” DO DIREITO À JUDICIALIZAÇÃO DO DIREITO À SAÚDE Quando se fala em “costitucionalização” do direito civil, penal, administrativo, processual, é fundamental esclarecer o sentido dessa expressão. No âmbito do debate atual, convém elucidar dois sentidos possíveis para a expressão “constitucionalização”. Em uma primeira acepção, o fenômeno da constitucionalização consiste no poder de irradiação das normas constitucionais para os demais setores do sistema jurídico. Ele está ligado ao reconhecimento da força normativa das Constituições, notadamente dos preceitos que asseguram direitos fundamentais e fixam princípios jurídicos. Isto significa a superação de uma visão clássica, prevalecente nos países de tradição romano-germânica até meados do séc. XX, segundo a qual as constituições possuíam um caráter predominantemente político, dando-se mais ênfase a códigos e legislações ordinárias (ZAGREBELSKY, 2003, p. 32-53; OTTO, 1995, p. 133; ACOSTA SÁNCHES, 1998, p. 171).3 Assim, passa-se a reconhecer que os princípios e direitos que integram a Constituição têm natureza de norma jurídica (GARCIA DE ENTERRÍA, 1994, p. 41 e ss.), de modo que o seu conteúdo e os seus valores passam a influenciar concretamente todo o direito ordinário. Em outras palavras, os preceitos constitucionais possuem um o poder expansivo ou efeito de irradiaçãoque encobre os demais quadrantes do sistema jurídico. Nessa perspectiva, o sistema jurídico se apresenta impregnado pela Constituição (GUASTINI In CARBONELL; 2003, p. 49; BARROSO, 2009, p. 351 e ss.; SARMENTO In SOUZA NETO; SARMENTO, 2007, p. 134 e ss.; SILVA, 2006, p. 40 e ss.; LEITE In LEITE; LEITE, 2008, p. 97). Na prática, o fenômeno é representado pela abundância de controvérsias (cíveis, penais, trabalhistas, tributárias, processuais) em que se percebe a incidência de direitos fundamentais e princípios constitucionais nos diversos ramos jurídicos, criando o ambiente propício para a releitura de várias categorias e institutos tradicionais de tais ramos do direito. Neste sentido, o fenômeno da “constitucionalização” é bastante impulsionado pela atuação do Poder Judiciário, ora quando fundamenta suas decisões diretamente em normas jusfundamentais e principiológicas, ora quando interpreta o direito ordinário à luz desses vetores constitucionais. Em uma segunda acepção, a “constitucionalização” significa a inserção, no texto constitucional, de institutos e categoriais de vários segmentos jurídicos ou a positivação de determinados interesses de grupos sociais. Em outras palavras, cuida-se da elevação de institutos de vários ramos do direito ao patamar constitucional.Dessa maneira, os principais setores do sistema jurídico possuem disposições plasmadas no texto constitucional. Isso se passa com o direito administrativo, civil, penal, processual (civil e penal), trabalho, tributário, urbanístico, previdenciário, econômico, financeiro, além de preceitos concernentes à família, criança, idosos e índios. Ocorre que, no caso específico do sistema constitucional brasileiro, o grau de detalhamento é tão intenso ao ponto de existirem regras sobre prazo de concurso público (art. 37, III); acumulação de cargo, emprego e função pública remunerada (art. XVI); o ensino de História no Brasil (art. 242, §1º), dentre outras. Todas essas disposiçõesse tornaram, pelo menos formalmente, assunto constitucional. Como visto, as duas acepções para o termo “constitucionalização” não se confundem. Porém, existe um espaço de contato entre elas, na medida em que a elevação de matérias à Constituição, normalmente disciplinadas no âmbito infra-constitucional, estabelece uma relação de subordinação entre as normas de uma ramo jurídico que estão no plano ordinário e aquelas outras que estão no âmbito constitucional. Assim, verifica-se a “constitucionalização” (positivação) das 3 Como destaca Gustavo Zagrebelsky (2003, p. 32-53), “A lei por excelência era então o código, cujo modelo histórico durante todo o século XIX estaria representado pelo Código civil napoleônico (...)”, de modo que tal Código era tido como a ‘Constituição da burguesia liberal’.”

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fontes do Direito para aquele específico setor do ordenamento jurídico, o que, de certa maneira, também contribui para a o efeito expansivo da Constituição (BARROSO, 2009, p. 361).4 Pois bem, esclarecidas essas noções, nota-se que a “constitucionalização”, especialmente na primeira acepção antes indicada, é bastante impulsionada pela atuação Poder Judiciário. Isso significa que, ao invocar algum parâmetro constitucional para solucionar certo litígio, o Judiciário dá forma ao “efeito irradiador” ou “força expansiva” dos comandos constitucionais. Nesse sentido, se se pensar que o direito fundamental à saúde, além de estar previsto formalmente no texto constitucional, afigura-se como direito prestacional, o ideário subjacente à “constitucionalização” direito serve de fundamento para superar a tese tradicional segundo à qual os direitos prestacionais, por estarem assegurados em preceitos programáticos, não seriam propriamente normas jurídicas, inviabilizando qualquer pretensão individual fundada em tais regras. É o reconhecimento da força normativa da Constituição, e o caráter vinculante de seus preceitos, que permite falar que seu conteúdo deve se expandir para os demais setores do ordenamento. O afastamento do caráter programático dos direitos sociais é, de fato, um grande avanço e tem sido reconhecido pelo próprio em STF, quando este considera o direito à saúde como direito público subjetivo, de sorte que o caráter programático não deve convertê-lo em promessa constitucional inconsequente5. Por via de conseqüência, aumentam-se as referências normativas para a jurisdição constitucional no exercício de suas funções, facilitando a justificação de um maior controle em relação aos demais poderes, já que o campo de “matérias constitucionais” agora é ampliado. Dessa maneira, ao reconhecer que o direito à saúde é um direito público subjetivo, impulsiona-se a busca no Poder Judiciário para o acesso a serviços públicos na área da saúde. Isso significa que problemas de eficiência administrativa na execução de políticas públicas de saúde têm sua legitimidade questionada na esfera judicial, transferindo para este locus o conflito entre o indivíduo e o Estado. Em outras palavras, judicializa-se o direito à saúde, ampliandose o raio de atuação do Poder Judiciário, que se torna ele próprio uma arena política de reivindicação de direitos prestacionais. Por outro lado, busca-se uma revisão sobre a margem de liberdade da Administração Pública (VIANNA; CARVALHO; MELO et al, 1999, p. 47-51). 3. O CUSTO DOS DIREITOS A circunstância de se admitir que os direitos sociais, como o direito à saúde, são direitos subjetivos não implica uma ampla e irrestrita tutela judicial (LIMA In SARLET; TIMM, 2008, p. 265). As normas que asseguram direitos fundamentais (prestacionais ou não) estabelecem que algo deve ser concretizado na maior medida do possível, respeitadas as limitações fáticas e jurídicas, razão pela qual são tidas como mandamentos de otimização (ALEXY, 1997, p. 89). A referência aos limites é relevante para se compreender que os direitos fundamentais estão condicionados à satisfação de condições fáticas e materiais. Daí que há de se levar em conta o custo dos direitos. Comumente se imagina que apenas o direitos sociais, por envolverem direitos à prestações estatais, conduzem a um custo financeiro. O argumento é falso. O direitos individuais e liberdades públicas também dependem, em certa medida, de prestações estatais (HOLMES; SUSTEIN, 1999, p. 59 e ss.). Sem investimento em segurança pública, haveria o risco de violação ao direito à propriedade privada, em razão da possibilidade de invasões e outras agressões. O direito político ao sufrágio depende de investimentos que viabilizem a realização e regularidade de todo o pleito 4 Como exemplo, ressalte-se o Capítulo VII, da Constituição Federal, dedicado à família, criança, adolescente e idoso. Assim, uma vez constitucionalizadas, as disposições do Direito de Família que cuidam do conceito de entidade familiar, igualdade entre cônjuges e filhos, de certo repercutem na interpretação dos preceitos do Código Civil sobre a mesma matéria. 5  “O direito público subjetivo à saúde representa prerrogativa jurídica indisponível assegurada à generalidade das pessoas pela própria Constituição da República (art. 196).(...)O caráter programático da regra inscrita no art. 196 da Carta Política - que tem por destinatários todos os entes políticos que compõem, no plano institucional, a organização federativa do Estado brasileiro - não pode converter-se em promessa constitucional inconseqüente, sob pena de o Poder Público, fraudando justas expectativas nele depositadas pela coletividade, substituir, de maneira ilegítima, o cumprimento de seu impostergável dever, por um gesto irresponsável de infidelidade governamental ao que determina a própria Lei Fundamental do Estado. (RE 393175 AgR / RS, rel. Min. Celso de Mello, d.j. 12.12.06)

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eleitoral. Por que, então, existe certa perplexidade quando surgem demandas judiciais em que o indivíduo busca o fornecimento de um medicamento de alto custo? Ocorre que a realização das condições para exercício dos direitos sociais supõe tudo aquilo que se demanda para a proteção dos direitos individuais e liberdades públicas e algo mais (SILVA, 2009, 243). É que para cada direito social se exige um custo específico e adicional, o que aumenta a necessidade de disponibilidade de recursos públicos. Em outros termos, ao passo que boa parte dos custos com os direitos e liberdades individuais é usado de maneira global (proteção, organização judiciária, etc), assegurando vários desses direitos de uma só vez, cada direito social exige um custo exclusivo que apenas será utilizado para este direito e não será aproveitado para outros. Assim, os recusos para aquisição de medicamentos, compra de equipamentos, contratação de médicos, construção dos hospitais, campanhas contra epidemais são usados para atender um único direito social (saúde). Vê-se, com isso, que a discussão em torno do custo dos direitos não pode ser simplesmente ignorada, especialmente em relação aos direitos prestacionais. Por essa razão, existe uma maior preocupação em torno das repercussões econômicas de decisões judiciais que estabelecem obrigações à Administração Pública na área de saúde, pois o seu cumprimento normalmente envolve alguma mudança na alocação dos recursos estatais. Diante do que foi colocado, ver-se-á como o STF tem decidido demandas dessa natureza e até que ponto o argumento do custo dos direitos interfere no resultado final do julgamento. 4. PARÂMETROS DE ATUAÇÃO DO STF Considerando o elevado número de ações que chegam ao Poder Judiciário tratando o direito à saúde, impõe-se destacar os parâmetros usados pelo STF, em razão de sua posição institucional, para decidir os litígios dessa natureza. Primeiramente, destaque-se aquilo que é discutido no âmbito da Corte para que esta negue o direito a uma prestação estatal. Um dos argumentos é que decisões favoráreis a particulares que pedem medicamentos ou tratamentos a serem assegurados gratuitamente podem provocar uma desorganização no planejamento orçamentário do ente público. Daí a constante referência ao art. 4º, da Lei 8.437/92, que autoriza o deferimento do pedido de suspensão de segurança para evitar “grave lesão à ordem, à saúde, à segurança e à economia pública”. Com base nessa regra legal, quando Presidente do Tribunal, a Min. Ellen Gracie suspendeu decisão proferida pelo TJ-GO que obrigava o Estado a fornecer o medicamento necessário ao tratamento de infertilidade feminina. A Ministra entendeu que, como tal doença não punha em risco a vida das pacientes e, dado o alto custo do medicamento em face do“já abalado sistema público de saúde”, era cabível a suspensão dos efeitos da decisão do Tribunal local6. Por outro lado, a Corte tem rejeitado a alegação do denominado “efeito multiplicador da decisão”, que poderia também causar grave lesão à ordem e saúde públicas, haja vista a “análise de decisões dessa natureza deve ser feita caso a caso, considerando-se todos os elementos normativos e fáticos da questão jurídica debatida”7. A partir desse caso concreto, depreende-se que não apenas se reconheceu a existência de limites materiais (escassez de recursos) ao exercício de direitos prestacionais, como que esse fator exerceu considerável influência na decisão. Cumpre destacar que a escassez dos recursos públicos, por vezes, cede diante de outras variáveis, quais sejam, a necessidade do acesso a uma específica prestação estatal e a falta de condições econômicas do indivíduo. Isso não significa olvidar que a fruição do direito à saúde depende de alocações orçamentárias específicas. A rigor, em tais situações, verifica-se o chamado “periculum in mora inverso” ao beneficiário, uma vez que comprovada a necessidade vital do medicamento e a impossibilidade do custeio da aquisição da medicação pleiteada pelo próprio particular, caberia a intervenção judicial.Dessa forma, conclui-se que o risco causado ao particular seria muito maior do aquele causado à Administração Pública, na hipótese de se não conceder do 6  SS n. 3263, Min. Ellen Gracie. 7 AgRg na STA n. 175., Min. Gilmar Mendes, destaque nosso.

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medicamento pela via judicial8. É curioso observar que, em certos casos, as limitações orçamentárias, conquanto relevantes, não são motivos suficientes para restringir o acesso do indivíduo aos serviços públicos de saúde. Nesse sentido, tem decidido o Min. Celso de Mello: Tal como pude enfatizar em decisão por mim proferida no exercício da Presidência do Supremo Tribunal Federal, em contexto assemelhado ao da presente causa (Pet. 1.246/SC), entre proteger a inviolabilidade do direito à vida e à saúde, que se qualifica como direito subjetivo inalienável assegurado a todos pela Constituiçãoda República (art. 5º, “caput” e art. 196), ou fazer prevalecer contra essa preorrogativa fundamental, um intresse financeiro e secundáriodo Estado, entendo – uma vez configurado o dilema – que razões de ordem ético-jurídica impõem ao julgador uma só e possível ação: aquela queprivilegia o respeito indeclinável à vida e à saúde humana9

Cabe esclarecer, ainda, que a Corte tem negado pedidos de medicamentos ou tratamentos quando ainda não existe comprovação de sua eficácia e segurança, o que se comprova mediante o seu registro na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA). Assim, um dos requisitos para que haja a concessão do pedido é o registro da medicação ou do tratamento, de sorte que, caso qualquer destes ainda esteja em fase de experimentação, o pedido há de ser negado10. Pode-se extrair como conclusão que a concessão de medicamentos ou realização de tratamentos médicos depende da a) necessidade do paciente; b) da comprovada falta de condições econômicas para custeá-los por conta própria e c) do seu registro na ANVISA. 5. CONSIDERAÇÕES SOBRE OS PRECEDENTES DO STF A análise dos argumentos usados pelos integrantes do STF permite suscitar alguns questionamentos. Em primeiro lugar, emerge a antiga discussão sobre legitimidade do Poder Judiciário em promover intervenções sobre políticas públicas. De fato, uma vez que o direito à saúde depende de alguma política social, fruto, por sua vez, de decisões político-administrativas que disponham inclusive sobre a destinação dos recursos públicos, questiona-se se caberia ao Poder Judiciário realizar um controle mais efetivo sobre as ações e, prinicipalmente, omissões, da Administração Pública.A propósito, o Min. Gilmar Mendes tem sustentado que “o problema não é de inexistência, mas de execução (administrativa) das políticas públicas pelos entes federados”11. Dessa forma, para o Ministro, a principal atividade do Judiciário não é criar políticas públicas, mas sim fazer com que as já existentes sejam efetivadas. Com essa postura,pretende-se atenuar a discussão acerca de um possível ativismo judicial por parte da Corte Suprema ao julgar ações correlatas, o que tornaria mais complexa a legitimidade de sua intervenção. Ora, é sabido que, em certos casos, a questão não envolve apenas a implementação de uma política pública já existente, o que, de fato, seria mais simples de justificar. Por vezes, o pedido do indivíduo consiste, por exemplo, em lhe assegurar um determinado medicamento de alto custo que não faz parte uma lista oficial de remédios disponíveis para a coletividade. Consoante tem sustentado, Andreas Krell (2003, p. 90 e ss.) “onde o processo político (Legislativo e Executivo) falha ou se omite na implementação de Políticas Públicas e dos objetivos sociais nela implicados, cabe ao Poder Judiciário tomar uma atitude ativa na realização da correição da prestação dos serviços sociais básicos”. Isso significa que a atuação do Poder Judiciário assumiria um caráter subsidiário, ou seja, havendo falha na prestação serviços tidos como essenciais, caberia sua interferência. Relacionado a esse problema, verifica-se que quando o STF prioriza o direito subjetivo do cidadão, considerando, inclusive, “secundário” o interesse financeiro do Estado, normalmente o faz em casos extremos quando a vida da pessoa está em perigo. Daí, caberia indagar se apenas 8  AgRg na SS n. 2944,Rel. Min. Gilmar Mendes. 9  RE n. 393.175, Rel. Min. Celso de Mello. 10  AgRg na SS n. 3345, Rel. Min.Gilmar Mendes. 11  AgRg na SS n. 2944. Rel. Min. Gilmar Mendes.

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haverá a concessão dos pedidos a prestações estatais (medicamentos e tratamentos) quando o próprio direito à vida estiver em risco. Em caso afirmativo, o direito à saúde só teria prioridade enquanto bem jurídico justiciável quando estivesse vinculado ao direito à vida, isto é, apenas quando a gravidade do estado de saúde do indivíduo puder comprometer a sua sobrevivência, é que o Judiciário estaria legitimado a colocar em segundo plano questões orçamentárias. Ao agir dessa maneira, o STF está reconhecendo que o direito ao “mínimo existencial” não se submete a reservas orçamentárias (TORRES In SARLET; TIMM, 2008, p. 82). Só que essa intepretação reduziria a importância dos preceitos constitucionais que tratam do direito à saúde como direito autônomo. Afinal, apenas quando houve perigo de morte será legítima intervenção judicial? Outro ponto a ser ponderado diz respeito ao caráter individual ou coletivo do direito à saúde. A circunstância de o STF destacar que pedidos a prestações estatais devem ser analisados topicamente, avaliando inúmeros fatores, pode conduzir ao entendimento de que tudo só pode averiguado de maneira casuística. Isso criaria grave insegurança jurídica, pois a própria Corte não estaria revelando os critérios sob os quais decide os casos. É preciso ter mente que o acesso à saúde deve ocorrer de maneira “universal”e “igualitária”. Isso impõe ao Tribunal não apenas decidir se a parte no processo tem direito a uma específica prestação estatal, mas, fundamentalmente, decidir se os demais indivíduos que se encontram na mesma situação têm igual direito. O argumento se apóia no fato de que a simples demanda individual em busca de uma prestação estatal não atende ao referido princípio da isnomia, haja vista que inúmeros indivíduos ainda não possuem um efetivo acesso ao Judiciário. 6. CONCLUSÃO A constitucionalização do direito, enquanto fenômeno que busca expandir os efeitos jurídicos dos preceitos constitucionais, tem sido fomentado, em boa parte, pela recente experiência do Poder Judiciário ao invocar diretamente os comandos constitucionais na solução de litígios. De um lado, supera-se o entendimento conservador que reputava certas clásulas constituionais desprovidas de normativas, como se dava com os preceitos programáticos. Por outro, não se deve concluir que a força normativa da Constitução será uma fórmula mágica para diminuir uma realidade marcada pelo elevado grau de exclusão social e deficiência na fruição de direitos básico, como a saúde. Todos os direitos fundamentais dependem, em certo grau, de um custo estatal que lhes dêem respaldo. Mas os direitos prestacionais demandam custos a mais, que só são utilizados para cada direito social específico. Tendo isso em vista, constatou-se que o STF tem assumido clara tendência a interferir em políticas públicas na área de saúde, quando se comprovar a real necessidade, por parte de cidadão hipossuficiente, em ter acesso a alguma prestação estatal de comprovada eficácia. Em tais casos, embora não desconsidere a problemática da escassez dos recursos, prioriza o direito à saúde, em detrimento de restrições orçamentárias, especialmente que há risco à própria vida do indivíduo. Todavia, cabe ainda delinear com maior clareza o âmbito de proteção justiciável do direito à saúde como direito fundamental autônomo e sua dimensão coletiva. REFERÊNCIAS ACOSTA SÁNCHEZ, José. Formación de la Constituición e jurisdicción constitucional: fundamentos de la democracia constitucional. Madrid: Tecnos, 1998. BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção de um novo modelo. São Paulo: Saraiva, 2009. GARCÍA DE ENTERRÍA, Eduardo. La Constitución como norma y el tribunal constitucional. 3. ed. Madrid: Civitas, 1994. GUASTINI, Riccardo. “La constitucionalización del ordenamiento jurídico: el caso italiano”. In: CARBONELL, Miguel. (org.). Neoconstitucionalismo(s). Madrid: Trotta. 2003, pp. 49-75. 137

HOLMES, Stphen; SUSTEIN, Cass R. The cost of rights: why liberties depends on taxes. NewYork: Norton and Company, 1999. KRELL, Andréas. Direitos sociais e controle judicial no Brasil e na Alemanha: os (des)caminhos de um Direito Constitucional “Comparado”. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2003. LEITE, Glauber Salomão. “O novo Direito Civil, oriundo da constitucionalização do direito privado”. In: LEITE, Glauco Salomão; LEITE, George Salomão (coords). A constituição e efetividade constitucional. Salvador: Juspodivm, 2008, pp. 91-98. LIMA, Ricardo Seibel de Freitas. “Direito à saúde e critérios de aplicação”. In: SARLET, Ingo Wolfgang; TIMM, Luciano Benetti (orgs.). Direitos fundamentais, orçamento e “reserva do possível”. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008, pp. 265-84. OTTO, Ignacio de. Derecho constitucional: sistema de fuentes. 4. reimpr. Madrid: Ariel, 1995. TORRES, Ricardo Lobo. “Mínimo existencial, os direitos sociais e os desafios de natureza orçamentária”. In: SARLET, Ingo Wolfgang; TIMM, Luciano Benetti (orgs.). Direitos fundamentais, orçamento e “reserva do possível”. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008, pp. 69-87. SARMENTO, Daniel. “Ubiqüidade constitucional: os dois lados da moeda”. In: SOUZA NETO, Cláudio Pereira de; SARMENTO, Daniel (orgs.). A constitucionalização do direito: fundamentos teóricos e aplicações específicas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, pp. 113-148. SILVA, Virgílio Afonso da. A constitucionalização do direito: os direitos fundamentais nas relações entre particulares. São Paulo: Malheiros, 2006. . Direitos fundamentais: conteúdo essencial, restrições e eficácia. São Paulo: Malheiros, 2009. VIANNA, Luis Werneck; CARVALHO, Maria Alice Rezende; MELO, Manoel Palacios Cunha et al. A judicialização da política e das relações sociais no Brasil. Rio de Janeiro: Revan, 1999. ZAGREBELSKY, Gustavo. El derecho dúctil: ley, derechos, justicia. Traducción de Marina Gascón. 5. ed. Madrid: Trotta, 2003.

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O BRASIL – ATOS INSTITUCIONAIS, ATOS COMPLEMENTARES E UMA HISTÓRIA DE DESCONSTITUCIONALIZAÇÕES E RECONSTITUCIONALIZAÇÕES ACELERADAS

Hélio Sílvio Ourem Campos1

O artigo que vai a seguir faz parte de uma série que pretende apresentar uma seqüência concreta da interferência política assimétrica na produção do direito legislado brasileiro. Foi dividido em duas partes bem definidas. Na primeira, dispondo quanto a reflexões sobre um momento histórico, ainda, tão destacado no Brasil atual. Refiro-me ao período a partir do final da vigência da Constituição de 1946, com todos os Atos excepcionais de que ela foi objeto. Na segunda, tento demonstrar que isto não é uma novidade em nossa história. Para este cotejo, aprofundo-me na realidade tributária brasileira desde as suas origens, ousando resumir os Atos de maior relevo em uma apertada síntese que, para o leitor mais interessado, poderá ser aprofundada a partir de um outro texto que escrevi nos idos de 2001-2002, ao qual chamei de A Constituição brasileira de 1988 e o princípio da segurança jurídica no âmbito das medidas provisórias tributárias. É’ o que vai a seguir. No Brasil, durante o regime da Constituição de 18 de setembro de 1946, foram expedidos quatro (4) Atos Institucionais. Dou destaque para o Ato Institucional nº 01, de 10.04.1964 (republicado em 11.04.1964, por ter saído com incorreções). Nele, os Comandantes em Chefe do Exército, da Marinha e da Aeronáutica, em nome do que a Exposição de Motivos deste Ato chamou de “autêntica revolução”, manteve a Constituição de 1946, ampliando os poderes do Presidente da República. Disse, também, que “a revolução não procura legitimar-se através do Congresso. Este é que recebe deste Ato Institucional” a sua legitimidade. Assim, defendia-se não haver radicalizado, pois se estava resolvendo manter o Congresso Nacional com as reservas de poderes nele (AI-1) fixadas. A justificativa que se dava era a da “restauração da ordem interna e do prestígio internacional”, tomando as “urgentes medidas destinadas a drenar o bolsão comunista.” 1  Doutor e Mestre pela UFPE. Pós-Doutor pela Universidade Clássica de Lisboa. Juiz Federal Titular da Sexta Vara da Seção Judiciária do Estado de Pernambuco. Professor Titular da Universidade Católica do Estado de Pernambuco (graduação e Mestrado). Ex-Procurador Judicial do Município do Recife. Ex-Procurador do Estado de Pernambuco. Ex-Procurador Federal. www.ourem.web44.net. http://lattes.cnpq.br/1508584545879443

139

Enfim: “a revolução vitoriosa, como Poder Constituinte, legitima-se por si mesma.” É o que dizia, na Ementa “À Nação”, pois assim começavam os três primeiros Atos Institucionais. Eles esclareciam que a revolução estava em movimento, ou, como proclamava o Ato Institucional nº 02, de 05.11.65 (também republicado por ter saído com incorreções): “Não se disse que a Revolução foi, mas que é e continuará. Assim, o seu Poder Constituinte não se exauriu (...)”. No Ato nº 02/65, dizia-se no art. 14: “Ficam suspensas as garantias constitucionais ou legais de vitaliciedade, inamovibilidade e estabilidade, bem como a do exercício em funções por tempo certo.” E, no art. 15: “No interesse de preservar e consolidar a Revolução, o Presidente da República, ouvido o Conselho de Segurança Nacional, e sem as limitações previstas na Constituição, poderá suspender os direitos políticos de qualquer cidadão pelo prazo de dez anos e cassar mandatos legislativos federais, estaduais e municipais.” Quanto ao Ato Institucional nº 04, de 07.12.1966 (também retificado), já ficou salientado que ele convocou o Congresso Nacional para discutir, votar e promulgar o projeto de Constituição apresentado pelo Presidente da República (art. 1º, “caput” e § 1º). Veio a Constituição de 1967. Na Constituição de 24 de janeiro de 1967, computando-se os quatro Atos já existentes, chegou-se aos dezessete (17) Atos Institucionais e quarenta (40) Atos Complementares. Entre os Atos Institucionais, ainda merece destaque o AI-5, de 13.12.1968. A origem deste Ato deveu-se ao seguinte fato. O Deputado MÁRCIO MOREIRA ALVES, protestando, na Câmara dos Deputados, contra a violência policial e o regime militar, sugeriu o boicote ao desfile da Independência, de sete de setembro. Este discurso provocou uma enorme irritação nas Forças Armadas. Por isto, o Governo pediu licença ao Congresso para processar o Deputado. O Congresso negou. Aos doze de dezembro, o Plenário rejeitou a solicitação do Governo. A reação foi drástica. Expediu-se o AI-5. O Ato Institucional nº 05/68, além de autorizar os Atos Complementares, no art. 9º, com o objetivo de instrumentalizar a execução das suas medidas e de defender a revolução com medidas de estado de sítio (art. 152, § 2º, da Constituição de janeiro de 1967), estabeleceu que o Presidente da República, quando julgasse conveniente, poderia decretar o recesso parlamentar, ficando, neste período, “autorizado a legislar em todas as matérias” (art. 2º, “caput” e § 1º). Manteve, ainda, a possibilidade de suspensão dos direitos políticos, sem a necessidade de atender às limitações constitucionais (art. 4º); suspendeu as garantias de vitaliciedade, inamovibilidade e estabilidade (art. 6º); suspendeu o habeas-corpus em casos de crimes políticos (art. 10); excluiu de qualquer apreciação judicial a si próprio (AI-5) e aos Atos Complementares que dele decorressem etc. Como se vê, a Constituição de janeiro de 1967, acaso tenha sido feita com o objetivo de, gradualmente, normalizar a ordem jurídica no Brasil, não teve o seu objetivo confirmado na prática. A idéia de elaborá-la, ao que parece, decorreu do fato do grande número de Atos Institucionais e de Emendas Constitucionais editadas após o movimento de 1964. Sobre isto, disse PAULO BONAVIDES (1991, p.429) E o caminho escolhido pelos militares não poderia ter sido outro que o da centralização e fortalecimento do Poder Executivo. O período de abril de 64 a dezembro de 66 registra nada menos do que a edição de quatro atos institucionais e quinze emendas constitucionais. Entre essas últimas, estão as que determinavam reformas nos Poderes Legislativo e Judiciário, no sistema financeiro e ainda no campo tributário.

A rigor, como foi possível observar, não se pode dizer, ao certo, se ela foi outorgada ou promulgada, tendo um caráter semi-autoritário. Afinal, o Congresso foi convocado para se reunir extraordinariamente, discuti-la e votá-la. O rígido calendário, previamente estabelecido, foi cumprido rigorosamente. Veja-se. O Projeto foi enviado pelo Governo, chegando ao Congresso Nacional em 12.12.1966. 140

A Carta foi promulgada em 24.01.67. As formalidades foram cumpridas. PONTES DE MIRANDA, ao comentar a Carta de 1967, disse: “Na Constituição de 1967, há mais subservidade do que revolucionariedade.”2 E arremata: “o Ato Institucional de 1964 foi erro grave na história do Brasil e produziu os outros erros, em outros atos institucionais.” Esperava-se que, pelo menos, cessassem os Atos Institucionais. Mas não cessaram. Daí o caráter também psicológico do AI-5. Ele liquidou com as esperanças de democratização. Quanto à Emenda nº 01, de 17 de outubro de 1969, até hoje ainda se discute se foi mesmo uma nova Constituição. Isto acontece, a meu ver, por dois motivos, a saber: a) em face da procura de legitimidade constitucional do governo à época instituído, que ainda pretendia o reconhecimento da Carta de 1967, que teve origem híbrida; b) dado às grandes modificações que provocou no regime jurídico constitucional. Na verdade, uma Junta de Ministros militares a outorgou em 17.10.1969, havendo ela tratado de adaptar os vários Atos Institucionais e Complementares, fortalecendo o Poder Executivo, que, na época, justificava-se com o pretexto de que aquilo era uma tendência universal. A sociedade protestava como podia, mas a concentração autoritária de poder respondeu com a repressão e com a censura à liberdade de expressão, de reunião, de imprensa, etc. Uma das reações mais marcantes ao autoritarismo ocorreu no Estado de Pernambuco, com o lançamento da Carta do Recife, em 1971, por um grupo progressista do Movimento Democrático Brasileiro (MDB), que tentava fazer oposição ao regime. Neste documento, pretendia-se uma Assembléia Nacional Constituinte, o que só veio a ocorrer anos depois, em 1986. No entanto, foi em abril de 1984 que se iniciou, em São Paulo, uma grande campanha de rua exigindo as eleições diretas em todos os níveis. Esta campanha teve o nome “Diretas, já”. O produto da mobilização foi a eleição indireta de TANCREDO NEVES por um Colégio eleitoral, que era repudiado pela opinião pública. A posse não veio. O Presidente eleito morreu. Surgiram as divergências de interpretação sobre quem deveria assumir. Se o Presidente da Câmara, Deputado ULYSSES GUIMARÃES, ou o Vice-Presidente eleito, o Senador JOSÉ SARNEY. Tornou-se Presidente o segundo, em 1985. Ainda sobre a Constituição que antecedeu a de 1988, falava-se que era uma “colcha de retalhos”, dado que foi atingida por 27 (vinte e sete) Emendas. A 26ª foi para instalar a Assembléia Constituinte que elaborou a atual Constituição3. A 27ª, de 02 de dezembro de 1985, dispôs, sobretudo, quanto à repartição de receitas entre as pessoas políticas que compunham a Federação brasileira (União, Estados-membros, e, também, os Municípios). Compreendidas no período histórico da Constituição que precedeu a atual no Brasil, destaco duas Emendas, a saber: a) a Emenda Constitucional nº 08, de 14 de abril de 1977, o chamado “Pacote de Abril”, que, entre outros dispositivos, fez surgir a figura dos denominados Senadores “biônicos”, pois previa, no § 2º, do art. 41, que o preenchimento de um cargo, entre os três destinados aos Senadores de cada Estado, deveria ser feito mediante eleição indireta, por um Colégio Eleitoral. Este Colégio era composto por membros das Assembléias Legislativas estaduais e de delegados das Câmaras municipais do respectivo Estado a ser representado; b) a Emenda Constitucional nº 15, de 21 de novembro de 1980, que restabeleceu o sistema de voto direto nas eleições para Governador de Estado e para Senador da República (art. 41, “caput”, com a redação da Emenda). 2  MIRANDA, PONTES DE. Comentários à Constituição de 1967 – Tomo I. Editora Forense. 1987. 3  A Emenda Constitucional nº 26, de novembro de 1985, convocou a Assembléia Nacional Constituinte (art. 2º), além de conceder anistia a todos os servidores públicos civis da Administração direta e indireta e militares, punidos por atos de exceção, institucionais ou complementares. Também concedeu anistia aos autores de crimes políticos ou conexos e aos dirigentes e representantes de organizações sindicais e estudantis (art. 4º).

141

A atual Constituição do Brasil é a de 05 de outubro de 1988, e já possui 85 (oitenta e cinco) Emendas, sendo 6 (seis) Emendas Constitucionais de Revisão, todas elas editadas entre março e junho de 1994, além de outras 79 (setenta e nove) Emendas. Isto em cerca de 26 (vinte e seis) anos de promulgação. Muitas delas merecem especial destaque. Como exemplo: as Reformas Administrativa e Previdenciária (Emenda Constitucional nº 19, de 05 de junho de 1998 e Emenda Constitucional nº 20, de 15 de dezembro de 1998, respectivamente – duas entre as mais extensas), computando-se, neste universo, as Emendas Constitucionais nºs. 21 e 22, a mbas de 18 de março de 1999, a de nº 24, de 09 de dezembro de 1999, a de nº 31, de 14 de dezembro de 2000e a de nº 32, de 11 de setembro de 2001, que, embora de menor extensão, tratam, respectivamente, de assuntos importantes, como: o reforço para o custeio da previdência social, mediante a prorrogação da Contribuição provisória sobre movimentação ou transmissão de valores e de créditos de natureza financeira (CPMF, tributo cujas prorrogações já se escoaram); a possibilidade de criação de juizados especiais no âmbito da Justiça Federal; a criação do Ministério da Defesa, retirando a condição de Ministros dos Comandantes militares (Exército, Marinha e Aeronáutica); sobre a criação de um Fundo de Combate à Erradicação da Pobreza e confere uma nova regulamentação constitucional para as medidas provisórias brasileiras. Embora este dispositivo fale em separação de poderes, cabe ressalvar que, no art. 2º, da atual Constituição, figura, entre o que ela chama de princípios fundamentais, a previsão de que: “são Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.” Além destas, há a Reforma Tributária, a do Poder Judiciário, a da instituição de um sub-teto para a remuneração dos servidores públicos estaduais, distritais e municipais, etc. Um verdadeiro desmonte constitucional que, a cada dia, parece reclamar mais uma reforma. De fato, a Constituição de outubro de 1988, em face de não haver partido de um projeto padrão, permitiu o acolhimento de propostas as mais variadas, cabendo às Subcomissões temáticas tentar conferir um mínimo de unidade ao que se fazia. Depois, com a Comissão de Sistematização, lançou-se na difícil tarefa de conferir unidade a algo que efetivamente não possuía, até porque pretendia-se um sistema de governo parlamentar, e foi votado o presidencialismo, inclusive no plebiscito previsto no art. 2º, das Disposições Transitórias4. 4  A cronologia da Assembléia Nacional Constituinte foi a seguinte, segundo o “Jornal da Constituinte”: (Obs.: (1) em 03.12.1987, foi aprovada mudança no Regimento Interno da Assembléia Nacional Constituinte; (2) a Constituição de 05 de outubro de 1988 originalmente previa a sua promulgação para 15.11.1987; (3) em seguida, vão os principais momentos do processo constituinte brasileiro)

1987

Mês

Dia

Matéria

02

01

Instalação

02

02

O Dr. ULYSSES GUIMARÃES foi eleito Presidente da Comissão Diretora

02

05

Foi aprovado o Regimento provisório

03

19

Foi aprovado o Regimento definitivo

03

24

Foi promulgado o Regimento definitivo

03

26

Ano

04

07

Instalação das Subcomissões temáticas

04

14

Início do prazo de Emendas

04

19

Fim do prazo de Emendas

05

25

Encerramento

04

01

Instalação das Comissões temáticas

05

27

Início do prazo de Emendas ao Anteprojeto das Subcomissões

06

01

Fim do prazo de Emendas

04

09

Início da Comissão de Sistematização

142

Além do mais, vários foram os dispositivos que, embora promulgados, tinham contra si forte oposição, especialmente aqueles que envolviam matéria econômica e financeira. Apenas para exemplificar o que digo, assinalo a Emenda Constitucional nº 06, de 15 de agos-

1988

06

15

Recebimento de 08 Anteprojetos das Comissões

06

26

1º Anteprojeto da Constituição, com 501 artigos

06

29

Início do prazo de apresentação de Emendas na Comissão de Sistematização

07

02

Fim do prazo de apresentação de Emendas na Comissão de Sistematização

07

09

Término da votação do anteprojeto de Constituição, resultando no Projeto de Constituição da Comissão de Sistematização, com 496 artigos

07

12

Encaminhamento do Projeto aprovado ao Plenário

07

14

Início do prazo de discussão do Projeto em Plenário

07

15

Início do prazo de apresentação de Emendas

08

13

Fim do prazo de apresentação de Emendas

08

23

Fim do prazo de discussão do Projeto em Plenário, voltando à Comissão de Sistematização

08

24

Início do prazo para o Relator apreciar as Emendas

08

26

O Relator apresenta o substitutivo

09

05

Fim do prazo de apresentação de Emendas ao Substitutivo e o Relator apresenta o 2º Substitutivo, com 264 artigos

09

24

Início do prazo na sistematização de votação do Projeto, com 496 arts; Substitutivos: 1º (305 arts.) e o 2º (264 arts.) e das Emendas

11

18

Término de votação na Comissão de Sistematização

11

24

O Projeto A, aprovado na Sistematização, é entregue ao Presidente da Assembléia Nacional Constituinte

11

26

Inicia a discussão e votação pelo Plenário do Projeto A

01

07

Início da apresentação de Emendas ao Projeto A

01

13

Fim do prazo de apresentação de Emendas

01

14

Início do prazo para o Relator proferir parecer sobre as Emendas, sem alterar o Projeto

01

20

Fim do prazo para o Relator proferir parecer sobre as Emendas

04

21

Instituída a Comissão de Redação, com 19 membros

06

30

Fim da votação em 1º turno, resultando no Projeto B

07

05

O Relator entrega a redação final do Projeto B

09

02

Término da votação, em 2º turno, do Projeto B, que se transforma em Projeto C

09

15

A Comissão de Redação distribui a redação aprovada do Projeto C

09

20

Término da apreciação de propostas, resultando no Projeto D, redação final

09

21

Publicado e distribuído o Projeto D, redação final

09

22

O Plenário aprova, em turno único, em votação global, a redação final, do Projeto transformado em Constituição

10

05

Foi promulgada a Constituição (*) O Substitutivo do Relator ao Projeto de Resolução nº 02/1987- Assembléia Nacional Constituinte, que trata do seu Regimento Interno, previa o término dos trabalhos constituintes em 15.11.1987.

143

to de 1995, que terminou por fazer uma série de modificações no Texto Constitucional, entre elas:

a) eliminou a figura da empresa brasileira e da empresa brasileira de capital nacional (art. 170, inc. IX e art. 171)5. De fato, o que, particularmente, o art. 171 pretendia era que fossem conferidas proteções e benefícios especiais, no campo da defesa nacional e em áreas de especial interesse para o desenvolvimento nacional (tecnologia por exemplo), a empresas que ficassem sobre o controle efetivo de pessoas radicadas no Brasil; b) interferiu na pesquisa e na lavra de recursos minerais e potenciais de energia hidráulica, pois substituiu do § 1º, do art. 176 a expressão “empresa brasileira de capital nacional” por “empresa constituída sob as leis brasileiras e que tenha sua sede e administração no País”; c) interferiu no monopólio da União sobre o petróleo e o gás natural, pois autorizou a mesma a contratar com empresas estatais ou privadas a realização das atividades de pesquisa e lavra das jazidas, refinação e transporte do petróleo etc., conforme dispôs na nova redação do § 1º, do art. 177. Apenas a pesquisa, a lavra, o enriquecimento, o reprocessamento, a industrialização e o comércio de minérios e minerais nucleares e seus derivados ficaram sob o monopólio da União, sem a possibilidade de a mesma contratar estas atividades com empresas estatais ou privadas; isto por força da exclusão do referenciado §1º.

Com a Emenda nº 07, também de 15 de agosto de 1995, não foi diferente, pois alterou o art. 178, chegando a modificar a regra geral de que a navegação de cabotagem e a interior seriam privativas de embarcações nacionais, porquanto, no Parágrafo Único do mesmo artigo, assinalou: “Na ordenação do transporte aquático, a lei estabelecerá as condições em que o transporte de mercadorias na cabotagem e a navegação interior poderão ser feitos por embarcações estrangeiras.” No texto reformado, havia a taxatividade de que a navegação de cabotagem e a interior eram privativas de embarcações nacionais, apenas com a ressalva de casos de necessidade pública, segundo o que dispusesse a lei. Ainda no campo da ordem econômica, cabe destacar que a Emenda nº 08, de 15 de agosto de 1995, tratou de ampliar as possibilidades de o setor privado vir a explorar os serviços de telecomunicações, pois, entre outras novidades, nada vem dizendo sobre a necessidade de controle 5  Diziam os artigos eliminados: “Art. 170. (o “caput” foi mantido) A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: (...) IX – tratamento favorecido para as empresas brasileiras de capital nacional de pequeno porte.” Era o texto do art. 171: “Art. 171. São consideradas: I- empresa brasileira a constituída sob as leis brasileiras e que tenha sua sede e administração no País; II- empresa brasileira de capital nacional aquela cujo controle efetivo esteja em carácter permanente sob a titularidade direta ou indireta de pessoas físicas domiciliadas e residentes no País ou de entidades de direito público interno, entendendo-se por controle efetivo da empresa a titularidade da maioria de seu capital votante e o exercício de fato e de direito, do poder decisório para gerir suas atividades. § 1º. A lei poderá, em relação à empresa brasileira de capital nacional: I- conceder protecção e benefícios especiais temporários para desenvolver actividades consideradas estratégicas para a defesa nacional ou imprescindíveis ao desenvolvimento do País. II- estabelecer, sempre que considerar um setor imprescindível ao desenvolvimento tecnológico nacional, entre outras condições e requisitos: a exigência de que o controle referido no inciso II do caput se estenda às atividades tecnológicas das empresas, assim entendido o exercício, de fato e de direito, do poder decisório para desenvolver ou absorver tecnologia, percentuais de participação, no capital, de pessoas físicas domiciliadas e residentes no País ou entidades de direito público interno. § 2º. Na aquisição de bens e serviços, o Poder Público dará tratamento preferencial, nos termos da lei, à empresa brasileira de capital nacional.” Todo este artigo 171 foi eliminado do Texto Constitucional pela Emenda nº 06, de 15 de agosto de 1995.

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acionário estatal.6 (art. 21, inc. XI e XII, al. “a”) É bem possível que se diga que tudo isto vai no caminho de que o mundo está a exigir que o Estado diminua de tamanho, dado que a burocracia oficial não se apresenta como a base para se construir uma sociedade livre, justa e solidária (art. 3º, inc. I, da Constituição do Brasil), o que é um dos objetivos fundamentais da República. Após 1988, caiu o muro de Berlim, e isto simbolicamente permitiria a mais ampla abertura ao capital privado. Pode ser que nisto haja razão, mas, nos setores onde a lucratividade não se apresente, será necessária a atuação do Estado, sob pena de nem o Estado nem o capital privado virem a atendê-los. Ou, dito de outro modo: quando a atividade for lucrativa, cabe às empresas particulares tirarem o proveito; quando não for, caberá ao Estado arcar com o prejuízo. Parece que esta não pode ser a interpretação a se atribuir ao art. 173, “caput”, da Constituição do Brasil7, que predica que a exploração direta da atividade econômica pelo Estado só será permitida quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou ao relevante interesse coletivo. Afinal, não pode caber a alguém apenas o que dá prejuízo; não sendo razoável admitir que se retire como compatível com o interesse coletivo esta conseqüência hermenêutica. Em verdade, no trecho constitucional referente à ordem econômica foram tais as modificações e a pressa com que elas foram feitas que até se redundou por provocar um artigo que não possui nenhum texto. É, como foi visto, a situação do art. 171, da Constituição do Brasil, que, ao seu lado, tem apenas o seguinte registro: “Revogado pela Emenda Constitucional nº 06, de 15 de agosto de 1995.” Mais (repita-se): as Emendas nºs. 06 e 07, que têm a mesma data (15 de agosto de 1995), aprovaram, cada uma delas, o mesmo artigo constitucional. Acredite se quiser. O art. 246, da Constituição do Brasil foi aprovado duas vezes, e com idêntico teor, tal a desatenção que vem merecendo a Constituição no Brasil. Algo bastante semelhante, mas ainda pior, do que adotar uma Constituição por um dia. No caso, sequer se procurou saber que o artigo já havia sido aprovado. Dizia o art. 246: Art. 246. É vedada a adoção de medida provisória na regulamentação de artigo da Constituição cuja redação tenha sido alterada por meio de emenda promulgada a partir de 1995.8 6  O Texto original tinha a seguinte redação: “Compete à União explorar, diretamente ou mediante concessão a empresas sob o controle acionário estatal, os serviços telefônicos, telegráficos, de transmissão de dados, e demais serviços públicos de telecomunicações, assegurada a prestação de serviços de informações por entidades de direito privado, através da rede pública de telecomunicações explorada pela União e explorar, diretamente ou mediante autorização, concessão ou permissão os serviços de radiodifusão sonora, de sons e imagens e demais serviços de telecomunicações.” O atual Texto prevê: “Compete à União explorar, diretamente ou mediante autorização, concessão ou permissão, os serviços de telecomunicações, nos termos da lei, que disporá sobre a organização dos serviços, a criação de um órgão regulador e outros aspectos institucionais e explorar, diretamente ou mediante autorização, concessão ou permissão os serviços de radiodifusão sonora e de sons e imagens;” 7  Constituição do Brasil: “Art. 173. Ressalvados os casos previstos nesta Constituição, a exploração direta de atividade econômica pelo Estado só será permitida quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo, conforme definidos em lei. (Este parágrafo vai com a redação dada pela Emenda Constitucional nº 19, de 05 de junho de 1998) § 1º A lei estabelecerá o estatuto jurídico da empresa pública, da sociedade de economia mista e de suas subsidiárias que explorem atividade econômica de produção ou comercialização de bens ou de prestação de serviços, dispondo sobre: I- sua função social e formas de fiscalização pelo Estado e pela sociedade; II- a sujeição ao regime jurídico próprio das empresas privadas, inclusive quanto aos direitos e obrigações civis, comerciais, trabalhistas e tributários; III- licitação e contratação de obras, serviços, compras e alienações, observados os princípios da administração pública; IV- a constituição e o funcionamento dos conselhos de administração e fiscal, com a participação de acionistas minoritários; V- os mandatos, a avaliação de desempenho e a responsabilidade dos administradores.” 8  É a nova redação deste artigo, conferida pela Emenda Constitucional nº 32, de 11.09.2001: “É vedada a adoção

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Diante deste dispositivo, e analisando um tributo que, no Brasil, é chamado de contribuição social do salário-educação, escrevi um artigo que terminava afirmando: 1. se a Constituição chegou ao exagero de ver aprovado um mesmo artigo duas vezes, também, entre as suas matérias, há aquelas que vêm repetidas em mais de um artigo, como é o caso do princípio da igualdade e da segurança jurídica9 e a garantia da irretroatividade da lei menos benéfica etc. Ora, se um destes dispositivos vier a ser alterado por Emenda, e os outros não o forem, poderiam estes últimos servir de fundamento de validade para novas medidas provisórias, posteriores a 1995? 2. se um artigo alterado por Emenda tratasse, originalmente, de dois ou mais assuntos, e apenas um houvesse sofrido alteração, estaria o outro impossibilitado de vir a ser regulado por meio de medida provisória, mesmo estando manifestamente presentes os requisitos constitucionais para a sua edição: relevância e urgência (art. 62, da Constituição do Brasil)?10 Quanto ao primeiro argumento, é possível que se diga que tanto a isonomia, quanto a segurança jurídica, como também a garantia da irretroatividade da lei menos benéfica, estão, todos eles, sob o manto da intangibilidade constitucional (art. 60, § 4º, da Constituição do Brasil)11. No entanto, cabe sopesar que nada é mais fundamental, nos tempos modernos, do que a educação de um povo, e, entre os direitos e garantias individuais, é obrigatória a presença da educação. Assim, reconhecida esta como um direito de todos e um dever do Estado (arts. 205 e ss.) - o que é fortalecido pelo fato de que o não oferecimento do ensino obrigatório pelo Poder Público, ou mesmo a sua oferta irregular, detém como conseqüência, prevista na Constituição, a responsabilidade da autoridade competente (art. 208, § 2º) – é preciso que, na interpretação dos seus predicamentos constitucionais, não se esqueça de que a cidadania se constrói com a melhoria da qualidade de ensino e com a universalização do atendimento escolar (ver arts. 205 e ss, da Constituição do Brasil)12. de medida provisória na regulamentação de artigo da Constituição cuja redação tenha sido alterada por meio de Emenda promulgada entre 1º de janeiro de 1995 até a promulgação desta Emenda, inclusive.” 9  Quanto à redução das desigualdades entre as regiões, pode-se, ao menos, citar-se os arts. 3º, inc. III; 151, inc. I; 165, § 7º e 170, inc. VII. Sobre o princípio da irretroatividade, é o mesmo que ocorre, conforme se retira dos arts. 5º, “caput” (segurança jurídica); 5º, inc. XXXVI (“a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada”); 150, inc. III, al. “a” (“é vedado às pessoas políticas cobrar tributos em relação a fatos geradores ocorridos antes do início da vigência da lei que os houver instituído ou aumentado”). 10  Constituição do Brasil: “Art. 62. Em caso de relevância e urgência, o Presidente da República poderá adotar medidas provisórias, com força de lei, devendo submetê-las de imediato ao Congresso Nacional, que, estando em recesso, será convocado extraordinariamente para se reunir no prazo de cinco dias. Parágrafo Único. As medidas provisórias perderão eficácia desde a edição, se não forem convertidas em lei no prazo de trinta dias, a partir de sua publicação, devendo o Congresso Nacional disciplinar as relações jurídicas delas decorrentes.” (Texto originário). 11  Constituição do Brasil: “Art. 60 (...) § 4º. Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolirIa forma federativa de Estado;II- o voto direto, secreto, universal e periódico;III- a separação dos PoderesIV- os direitos e garantias fundamentais.” 12  Constituição do Brasil. Por exemplo: “Art. 212. A União aplicará, anualmente, nunca menos de dezoito, e os Estados, o Distrito Federal e os Municípios vinte e cinco por cento, no mínimo, da receita resultante de impostos, compreendida a proveniente de transferências, na manutenção e desenvolvimento do ensino. § 1º. A parcela da arrecadação de impostos transferida pela União aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios, ou pelos Estados aos respectivos Municípios, não é considerada, para efeito de cálculo previsto neste artigo, receita do governo que a transferir.§ 2º. Para efeito do cumprimento do disposto no caput deste artigo, serão considerados os sistemas de ensino federal, estadual e municipal e os recursos aplicados na forma do art. 213 (escolas públicas, comunitárias, confessionais ou filantrópicas).§ 3º. A distribuição dos recursos públicos assegurará prioridade ao atendimento das necessidades do ensino obrigatório, nos termos do plano nacional de educação.§ 4º. Os programas suplementares de alimentação e assistência à saúde previstos no art. 208, VII, serão financiados com recursos provenientes de contribuições sociais e outros recursos orçamentários. (a L. nº 8.913, de 12 de julho de 1994, dispõe sobre a municipalização da merenda escolar).§ 5º. O ensino fundamental terá como fonte adicional de financiamento a contribuição social do salário-educação recolhida, pelas empresas, na forma da lei.”

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Não se pense que a questão que agora apresento só tenha importância teórica. Veja-se. A contribuição social do salário-educação vem disciplinada no art. 212, § 5º, que foi alterado em 1996, pela Emenda nº 14, de 12 de setembro de 1996, que lhe retirou a expressão: “que dela poderão deduzir a aplicação realizada no ensino fundamental de seus empregados e dependentes”, embora a remissão feita à lei disciplinadora pudesse vir a restabelecer a regulamentação neste mesmo sentido. Vale lembrara que o antecedente histórico mais antigo desta exação brasileira parece ser o “subsídio literário”, um imposto destinado a financiar a educação, instituído logo após a expulsão dos jesuítas do Brasil, o que implicou no fechamento dos seus colégios e na substituição pelas “aulas régias”. Foram dois os motivos básicos para esta expulsão, a saber: a) a região das Missões ou a questão dos limites no sul do Brasil; b) o atentado contra o Rei José I, em 1758, em Portugal. Ora, embora não de maneira especial, é sabido que o art. 149, da vigente Constituição do Brasil13, trata das contribuições especiais; e, entre elas, estão as sociais. Abstraindo a existência de outros defeitos apontados nesta contribuição social, cabe perquirir se este pode ser visto como mais um. Particularmente, isto me faz lembrar um chavão tantas vezes repetido no Brasil: “quando não se quer, qualquer desculpa serve.” Feita esta análise panorâmica da história do Estado e do direito constitucional brasileiro, passo a um maior detalhamento, na área tributária, quanto àquilo que de mais importante passou pelo Brasil desde o descobrimento. Antes disto, vale a referência sobre o que venha a ser “tributo” de acordo com o direito positivo nacional. Tal como muitas definições são positivadas, o mesmo ocorre com o “tributo”. A própria Constituição da República Federativa do Brasil de outubro de 1988 remete à lei complementar a tarefa de definir “os tributos e suas espécies” (art. 146, inc. III, al. “a”)14. Por sua vez, o Código Tributário Nacional (Lei nº 5.172/25.10.1966) define o que seja o tributo, dizendo no seu art. 3º: “é toda prestação pecuniária compulsória, em moeda ou cujo valor nela se possa exprimir, que não constitua sanção de ato ilícito, instituída em lei e cobrada mediante atividade administrativa plenamente vinculada.” Em suma, a idéia do conceito de tributo é pertencente ao direito positivo, não sendo uma questão de lógica jurídica ou universal. Varia com a história. Dentro desta perspectiva, é que se torna preciso considerar que as contribuições extraídas da história não são antecedentes perfeitos das exações atuais. De fato, muitas vezes, as comparações, inclusive as históricas, são perigosas. Etimologicamente, contudo, a expressão tributo deriva do latim, tributum, particípio passado do verbo tribuere, e tem, dentre outras acepções, a de dividir ou repartir entre as tribos. Daí a 13  Constituição do Brasil: “Art. 149. Compete exclusivamente à União instituir contribuições sociais, de intervenção no domínio econômico e de interesse das categorias profissionais ou econômicas, como instrumento de sua atuação nas respectivas áreas, observado o disposto nos arts. 146, III (exigência de lei complementar para o estabelecimento de normas gerais em matéria de legislação tributária, e 150, I e III (princípio da legalidade estrita ou da tipicidade cerrada e princípios da irretroatividade e anterioridade, com a ressalva de que para as contribuições em favor da seguridade social a anterioridade é nonagesimal), e sem prejuízo do previsto no art. 195, § 6º, relativamente às contribuições a que alude o dispositivo.Parágrafo Único. Os Estados, o Distrito Federal e os Municípios poderão instituir contribuição, cobrada de seus servidores, para o custeio, em benefício destes, de sistemas de previdência e assistência social.” Diz o art. 195, § 6º, Constituição do Brasil: “Art. 195. A seguridade social será financiada por toda a sociedade, de forma direta e indireta, nos termos da lei, mediante recursos provenientes dos orçamentos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, e das seguintes contribuições sociais: (...) § 6º. As contribuições sociais de que trata este artigo só poderão ser exigidas após decorridos noventa dias da data da publicação da lei que as houver instituído ou modificado, não se lhes aplicando o disposto no art, 150, III, b (princípio da anterioridade, que impede às pessoas políticas cobrar tributos no mesmo exercício financeiro em que haja sido publicada a lei que os instituiu ou aumentou;).” 14  Constituição de outubro de 1988. “Art. 146. Cabe à lei complementar: (...) III- estabelecer normas gerais em matéria de legislação tributária, especialmente sobre: a) definição de tributos e de suas espécies, bem como, em relação aos impostos discriminados nesta Constituição, a dos respectivos fatos geradores, bases de cálculo e contribuintes; (...)”.

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idéia de carga pública repartida entre as tribos. No caso do Brasil colônia15, é fundamental inserir esta noção de acordo com: a) b) c) d)

o direito geral português, que valia para todo o reino; o direito expresso por uma legislação específica, ou colonial geral; o direito especial formulado para o Brasil. Foi o caso das minas e dos índios; o direito emanado pela própria colônia (os forais16 e os regimentos permitiam aos governadores, limitadamente, complementarem as leis da metrópole. Também as câmaras ou os senados das câmaras das vilas e cidades formulavam leis, pretendendo atender às necessidades da administração municipal); e) o direito consuetudinário, derivado dos usos e costumes locais, inclusive dos índios autóctones. Em suma, o direito colonial era diferente daquele em vigor na metrópole. Mas, creio que já na fase inicial da Colônia, ainda no princípio da exploração do pau-brasil, adveio a cobrança do “quinto do pau-brasil”, uma espécie de primeira exação fiscal nas terras brasileiras. Cabe observar que o período do Brasil colônia não conheceu muitos tributos tradicionais em Portugal, como os foros de julgada, a fossadeira, o relego, as portagens, as açougagens, o montado e a coima, etc.17 Até o final do regime das Capitanias Hereditárias18, algo que ocorreu por volta do século XVIII, nos tempos do Marquês de Pombal19, os tributos ou as rendas eram distribuídos entre o real Erário e o donatário, mais ou menos da seguinte forma: Para o real Erário: 15  A Capitulação do Mar Oceano, conhecida como o Tratado de Tordesilhas (07.06.1494), determinava que, caso a Espanha descobrisse novas terras a oeste até 20 de junho de 1494, a linha passaria a 250 léguas de Cabo Verde. Caso contrário, tal como ocorreu, passaria a 370 léguas. Contra isto, o Rei FRANCISCO I, da França, contraditava, dizendo que não encontrava, no testamento de Adão, poderes conferidos ao Papa, ALEXANDRE VI, para dividir o mundo entre Portugal e Espanha (Castela, Leão, Aragão e Granada). Este é, provavelmente, o primeiro diploma legal afetando o Brasil. A Bula do Papa JÚLIO II, de 24 de janeiro de 1506, confirmou ao Rei MANUEL I, enquanto grão-mestre da Ordem de Cristo e soberano de Portugal, os direitos sobre o Brasil, conforme o referido Tratado. Esta Bula foi novamente confirmada por outra, do Papa LEÃO X, isto sem que deixassem de existir restrições das demais potências européias. 16  Os forais são, às vezes, considerados autênticos Códigos tributários. 17  A título de esclarecimento: (1) foros de julgada – recaía em terras lavradas, às vezes pagos em pão (trigo); (2) fossadeira – eram pagos pelos que eram obrigados a ir com o rei ao fossado, e, também, era o nome dado à terra que estava obrigada àquele tributo; (3) relego – privilégio que gozavam os servidores de algumas terras para venderem o seu vinho sem concorrência; (4) portagens – correspondia aos direitos de barreira, e era pago por cargas ou passagem. Uma espécie de pedágio; (5) açougagem – pago por ter açougue, não só pela venda de carne, mas também pão, hortaliça, etc.; montado (6) – expressava o tributo pago aos donos dos terrenos que serviam para a engorda dos porcos; (7) coima – pena pecuniária incidente contra o que se apoderava de pequenos valores de propriedade alheia ou ao dono de animais que pastavam indevidamente em propriedade de outrem. Uma forma de multa. 18  Uma espécie de usufruto ou de enfiteuse (direito privado), ou de concessão (direito público). Interessante observar que, nos séculos IX e X, quando os visigodos desceram das Astúrias, ganhando terrenos aos infiéis (árabes e mouros), e, também, nos séculos XII e XIII, quando os monarcas do antigo condado portucalense avançavam para o sul, ao serem conquistadas as terras, e diante do problema de defendê-las, conservava-as com o povoamento e o cultivo. Assim, alguém da confiança do rei era designado governador, encarregando-se da ocupação e da conservação das terras. Nas capitanias, não era diferente, nomeando-se, mediante a carta foral, alguém com objetivo similar. 19  O século XVIII foi o do iluminismo, onde surgiram os “déspotas esclarecidos”, entre eles CATARINA, da Rússia; FREDERICO, da Prússia; JOSÉ II, da Áustria e o Ministro de JOSÉ I, de Portugal, denominado de SEBASTIÃO JOSÉ DE CARVALHO E MELO, o Conde de Oeiras e Marquês de Pombal. A opinião sobre este importante vulto português vai de críticas que o taxam de tirânico e cruel a elogios que apontam nele o que houve de melhor em Portugal, colocando-o ao lado de VASCO DA GAMA e de LUÍS DE CAMÕES. Com o seu caráter revolucionário, promoveu reformas, entre elas a reconstrução de Lisboa, a quase total extinção das capitanias hereditárias e a expulsão dos jesuítas, que foram obrigados a sair do Brasil, fechando todos os colégios que patrocinavam. Estes colégios foram substituídos pelas “aulas régias”, que eram financiadas pelo “subsídio literário”, um tipo de imposto que pretendia financiar a educação, criado pelo Alvará de 23 de novembro de 1772. Incidia sobre cada rês abatida, e sobre a aguardente destilada e a “carne verde”.

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a) b) c) d) e)

os direitos alfandegários (importação, exportação); 10% do valor das mercadorias naufragadas que viessem às costas brasileiras; o quinto ou vigésimo do ouro, prata, cobre, coral, pérola, chumbo, etc. o dízimo do pescado e dos demais produtos da terra; a sisa (transmissão) por cabeça de índio escravizado. Para o donatário ou equivalentes:

a) b) c) d) e)

o monopólio das explorações das moedas e quaisquer outros engenhos; a barcagem, ou direitos de passagem nos rios; o quinto ou vigésimo do produto do pau-brasil, das especiarias e das drogas; o quinto do ouro e minerais preciosos, encontrados na Capitania; meio dízimo do pescado, ou, a cada grupo de vinte peixes, um cabia ao donatário, capitãomor ou governador; f) a redízima, ou a décima parte da dízima, sobre todas as rendas da coroa. No período em que vigorou o Governo Geral, dividia-se os tributos em ordinários e extraordinários. Para o real Erário, basicamente os mesmos tributos eram remetidos. Para o GovernadorGeral, acrescentava-se os direitos dos escravos. Os tributos designados de extraordinários, como o próprio nome indica, eram destinados a despesas excepcionais, tais como para fazer frente aos gastos com tropas ou construções de fortalezas ou cidades. Em termos mais genéricos, costumava-se distribuir os tributos em três classificações: a) as derramas, que independiam dos rendimentos do contribuinte; b) as fintas, que obedeciam a uma proporção com a renda do contribuinte; c) as contribuições, que eram uma espécie de designação subsidiária e de conteúdo variado. Observação: no século XVIII, a derrama teve uma significação histórica importante para o Brasil, pois dela sobressaía-se a cobrança do quinto do ouro em atraso. Daí a Inconfidência mineira20, que levava às armas o sentimento de impopularidade do esquema tributário implantado. Aliás, no Brasil, ainda é popular a expressão “quintos dos infernos”; o que, por si só, fornece uma imagem simbólica do repúdio.

Durante o chamado domínio holandês, por volta de 1630 a 1654, onde os batavos fixaram20  A Inconfidência mineira é havida como um dos principaismovimentos de emancipação política do Brasil colônia, embora haja sido coordenada pela elite de Minas Gerais sob a influência de ideais iluministas. Em 1789, propunha a Independência em relação a Portugal. Parece que a política pombalina para o Brasil, com a organização das Companhias de Comércio monopolistas, trouxe um peso que se fazia bem sentir na mais importante região aurífera e diamantífera brasileira, que era Minas Gerais. De fato, a “derrama” não implicava em um novo tributo, mas na cobrança da diferença em relação ao que deveria ter sido pago e não o foi. Porém, a forma de execução promovida pelas autoridades portuguesas era extremamente violenta, gerando uma revolta contra a situação de dominação. Além disto, o “Alvará de proibição industrial”, baixado em 1785, por D. MARIA I, a louca, proibia a existência de manufaturas no Brasil; o que dificultou, ainda mais, o nível de vida da população interiorana, que passara a depender das tropas que traziam do litoral os produtos importados por preços muito altos e em uma quantidade precária. A independência das 13 colônias inglesas, na América do Norte, também foi um exemplo estimulador para outros movimentosemancipacionistas na América Ibérica, incluindo o Brasil. Um dos poucos líderes sem posses desta Conjuração foi TIRADENTES - um militar (Alferes) filho de um pequeno proprietário - que, procurando garantir o apoio de outros proprietários rurais, contactou com vários mineradores, entre eles JOAQUIM SILVÉRIO DOS REIS, que, embora a princípio haja aderido ao movimento, pois era também um devedor de impostos, posteriormente, com medo, resolveu delatar a conspiração. Na Quarta audiência de depoimentos, no início de 1790, TIRADENTES assumiu a sua posição de líder. Onze dos acusados foram condenados à morte, mas apenas TIRADENTES foi executado, pois os demais tiveram as penas comutadas para degredo perpétuo por D. MARIA I. O Alferes foi executado aos 21 de abril de 1792, no Rio de Janeiro, sendo esquartejado, distribuindo-se as partes do seu corpo para exposição em Minas Gerais como uma advertência contra novas tentativas de rebelião.

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se no então centro econômico do Brasil, Pernambuco, a terra do açúcar (Zuickerland), e de onde surgiu a reflexiva afirmação de que “não existia pecado do lado de baixo do Equador” (GASPAR BARLEAUS, “História dos feitos recentemente praticados durante os oito anos no Brasil”), os holandeses como que fixaram uma espécie de Constituição do Brasil holandês, mediante o Regulamento de 23 de agosto de 1636, havendo, em cada município, o Conselho comunal, que implicava na soma do Conselho dos escabinos (uma espécie de tribunal municipal) mais o escuteto (schout), que era o chefe administrativo municipal. Era exatamente o escuteto que detinha as funções de promotor de justiça, de chefe de polícia local e também de exator da fazenda. Na verdade, nem sempre a cobrança dos impostos holandeses realizava-se pelo escuteto, sendo passível de ser realizada por arrendatários, especialmente comerciantes judeus. Já no reinado de D. MARIA I, ou entre o final do século XVIII e o início do século XIX, eclodiram, no Brasil, mais quatro contribuições: a) direitos que variavam de 10, 20, 24 ou 40% relativos à pólvora de origem estrangeira (Alvará de 13 de julho de 1778); b) subsídio do açúcar e do algodão (Carta Régia de 19 de maio de 1779); c) subsídio do tabaco em pó (Alvará de 18 de setembro de 1779); d) imposto sobre o ouro, sobre botequins e tabernas e sobre a aguardente (Alvará de 18 de março de 1801). Em seguida, com a vinda ao Brasil da família real portuguesa, advieram transformações principalmente no campo do direito público brasileiro, ficando o Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves um tanto refém dos ingleses. Era a sombra da Inglaterra lançada por sobre o Atlântico. No Brasil, havia, de fato, uma espécie de jurisdição especial para os súditos da majestade britânica, ratificada e destacada no Tratado de Comércio e Navegação de 1810. Sob esta fisionomia histórica, foram criados novos tributos, ao lado dos já existentes. São exemplos disto: a) importação (Carta Régia de 28 de janeiro de 1808, a da abertura dos portos às nações amigas); b) direitos de guindaste (Alvará de 25 de abril de 1808); c) décima dos prédios urbanos, ou 10% sobre os rendimentos líquidos dos imóveis situados no litoral ou em regiões populosas do interior (Alvará de 27 de junho de 1808). Depois, passou a ser chamado de décima urbana, e, em seguida, de imposto sobre prédios urbanos; d) pensão para a Capela Real (Alvará de 20 de agosto de 1808); e) contribuição de polícia (Ato de 13 de maio de 1809); f) imposto de sisa dos bens de raiz (Alvará de 3 de junho de 1809). Depois, passou a chamar-se de imposto sobre a transmissão imobiliária por ato inter-vivos; g) meia sisa dos escravos, implicando na cobrança de 5% sobre toda a venda de escravo conhecedor de um ofício – ou ladino (Alvará de 3 de junho de 1809); h) décima das heranças e legados (Alvará de 17 de junho de 1809); i) imposto do selo sobre o papel (Alvará de 17 de junho de 1809); j) direitos de entrada de escravos novos (Alvará de 22 de junho de 1810); k) imposto sobre carruagens, lojas, armazéns ou sobrados e navios (Alvará de 20 de outubro de 1812); l) imposto sobre a carne verde e as lãs grosseiras produzidas no Brasil; m) direitos de 10% exigidos sobre os vencimentos dos funcionários da Fazenda e da Justiça, um predecessor do imposto de renda. Enfim, existiam paralelamente impostos semelhantes cobrados pela Corte, pelas Províncias e pelos municípios. Obviamente, os tributos não passaram imunes ao movimento de independência e pela Constituição de 25 de março de 1824. 150

No art. 15, inc. X, ela previa como da atribuição da Assembléia Geral, composta pela Câmara dos Deputados e pela Câmara dos Senadores, fixar anualmente as despesas públicas e repartir a contribuição direta. No art. 36, inc. I, firmava como da competência da Câmara dos Deputados a iniciativa sobre os impostos. Era o ideal liberal de que toda tributação precisaria passar pela representação. Era o princípio da legalidade. A Constituição de março de 1824 não continha apenas este princípio, comportando o da capacidade contributiva, o da isonomia, o da irretroatividade, etc. Outra peculiaridade é a de que, mesmo sendo o Brasil um Estado unitário, existiam, ao lado da central, a receita provincial, e os tributos municipais. Eram cerca de 151 rubricas, com denominações assistemáticas, além das provinciais e municipais. Com o Ato Adicional de 1834, tentou-se discriminar melhor as exações, fixando que às Assembléias provinciais cabia legislar sobre a fixação das despesas municipais e os impostos necessários, contanto que estes não prejudicassem as imposições gerais do Estado. E às Câmaras municipais poderiam propor os meios de compor as despesas dos seus municípios (art. 10, § 5º)21. A Lei nº 99, de 31 de outubro de 1835 especificou as rendas do Governo central. A Lei nº 317, de 21 de outubro de 1843 criou novos impostos e aumentou os já existentes. Era bastante caótico o sistema estabelecido, se é que se achava possível fornecer um sistema tributário equilibrado para o Brasil imperial. Entre outros problemas, a carga tributária era cumulativa e as receitas costumavam ser distribuídas em: a) receitas gerais (ex.: importação, exportação, sisa dos bens de raiz, loterias, taxas dos escravos, etc); b) receitas provinciais (ex.: décima dos legados e herança, dízimas dos gêneros – açúcar, café, transmissão sobre a propriedade móvel, meia sisa dos escravos ladinos, décima dos prédios urbanos, etc); c) receitas municipais (arrecadavam os tributos que a Província respectiva lhes outorgava). Veio a República, e com ela a Constituição de 24 de fevereiro de 1891, pretendendo firmar um sistema rígido de discriminação de receitas tributárias, distribuído entre a União e os Estados, pois ficavam excluídos os Municípios. No art. 7º, havia uma competência exclusiva da União (ex.: importação, taxas de selo, ressalvada a estadual, taxas de correios e telégrafos). Vedava-se ao Governo federal criar distinções e preferências com relação aos portos estaduais. No art. 9º, definia-se os impostos estaduais (ex: exportação, sobre imóveis rurais e urbanos, sobre transmissão de propriedade e sobre indústria e profissões, contribuições referentes aos seus telégrafos e correios). Foi esta Constituição que fixou a imunidade recíproca, proibindo aos Estados tributarem bens e rendas federais ou serviços a cargo da União, e reciprocamente (art. 10)22. Vedava-se, também, à União e aos Estados a prescrição das leis retroativas. Contudo, no art. 1223, considerava lícito aos Estados e à União, cumulativamente ou não, criar outras fontes de receitas, desde que não colidisse com as vedações nela fixadas. Esta competência concorrente permaneceu sendo objeto de severas críticas, e serviu de anteparo para a 21  Acto Addicional, Lei nº 16, de 12 de agosto de 1834 – Faz algumas alterações e adições à Constituição Política do Império, nos termos da Lei de 12 de outubro de 1832. “Art. 10. Compete ás mesmas Assembléas legislar: (...) § 5º. Sobre a fixação das despezas municipaes e provinciaes, e os impostos para ellas necessarios, com tanto que estes não prejudiquem as imposições geraes do Estado. As Camaras poderão propôr os meios de occorer ás despezas dos seus municipios.” 22  Constituição de 24 de fevereiro de 1891. “Art. 10. É prohibido aos Estados tributar bens e rendas federaes ou serviços a cargo da União, e reciprocamente.” 23  Constituição de 24 de fevereiro de 1891. “Art. 12. Além das fontes de receita discriminadas nos arts. 7º e 9º, é lícito á União, como aos Estados, cumulativamente ou não, crear outras quaesquer, não contravindo o disposto nos arts. 7º, 9º e 11, n. 1.”

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criação do imposto de renda no Brasil pela via subconstitucional. Finalmente, proibia a criação de imposto de qualquer natureza senão em virtude de lei autorizativa. Ocorre que a grave crise econômica que abateu o mundo, no final dos anos 20, não deixou de influenciar decisivamente no Brasil. Trouxe a depressão para o setor rural e, por outro lado, fez com que houvesse um estímulo para a fabricação de produtos nacionais. Em suma, a economia agrícola sentiu-se sufocada, tirando o seu apoio do Governo; o que redundou na chamada “Revolução de 30”. No período revolucionário, foram criados: a) a taxa de educação e saúde, incidente sobre documentos no âmbito federal, estadual ou municipal (Decreto nº 21.335, de 29 de abril de 1932); b) a contribuição de melhoria (Decreto nº 21.930, de 11 de maio de 1932); c) o imposto proprocional sobre capitais empregados em hipotecas (Decreto nº 21.949, de 12 de outubro de 1932). Em 1934, foi determinada uma Reforma no Tesouro Nacional (Decreto nº 24.036, de 26 de março). Também em 1934, eclodiu uma nova Constituição brasileira, mais precisamente aos 16 de julho. Uma das suas novidades foi o fato de que manteve, ao lado das receitas federais e estaduais, as municipais. Outra foi o fato de vedar a bitributação. Era o texto: “É vedada a bitributação, prevalecendo o imposto decretado pela União quando a competência for concorrente. Sem prejuízo do recurso judicial que couber, incumbe ao Senado Federal, ex officio ou mediante provocação de qualquer contribuinte, declarar a existência da bitributação e determinar a qual dos dois tributos cabe a prevalência.” (art. 11) Criou também: a) o imposto de renda e o de consumo como tributos federais (art. 6º, inc. I, als. “c” e “b”); b) o imposto de vendas e consignações para os Estados (art. 8º, inc. I, al. “e”). Competia privativamente à União (art. 6º), entre outras exações, fixar impostos sobre: importação; consumo de quaisquer mercadorias, exceto os combustíveis de motor à explosão; renda e proventos de qualquer natureza, excetuada a cedular de imóveis, etc. Competiam privativamente aos Estados fixar impostos sobre: propriedade territorial, exceto a urbana; transmissão de propriedade causa mortis; transmissão de propriedade imobiliária inter vivos, inclusive a sua incorporação ao capital da sociedade; vendas e consignações efetuadas por comerciantes e produtores, inclusive as industriais, ficando isenta a primeira operação do pequeno produtor, como tal definido na lei estadual; exportação de mercadorias de sua produção até o máximo de dez por cento ad valorem, vedados quaisquer adicionais; indústria e profissões, etc. Quanto ao imposto de indústrias e profissões, embora lançado pelo Estado, seria arrecadado por ele e pelos Municípios em partes iguais. Também previa a competência residual, admitindo a criação de outros impostos, para além do disposto expressamente no Texto Constitucional, cabendo 30% à União e 20% aos Municípios, de onde tinham provindo. Competia privativamente aos Municípios, além da participação no imposto de indústria e profissões e de vinte por cento sobre a competência residual: imposto de licenças; impostos predial e territorial urbanos, cobrado, o primeiro, sob a forma décima ou de cédula de renda; o imposto sobre diversões públicas; o imposto cedular sobre a renda dos imóveis rurais e as taxas sobre serviços municipais. Mas o intervalo democrático foi curto, pois em 1937, veio a “polaca”, que, embora trouxesse pequenas alterações, mantendo o que havia sido previsto em 1934, alinhou consigo uma ditadura. Entre as mudanças: 152

a) suspendeu-se o imposto estadual sobre consumo de motor à explosão e o municipal sobre rendas de imóveis rurais. Disto resultou a unificação dos impostos de consumo e de renda, que ficaram com a União; b) criou-se um adicional ao imposto de renda, motivando-o na proteção à família. Ele incidia sobre pessoas solteiras, viúvas e sobre casais sem filhos (Decreto nº 3.200, de 19 de abril de 1941). Após, veio a Constituição de 18 de setembro de 1946, que destacou: a) o aspecto municipalista24; b) o desaparecimento das referências à bitributação feitas nas Constituições de 1934 e 1937, entendendo-se que toda ela seria inconstitucional, sem que isto precisasse ser dito; c) o conceito expresso da contribuição de melhoria para a hipótese de valorização do imóvel em conseqüência de obras públicas, não sendo exigível para além da despesa realizada e do acréscimo do valor para cada imóvel beneficiado (art. 30 e Parágrafo Único); d) as limitações ao poder de tributar foram ampliadas, tornando-se imunes os templos, bens e serviços de partidos políticos, instituições educacionais e assistenciais e o papel destinado exclusivamente a jornais, periódicos e livros (art. 31); e) os impostos deveriam ser sempre que possível pessoais e graduados pela capacidade econômica do contribuinte (art. 202); f) a visão de proteger os setores mais pobres, reduzindo a antiga tradição da tributação regressiva, onde se onera mais os que menos têm capacidade de pagar; g) o instituto do direito anglo-saxão (grants-in-aid) que implica na técnica de participação por uma pessoa política de um tributo da competência para a instituição de uma outra pessoa política. Isto foi promovido pela Emenda Constitucional nº 05, de 21 de novembro de 1961, que tinha por epígrafe instituir uma nova discriminação de rendas em favor dos municípios brasileiros. Exemplificando com a fórmula adotada: 1. tributos da competência da União. Ex.: imposto sobre consumo de mercadorias – do total do volume arrecadado, 10% pertenciam aos municípios, efetuada a distribuição em partes iguais; imposto único sobre combustíveis e lubrificantes minerais do País e energia elétrica – 60%, no mínimo, entregues aos Estados, ao Distrito Federal e aos municípios proporcionalmente à sua superfície, população, consumo e produção; imposto sobre a renda e proventos de qualquer natureza – 15% do total do volume arrecadado pertenciam aos municípios, efetuada a distribuição em partes iguais, etc; 2. tributos da competência dos Estados. Ex.: competência residual – 20% do produto da arrecadação pertenciam à União; participação na arrecadação do imposto único sobre lubrificantes e minerais do País e energia elétrica – 60%, no mínimo, eram entregues aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios, etc; 3. tributos dos municípios. Ex.: participação na arrecadação do imposto sobre consumo de mercadorias (10%), do imposto sobre a renda e proventos de qualquer natureza (15%), dos impostos concorrentes entre a União e os Estados (40%) e do recebimento do excesso de arrecadação de impostos do Estado (30%)25. 24  Em 1945, o Tesouro Federal arrecadava 63% dos tributos pagos, enquanto os Municípios não chegavam a receber 7%, cabendo aos Estados por volta dos 30% restantes. Por isto, objetivando melhorar as finanças municipais, tomouse, entre outras, as seguintes medidas: a) conferiu-se aos Municípios todo o Imposto de Indústria e Profissões (IIP), pois antes só ficavam com 50% dele; b) fixou-se uma quota, dividida em partes iguais, no rateio dos 10% do Imposto de Renda, excluídas as Capitais; c) quando a arrecadação estadual de impostos, salvo o de exportação, excedesse, em Municípo que não fosse o da Capital, o total das rendas locais de qualquer natureza, o Estado dar-lhe-ia anualmente 30% do excesso arrecadado. 25  Vide o art. 29, da Emenda Constitucional nº 05, publicada no Diário Oficial de 22 de novembro de 1961, e revogada pelo art. 25, da Emenda Constitucional nº 18, de 1 de dezembro de 1965: “Art. 29. Além da renda que lhes é atribuída por força dos §§ 2º, 4º e 5º, e dos impostos que, no todo ou em parte, lhe forem transferidos pelo Estado, per-

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Em seguida, veio aquele que é considerado o fator inicial mais marcante do atual sistema tributário brasileiro. Refiro-me à Emenda Constitucional nº 18, de 01 de dezembro de 1965, que procurou encontrar uma nova ordem tributária para o Brasil. Também, vale lembrar a importância da Lei nº 4.320, de 17 de março de 1964, que estatui normas gerais de direito financeiro para a elaboração e controle dos orçamentos e balanços da União, dos Estados, dos Municípios e do Distrito Federal. Também no período pós 1964, recebe realce a Emenda Constitucional nº 07, de 22 de maio de 196426, que suspendeu, até 31 de dezembro de 1964, a limitação constitucional sobre a exigência de prévia previsão orçamentária para a cobrança dos tributos, também conhecida como princípio da anualidade. Enfim, foi esta a discriminação de competências estatuída pela Emenda Constitucional nº 18/196527, em suas linhas mais gerais mantida até hoje no Brasil: tributos da competência da União: a) impostos: I- impostos sobre o comércio exterior (art. 7º) – importação de produtos estrangeiros e exportação, para o estrangeiro, de produtos nacionais e nacionalizados; II- impostos sobre o patrimônio e a renda (art. 8º) – propriedade territorial rural, renda e proventos de qualquer natureza; III- impostos sobre a produção e a circulação (arts. 11 e 14) – produtos industrializados, operações de crédito, câmbio e seguro e sobre operações relativas a títulos e valores mobiliários, serviços de transporte e comunicações, salvo os de natureza estritamente municipal; IV- especiais (art. 16) - produção, importação, circulação, distribuição ou consumo de combustíveis e lubrificantes líquidos ou gasosos, sobre produção, importação, distribuição ou consumo de energia elétrica, sobre produção, circulação ou consumo de minerais do País (art. 16, inc. III), extraordinários (art. 17); b) taxas (art. 18); c) contribuições de melhoria (art. 19). 1. tributos da competência dos Estados: a) impostos: I- sobre o patrimônio e a renda (art. 9º); sobre a transmissão de bens imóveis por natureza ou por acessão física, de direito reais sobre imóveis; II- sobre a produção e a circulação (art. 12) – operações relativas à circulação de mercadorias; b) taxas; c) contribuições de melhoria (art. 19). 2. tributos da competência dos municípios: a) impostos: I. sobre o patrimônio e a renda (art. 10) – sobre a propriedade predial e territorial urbana; II- sobre a produção e a circulação (arts. 13 e 15) – sobre operações relativas à cirtencem aos municípios os impostos: I- sobre propriedade territorial urbana e rural; II- predial; III- sobre transmissão de propriedade imobiliária inter vivos e sua incorporação ao capital de sociedades; IV- de licenças; V- de indústria e profissões; VI- sobre diversões públicas; VII- sobre atos de sua economia ou assuntos de sua competência. Parágrafo Único. O imposto territorial rural não incidirá sobre sítios de área não excedente a vinte hectares, quando os cultive, só ou com sua família, o proprietário.” 26  A Emenda Constitucional nº 07, de 22 de maio de 1964, dispunha: “Artigo Único. A vigência do parágrafo 34, do art. 141, da Constituição Federal, na parte em que exige a prévia autorização orçamentária para a cobrança de tributo em cada exercício, fica suspensa até 31 de dezembro de 1964.” Era o mencionado § 34, do art. 141: “Art. 141. A Constituição assegura aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade dos direitos concernentes à vida, à liberdade, à segurança individual e à propriedade, nos termos seguintes: (...) § 34. Nenhum tributo será exigido ou aumentado sem que a lei o estabeleça; nenhum será cobrado em cada exercício sem prévia autorização orçamentária, ressalvada, porém, a tarifa aduaneira e o imposto lançado por motivo de guerra.” 27  Emenda Constitucional nº 18, publicada no Diário Oficial da União de 06.12.1965. Era o seu art. 1º: “O sistema tributário nacional compõe-se de impostos, taxas e contribuições de melhoria, e é regido pelo disposto nesta Emenda, em leis complementares, em resoluções do Senado Federal, e, nos limites das respectivas competências, em leis federal, estadual ou municipal.”

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culação de mercadorias, com base na legislação estadual e por alíquota não superior a 30% (art. 13); sobre serviços de qualquer natureza, não compreendidos na competência tributária da União e dos Estados (art. 15); b) taxas; c) contribuições de melhoria (art. 19). Seguindo estas linhas gerais, veio o Código Tributário Nacional, a Lei nº 5.172, de 25 de outubro de 1966, recepcionado pela Constituição de 1967 e consagrado a título de lei complementar pelo Ato Complementar nº 36, de 13 de março de 1967. De fato, aos 19 de agosto de 1953, havia sido indicada uma Comissão para elaborá-lo. O seu Anteprojeto foi encaminhado ao Congresso Nacional sob o nº 4.834-54. Na verdade, com a Constituição de 1967, que, como foi visto, foi elaborada em face da transformação do Congresso Nacional em Poder Constituinte originário, pouco se alterou. Entretanto, com a Emenda Constitucional nº 01/1969, de larga extensão, ocorreram algumas transformações, mas continuavam mantidas as designações gerais da Emenda Constitucional nº 18/1965. Enfim, a Constituição da República Federativa do Brasil de 05 de outubro de 1988 consagrou um Título para a “Tributação e o Orçamento”, o Título VI, destinando o Capítulo I para o Sistema Tributário Nacional. Este Capítulo está dividido em três partes: a) trata dos princípios gerais e das limitações do poder de tributar; b) discrimina as receitas dos impostos pela União, por Estados e o Distrito Federal e pelos Municípios; c) dispõe sobre a repartição das receitas tributárias. Questões como a da progressividade do IPTU – imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana, alterações na legislação do IR – imposto de renda e proventos de qualquer natureza, o planejamento tributário e a denominada norma geral anti-elisiva, a constitucionalidade de novas contribuições (SEBRAE, CPMF, etc.), o sigilo bancário mediante a Lei Complementar nº 105/2001, o caráter nacional/estadual do ICMS, a guerra fiscal e os seus motivos e mecanismos são todos assuntos, entre muitos outros, que precisam ser estudados mediante o conhecimento do Sistema e das suas Normas Gerais, para, só após, investir-se no caso concreto. CONSIDERAÇÕES FINAIS A interferência de uma política assimétrica, que considera apenas as questões de momento, na produção do direito legislado brasileiro, é uma característica que acompanha a nossa história desde o período colonial. Contudo, quando isto ocorre na órbita do direito tributário, as conseqüências são a formação de um arcabouço legislativo, profundamente, caótico; o que desfavorece sobremedida a idéia da formação de um sistema. A própria utilização do termo sistematributário nacional- tal como registrado no Capítulo I, do Título VI, da Constituição de 1988, sobre a tributação e o orçamento, para o que existe, atualmente, como direito tributário brasileiro merece sofrer contestações, tal como se demonstrou por todo o texto de pesquisa. Enfim, no Brasil, tem-se sempre a sensação de que falta uma lei. E não paramos de produzi-las. Caoticamente. REFERÊNCIAS A CONSTITUIÇÃO DO BRASIL 1988 – comparada com a Constituição de 1967 e comentada – São Paulo, Price Waterhouse, 1988. BONAVIDES, Paulo e ANDRADE, Paes de. História Constitucional do Brasil. 3ª ed. Rio de Janeiro. Editora Paz e Terra. 1991 CAMPANHOLE, Adriano e CAMPANHOLE, Hilton Lobo. Constituições do Brasil 155

(1988, 1969, 1967, 1946, 1937, 1934, 1891, 1824). 10ª ed., São Paulo, Editora Atlas S.A, 1989. CANARIS, Claus-Wilhelm. Pensamento Sistemático e Conceito de Sistema na Ciência do Direito. Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1989. ENGISH, Karl. Introdução ao Pensamento Jurídico. 6ª ed, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1983. HART, Herbert. O Conceito de Direito. 2ªed., Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1994. LARENZ, Karl. Metodologia da Ciência do Direito. 2ª ed., Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1983. MIRANDA, Pontes de. Comentários à Constituição de 1967 – Tomo I. Editora Forense. 1987. MIRANDA, Jorge Manuel de. A transição constitucional brasileira e o anteprojecto da Comissão Afonso Arinos. Lisboa. Extraído da Revista Jurídica da AssociaçãoAcadêmica da Faculdade de Direito de Lisboa, Nova Série, nº 9-10 (jan.- jun 1987). OTERO, Paulo Manuel. O Brasil nas Côrtes Constituintes Portuguesas de 1821- 1822. Lisboa. Separata da Revista “ O Direito” – Ano 120º, 1988 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 10ª ed., São Paulo, Malheiros Editores Ltda., 1995. TEMER, MICHEL. Elementos de Direito Constitucional. 7ª ed., São Paulo, Editora Revista os Tribunais Ltda., 1990. TEUBNER, Gunther. O Direito como Sistema Autopoiético. Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1989. Revista Justiça e Cidadania. Ano III, nº 18, Agosto/2.001, pp. 30-31. Artigo “Lavagem de Dinheiro”. Ministro NELSON JOBIM.

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TEORIA DOS SISTEMAS E EXTRAFISCALIDADE: A QUESTÃO DA PREVALÊNCIA DA LÓGICA DO SUBSISTEMA DA ECONOMIA

Raymundo Juliano Feitosa1 Alexandre Henrique Salema Ferreira2

1. INTRODUÇÃO Este trabalho de conclusão da disciplina Temas jurídicos fundamentais, minicurso A extrafiscalidade como forma de concretização do princípio da redução das desigualdades regionais, ministrado pelo Prof. Dr. Luiz Alberto Gurgel de Faria, no curso de doutorado do PPGD da UFPE, tem a pretensão de confrontar a extrafiscalidade com a realidade sócio-econômica brasileira. Na tentativa de explicar as relações entre extrafiscalidade e resultados materiais, partimos da Teoria dos Sistemas de Luhmann. Esta decisão não implica a adesão científica à referida teoria, mas mero reconhecimento parcial de sua validade descritiva da realidade social. Paralelamente ao reconhecimento da validade parcial da teoria dos sistemas de Luhmann no plano do ser, também devemos reconhecer suas inumeráveis deficiências no plano do dever-ser. Neste contexto, partimos da hipótese de que nenhuma teoria social universalizante e totalizante têm condições de explicar as complexas interações que se formam na sociedade. Isso não retira a validade das teorias sociais, apenas as limita, devendo ser aceitas juntamente com suas limitações. Essa idéia da validade parcial de uma teoria não é estranha, por exemplo, às ciências naturais – a relação entre tempo e espaço é completamente modificada na teoria da relatividade. No plano descritivo, a teoria dos sistemas de Luhmann possibilita apreender as relações entre os subsistemas sociais, tomando como ponto de partida a lógica econômica que permeia as sociedades contemporâneas. Evidentemente que a abordagem proposta neste trabalho vai de encontro às análises meramente formais – adstritas, quase sempre, ao plano normativo –, que envolvem as questões de coerência interna do direito positivado. O controle da legitimidade e o controle formal do direito (constitucionalidade e legalidade) já não conseguem – na verdade, nunca conseguiram – dar respostas aptas à complexa realidade social. 1 Professor da Universidade Federal de Pernambuco, Professor-adjunto da Universidade do Estado do Amazonas, Pós-doutor pela Universidad Castilla de La Mancha, Doutor pela Universidad Autônoma de Madrid e Mestre em Sociologia pela UFPE. 2 Professor da Universidade Estadual da Paraíba, Auditor Fiscal da Receita Estadual da Paraíba, Doutor em Direito pela UFPE e Mestre em Ciências da Sociedade pela UEPB.

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O percurso inicia-se com algumas considerações acerca dos sistemas sociais autorreferenciais e autopoiéticos, enclausurados em si mesmo, constituídos de atos de comunicação e não de seres humanos. A partir desse contexto, coloca-se a questão da insensibilidade social, da incapacidade dos sistemas sociais reconhecerem os desdobramentos externos aos próprios sistemas (externalidades). Associado a isso, tem-se o fenômeno da circularidade sistêmica, com a impregnação da lógica econômica nos subsistemas da política e do direito. É exatamente dentro desse contexto, de insensibilidade dos sistemas sociais e da circularidade sistêmica, que se coloca a questão da extrafiscalidade destinada a fomentar o desenvolvimento econômico, com ampla transferência de riquezas da sociedade para a iniciativa econômica privada. Este comportamento estatal abarca diversas questões pouco discutidas. A mais imediata é aquela que envolve o direcionamento das receitas públicas a agentes econômicos em detrimento da própria sociedade. Uma outra, não menos relevante, é aquela que aponta o custo social (sacrifício da riqueza individual), subjacente à renúncia de receitas, especialmente no campo de incidência dos tributos indiretos, como o ICMS. Por outro lado, a extrafiscalidade destinada a fomentar o desenvolvimento econômico, através da transferência de riqueza da sociedade para a atividade econômica privada, tem resultado em um estímulo à ineficiência econômica. Esta conduta estatal tem o condão de provocar desequilíbrios de mercado exatamente porque possibilita a mitigação dos custos desses agentes. A manutenção desses agentes no mercado tem um custo social, que, evidentemente, é suportado pela sociedade. Contudo, a justificação social para a manutenção no mercado de agentes econômicos ineficientes tem fundamento naquilo que Macpherson denomina de troca compensatória. A pesquisa empírica parte da sensação comum na sociedade brasileira, que, após quase duas décadas de intensa desoneração tributária3, começa a lançar dúvidas acerca das vantagens da renúncia de receitas, tendo em vista a desproporcionalidade dos ganhos sociais (por exemplo, geração de emprego e renda, redução das desigualdades regionais, etc.). Esse descompasso deixa aparente a realidade subjacente à relação entre renúncia de receitas e desenvolvimento socioeconômico, capaz de abrigar outras intenções ou comportamentos inadequados por parte dos agentes econômicos beneficiados, exatamente por que a tributação é percebida apenas como um custo de transação a ser reduzido (no campo da fiscalidade) ou como um valor a ser apropriado pelo agente econômico (no campo da extrafiscalidade). Ambas as situações relacionam-se com elementos da lógica econômica das sociedades capitalistas modernas: a acumulação de capital e eficiência econômica. 2. TEORIA DOS SISTEMAS E A QUESTÃO DA PREVALÊNCIA DA LÓGICA ECONÔMICA Segundo Lange (1981) os sistemas materiais encontram fundamento no materialismo dialético, que distingue o todo (os sistemas) das partes (os elementos e suas relações). Apesar do todo se constituir dos elementos e suas relações, ou seja, das partes, isto não implica reconhecer que o todo (sistemas) seja a mera reunião das partes. O todo apresenta atributos e ações próprias, diferentes, portanto, das dos elementos que os constitui. A partir desse contexto, Luhmann propôs uma teoria geral da sociedade com fundamento no estruturalismo funcional, com a finalidade de descrever o mundo real, ou seja, a realidade assim como ele se apresenta. Luhmann (1990, p. 42) elaborou “una teoría de sistemas directamente referida a la realidad”, cujas funções são meramente descritivas e explicativas da realidade social. Luhmann parte do reconhecimento da complexidade (diferenciação) inerente às sociedades contemporâneas, da multiplicidade de relações entre os seres humanos e, por isso, da impossibilidade de estabelecer conexões diretas (correspondências lineares) entre indivíduos. A complexidade representa, então: […] un conjunto interrelacionado de elementos cuando ya no es posible que cada elemento se relacione en cualquier momento con todos los demás, debido a limitaciones inmanentes a la capacidad de interconectarlos. (LUHMANN, 1990, p. 69). 3 No período pós-Constituição de 1988 a guerra fiscal entre os Estados-membros tem sido emblemática. Mas, não é prudente esquecer que a União também tem protagonizado forte atuação no campo da renúncia de receitas.

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Para Luhmann, a questão central de qualquer teoria social é a redução da complexidade das sociedades contemporâneas. Mas, ele se coloca diante de um paradoxo: a redução da complexidade resulta, em si mesmo, no aumento da complexidade. Por mais paradoxal que possa parece, o processo de simplificação (redução da complexidade) é, por si só, um processo complexo. A teoria de Luhmann trabalha com as categorias sistema4, elementos, relações e entorno. Por sistema entende-se “[…] un conjunto de elementos que mantienen determinadas relaciones entre sí y que se encuentran separados de un entorno determinado” (LUHMANN, 1990, p. 18). O entorno, então, delimita o sistema e, por isso, é seu elemento constitutivo: Los sistemas no solo se orientan ocasionalmente o por adaptación hacia su entorno, sino de manera estructural, y no podrían existir sin el entorno. Se constituyen y se mantienen a través de la producción y el mantenimiento de una diferencia con respecto al entorno, y utilizan sus límites para regular esta diferencia. Sin la diferencia respecto al entorno ni siquiera existiría la autorreferencia, pues la diferencia es la premisa para la función de las operaciones autorreferenciales. En este sentido, el mantenimiento del límite (boundary maintenance) significa el mantenimiento del sistema. (LUHMANN, 1990, p. 50).

Só a partir da diferenciação entre sistema e entorno é possível definir o sistema. Luhmann denomina a isto de autorreferência, ou seja, a necessidade de o conceito de sistema incluir, em si mesmo, o conceito de entorno. Mas, além da diferenciação entre sistema/entorno (teoria da diferenciação sistêmica), é pertinente apontar a diferenciação entre elemento/relação (teoria da complexidade sistêmica). Neste sentido, Luhmann (1990, p. 60-61) escreve: Hay que distinguir la diferencia sistema/entorno de otra que también es constitutiva: la diferencia entre elemento y relación. En uno y otro caso hay que pensar la unidad de la diferencia como constitutiva. De la misma manera que no existen sistemas sin entorno, tampoco existen elementos sin conexión relacional, ni relaciones sin elementos. (LUHMANN, 1990, p. 60-61).

A base teórica de Luhmann sustenta-se em duas características dos sistemas: a primeira, a autorreferência, que trata da questão do limite ou do entorno dos sistemas; e, a segunda, é a autopoiesis, ou seja, a autocriação ou autogeração da estrutura e dos elementos sistêmicos. Os sistemas autorreferenciais e autopoiéticos são fechados (conjunto de operações específicas), circunscritos a si mesmos e insensíveis ao ambiente externo. Apesar disso, os sistemas possuem algum grau de abertura seletiva ao entorno que permite a troca de informações entre sistema/entorno, destinada a reduzir a complexidade do entorno. A autorreferência desdobra-se nos conceitos de observação e diferença. Observar é o ato de determinar as diferenças, o que implica dizer que inexiste observação neutra. Evidentemente que a atividade de observação (e, consequentemente, de diferenciação) tanto é dirigida ao interior do sistema (observan a si mismos) quanto ao entorno. Daí a íntima relação entre observação e autorreferência. A observação também possibilita a eleição de procedimentos que reduzem a complexidade do entorno do sistema. A teoria dos sistemas de Luhmann descreve a sociedade como um sistema autorreferencial e autopoiético, composto não de seres humanos, mas de atos de comunicação, que alimentam os processos de seleção e, consequentemente, da redução da complexidade. Neste caso, o ser humano encontra-se situado no entorno do sistema social. Aliás, para Luhmann o ser humano também é um sistema autorreferencial e autopoiético, denominado de sistema psíquico ou da personalidade, cujos modos de operação são a consciência e a linguagem. Por isso, para Luhmann o ser humano, como sistema, distingue-se do sistema social e é externo a este:

4 Para Luhmann (1990, p. 66) “Un caso mínimo de sistema sería, pues, el simple conjunto de relaciones entre elementos”.

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La teoría de sistemas […] no deja lugar para el concepto de sujeto. Lo substituye por el concepto de sistema autorreferente. La teoría de sistemas puede formular, entonces, que cualquier unidad utilizada en este sistema (sea la unidad de un elemento, de un proceso o de un sistema) tiene que constituirse a través del propio sistema y no a través de su entorno (LUHMANN, 1990, p. 77).

Evidentemente que há íntima relação entre ser humano e sociedade, mas não a ponto de incluir o primeiro no segundo. A relação entre ser humano e sistemas sociais assemelha-se à relação entre sistema/entorno. Situa-se no âmbito da interpenetração e da observação. Exatamente por isso, os sistemas sociais se apresentam insensíveis, com operações funcionais extremamente independentes, com regras próprias e que muitas vezes desprezam a própria presença dos seres humanos. Com isso, os seres humanos perdem o protagonismo no sistema social. A alta diferenciação nas sociedades avançadas resulta na diferenciação (especialização) dos subsistemas sociais parciais. Cada subsistema apresenta funções sociais diferenciadas, sintetizadas através atos de comunicação específicos. Os subsistemas ou sistemas sociais parciais são uma resposta à complexidade da sociedade. Cada subsistema, através da especialização das operações de comunicação e de seleção realizadas em seu interior, reduz uma complexidade específica do sistema social. É através destes mecanismos de especialização e seleção que o sistema social pretende apresentar respostas (soluções) aos problemas da sociedade. Luhmann aponta diversos subsistemas sociais, tais como da política, da economia, do direito, da religião e da educação, dentre inúmeros outros. Uma importante questão que se levanta na teoria dos sistemas da sociedade, fundamentada em atos de comunicação, é aquela que despreza as assimetrias informacionais. As teorias sociais (por exemplo, em Luhmann e Habermas) que defendem o protagonismo da comunicação, na verdade, são teorias que implicitamente defendem ou aceitam a manutenção do status quo, exatamente porque os atos de comunicação se processam em condições assimétricas e refletem, em muito, as desigualdades materiais. E pior ainda, em muitas situações a comunicação se presta mesmo a acentuar as desigualdades materiais, em especial porque privilegia os indivíduos com maior capacidade comunicativa, em outras palavras, aqueles que detêm os meios de comunicação ou apresentam maior habilidade comunicativa ou que possuem o monopólio da comunicação ou, ainda, aqueles que têm acesso a dados e informações relevantes. A realidade material, na verdade, evidencia o nível de assimetria informacional. É nesse contexto de assimetrias que se coloca a questão da circularidade sistêmica, ou seja, a prevalência, através dos atos de comunicação, da lógica de um determinado subsistema e sua impregnação nos demais subsistemas sociais, desdobrando-se em relações de determinação, de legitimação e de justificação entre os subsistemas. É disso que trataremos a seguir. 2.1 Subsistemas sociais e a questão da circularidade sistêmica Apesar das pertinentes críticas que recaem sobre a teoria dos sistemas, é inacreditável como ela consegue descrever a realidade da sociedade contemporânea, especialmente porque possibilita identifica a lógica imanente ao sistema social; apontar a prevalência dos aspectos econômicos em detrimento das relações sociais; explicar a desprezível condição humana, bem como descrever as relações sistêmicas desapegadas de qualquer valor. A questão da “centralidad del componente económico” nas democracias é descrita por Sartori ( 2008, p. 64). No mesmo sentido são as palavras de Barcellona (2000, p. 151): Secondo un’opinione sempre più diffusa, la política va definita como amministrazione degli interessi e il diritto como técnica per realizzare la pace sociale. Queste defizioni, apparentemente neutre, in realtà tendono ad affermare la subordinazione della política e del diritto allo spazio dell’economico [...].

A circularidade sistêmica nos remete, imediatamente, à lógica econômica predominante na sociedade contemporânea, que joga à periferia (ao entorno do sistema e dos subsistemas sociais) 160

o ser humano e dá prevalência aos atos de comunicação no interior do sistema ou entre os diversos subsistemas sociais. Neste sentido, entende-se por circularidade sistêmica o fato de a lógica econômica (subsistema da economia) determinar o conteúdo da agenda política (subsistema da política), que, por sua vez, através do processo democrático, legitima a norma jurídica positivada (subsistema do direito), que, por fim, justifica o próprio modelo econômico hegemônico (subsistema da economia). A circularidade sistêmica pode ser representada pelo quadro a seguir.

Quadro 1 – Circularidade sistêmica

Assim, entre os subsistemas da economia e da política evidencia-se uma relação de determinação; entre os subsistemas da política e do direito, uma relação de legitimação; e entre os subsistemas do direito e da economia, uma relação de justificação. Da Rosa (2009, p. 53) sintetiza esse fenômeno quando reconhece que o sistema legal “[...] é a legitimação racional da ordem existente, na leitura hegemônica do capital”. A relação de determinação implica reconhecer que o subsistema da economia determina a agenda política, e a partir da lógica econômica são colocados temas, tais como crescimento econômico, tutela da propriedade, desoneração do capital e do lucro, subsídios e estímulos à atividade econômica produtiva, dentre inúmeros outros. Para Barcellona (2000, p. 153) diz: Il sistema econômico definisce in ultima istanza i fini e gli obiettivi entro cui l’agire político viene collocato come puramente strumentale e contestualmente definisce lo spazio delle regola giuridiche como regola del gioco, procedure e tecniche funzionali allá negoziazione degli interessi economici.

Por outro lado, o subsistema da política apresenta uma relação de legitimação do subsistema do direito. Através da democracia procedimental legitima-se o exercício do poder e a criação das normas jurídicas que obrigam coletivamente. Evidentemente que o subsistema da política, 161

como fenômeno associado ao exercício do poder, apresenta-se vulnerável a grupos de pressão. Por isso, em muitas situações a norma jurídica representa mero instrumento através dos quais os grupos dominantes satisfazem seus interesses, estabelecendo, por exemplo, mecanismos de tutela a privilégios individuais ou necessários ao exercício dos direitos de propriedade e à execução dos contratos, dentre inúmeros outros. É exatamente neste contexto que Da Rosa (2009, p. 51) alerta para a criação de um novo princípio jurídico “[...] «o do melhor interesse do mercado». O Direito é um meio para atendimento do fim superior do «crescimento econômico»”. O resultado concreto desse fenômeno é aquilo que Pietro Barcellona denomina de direito como mera técnica, ou seja, o direito como mera codificação de como proceder, vazio de significado ou valor social. Evidentemente que para a concretização da lógica econômica torna-se imprescindível a existência de um ambiente institucional (estabelecido através da ordem jurídica) propício à expansão econômica5 e de um aparato institucional6 (instituições estatais) voltado a proteger direitos de propriedade, contratos privados, privilégios individuais e estimular à acumulação do capital, dentre outros. Daí emerge a relação de justificação entre os subsistemas do direito e da economia. A circularidade sistêmica, na verdade, decorre da inata insensibilidade7 do sistema social e de seus subsistemas, constituídos de forma autorreferenciais e autopoiéticos. Isto implica dizer que o sistema social e seus subsistemas não levam em consideração suas externalidades, ou seja, os custos externos ao próprio sistema ou subsistema – e que recaem sobre a própria sociedade –, tais como, o subdesenvolvimento, a pobreza, o desemprego, a degradação do meio ambiente, dentre inúmeros outros. É, então, neste contexto de circularidade sistêmica (prevalência das relações econômicas em detrimento das relações sociais) que é pertinente colocar a questão da extrafiscalidade, especialmente quanto aos custos e ganhos sociais advindos desse modelo de estímulo ao crescimento econômico. É disso que trataremos a seguir. 3. EXTRAFISCALIDADE E DESENVOLVIMENTO SOCIOECONÔMICO O tema extrafiscalidade não é recente. Financistas como Amaro Cavalcanti (1849-1922) e Augusto Olympio Viveiros de Castro (1867-1927) ilustram discussões sobre o tema desde o Brasil colônia até início da República, que se assemelham em muito aos atuais. Por exemplo, Viveiros de Castro (19898) faz referência a medidas protecionistas implantadas na época da chegada da Família Real ao Brasil, destinadas a protegem a incipiente economia local contra os produtos importados das economias mais desenvolvidas. A finalidade era impedir que os produtos estrangeiros, com preços mais vantajosos, sufocassem a produção local: [...] o imposto não era considerado como simples fonte de renda, e sim como um instrumento econômico que devia ser prudentemente manejado no intuito de favorecer a produção nacional. (CASTRO, 1989, p. 32).

Em outra passagem, agora já no 2º Reinado, Viveiros de Castro (1989) faz referência ao fim dos tratados comerciais, que possibilitou ao Brasil alterar as tarifas aduaneiras a fim de compatibilizá-las com as de outros países. Através dos direitos aduaneiros era possível proteger a economia local, com aplicação de alíquotas móveis, ora igualando a concorrência dos produtos importados com os nacionais, ora incentivando a importação de insumos para a indústria, conforme disposto no art. 2º da Lei nº 3396, de 24 de novembro de 1888, a seguir transcrito:

5 Como, por exemplo, a flexibilização das relações de trabalho e o menor controle ambiental, dentre outros. 6 Representado, por exemplo, pelas instituições estatais destinadas à manutenção da ordem estabelecida e ao controle da sociedade, dentre outras. 7 Como os sistemas são seletivos, os custos externos não são reconhecidos como um problema inerente ao próprio sistema social. 8  O texto foi originalmente escrito em 1915, resultado das palestras sobre a História Tributária do Brasil, ministradas pelo autor no Instituto Histórico Geográfico Brasileiro. Posteriormente foi reeditado pela ESAF em 1989.

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Art. 2º. O Governo fica autorisado: [...] 4º. A manter relativamente à impostação dos gêneros para cuja produção já existem e funccionando no paiz fabricas, que empregam nas respectivas industrias matéria prima nacional, tarifa móvel da Alfândega (...); bem como elevar os direitos de importação sobre artefactos de algodão e de juta, para o fim de não soffrerem com a concurrencia iguaes productos de fabricas nacionaes; [...] 7º. A rever as tarifas com o fim de abaixar as taxas cobradas sobre productos chimicos ou outras mercadorias applicaveis como adubo ou correctivos na industria agrícola, ficando dispensados do pagamento dos direitos alfandegaes e dos 5% addicionais [...] 8º. A isentar dos direitos de importação e expediente os animaes de raça, que forem importados para as fazendas de criação [...].9

Também Amaro Cavalcanti, (apud CASTRO, 1989, p. 88) discorre sobre o tema, afirmando que: Examinando as coisas de perto, chega-se à convicção de que, em geral, predomina o intuito fiscal, isto é, a necessidade de obter a maior arrecadação para a receita pública, o que, todavia não exclui que nas diversas reformas aduaneiras aparecessem disposições ora de caráter liberal, ora de caráter manifestadamente protecionista.

A indústria incipiente, a carecer de proteção diante do mercado produtor mundial, foi, sem dúvida, um grande pretexto para implementação de tarifas protecionistas, de caráter extrafiscal. É importante ressaltar que tais medidas eram tomadas sem qualquer respeito à capacidade contributiva dos consumidores, que se viam na incomoda situação de consumir produtos oriundos do Brasil a um custo mais elevado do que aqueles importados, cujos preços eram igualados aos nacionais por medidas artificiais de proteção ao mercado. Neste sentido, o Ministro da Fazenda Joaquim Murtinho (apud CASTRO, 1989, p. 124), em Relatório apresentado, em 1899, ao Presidente Campos Sales, afirmou: Todo consumidor é, pois, lesado, e a diferença entre o que ele paga pelos objetos nesse regime e o que pagaria em um regime livre, representa um imposto que lhe é arrancado para manutenção daquelas indústrias.

Estes exemplos são suficientes para mostrar que o tema não é recente e que a questão envolve outros interesses. É a partir desse contexto que a seguir será discutida a relação entre extrafiscalidade e lógica econômica. 3.1 Extrafiscalidade e mercado Em condições perfeitas, os agentes econômicos buscarão satisfazer suas necessidades individuais com o menor consumo de recursos. Nestas condições ideais, a interação entre agentes econômicos, segundo as regras de mercado, será suficiente para a maximização os resultados. Segundo Pinheiro e Saddi (2005, p. 60): Quando há concorrência perfeita, as interações entre empresas e consumidores no mercado são suficientes para gerar um equilíbrio em que o bem-estar é maximizado.

9 Mantida a grafia original.

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Na realidade, o mercado não se apresenta perfeito, as regras de mercado não são suficientes para reger as interações econômicas e os agentes não conseguem satisfazer suas necessidades com o menor consumo de recursos. Por outro lado, a análise microeconômica tradicional não consegue alcançar os custos de transação inerentes às interações no mercado, e daí advém sua impossibilidade teórica e empírica de apresentar soluções que preservem à eficiência econômica em condições distintas da perfeita. Em situações distintas das perfeitas, as instituições e o ambiente institucional são elementos necessários à minimização dos custos de transação. Mas, em determinadas situações os arranjos institucionais são incapazes de promover a alocação eficiente de recursos, segundo as regras de mercado, exatamente por que os custos de transação podem inviabilizar as atividades de determinados agentes econômicos. Nestes casos específicos, o Estado precisa interagir com o mercado para, por exemplo, estimular o crescimento econômico e atrair novos investimentos. Talvez a vocábulo interagir não seja o mais adequado. Na verdade, o Estado deve subsidiar as regras de mercado quando estas não são capazes, por si só, de resolver determinados impasses econômicos. Neste sentido, Pinheiro e Saddi (2005, p. 64) dizem: Custos de transação muito elevados podem inviabilizar certos mercados, a menos que, para funcionar, contem com o apoio de instituições mais complexas do que apenas as instalações físicas (mercados) em que compradores e vendedores se encontram.

A solução, então, passa por uma decisão política e por um conjunto de regras jurídicas propícias ao desenvolvimento econômico. Para Cooter e Ulen (2002, p. 127): [...] hemos señalado los costos de transacción como si fuesen exógenos al sistema legal, es decir, como si fuesen determinados tan solo por características objetivas de las situaciones de negociación, fuera del dominio de la ley. No siempre ocurre así. Algunos costos de transacción son endógenos al sistema legal en el sentido de que las reglas legales pueden disminuir los obstáculos existentes para la negociación privada. El teorema de Coase sugiere que la ley puede alentar la negociación reduciendo los costos de transacción.

É exatamente neste contexto que se coloca a tributação como um custo de transação a ser reduzido ou eliminado. Este tema será tratado a seguir. 3.1.1 Custo de transação, extrafiscalidade e eficiência econômica O tributo é identificado como um custo associado, por exemplo, ao exercício e manutenção de direitos de propriedade e à execução de contratos. No primeiro caso, temos os tributos incidentes sobre a propriedade (IPVA, IPTU) ou sobre a transmissão dessa propriedade (ITBI, ITCD). No segundo caso, temos os tributos incidentes sobre a circulação jurídica (contrato de compra e venda mercantil) de produtos, mercadorias e serviços (ICMS, ISS, IPI). Para Caliendo (2009, p. 22):

A tributação pode ser entendida como um custo de transação em sentido restrito, na medida em que se constitui em um custo para a formalização de um negócio jurídico [...] De outra parte, a tributação pode ser entendida também como sendo um custo de transação em sentido amplo, ou seja, conforme o teorema de Coase. Nesse caso, a tributação pode ser considerada um custo a ser verificado na utilização dos mecanismos de mercado. As inseguranças decorrentes de um sistema tributário imperfeito e ineficiente implicam em maior incerteza na contratação e, portanto, em um custo de transação maior.

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Mas, a identificação da tributação como custo de transação traz implícita uma outra questão: aquela que vincula, através de uma relação negativa, tributação e eficiência econômica. Neste contexto, maior ônus tributário implica menor eficiência econômica. O esforço do agente econômico, neste caso, deverá ser direcionado à redução ou eliminação desse custo de transação, ou seja, dos encargos tributários. Em muitas situações as discussões acerca dos custos de transação encobrem, na verdade, a ineficiência dos agentes econômicos. A solução de mercado para as situações de ineficiência econômica é sumária: exclusão do mercado. Uma medida corrente contra essa objetividade do mercado é aquela que atribui um protagonismo ao Estado com a finalidade de subsidiar agentes econômicos ineficientes10 através da desoneração tributária e/ou da transferência de recursos da sociedade à atividade econômica privada. Um fato subjacente, cuja discussão ainda é incipiente, é aquele que aponta um subproduto da extrafiscalidade: a tutela de agentes econômicos ineficientes. Ao adentrar no ambiente econômico-privado, o Estado pode, implicitamente, criar um estímulo à ineficiência econômica, ou seja, o agente econômico não mais procurará reduzir seus custos com medidas de mercado, mas através, por exemplo, da desoneração tributária ou da apropriação de recursos da sociedade11. Sobre este tema, com muita propriedade, Caliendo (2009, p. 79) diz: [...] um dos defeitos mais graves de mercado decorre da presença de instituições ineficientes, estas, conforme Daron Acemoglu, atingem um fraco desempenho econômico por ação intencional de uma elite econômica. Esta elite escolhe políticas econômicas que aumentam a sua renda pela transferência direta ou indireta de recursos do restante da sociedade.

Por eficiência econômica deve ser entendida a diferença entre valor de mercado e custos de produção de mercadorias, produtos e serviços. Para Dahl (2008, p. 112): La “eficiencia económica” se mide por la proporción entre los “costos” de los bienes y servicios que se utilizan en la producción y el “valor” de la producción para el mercado […] (DAHL, 2008, p. 112).

Matematicamente, a eficiência econômica pode ser representada através da seguinte fórmula: EFICIÊNCIA Econômica = VALOR Mercado – CUSTOS Produção Evidentemente que o Estado, em qualquer situação, deve ter precaução ao interferir nos custos dos agentes econômicos, em especial diante da possibilidade de criar privilégios, muitas vezes, não extensíveis aos demais agentes econômicos. Ao proporcionar um ganho individual, o Estado produzirá um desequilíbrio no mercado. Neste sentido, Caliendo (2009, p.331) aponta: [...] a concessão de benefícios fiscais para determinados setores ou fases do ciclo econômico de tributação que nos leva ao consumo ou da redução da base de cálculo ou concessão de isenções pode distorcer a concorrência, afetar a capacidade contributiva e afetar a neutralidade fiscal.

Por isso, a renúncia de receitas esconde uma realidade pouco revelada pelos discursos político, econômico e jurídico: a ineficiência econômica. O que comumente se chama de eficiência econômica – e, consequentemente, a sobrevivência do agente econômico no mercado – pode, na verdade, omitir o consumo de recursos públicos em detrimento, inclusive, da própria sociedade. 10 Estas condutas estatais são amplamente justificadas a partir das contrapartidas sociais dos agentes econômicos, tais como a geração de emprego e renda, a redução das desigualdades regionais, dentre outras. 11 Neste caso, a extrafiscalidade terá a função de reduzir artificialmente os custos dos agentes ineficientes.

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Evidentemente que o custo social da manutenção no mercado de agentes econômicos ineficientes necessita ser compensada (justificada) através de ganhos sociais. Esta questão é colocada, habilmente, em termos de troca compensatória, conforme a seguir descrito. 3.1.2 Extrafiscalidade e troca compensatória Os discursos político, econômico e, até mesmo, jurídico, apresentam como alternativas mutuamente excludentes determinadas atividades ou situações. Esta situação Macpherson (1991) denomina de troca compensatória (trade-off), entendida como: Uma decisão, ou uma ação resultante de uma decisão tomada pelo indivíduo ou a coletividade (poderes Legislativo ou Executivo, de âmbito nacional ou restrito, uma empresa, um sindicato) com relação a duas coisas igualmente desejadas (positiva ou negativamente), mas tidas como incompatíveis depois de certo ponto. Se as duas coisas desejadas forem de fato alternativas incompatíveis, é preciso fazer uma escolha: tanto de uma por tanto de outra (MACPHERSON, 1991, p. 66).

A lógica econômica coloca a tributação em termos de troca compensatória: troca-se crescimento econômico por tributos; emprego e renda por tributos; desenvolvimento regional por tributos. Diante de alternativas mutuamente excludentes, como é colocado pelo discurso corrente (inclusive, o oficial), a solução mais atraente é ofertar ampla rede de possibilidades de desoneração tributária destinada a incentivar, por exemplo, o desenvolvimento econômico, a geração de emprego e renda e a redução das desigualdades regionais. No caso específico da renúncia de receitas, é interessante apontar que em muitas situações esta é efetivada de forma graciosa – sem nenhuma contrapartida que onere o agente econômico –, ou de forma desproporcional e sem mecanismos de controle efetivos. Colocado nestes termos, a renúncia de receitas tem representado uma situação que pode, muito bem, ser denominada de privatização dos tributos, ou seja, toda a coletividade contribui financeiramente com recursos individuais que serão destinados à atividade econômica privada, como se esta, por si só, não fosse capaz de gerar riquezas. É claro que uma política de renúncia de receitas responsável pode aliar desoneração tributária e desenvolvimento socioeconômico. Por isso, qualquer renúncia de receitas no sentido de troca compensatória apenas tem algum sentido social se o esforço do agente econômico for direcionado a recompor seus custos, ou seja, gerar emprego e renda, proporcionar desenvolvimento econômico ou reduzir as desigualdades regionais, dentre outras contrapartidas. Caso contrário estar-se-ia diante de mera transferência de recursos da sociedade para os agentes econômicos. 4. EXTRAFISCALIDADE E REALIDADE MATERIAL Com a deterioração do modelo desenvolvimentista adotado até meados da década 1990, em especial diante da inabilidade na promoção do desenvolvimento social e na redução da desigualdade regional, tem inicio o processo de desmantelamento das superintendências regionais de desenvolvimento, como SUDENE e SUDAM. Diante dos pífios resultados socioeconômicos e da ausência de um modelo nacional de desenvolvimento, restou aos próprios Estados-membros a iniciativa de estabelecer políticas de desenvolvimento local. É neste contexto que a partir do início dos anos 1990 intensifica-se a guerra fiscal entre os Estados-membros com finalidade de atrair investimentos privados para seus territórios no intuito de estimular o desenvolvimento socioeconômico local. Segundo Faria (2009, p. 94-95), a guerra fiscal entre os Estados da federação brasileira tem início nos anos 1960 e, após um período de declínio, ressurge com maior ímpeto nos anos 1990, especialmente a partir de 1993/1994. Este dado é importante porque permite contextualizar a agudização da guerra fiscal com a nova ordem jurídica inaugurada pela Constituição Federal de 1988. Apesar das profundas e inegáveis alterações trazidas à sociedade brasileira, há uma coincidência histórica pouco discutida: a elaboração e promulgação da constituinte de 1988 e o ressurgi166

mento do liberalismo econômico, agora travestido de neoliberalismo. Naquele momento histórico nos deparamos, dentre outras, com duas situações prementes: i) forte pressão por liberdades políticas, por garantias individuais e ii) estímulo ao crescimento econômico. Evidentemente que não integra o escopo do presente trabalho discorrer sobre o momento sócio-político-econômico precedente à nova Carta Magna. Nosso interesse é bem mais modesto. Por isso, faz-se necessário proceder a um recorte, de forma a centrar o objeto do presente trabalho no modelo econômico predominante na década de 1980, portanto, subjacente à Constituição de 1988. Com muita propriedade, Varela e Alvarez-Uría (1989, p. 18) aponta: Una de las innovaciones producidas en el ámbito macropolítico de los años ochenta fue la pretendida revolución conservadora que preconizo en su momento la Administración Reagen y cuyo programa político sintetizaba Noam Chomsky en los tres puntos siguientes: transferir los recursos de los pobres a los ricos, subvencionar a la industria de alta tecnología a través del sistema militar y, por último, extender la intervención por la fuerza en el Tercer Mundo.

Especificamente no Brasil, foram privilegiados dois mecanismos de indução ao crescimento econômico: i) forte desoneração tributária do capital e do lucro; e ii) maciça transferência de riquezas para a atividade econômica privada. O modelo tributário insculpido na Constituição de 1988 expressamente direcionou a tributação à pessoa física, privilegiando bases econômicas como a renda, patrimônio individual e o consumo. Mas, de forma implícita, também estabeleceu as bases para um impressionante mecanismo de transferência de riquezas da sociedade para a atividade econômica privada: o ICMS – tributo sobre o consumo, de competência comparticipada entre os Estados-membros, não-cumulativo e com uma enorme base econômica de incidência12. O mercado não deixou de reconhecer esta oportunidade. Diferentemente da idéia corrente que associa a guerra fiscal à vulnerabilidade dos gestores estaduais às pressões econômicas, a verdade é que o ICMS, da forma que foi estruturado na Constituição de 1988, é o tributo mais adequado à política de transferência de riquezas da sociedade para atividade econômica privada. Fosse o ICMS da competência da União, o estrago seria absolutamente o mesmo. Por isso, a questão central não passa pela titularidade da competência tributária, mas pelo simples fenômeno de transferência de riquezas da sociedade (do agente econômico consumidor) para a iniciativa econômica privada (o agente econômico empresa). A questão da extrafiscalidade nos tributos indiretos não tem merecido a devida atenção da doutrina jurídica. Nestes tributos quem suporta o ônus tributário é o consumidor. O tributo encontra-se embutido no preço final dos produtos, mercadorias e serviços vendidos. Assim, a desoneração no campo de incidência do ICMS, concomitantemente à manutenção do preço final a consumidor, possibilita a transferência direta da riqueza da pessoa física para a pessoa jurídica. A lógica é simples: como a fixação do preço encontra-se no âmbito de decisão dos agentes econômicos, conforme a regras de mercado (tipo de mercado, elasticidade, oferta, demanda, etc.), o Estado ao promover a desoneração no campo de incidência do ICMS, atribui à empresa à decisão do montante de riqueza individual a apropriar. Reduzida ou eliminada a obrigação tributária no campo de incidência do ICMS, e não havendo nenhuma obrigatoriedade de transpassar a desoneração ao preço final, a transferência de riqueza dar-se de forma direta e imediata entre o consumidor e a empresa, em outras palavras, entre sociedade e atividade econômica privada. Por isso, torna-se relevante apreender os resultados materiais do modelo de desenvolvimento econômico implícito à Constituição de 1988, especialmente a questão da renúncia de receitas destinada ao estímulo da atividade econômica privada. A seguir serão expostos alguns indicadores socioeconômicos pós-Constituição de 1998. 4.1 Resultados socioeconômicos posteriores à Constituição de 1988 Antes do início da análise quantitativa, faz-se necessário apontar um primeiro e intransponível obstáculo: a falta de transparência. Por incrível que possa parecer, inexistem dados consolida12 Não é por acaso o interesse da União em retirar o ICMS da competência dos Estados.

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dos e séries históricas sobre os montantes renunciados pela União, pelos Estados-membros, pelo Distrito Federal e pelos Municípios, no período pós-Constituição de 1988. Isto dificulta análises estatísticas mais consistentes. Apesar disso, é possível mensurar a realidade social brasileira e a partir dela inferir relações entre renúncia de receitas e desenvolvimento socioeconômico. Neste caso, o percurso metodológico se inverte. Isto implica tomar como verdadeira a premissa que justifica a transferência de recursos públicos à atividade econômica privada como instrumento de desenvolvimento socioeconômico. Assim, se a renúncia de receitas é socialmente justificada pelos gestores públicos federais, estaduais, distritais e municipais – foi, até mesmo, transformada em política pública nacional e local de atração de investimentos privados –, é por que os resultados sociais devem ser positivos. A seguir serão mostrados alguns indicadores macroeconômicos e sociais, tais como, PIB, renda apropriada, coeficiente de Gini e linhas da pobreza e indigência; além da carga tributária brasileira, segmentada por ônus incidente sobre a pessoa física e pessoa jurídica. O gráfico 1 ilustra a variação real acumulada, no período 1990 a 2007, do PIB brasileiro13.

Gráfico 1 – Variação real acumulada do PIB

13 Elaborado por: Ferreira (2007). Atualizado por: Ferreira e Barreto (2009). Fonte: IBGE, IPEA

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No período, o PIB brasileiro apresentou um incremento real acumulado (descontado o deflator implícito) de 67,04%, uma média anual de 3,72%, inferior ao crescimento econômico de outros países emergentes, como a China e a Índia, que se avizinha aos dois dígitos. Apesar do crescimento econômico medido pelo PIB, no mesmo período, observa-se que a estrutura da apropriação da renda não foi alterada, conforme mostrado no gráfico 2.14

Gráfico 2 – Renda apropriada

14 Elaborado por: Ferreira (2007). Atualizado por: Ferreira e Barreto (2009). Fonte: IBGE, IPEA

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Mesmo diante do crescimento econômico experimentado no período de 1990 a 2007, o gráfico 2 mostra que a apropriação da renda tem se mantido, com pequenas alterações. Por exemplo, a renda apropriada por 1% mais ricos teve, no período, uma redução de 1,72% (= 14,20% – 12,48%) e a apropriada por 10% mais ricos caiu 4,95% (= 48,78% – 43,83%). A renda apropriada por 50% mais pobres aumentou 3,29% (= 14,74% - 11,45%) e a renda apropriada por 20% mais pobres teve incremento de apenas 0,76% (= 2,90% – 2,14%). Isto implica dizer que o crescimento econômico não foi capaz de alterar a estrutura de apropriação da renda no país, que apresenta ainda imensa desigualdade e concentração de renda. Este resultado é corroborado pelo indicador social chamado de coeficiente de Gini, mostrado no gráfico 3.15

Gráfico 3 – Coeficiente de Gini

15 Elaborado por: Ferreira (2007). Atualizado por: Ferreira e Barreto (2009). Fonte: IBGE, IPEA

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No período de 1990 e 2007, o Coeficiente de Gini manteve-se acima de 0,5, evidenciando que o crescimento econômico pouco afetou a extrema concentração de renda no Brasil. Em sentido contrário, os indicadores linhas de pobreza e indigência apresentaram substancial evolução positiva, conforme mostrado no gráfico 4.16

Gráfico 4 – Linhas de pobreza e indigência

A proporção de pessoas abaixo da linha de pobreza17 foi reduzida consideravelmente no período de 1990 a 2007. Em 1990 a porcentagem de pessoas que viviam abaixo da linha de pobreza era de 40,01%, já em 2007 cai para 22,7%, uma redução de 17,31%. Tal fenômeno também foi verificado em relação à proporção do número de pessoas abaixo da linha de indigência18, que em 1990 era de 18,55% e em 2007 cai para 7,95%, ou seja, uma redução de 10,6%. Mas, estes resultados extremamente positivos têm sido relacionados, exclusivamente, à política de transferência de renda do governo federal, iniciada ainda no primeiro governo de FHC e ampliada no governo Lula. Apenas nos últimos 5 anos (2003 a 2007), a proporção de pessoas abaixo da linha de pobreza foi reduzida em 11,26%; e a proporção de pessoas abaixo da linha de indigência, em 6,18%.

16 Elaborado por: Ferreira (2007). Atualizado por: Ferreira e Barreto (2009). Fonte: IBGE, IPEA 17  Disponível em: http://www.ipeadata.gov.br/ipeaweb.dll/ipeadata?SessionID=691601676&Tick=1235592044812&VAR_ FUNCAO=Ser_Temas%28136%29&Mod=M. 18 Disponível em: http://www.ipeadata.gov.br/ipeaweb.dll/ipeadata?SessionID=691601676&Tick=1235592044812&VAR_ FUNCAO=Ser_Temas%28136%29&Mod=M.

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Associado aos pífios ganhos sociais advindos da política de renúncia de receitas, os dados ainda mostram que a tributação, do período de 1990 a 2007, incidiu mais pesadamente sobre a pessoa física, que suportou cerca de 2/3 da carga tributária brasileira, conforme mostrado no gráfico 5.19

Gráfico 5 – Distribuição da carga tributária

Apesar da impossibilidade de correlacionar estatisticamente dados da renúncia de receitas com indicadores sociais (para daí inferir relação tendencial entre as variáveis), é notório que no período a defesa do modelo de renúncia de receitas se mostrou inábil a produzir resultados socioeconômicos positivos. 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS Nas sociedades contemporâneas, o modelo de organização social, fundamentado em indivíduos atomizados e maximizadores de seus interesses, impôs a prevalência das interações econômicas sobre as interações políticas e sociais. A teoria dos sistemas de Luhmann, apesar das severas restrições, consegue descrever esta complexa realidade de forma impressionante. Para isso, atribui um protagonismo aos atos de comunicação em detrimento do próprio ser humano, jogado à periferia (ao entorno) dos sistemas sociais. Tais sistemas, constituídos de forma autorreferenciais e autopoiéticos, fechados em si mesmos, com linguagens especializadas, apresentam uma insensibilidade imanente, incapaz de integrar a sociedade em um todo. Além disso, depara-se com a impregnação nos subsistemas sociais da política e do direito da lógica do subsistema da economia, que resulta na circularidade sistêmica. É exatamente neste contexto, de insensibilidade social e de circularidade sistêmica, que se coloca o tema da extrafiscalidade, em especial a renúncia de receitas. O tema ainda não é pacífico nem os resultados foram ainda concretamente mensurados. Na verdade, sem grandes resultados socioeconômicos, a renúncia de receitas tem representado mera transferência de recursos da sociedade (consumidores) para determinados agentes econômicos (empresas), com substancial aumento da lucratividade privada, sem estes, no entanto, despenderem qualquer esforço de gestão ou qualquer contrapartida social, tais como a geração de emprego e renda ou a redução de preço final de produtos, mercadorias e serviços. Nesta situação, ocorre o fenômeno que pode ser denominado de privatização dos tributos. A lógica econômica subjacente ao discurso que coloca a renúncia de receitas como instrumento de estímulo ao desenvolvimento socioeconômico, encontra guarida nas doutrinas liberal e 19 Elaborado por: Ferreira (2007). Atualizado por: Ferreira e Barreto (2009). Fonte: SRF, IBGE

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neoliberal, nas quais as diferenças materiais justificam, inclusive, as diferenças formais e a própria lei deve ser o vetor indutor dessas diferenças ao propor tutelas (por exemplo, reservas de mercado), privilégios (por exemplo, desregulamentação dos direitos alheios, tais como os trabalhistas e previdenciário) e recursos públicos (por exemplo, financiamento estatal e, até mesmo, transferência de recursos públicos à atividade econômica privada) para estimular o crescimento econômico. Neste contexto político-econômico, o tributo é enxergado apenas como um custo de transação a ser reduzido ou eliminado. Evidentemente que esta lógica, e o discurso que se forma em torno dela, tem o condão de omitir a relação de causa e efeito entre renúncia de receitas e ineficiência econômica. Isto implica reconhecer que a preservação de agentes econômicos ineficientes no mercado dá-se através do consumo de riquezas da sociedade. Esta conduta estatal impele toda a sociedade a conviver com os custos da ineficiência econômica, embutidos, por exemplo, nos preços finais de produtos, mercadorias e serviços; na degradação do meio ambiente e na precarização da relação de trabalho, dentre outras externalidades. Claro que o estímulo estatal a agentes econômicos ineficientes tem fundamento em uma justificação social muito bem elaborada: a troca compensatória. Neste sentido, gestores públicos e legisladores “trocam” tributos por uma determinada contrapartida do agente econômico, tais como, por exemplo, emprego e renda; desenvolvimento econômico; redução das desigualdades regionais, dentre outras. Mas a troca compensatória não é tão linear quanto se imagina. Neste sentido, Macpherson aponta que “Qualquer troca compensatória é conveniente para os governantes, porém ilusória para os cidadãos” (MACPHERSON, 1991, p. 48). Isto não quer dizer que em determinadas circunstância o Estado não deva intervir na econômica. Em situações específicas é aceitável que o Estado conceda privilégios financeiros a fim de possibilitar um gap ao agente econômico, destinado, por exemplo, à geração de emprego e renda, à redução de preço ao consumidor final ou à redução das desigualdades regionais. Contudo, da forma como o tema extrafiscalidade tem sido tratado no Brasil, desde o período da colonização até a época atual, com evidente banalização na concessão de privilégios tributários à atividade econômica privada, pouco se questiona o elevado custo social desse modelo. Na intenção de mensurar os resultados materiais da renúncia de receitas como instrumento de estímulo do desenvolvimento socioeconômico nacional e local, a pesquisa empírica se debruçou nos dados socioeconômicos no período de 1990 a 2007. O presente estudo partiu do modelo tributário inaugurado pela Constituição Federal de 1988, para daí apreender as relações entre renúncia de receitas e resultados materiais. No caso específico do Brasil, há um ingrediente adicional: a coincidência histórica entre elaboração e promulgação da Constituição Federal de 1988 e a consolidação da doutrina neoliberal. Esta contextualização torna-se importante porque permite contemporizar a nova ordem jurídica constitucional-tributária com o acirramento das políticas de renúncia de receitas protagonizada pelos Estados-membros, denominada, genericamente, de guerra fiscal. Na verdade, apenas a guerra fiscal tornou-se pública e ganhou evidência, mas, em todo o período, a União jamais deixou de despender severos esforços no sentido de ofertar à atividade econômica privada uma enorme gama de possibilidades de desoneração tributária. Apesar da maciça transferência de riquezas para a iniciativa econômica privada, a pesquisa empírica mostra um descompasso entre o discurso que defende a renúncia de receitas como instrumento de estímulo ao desenvolvimento socioeconômico e os resultados materiais. Por exemplo, enquanto no período de 1990 a 2007 o PIB brasileiro teve um incremento real acumulado, descontado o deflator implícito, de 67,04% (crescimento econômico que se situa aquém daquelas experimentadas pelas economias emergentes no mesmo período), a estrutura de apropriação da renda no país manteve-se inalterada, preservando a brutal desigualdade de renda. Este dado é corroborado pelo coeficiente de Gini, que em todo o período manteve-se acima de 0,5, ou seja, o Brasil ainda é um país com uma forte concentração de renda. Dos indicadores sociais observados, apenas a proporção de pessoas abaixo das linhas de pobreza e indigência, no período, experimentou uma expressiva redução, especialmente a partir de 1993 e, de forma mais acentuada, a partir de 2003. Mas, este resultado significativo é atribuído exclusivamente às políticas de distribuição de renda iniciadas no governo de FHC e ampliadas no Governo Lula. Subjacente a estes resultados, também é relevante indicar que, no período de 1990 a 2007, 173

a carga tributária foi suportada prioritariamente pela pessoa física (2/3). Este resultado possibilita identificar dois fenômenos distintos: forte tributação sobre a pessoa física associada à maciça transferência de riquezas públicas para a atividade econômica privada. Em outras palavras, o custo social da renuncia de receitas é suportado preponderantemente pela pessoa física. No caso específico da guerra fiscal entre os Estados-membros, como o ICMS integra o preço final de produtos, mercadorias e serviços, essa transferência de riqueza se dá de forma direta e imediata através dos mecanismos de fixação de preço pelo mercado. Evidentemente que a solução deste problema não passa pelo protagonismo da União em detrimento dos entes subnacionais ou pela centralização das competências tributárias. Em geral, os mesmo males atribuídos aos entes subnacionais também são observados no ente nacional, em todas as esferas de Poder. A própria comprovação histórica mostrou que o protagonismo da União não foi capaz de remediar o passivo social brasileiro nem, muito menos, minorar as desigualdades regionais. Uma provável solução é incluir no debate político a discussão sobre o modelo de financiamento estatal da atividade econômica privada através da renúncia de receitas. Esta discussão terá de passar, invariavelmente, pela disposição da sociedade brasileira em suportar o custo social da ineficiência econômica. REFERÊNCIAS ANDRADE, Eduardo de Carvalho. Economia do setor público no Brasil. Organização Paulo Arvate, Ciro Biderman. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004. BARCELLONA, Pietro. O egoísmo maduro e a insensatez do capital. Tradução Sebastião José Roque. São Paulo: Ícone, 1995. ________. Postmodernidad y comunidad: el regreso de la vinculación social. 3. ed. Madrid: Trotta, 1999. ________. L’individuo e la comunità. Roma: Edizioni Lavoro, 2000. ________. Diritto senza società: dal disincanto all’indifferenza. 1. reimp. Bari: Dedalo, 2008. BOBBIO, Norberto. Estado, governo e sociedade: para uma teoria geral da política. Tradução Marco Aurélio Nogueira. 11. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. ________. O futuro da democracia. 11. ed. Tradução Marco Aurélio Nogueira. São Paulo: Paz e Terra, 2000. ________. Liberalismo e democracia. Tradução Marco Aurélio Nogueira. São Paulo: Brasiliense, 2005. CALIENDO, Paulo. Direito tributário e análise econômica do direito: uma visão crítica. Rio de Janeiro: Elsevier, 2009. CASTRO, Augusto Olympio Viveiros. História tributária do Brasil. 2. ed. Brasília: ESAF, 1989. CAVALCANTI, Amaro. Elementos de finanças: estudo theorico-pratico. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1896. CHOMSKY, Noam. Democracia e mercados na nova ordem mundial. In: GENTILI, Pablo (Org.). Globalização excludente: desigualdade, exclusão e democracia na nova ordem mundial. 4. ed. Petrópolis: Vozes, 2002, p. 7-62. COASE, Ronald H. The problem of social cost. Disponível em: . Acesso em: 29 abr. 2009. ________. Ensayos sobre economía y economistas. Madrid: Marcial Pons, 2009. 174

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ANTIJURIDICIDADE E LITIGÂNCIA DE MÁ-FÉ

Lúcio Grassi de Gouveia1

1. INTRODUÇÃO Situam-se no campo da antijuridicidade tanto o abuso de direito quanto o ato ilícito stricto sensu. Costuma parte da doutrina afirmar que a litigância de má-fé prevista nos art. 17 e 18 do Código de Processo Civil brasileiro é abuso de direito processual. Faz sentido tal afirmação? Apesar de o ato abusivo ser considerado ilícito pelo Código Civil brasileiro, diferencia-se conceitualmente dele. No caso da litigância de má-fé,tendo havido ampla previsão das condutas desleais, as mesmas foramtransformadas em ilícitos processuais, sem necessidade de socorro ao instituto do abuso de direito. Na elaboração dos incisos do art. 17 do CPC, utilizou-se o legislador de conceitos indeterminados, podendo a ilicitude ser verificada prima facie, sendo desprovida de aparência de licitude a conduta do improbus litigator. Veremos assim que, atualmente, ao estudarmos as condutas previstas no art. 17 do CPC, não devemos fazer uso do instituto denominado por parte da doutrina de abuso de direito processual. 2. O ABUSO DO DIREITO DE DEMANDAR E DE SE DEFENDER NO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL DE 1939 Dispunha o Código de Processo Civil de 1939: Art. 3º - Responderá por perdas e danos a parte que intentar demanda por espírito de emulação, mero capricho, ou erro grosseiro. Parágrafo único - O abuso de direito verificar-se-á, por igual, no exercício dos meios de defesa, quando o réu opuser, maliciosamente, resistência injustificada ao andamento do processo”.

1 Professor do Mestrado em Direito e Graduação da Universidade Católica de Pernambuco. Doutor em Direito pela Universidade de Lisboa. Mestre em Direito pela UFPE. Membro da ANNEP. Juiz de Direito.

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Dispunha ainda: Art. 63. Sem prejuízo do disposto no art. 3º, a parte vencida que tiver alterado, intencionalmente, a verdade, ou se houver conduzido de modo temerário no curso da lide, provocando incidentes manifestamente infundados, será condenada a reembolsar à vencedora as custas do processo e os honorários do advogado. § 1º - Quando, não obstante vencedora, a parte se tiver conduzido de modo temerário em qualquer incidente ou ato do processo, o juiz deverá condená-la a pagar à parte contrária as despesas a que houver dado causa. § 2º - Quando a parte, vencedora ou vencida, tiver procedido com dolo, fraude, violência ou simulação, será condenada a pagar o décuplo das custas. § 3º - Se a temeridade ou malícia for imputável ao procurador, o juiz levará o caso ao conhecimento do Conselho local da Ordem dos Advogados do Brasil, sem prejuízo do disposto no parágrafo anterior”.

Naquele tempo, Pontes de Miranda ensinava que o art. 3º referia-se ao abuso do direito processual (MIRANDA, 1958, p. 130). Ao explicar o abuso do direito, afirmou que o estudo do abuso do direito é pesquisa dos encontros, dos ferimentos, que os direitos se fazem. Se pudessem ser exercidos sem outros limites que os da lei escrita, com indiferença, se não desprezo, da missão social das relações jurídicas, os absolutistas teriam razão. Mas, a despeito da intransigência deles, fruto da crença a que se aludiu, a vida sempre obrigou a que os direitos se adaptassem entre si, no plano do exercício. Conceptualmente, os seus limites, os seus contornos, são os que a lei dá, como quem põe objetos na mesma matela, ou no mesmo saco. Na realidade, quer dizer – quando lançam na vida, quando se exercitam – têm de coexistir, têm de conformar-se uns com os outros (MIRANDA, 1966, p. 67-68).

Ao mesmo tempo, ao tratar dos atos ilícitos, ensinava Pontes de Miranda que os elementos comuns aos atos ilícitos lato sensu seriam o ato humano e a contrariedade a direito. Quanto ao ato ilícito stricto sensu, afirmava que o ato ilícito stricto sensu tem a particularidade de violar, com culpa, a regra jurídica, sem atinência a que essa regra regula negócio jurídico ou ato jurídico stricto sensu. Contraria direito, ferindo (lesando) bens da vida, que o direito protege; independentemente do vínculo entre ofensor e ofendido, oriundo de negócio jurídico, ou de ato jurídico stricto sensu. É ilícito estricto sensu, portanto, todo ato ilícito que ofenda direito subjetivo ou cause outros danos (MIRANDA, 1970, p. 213).

Passemos agora à redação do Código de Processo Civil atual, no que diz respeito ao instituto da litigância de má-fé. 3. A LITIGÂNCIA DE MÁ-FÉ NO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL ATUAL Em sua redação atual, dispõe o Código de Processo Civil Brasileiro: Art. 17.  Reputa-se litigante de má-fé aquele que: (Redação dada pela Lei nº 6.771, de

1980)

I - deduzir pretensão ou defesa contra texto expresso de lei ou fato incontroverso; (Redação dada pela Lei nº 6.771, de 1980) II - alterar a verdade dos fatos;  (Redação dada pela Lei nº 6.771, de 1980) III - usar do processo para conseguir objetivo ilegal; (Redação dada pela Lei nº 6.771,

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de 1980)

IV - opuser resistência injustificada ao andamento do processo; (Redação dada pela

Lei nº 6.771, de 1980)

V - proceder de modo temerário em qualquer incidente ou ato do processo; (Reda-

ção dada pela Lei nº 6.771, de 1980)

Vl - provocar incidentes manifestamente infundados. (Redação dada pela Lei nº 6.771,

de 1980)

VII - interpuser recurso com intuito manifestamente protelatório. (Incluído pela Lei

nº 9.668, de 1998)

Art. 18. O juiz ou tribunal, de ofício ou a requerimento, condenará o litigante de má-fé a pagar multa não excedente a um por cento sobre o valor da causa e a indenizar a parte contrária dos prejuízos que esta sofreu, mais os honorários advocatícios e todas as despesas que efetuou.  (Redação dada pela Lei nº 9.668, de 1998) § 1o  Quando forem dois ou mais os litigantes de má-fé, o juiz condenará cada um na proporção do seu respectivo interesse na causa, ou solidariamente aqueles que se coligaram para lesar a parte contrária. § 2o  O valor da indenização será desde logo fixado pelo juiz, em quantia não superior a 20% (vinte por cento) sobre o valor da causa, ou liquidado por arbitramento. (Redação dada pela Lei nº 8.952, de 1994)

Vale relembrar o que dispõe o Código Civil: Dos Atos Ilícitos Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito. Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.

Na hipótese do art. 186, o ato é praticado em desacordo com a ordem jurídica, violando direito subjetivo individual, causando dano patrimonial ou moral a outrem, criando o dever de repará-lo. O art. 187prevê hipótese em que, sob a aparência de um ato legal ou lícito, esconde-se a ilicitude no resultado, por atentado ao princípio da boa-fé e aos bons costumes ou por desvio da finalidade socioeconômica para a qual o direito foi estabelecido. No ato abusivo há violação da finalidade econômica ou social. O legislador ampliou, de modo significativo, o âmbito de incidência da teoria do abuso de direito, ao estabelecer critérios da boa-fé, dos bons costumes e dos fins econômico ou social, como parâmetros para aferição do ato abusivo. Para Tepedino, o legislador de 2002 não foi feliz ao definir abuso de direito como espécie de ato ilícito (TEPEDINO et al, 2007, p. 342). A redação do Código Civil brasileiro confunde duas espécies de antijuridicidade: o ilícito e o abusivo. Apesar de o abuso ser atuação contrária ao direito, isto é, conduta antijurídica, não necessariamente se configura como atuação vedada por lei ou norma explícita no ordenamento jurídico. Porém, em nosso Código Civil, ambas estão enquadradas como espécies do gênero ilicitude lato sensu. O art. 187 dispõe sobre o abuso de direito, que passaremos a estudar agora. 4. O CONCEITO DE ABUSO DE DIREITO NA DOUTRINA Segundo Planiol, a teoria do abuso do direito veio alargar o âmbito das nossas responsabilidades,

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cerceando o exercício dos nossos direitos subjetivos, no desejo de satisfazer melhor o equilíbrio social e delimitar, tanto quanto possível, a ação nefasta do egoísmo humano. Como corretivo indispensável ao exercício do direito, ela veio limitar o poder dos indivíduos, mesmo investidos de direitos reconhecidos pela lei, conciliando estes direitos com os da coletividade (PLANIOL apud LEÃO, 1986, p. 7).

A concepção individualista do Código Civil de Napoleão construiu um sistema de direito absoluto, do qual é exemplo, no campo da propriedade, o seu famoso art. 544. A teoria do abuso de direito, tão bem esquematizada por Josserand, na França, e Campion, na Bélgica, é a reação contra a amoralidade e conseqüências anti-sociais que decorrem da doutrina clássica dos direitos absolutos. Afirmou Josserand que “o exercício de um direito não é incompatível com a noção de culpa, mas o conceito de culpa, que acolhe, quanto trata do abuso de direito, não é o conceito clássico, mas o de culpa social, ou seja, o desvio da missão social do direito” (JOSSERAND, p. 329 apud LEÃO, 1986, p. 7). A teoria do abuso de direito ou da relatividade dos direitos é a reação contra a amoralidade e determinados resultados anti-sociais que decorrem da doutrina clássica dos direitos absolutos, visando ao que Josserand denominou “moralização do direito” (JOSSERAND, p. 91 apud LEÃO, 1986, p. 7-8). Na fixação do abuso de direito, há o critério subjetivo e o critério objetivo. Pelo primeiro, só há o exercício abusivo do direito com intenção de lesar o direito de outrem. Pelo segundo, também chamado finalista, será anormal o exercício do direito quando contrariar sua finalidade social e econômica. Josserand, apesar de ter iniciado a exposição de sua teoria defendendo o critério subjetivo, veio a entender que é pelo critério finalista que se chega à verdade. E admite que deve-se ter em vista a finalidade dos direitos, sua função própria a cumprir e, conseqüentemente, cada um deles deve realizar-se conforme o espírito da instituição; os pretensos direitos subjetivos são direitos-funções, os quais devem permanecer no plano da função que devem desempenhar, senão o seu titular comete um desvio, um abuso de direito. O ato abusivo é o ato contrário ao fim da instituição, ao seu espírito, à sua finalidade(JOSSERAND, 1972, p. 329 apud LEÃO, 1986, p. 18).

Todo direito tem uma finalidade específica. O desvio dessa finalidade caracteriza o abuso de direito. A teoria do abuso de direito, diz ainda Alvino Lima, proclamando a relatividade dos direitos, ante a impossibilidade de se traçar na lei qual o uso que cada um deve fazer de seu direito, é bem a teoria da moralização do direito, opondo à rigidez de um texto, os princípios superiores da moral, indispensável na regulamentação humana, dentro da esfera jurídica (LIMA, p. 338 apud LEÃO, 1986, p. 8). Para José Olímpio de Castro Filho, toda vez que , na ordem jurídica, o indivíduo no exercício do seu direito subjetivo excede os limites impostos pelo direito positivo, aí compreendidos não só o texto legal mas também as normas éticas que coexistem em todo sistema jurídico, ou toda vez que o indíviduo no exercício do seu direito subjetivo o realiza de forma contrária à finalidade social, verifica-se o abuso do direito. Entende que o direito subjetivo, poder de agir, é, na sua realização normal, o uso, e, na sua realização anormal, o abuso (CASTRO FILHO, 1959, p. 21).

Roberto Rosas adverte que, numa orientação mais moderna, o exercício anormal do direito pode se caracterizar sem a intenção de prejudicar. Não havendo proveito próprio, ou intenção de preju-

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dicar, não há anormalidade (orientação de Saleilles e Josserand), ou como diz Santiago Dantas: o abuso é qualificado pelo aspecto objetivo do ato. Se este patenteia a sua anti-socialidade existe abuso e cabe repressão (ROSAS, 1987, p. 171).

Saleilles foi o criador da teoria do exercício anormal do direito, repelindo o critério psicológico do Código alemão, no qual, o exercício de um direito é inadmissível se ele tiver por fim, somente, causar dano a outro (BGB - § 226), em contraposição a outro dispositivo do BGB, que impõe a indenização do dano a quem, de modo atentatório contra os bons costumes, cause, dolosamente, dano a outro (BGB - § 826). Saleilles, em face da autonomia desses dispositivos, proclamou a teoria objetivista da destinação social e econômica do direito. Para ele, o abuso de direito consiste no exercício anormal do direito, exercício contrário à destinação econômica ou social do direito subjetivo, exercício reprovado pela consciência pública (Théorie Générale de l”Obligation, 2ª ed., pág. 371). Mas o próprio Saleilles alterou o seu pensamento para adotar a teoria subjetivista (D’Abuse du Droit). Segundo Roberto Rosas, “a melhor orientação está na fusão das duas doutrinas formando a chamada doutrina mista”2 . Menezes Cordeiro trata o abuso de direito como “exercício inadmissível de posições jurídicas”. Para ele, deve-se apontar um papel particular da boa-fé, presente nas diversas regulações típicas do abuso de direito: o da metodologia por ela pressuposta. Entende que o essencial do exercício inadmissível de posições jurídicas é dado pela boa-fé: aos bons costumes e à função social e econômica dos direitos, incluídos no art. 334.°(do Código Civil Português), cabe um papel diferente (CORDEIRO, 2011). Analisado o conceito de abuso de direito, passemos a uma análise da doutrina que equipara a litigância de má-fé no processo civil ao abuso do direito de ação e de defesa. 5. A CARACTERIZAÇÃO DA LITIGÂNCIA DE MÁ-FÉ COMO ABUSO DE DIREITO POR PARTE DA DOUTRINA Para diversos autores, a figura jurídica do abuso de direito é a que melhor explica a litigância de má-fé no processo civil. Analisemos o pensamento de alguns que realizam tal aproximação. Quanto ao abuso do direito no processo, a doutrina enfatiza que o processo, instrumento de realização do direito, não é meio para se prejudicar alguém (teoria subjetivista) ou para atingir objetivos anti-sociais (teoria objetivista). Entretanto, mais do que o direito privado, é propício o processo para o exercício abusivo de direito, conforme afirma Frederico Marques (1958, p. 132). A teoria geral do processo, no particular da lide temerária, foi buscar o seu fundamento na teoria do abuso de direito, portanto, no privatismo, mas o efeito do abuso, na relação processual é mais amplo pois atinge o Estado. Segundo Walter Zeiss, “a conduta do litigante é abusiva para com o Estado, não para com o adversário. A litigância temerária constitui pois um ataque às instituições justutelares do Estado, uma provocação inútil, excessiva ou antifuncional dos tribunais 2 Dessa forma, divergiram no devenir da história partidários de critérios distintos para caracterização do abuso de direito. Os adeptos da teoria subjetiva entendem que só se caracterizará o abuso do direito quando restar provada a intenção de prejudicar, sem qualquer proveito ou vantagem para quem o comete, sugerindo que devam ser pesados a intenção do litigante e o seu desejo de causar dano, com intuito de prejudicar. Em outras palavras, para determinar-se se há abuso de direito, atende-se exclusivamente à intenção do agente. O exercício do direito passa a ser abusivo se se pretende, com ele, prejudicar terceiros, sem nenhum ou insignificante proveito para si (são expoentes dessa corrente Bonnecase, Demogue, Ruggiero e Lalou). Os adeptos da teoria objetiva estendem muito mais o conceito de abuso de direito, embora , como é claro, não fiquem de certo modo infensos à intenção maldosa do infrator. Para estes, pouco importa que o infrator tenha ou não tirado vantagem do seu ato nocivo e prejudicial ao antagonista; bastar-lhes-á a realização do ato de modo diferente do visado pelo legislador, ou pelo respectivo instituto jurídico, para caracterizá-lo. Não discutirão o intuito do agente, e sim a vontade da norma disciplinada com regra geral. Ou seja, para os objetivistas pode haver abuso de direito mesmo sem intenção de prejudicar. O ato é lícito ou ilícito conforme se realize ou não de acordo ou em harmonia com a finalidade do instituto jurídico. Para esses, o exercício abusivo do direito sem proveito próprio, ou com a intenção de prejudicar, constitui sempre um abuso, sendo essa sua forma mais freqüente e expressiva; todavia, entendem que é difícil de ser pautada e é insuficiente a intenção, para caracterizar o abuso; mais objetivamente, ocorrerá sempre que o direito seja exercido em desacordo com sua finalidade social (expoentes desta corrente são Josserand e Saleilles). Dessa forma, abuso de direito é a relação de contrariedade entre a conduta do homem e o fim pretendido pela ordem jurídica. (Idem, p. 171)

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estatais”(ZEISS, 1979, p. 32). Não pode a parte ou seu procurador invocar a tutela jurisdicional para prejudicar outrem ou desvirtuar a finalidade do seu direito. O abuso existe, mesmo não tendo havido dano à parte contrária. José Olímpio de Castro Filho preleciona que a repressão pelo Estado se efetua, “não porque resulte, ou possa resultar, em dano alheio, senão porque representa o abuso, por si só, um dano ao Estado” (CASTRO FILHO, 1959, p. 33). Assim, a doutrina do abuso do direito teve origem no Direito Civil, conforme analisado supra e foi transplantada para o processo civil. Neste, passou-se a se considerar que o exercício da demanda não é um direito absoluto, pois que se acha, também, condicionado a um motivo legítimo. A utilização do processo pressupõe um direito a reintegrar, um interesse a proteger, uma séria razão para invocar a tutela jurisdicional (DIAS, 1998, p. 36). Existe ainda a agravante em processo que, além de ser atingida a parte contrária, atinge-se também o Estado, ficando esse a mercê de indivíduos que pretendem, através do processo, prejudicar outros ou obter resultados ilícitos. Daí a enxurrada de dispositivos legais a punir a litigância de má-fé, salvaguardando os princípios da boa-fé, lealdade e probidade no processo civil. Pontes de Miranda fala em proibição ao abuso do direito público (subjetivo) de demandar, o abuso do exercício da ação (e da exceção), o abuso do remédio jurídico processual ou de atos processuais (1970, p. 485-486). Couture ensina que o litigante malicioso comete abuso do direito constitucional de petição, desviando-o de seus fins próprios (COUTURE, p. 23 apud CASTRO FILHO, 1959, p. 25). Moacyr Amaral Santos, em voto proferido no STF (R. Ext.n. 69.439 ) assinalou que “o abuso do direito no exercício da demanda se caracteriza pelo dolo, no sentido de intenção de prejudicar, ou erro grosseiro, ou pelo espírito de aventura ou temeridade” ( RTJ 56/129 ). José Olímpio de Castro Filho enfatiza que o abuso de direito atingiria não só a parte adversa ou terceiros, mas também o Estado. Para ele, com essa teoria (abuso do direito) vieram ao processo todas as denominações atribuídas ao ato ilícito, formando o “quadro patológico do abuso do direito”: o dolo, a temeridade, a fraude, a emulação, o mero capricho, o erro grosseiro, a violência, a protelação da lide, etc (1959, p. 32, 87-88). Arruda Alvim identifica o abuso na pretensão, afirmando que o direito de ação, que é faculdade de acionar a jurisdição, deve conter uma pretensão, e esta é que não deve ser abusiva. Todavia, nossa legislação processual, tanto a anterior como a vigente, acolhe o abuso do direito no processo, i.e., não admite certas deslealdades processuais, que superem os limites definidos pelo sistema. A problemática da má-fé assenta-se muito mais na análise da pretensão do que no direito de ação (ALVIM, 1975, p. 150).

Para Gino Zani, o ilícito processual não poderá ser procurado no direito de ação, mas na antijuridicidade da pretensão, na falta de fundamento do direito de ação, e, enfim, na desonestidade e delituosidade dos meios instrumentais eventualmente postos em ação (ZANI, 1931, p. 77) . Zani nega a aplicação da teoria do abuso do direito ao processo, justificando que somente no caso, praticamente absurdo, no qual o litigante no próprio ato de proposição da demanda infundada, expressamente declarasse que age sem razão e unicamente para importunar o próximo, e de pedir o reconhecimento que nenhum direito lhe compete, só para exercitar aquele direito processual de ação e de fatigar assim o adversário, poderia haver atividade emulatória no próprio direito (processual) de ação (ZANI, 1931, p. 83). Prefere Zani assentar a discussão em torno do dolo processual, esclarecendo que é assim que em relação à amplitude de seu conteúdo e do ambiente que se desenrola, a teoria do dolo processual fala a propósito de atividade enganatória em relação ao mérito da demanda ou da exceção, seja no curso do juízo principal ou incidental, seja em procedimentos especiais de conhecimento (não definitiva, inaudita altera parte, etc.)(ZANI, 1931, p. 87).

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Mas como bem sabemos, também poderá ocorrer litigância de má-fé sem dolo. Para Barbosa Moreira, o abuso de direito no processo civil se desdobra em abuso do direito de demandar (direito de ação em sentido estrito), por parte do autor, e o abuso do direito de defesa, por parte do réu (p. 22-23). Para Roberto Molina Pasquel, no sistema anglo-americano os atos abusivos praticados no processo são considerados ofensivos aos juízes ou tribunais, podendo ser conceituados como tal: a) desapreço à autoridade, à justiça ou à dignidade de um tribunal; b) desprezo voluntário à autoridade exercida por uma corte de justiça; c) execução de atos que possam conduzir a um desapreço genérico à pessoa dos juízes, e que exijam uma intervenção sumária para preservar a ordem no tribunal e manter a dignidade dos juízes; d) tendência a obstruir a administração da justiça em uma demanda, fazendo nulas as resoluções do tribunal, levando ao menoscabo de sua reputação e a uma falta de respeito entre os homens; e) a desobediência a qualquer resolução legítima, decreto, auto ou ordem de um tribunal ; e f) a obstrução ofensiva aos procedimentos judiciais em que o juiz atua de ofício (PASQUEL, p. 23 apud SOUZA, p. 67).

Admite Molina Pasquel que constituem contempt, entre outros, os seguintes atos praticados no processo: desapreço, indiferença, desatenção ou desacato; subtração ou alteração de documentos judiciais; abuso de recursos ou ações; destruição, alteração, ocultação ou disposição de coisa objeto do litígio; caução ou fiança ilusórias ou fictícias; mau comportamento em audiência, de partes, advogados ou testemunhas; recusa de depor ou falso testemunho; obstar citações; exercício ilegal da advocacia, etc (PASQUEL, p. 104 e ss.apud SOUZA, p. 68). Entende ainda que o contempt, ou ofensa, caracteriza perfeitamente o abuso do direito de demandar ou no curso da demanda, e, através de processo regular, “vindicatorio de la dignidad judicial”, de iniciativa tanto do ofendido como da autoridade judicial, são impostas ao ofensor sanções que variam de prisão à indenização, incapacidade para demandar, retratação em juízo, etc(PASQUEL, p. 136-137 e 155 apud SOUZA, p. 68). Tais procedimentos fortalecem o juiz e os tribunais na tarefa de conduzir o processo ao seu fim imediato, impedindo toda forma de abuso perante a Justiça, pelo que Carlos Aurélio Mota de Souza compara o instituto do contempt of court ao nosso “atentado a dignidade da justiça”, cuja aplicação não deveria ficar limitada às poucas referências do Código, mas ser estendida a toda situação de real ofensa à ordem jurídica, ocorrente no processo (p. 68). Carlos Alberto Mota de Souza refere-se ainda às astreintes dos franceses, que têm caráter cominatório para assegurar o efetivo cumprimento de sentenças que impõem ao devedor uma prestação de fazer ou não fazer e que teriam sido acolhidas pelo nosso CPC de 1973 nos arts. 644, 645 e 932. E indaga se as astreintes seriam sanções contra o abuso do direito. Para Mendonça Lima se trata de aplicação do princípio da probidade, de alto sentido ético, visando a romper a resistência obstinada e talvez ímproba do devedor que, além de lesar o direito do credor, ainda zomba da autoridade do Estado, representado pelo Poder Judiciário, não cumprindo a obrigação que lhe foi imposta em sentença (LIMA, p. 347-356). Para Alcides Mendonça, se bem que as astreintes tenham caráter econômico, o seu alvo é ético, por ser meio coativo, contra atos de protelação do devedor, burlando a finalidade da justiça antes de atentar contra os direitos do credor exequente, como adversário. É o prestígio da justiça que está em jogo, pois se trata de assegurar aquilo que seus órgãos julgaram a favor do credor-exequente. O sentido, assim, é duplamente moral: resguarda a autoridade do Estado e protege os direitos subjetivos do credor (LIMA, p. 39).

Sintetiza Mota de Souza que largas são as discussões em torno da incidência do abuso do direito no campo processual, abrangendo as questões pré-processuais (litígio ou pretensão), as que ocorrem durante o processo (má-fé, deslealdade, temeridade), e as que irão repercutir além do 183

processo, através da coisa julgada (p. 69). Vicente Miranda afirma que “o chamado abuso do direito processual encontra vedação nos arts. 16, 17 e 18 de nosso Código de Processo”, admitindo assim consistir a litigância de má-fé em abuso de direito (MIRANDA, 1993, p. 188). Diante de tantas afirmações de tão renomados juristas da incidência da figura do abuso de direito no que diz respeito à litigância de má-fé, merece um aprofundamento o estudo da distinção entre os conceitos de abuso de direito e ilicitude, para demonstrarmos que esse último é o adequado para explicar a litigância de má-fé do Código de Processo Civil brasileiro. 6. A LITIGÂNCIA DE MÀ-FÉ COMO ILICITUDE Nos direitos brasileiro e português a litigância de má-fé assume contornos de ilicitude. Passemos a distinguir ilicitude (ou ilegalidade) e abuso de direito. Ripert assinalou a distinção pelas características de cada caso: “no abuso de direito é a intenção delitual que motiva o ato, enquanto a ilegalidade é o ato contrário à lei” (RIPERT, 1937, p. 230; GIORGIANNI, 1963; RESCIGNO, 1965, p. 205; NATOLI, 1958, p. 18 apud ROSAS, p.173). Veremos que na ilegalidade caracteriza-se a violação da lei, ao passo que no abuso do direito há exercício do direito, de modo anormal. Segundo Fernando Augusto Cunha de Sá, o comportamento do titular de certo direito subjetivo pode, esquematicamente, reconduzir-se a uma das três seguintes hipóteses: a) tal comportamento conforma-se quer com a estrutura do direito subjetivo exercido, isto é, com a sua forma, quer com o valor normativo que lhe está inerente; b) o comportamento do titular é, logo em si mesmo, contrário ou disforma da própria estrutura jurídico-formal do direito subjetivo em causa; c) o comportamento preenche na sua materialidade, in actu, a forma do direito subjetivo que se pretende exercer, mas do mesmo passo, rebela-se contra o sentido normativo interno de tal direito, isto é, contra o valor que lhe serve de fundamento jurídico. Só no primeiro caso se pode falar, com inteira correção, de exercício do direito. Porque se preenche a estrutura formal do direito e se respeita o valor que juridicamente funda o sentido desse direito, a atuação do titular integra concretamente um ato de exercício do mesmo direito, preenche faticamente a previsão normativa a que é feita seguir a qualificação jurídica de admissibilidade ou permissão em termos de direito subjetivo. Estamos, aí, no domínio da licitude, do ato que é válido e legítimo e que o é concretamente, como exercício de um direito. Na segunda hipótese, o comportamento do titular viola, opõe-se à própria estrutura do direito subjetivo, ultrapassa os limites formais de tal direito, excede-o na sua configuração jurídico-formal, atua sem direito, para lá do direito. Costuma-se , aqui, falar tradicionalmente de excesso de direito, de falta de direito, de carência de direito: quer dizer, a atuação do sujeito não é desde logo formalmente tida como admissível ou por permitida e não pode, assim, dizer-se com propriedade que se trata do exercício de um direito quando nem sequer há aparência do mesmo, quando a atuação se não reveste das características formais do direito subjetivo. Nessa hipótese enquadra-se o atuar em desacordo com a lei, a prática de ilegalidade ou ilicitude. No terceiro caso o comportamento do titular preenche a estrutura do direito subjetivo, mas que, pelos precisos termos em que aparece ou pela exata situação em que surge, a sua realidade material não cumpra aquele mesmo valor normativo que é o fundamento jurídico de tal direito subjetivo (CUNHA DE SÁ, 1997, p. 465-467)3. 3 Segundo Fernando Sá “aparentemente, no plano da forma, o titular atua no seu direito, move-se dentro dele, mas, na realidade, comportamento e direito opõem-se pelo concreto sentido que um e outro possuem diferentemente. A aparência estrutural do direito não é integrada pela sua intenção normativa; a forma está presente, mas o seu preciso valor está ausente, a realidade finge o direito: o comportamento do titular viola, no seu íntimo sentido, os limites materiais que para a qualificação jurídica do permitido em termos de direito subjetivo resultam do seu fundamento axiológico. E tão pouco se pode falar aí de exercício de um direito, pois que, à face deste mesmo fundamento, é ilegíti-

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Nesse último, fala-se de abuso de direito, sobre o qual já nos manifestamos. Dessa forma, tanto na segunda como na terceira hipótese se atua fora do direito, sem direito, porque se ultrapassaram os limites que a ordem jurídica assinala ao mesmo direito: só que, na segunda, foram excedidos os limites lógico-formais do direito, aqueles que direta e claramente resultam dos quadros estruturais da norma positiva, enquanto que, na terceira, são os limites axiológico-materiais do mesmo direito que a situação concreta desrespeita; mas, em ambos os casos, pois, resulta evidente a antijuridicidade própria da conduta que, num, é relativa à forma do direto subjetivo e, no outro, ao seu fundamento ou sentido valorativo (CUNHA DE SÁ, 1997, p. 468). Na segunda fala-se de ilegalidade ou, pura e simplesmente, de ilicitude; na terceira, de abuso de direito. Logo, pelo respectivo fundamento, as duas qualificações jurídicas se autonomizam: na ilegalidade ou ilícito formal, são os limites estruturais do direito que se ultrapassam; no abuso do direito, excedem-se os limites materiais desse direito, aquelas precisas fronteiras que lhe são marcadas pelo seu imanente sentido axiológico-jurídico (CUNHA DE SÁ, 1997, p. 468). Devemos concordar ainda com o autor, no sentido de que, mesmo que, porventura, se venha a concluir que deveriam ser idênticas as conseqüências de ambas as modalidades do antijurídico, bastaria a diversidade dos critérios por que se determinam para assegurar o interesse dogmático da distinção e a autonomia científica das respectivas qualificações jurídicas (CUNHA DE SÁ, 1997, p. 468-469). Assim, assiste razão a Fernando Augusto Cunha de Sá ao admitir que ao salientar a relação transcedental e unitária que existe entre o fundamento axiológico de um certo e determinado direito subjetivo e a estrutura formal desse mesmo direito (raciocínio que foi aplicado depois às diversas prerrogativas jurídicas individuais), fixou a autonomia dogmática da qualificação jurídica em termos de abuso do direito por referência ao elemento valorativo e a da qualificação jurídica em termos de ilicitude em conexão com o elemento estrutural (CUNHA DE SÁ, 1997, p. 633).

Em ambas as hipóteses, porém, se concluiu estar perante um comportamento que é materialmente estranho ao exercício do direito subjetivo ou da diversa prerrogativa jurídica individual: só que enquanto a ilicitude é, desde logo, direta e frontal violação dos limites formais do direito ou da prerrogativa em causa, já o ato abusivo finge a aparência estrutural desse mesmo direito ou prerrogativa, assim encobrindo a violação da sua intenção normativa (CUNHA DE SÁ, 1997, p. 633-634). Concluímos, pois, que quer a ilicitude, quer o abuso do direito, são em si mesmos, substancialmente, atuação sem direito, em carência do direito, apesar de naquela tratar-se da ultrapassagem dos limites lógico-formais de uma determinada prerrogativa individual e, nesta, do excesso ou desrespeito dos respectivos limites axiológico-materiais (CUNHA DE SÁ, 1997, p. 634). Diz-se que no ato ilícito stricto sensu, há subsunção do ato concreto ao preceito legal, pois há violação de um comando normativo. Por outro lado, no ato abusivo o sujeito age no exercício de seu direito, mas viola os valores que lhe fundamentam. No abuso de direito há a presença da aparência de direito, fato que justifica sua singularidade e consequentemente sua autonomia frente ao ato ilícito (MODENESI, 2013). Reconhece-se que a doutrina do abuso de direito se encontra em sintonia com a mudança de paradigma operada no ordenamento, a qual se dirige à superação do ideal de completude, tão defendido pelo positivismo jurídico. Admite-se portanto que o direito positivo não é capaz de prever de forma exaustiva todas as condutas indesejadas, que devem ser repelidas do ordenamento (CARPENA in TEPEDINO, 2007, p. 407). mo o comportamento concreto do titular. Aliás, a nossa própria lei expressamente refere o abuso ao excesso manifesto dos limites do direito. Mas poderá haver responsabilidade pelo exercício danoso do direito próprio, quando o titular, permanecendo por hipótese dentro dos limites de tal direito, escolha entre os diversos modos possíveis de exercício, precisamente aquele que poderia causar dano ? No sentido afirmativo, quando a escolha do modo mais gravoso fosse intencional, pronunciava-se o Landrecht prussiano de 1794, 1ª parte, tít. 6º, §§ 36º e 37º. Todavia, o problema só se colocaria aí com autonomia quando a escolha não fosse dolosa; de resto, tratar-se-ia de encontrar a solução no caso concreto que decorresse do critério geral adotado (Idem, p. 467).

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Quanto às sanções (CUNHA DE SÁ, 1997, p. 634-635)4 aplicáveis a ambas poderão ser idênticas, sem qualquer prejuízo para a autonomia conceitual das mesmas. No mesmo sentido Taruffo, para quem da idéia generalíssima de abuso de direito se pode tirar algumas sugestões úteis para individualizar a natureza do abuso do processo. Uma primeira indicação é que se pode abusar de qualquer coisa de que se pode fazer uso legitimamente, se fossem observadas algumas regras de correção. Em outros termos, se pode abusar de uma situação subjetiva da qual se é titular, ou seja, de um direito, de um poder, de uma faculdade, etc (TARUFFO, 1995, p. 435-457). Exemplifica Taruffo: se Tizio não tem um direito ou um poder, não se pode propriamente dizer que dele abusa; mas se poderá dizer que ele viola a norma, que usurpa uma posição, que gaba-se, ou qualquer outra coisa, mas não que abusa de algo. Em substância, se pode abusar do que se tem direito de fazer, não daquilo que não se pode fazer. Se se faz o que não pode fazer estaremos diante de um comportamento ilegal, mas essa ilegalidade não é propriamente definível como abuso. Emerge assim, dentro da generalíssima categoria dos comportamentos ilícitos, uma distinção de ordem subjetiva: só quem é titular de uma situação subjetiva ativa pode abusar, entretanto, quem assim atua comete ilícito de diversas naturezas, não reconduzíveis ao conceito de abuso. Essa distinção pode ser válida mesmo no âmbito processual: se Tizio tem o direito, o poder ou a faculdade de praticar um ato do processo, pode servir-se de modo correto ou impróprio e de forma abusiva. Se porém Tizio não tem direito de praticar um certo ato do processo e todavia o pratica, não se pode dizer que comete um abuso: se dirá, porém, que ele não está legitimado a praticar aquele ato, e que assim o ato é nulo, inválido, anormal, inadmissível, ou outra coisa. A sentença proferida por quem não é juiz não representa um abuso cometido pela sua pronúncia, mas qualquer coisa que não existe no âmbito dos fenômenos juridicamente relevantes. A demanda proposta por quem não tem legitimidade para agir não representa um abuso, mas uma banal hipótese de carência de legitimação ativa. Assim, não é o abuso cada violação da regra processual, mas somente o exercício impróprio, incorreto ou distorcido de uma situação processual ativa de que é titular o autor do comportamento abusivo (TARUFFO, 1995, p. 435-457).

Ainda seguindo essa linha, Alberto dos Reis, que para justificar a penalização da litigância de má-fé admite que uma coisa é o direito abstrato de ação ou de defesa, outra o direito concreto de exercer atividade processual. O primeiro não tem limites; é um direito inerente à personalidade humana. O segundo sofre limitações, impostas pela ordem jurídica; e uma das limitações traduz-se nesta exigência de ordem moral: é necessário que o litigante esteja de boa fé ou suponha ter razão. Portanto , revelada a má fé, torna-se patente que ele exerceu atividade ilícita. Há , em tal caso, segundo alguns, abuso de direito; segundo o autor, parece mais rigoroso dizer que não há direito. Esta construção não colide com o princípio de que é lícito intentar ações ou deduzir defesas objetivamente infundadas, porque o princípio deve entender-se nestes termos: contanto que a parte esteja convencida de que lhe assiste razão (REIS, p. 261). 4 Segundo FERNANDO SÁ se este preciso fundamento permite autonomizar dogmaticamente as duas qualificações jurídicas no âmbito da contraditoriedade a direito, já aquela identidade substancial leva a aceitar a possibilidade de serem as mesmas, no caso concreto, as sanções com que o ordenamento jurídico reprima ou previna o ato ilícito e o ato abusivo. E conclui: “talvez até para salientar esta conclusão é que, como se viu, haja quem prefira falar a tal propósito, respectivamente, de ilicitude formal e de ilicitude material – a diferente adjetivação deixando bem claro tratar-se da mesma realidade substantiva que por ela é qualificada. Por isso também se teve logo oportunidade de pôr em relevo que a autonomia científica dos conceitos de ilicitude e de abuso de direito, assim baseada na diferença dos respectivos fundamentos ou critérios por que foram individualizados, não seria prejudicada por uma presumível convergência de efeitos sancionatórios” ( FERNANDO CUNHA DE SÁ, Abuso do Direito ( reimpressão da edição de 1973), Livraria Almedina, Coimbra, 1997, p. 634-635 ).

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É evidente que em alguns sistemas jurídicos nos quais as hipóteses de litigância de má-fé não se apresentam taxativamente indicadas e acompanhadas das respectivas sanções, far-se-á necessário o uso da figura do abuso de direito. Numa simples leitura do art. 17 do CPC brasileiro observamos que ele indica taxativamente, em seus incisos, os casos em que o autor, réu ou interveniente praticam condutas processualmente ilícitas, não tendo sentido a utilização da figura do abuso de direito processual para qualificá-las juridicamente. Não tem qualquer direito àquela forma de atuar (e portanto não se pode abusar daquilo que não se tem) o que litiga de má-fé no processo civil brasileiro, que fica sujeito às sanções previstas no mesmo ordenamento. O mesmo ocorre no direito português, onde o artigo 456º, nº 2 dispõe que litigante de má-fé é o que, com dolo ou negligência grave, pratica as condutas indicadas nas letras a) a d) , ficando sujeito às sanções previstas no nº 1 (multa e indenização). Nesse caso, não há que se socorrer da figura do abuso de direito, pois aquele que age nos moldes do art. 456º nº 2 pratica ilicitude ali prevista, devendo ser punido com as sanções indicadas no referido nº 1. Concorda conosco Yussef Cahali, para quem as disposições dos artigos 16 a 18 do CPC brasileiro configuram uma espécie de ilícito em que o elemento material consiste no desenvolvimento de uma atividade processual, sendo o ilícito, que causa dano a uma parte, fonte de obrigação para a parte a que é imputável (CAHALI, 1978, p. 38). 7. CONCLUSÃO Dessa forma, equivocam-se os doutrinadores brasileiros que afirmam que o litigante que pratica as condutas tipificadas como litigância de má-fé no art. 17, com sanções no art. 18, ambos do Código de Processo Civil, estariam praticando abuso de direito. Trata-se na verdade de ilicitude (ato ilícito stricto sensu, para alguns). Apesar de ambos se situarem no campo da antijuridicidade, a distinção se faz necessária. REFERÊNCIAS ALVIM, Arruda. Código de Processo Civil Comentado, vol. II, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1975. CAHALI, Yussef Sahid. Responsabilidade do litigante temerário pelo dano processual. Honorários Advocatícios. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1978. CARPENA, Heloísa. O abuso do direito no Código de 2002. Relativização dos direitos na ótica civil-constitucional. TEPEDINO, Gustavo (coord). A parte geral do novo Código Civil: Estudos na Perspectiva Civil-Constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2007. CASTRO FILHO, José Olímpio de. Abuso do direito no processo civil, ed. rev. e atual., Rio de Janeiro: Forense, 1959. CORDEIRO, António Manuel da Rocha e. Da boa-fé no Direito Civil. Coimbra; Almedina, 4ª reimpressão, 2011. DIAS, Ronaldo Brêtas C. Fraude no processo civil, Belo Horizonte: Del Rey, 1998. LEÃO, Adroaldo. O litigante de má-fé, 2ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 1986. LIMA, Alcides de Mendonça. Abuso do direito de demandar. Revista de Processo, n.19, São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, jul/set 1980. LIMA, Alcides de Mendonça. Astreintes, Enc. Saraiva do Direito, vol 8. LIMA, Alcides de Mendonça. O princípio da probidade no código de processo civil brasileiro, Revista de Processo, n. 16, out/dez 1979, São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 1979. 187

MARQUES, Frederico. Instituições de Direito Processual Civil. Rio de Janeiro:Forense, 1958. MIRANDA, Pontes de. Comentário ao Código de Processo Civil.Tomo I, 2ª ed., Rio de Janeiro: Revista Forense, 1958. MIRANDA, Pontes de. Tratado de Direito Privado. Parte Geral, Tomo II, 3ª ed, Rio de Janeiro: Editor Borsoi, 1970. MIRANDA, Pontes de. Tratado de Direito Privado. Parte Especial, Tomo LIII, 2ª ed., Rio de Janeiro: Editor Borsoi, 1966. MIRANDA, Vicente. Poderes do juiz no processo civil brasileiro. São Paulo: Saraiva, 1993. MODENESI, Pedro. A relação entre o abuso do direito e a boa-fé objetiva. Consulta no site http:// www.estig.ipbeja.pt/~ac_direito/Modenesi.pdf em 31.01.2013. MOREIRA, José Carlos Barbosa. Responsabilidade das partes por dano processual. Revista de Processo, n. 10, abr/jun. 1983, São Paulo: Editora RT, 1983. REIS, Alberto dos. Código de processo civil anotado, vol II, 3ª ed, reimpressão, Coimbra: Coimbra Editora, 1981. ROSAS, Roberto. Dano processual. Rev. do Tribunal Federal de Recursos, n. 145, maio 1987, Editora Lex, 1987. SÁ, Fernando Cunha de. Abuso do Direito (reimpressão da edição de 1973), Coimbra: Livraria Almedina, 1997. SOUZA, Carlos Aurélio Mota de. Poderes éticos do juiz – a igualdade das partes e a repressão ao abuso no processo. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 1987. TARUFFO, Michele. Elementi per una definizione di “abuso del processo”. Diritto Privato, III, L’abuso del diritto, Padova: Cedam, 1998. TEPEDINO, Gustavo; et al. Código interpretado conforme a Constituição da República. Rio de Janeiro: Renovar, 2007. ZANI, Gino. La mala fede nel processo civile, Società Editrice Del “Foro Italiano”, Roma, 1931-IX. ZEISS, Walter. El dolo procesal – aporte a la precisación teorica de una prohibicion del dolo en el proceso de cognicion civilistico. Trad. Y presentación de Tomas A.Banzhaf, Buenos Aires: Ediciones juridicas Europa-America,1979.

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ACESSO À JUSTIÇA PARA PESSOAS COM DEFICIÊNCIA: NOVOS PARADIGMAS CONSTITUCIONAIS1

Roberto Wanderley Nogueira2

1. INTRODUÇÃO O presente artigo tem o propósito de descrever de modo preciso algumas das diversas variáveis cognitivas do conceito de acessibilidade, à luz das novas diretrizes da Inclusão Social das Pessoas com Deficiência (PcD), as quais foram cristalizadas, no país, por norma convencional assinada em Nova Iorque com status de emenda à Constituição da República. Dentre as inúmeras abordagens sobre acessibilidade consolidadas pelo caráter analítico-exploratório do Artigo 9, da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (Decreto-Legislativo nº 186/2008; Decreto Federal nº 6949/2009), perpassa a ideia fundamental do Acesso à Justiça sem o que as demais variáveis da acessibilidade podem sofrer comprometimento, depreciação ou simples descaso preconceituoso que suscita as diversas formas de discriminação que a Norma Convencional intenta combater e erradicar3. Aliás, o preconceito — uma forma de barreira atitudinal — é talvez a mais persistente hipótese de agravo aos direitos “da maior minoria do Planeta”, conforme uma já notabilizada locução atribuída ao Vice-Presidente da República do Equador, Lenín Moreno, ele mesmo Pessoa com Deficiência (cadeirante). O preconceito, por isso mesmo, também se insinua sobre as estruturas 1  O artigo tem origem na Palestra apresentada pelo autor (http://lattes.cnpq.br/0179326544123326) à V Conferência RIADIS no Seminário Internacional ¨Latino América Acessibible y sin Barreiras”, sobre o tema: “Acesso à Justiça à Luz da Convenção de Nova Iorque”. Quito, Equador, 10 de novembro de 2012. 2 Doutor em Direito Público. Professor adjunto da Faculdade de Direito do Recife (UFPE) e da Universidade Católica de Pernambuco. Juiz Federal em Recife 3  Um movimento progressivo em escala planetária vem sendo desenvolvido há mais de duas décadas, a partir de uma ação mundial sob a firme orientação da ONU e das entidades que congregam as pessoas com deficiência em torno do ideal de inclusão social em igualdade de condições. Esses esforços resultaram, a duras penas, no que podemos convencionar como a “era dos direitos” dessas mesmas pessoas, as quais, estando em toda parte e que pela razão de alguma limitação física, intelectual, psicossocial, sensorial ou múltipla, acabavam acreditando, ingenuamente, que eram mesmo, em muitos casos, “incapazes” (com aspas), mas não eram. E realmente não são! A pessoa é um todo muitíssimo complexo e, ao lado das próprias limitações, coexistem outras tantas habilidades e competências que não devem ser diminuídas ou desprezadas, pois tudo isso é útil à cidadania, ao país e à sociedade. É fundamental à afirmação da cidadania de cada qual. A propósito, esse registro vale a todos.

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e rotinas do Poder Judiciário Latino-americano. Os modelos que dispomos para fazer Justiça aos casos concretos — que vão do modelo empírico-primitivo, passando pelo modelo tecnoburocrático na direção de um modelo democrático contemporâneo (ZAFFARONI, 1995) — sofrem os revezes do próprio Sistema Político no qual são gestados e os resultados desse cenário podem servir de base, e frequentemente servem, a construções alopoiéticas (no sentido da moderna filosofia jurídica alemã), quase sempre descoladas de sua razão de ser, ou seja: a Justiça! Tais problemas, vistos aqui em gênero, se afirmam e evoluem solenemente em face de sociedades ainda incipientes, cujos contingentes humanos são desprovidos da plena cidadania e as pessoas se flagram numa insuperável incapacidade de avançar no processo de reivindicação social, um paradigma da contemporaneidade. A Rede Latino-Americana de Organizações Não Governamentais de Pessoas com Deficiência e suas Famílias (RIADIS), em sua notável perspectiva funcional e atuação nas Américas, vem ao encontro desses objetivos emancipatórios, sobretudo porque, em síntese, atua para fortalecer a participação das Pessoas com Deficiência nas diversas organizações da sociedade que lidam com Direitos Humanos e nos setores de Governo da região das Américas. Esforcemo-nos todos por reconhecer o preconceito como uma realidade interna e externa, qualquer que seja, provenha de onde ou de quem provier, até de nós mesmos, e às demais barreiras de atitude, para proscrevê-los de nossos cenários sociais (idem, quanto às práticas/barreiras de atitude que dele emanam). Pois, onde houver barreiras de atitude há discriminação e preconceito. E onde houver discriminação, traiçoeira da convivência social mesmo em nossos próprios territórios, há injustiça social. É muito lamentável admitir que esse sentimento ainda se encontre presente nos corações e mentes de muita gente, com ou sem deficiência, sobretudo em países de economia periférica em que há um predomínio das grandes desigualdades sociais, além de desinformação sistemática e de corrupção endêmica em maior ou menor grau de verificação e intensidade. Desse modo, toda barreira atitudinal faz mal e acarreta dissabores os quais, mais cedo do que tarde, assim individual quanto coletivamente, acabam reverberando contra quem discrimina ou é preconceituoso, no sentido de Ortega-Y-Gasset — para quem todo egoísmo é labiríntico! (ORTEGA Y GASSET, 1987, p. 153). O Acesso à Justiça, realmente, é instrumento de garantir sua eliminação: dos preconceitos e de toda forma de embarreiramento ao livre e pleno exercício da cidadania das PcD, em particular. Por isso, perpassa o reconhecimento e a execução de todos os demais direitos relacionados. 2. MUITAS BARREIRAS ATITUDINAIS, UMA SÓ DIRETIVA Das barreiras atitudinais podem-se alinhavar muitas formas, não importa se expressas ou veladas, estas últimas conforme mais comumente acontece nas sociedades abertas. Essa evidência universal, atualmente, corrobora uma outra observação, em nosso caso participativa e também evidente, baseada no comodismo ou na intolerância, de que por interferência das diversas formas de discriminação (máxime os preconceitos) a sociedade acaba aceitando, por omissão, a exclusão das pessoas com deficiência dos benefícios dessa mesma sociedade. E abrem mão do direito de demandar, em face de barreiras burocráticas que se interpõe idiopaticamente à sua frente. Para muitos, é menos vexatório deixar de exercer os próprios direitos do que serem submetidos a mais discriminação, agora por parte do próprio Estado ou daqueles atores que mais detêm a responsabilidade de os garantir pela razão do próprio ofício. Esse quadro se verifica presente não apenas nas repartições do Poder Judiciário, mas também nos diversos setores do Poder Executivo — sobretudo onde não haja sido constituído serviço próprio da área da inclusão —, na atividade policial, nos ambientes penitenciários e no serviço fiscal. Com efeito, não há equilíbrio entre os contendores, que é o suporte de validade empírica para toda litigiosidade tida como civilizada, quando uma das partes seja economicamente desassistida, ou quando as suas demandas não possam ser sustentadas mediante outras formas instrumentais constituídas pelo Estado, a exemplo de núcleos de Defensoria Pública realmente eficazes e aparelhadas, gratuidade de encargos e custos processuais e facilidades para aquisição de toda sorte de tecnologia assistiva sem a qual alguém com alguma deficiência não apresente condições 190

materiais de litigar de igual para igual, e postular desse modo os seus direitos4. Do ponto de vista jurídico, parece elementar que a condição pessoal de cada um não deve afetar o circuito de seus direitos subjetivos e nem mesmo restringir-lhe o acesso a eles, à sua efetividade. Assim, não basta reconhecer os direitos. É fundamental que se operem as condições sem as quais esses direitos não serão ordinariamente alcançados pelos seus titulares. Importante considerar que a igualdade jurídica, hoje, não importa em uma mera abstração, ou em uma simples ficção legal, mas se traduz em um exercício de comprometimento com a Justiça para todos, sob o império da Lei (Equal Justice, under Law). Igualdade formal sem igualdade real é, pois, desigualdade e isto já não pode ser admitido concretamente nas sociedades contemporâneas, regidas pelo império constitucionalizado e universal dos Direitos Humanos. 3. AS GRANDES BARREIRAS ATITUDINAIS Corrupção e ignorância são, seguramente, as maiores barreiras de atitude que as Pessoas com Deficiência têm de enfrentar em nossa quadra, sobretudo nas sociedades de economia periférica, caso da América Latina. E é exatamente o que nós, pessoas com deficiência, vamos fazer de um modo persistente e crescente até que a ideia do “desenho universal” (Artigo 2, parte final, da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência) deixe de ser uma utopia entre nós5. Com efeito, “a maior arma do opressor é a mente do oprimido”, teria afirmado o revolucionário sul-africano Steve Biko, nos anos 60, ainda quando da luta contra o apartheid, afinal superado6. A propósito, no Brasil vivenciamos, no passado, um abolicionismo tardio. Fomos talvez a última Nação do Planeta a abolir a escravidão. Queremos viver, agora, um segundo abolicionismo tardio que consiste, justamente, na emancipação política, social, moral e econômica das pessoas com deficiência. Isto representa igualdade para todos, conforme o modelo do “desenho universal” e o conceito contemporâneo de “maior parte” política que não exclui ninguém e, portanto, abandona de certo modo a retrógrada percepção liberal de que a maioria é a “metade mais um” e não o todo de um conjunto identificado por uma só natureza, para aceitar que essa maior parte é o todo das pessoas, todo que deve ser contemplado em todas as ações políticas e sociais, sobretudo na Administração da Justiça. Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência no Brasil Assinada em 2006, foi internalizada no Brasil pelo Decreto-Legislativo 186/2008, na forma do artigo 5º, parágrafo 3º, da Constituição Federal, hipótese que a configura como norma constitucional — equivalente a uma emenda constitucional. Após sua entrada em vigor pela forma suprema antes descrita, eis que no ano seguinte, o Presidente Lula assinou o Decreto 6949/2009, promulgando-a, pelo que se estabeleceu o início de sua eficácia plena no território nacional. Tornou-se exigível tecnicamente no plano interno. Tragicamente, no entanto, o Poder Judiciário brasileiro não se aparelhou para recepcionar a supremacia da Norma Convencional em foco e os processos continuam a ser tocados como se nenhuma transformação de fundo tivesse ocorrido. Trata-se de uma situação, convenhamos, desproposital que conspira contra a própria Constituição da República. Conforme a norma convencional suscite o início da “era dos direitos” das pessoas com deficiência em âmbito mundial, o Decreto de promulgação antes aludido traduz a “era dos direitos” 4  Estima-se que na América Latina existem mais de 100 milhões de pessoas com deficiência (só no Brasil, o Censo Oficial 2010-IBGE projeta um contingente de aproximadamente ¼ da população de 194 milhões de habitantes), sendo que mais de 80% desse grupo não desprezível das populações latino-americanas sofrem também os efeitos perversos da exclusão econômica, resultado de violações sociais sistemáticas que se protraem no tempo sem solução de continuidade. 5  Nos termos da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, assinada pelos Estados Partes em Nova Iorque: “Desenho universal” significa a concepção de produtos, ambientes, programas e serviços a serem usados, na maior medida possível, por todas as pessoas, sem necessidade de adaptação ou projeto específico. O “desenho universal” não excluirá as ajudas técnicas para grupos específicos de pessoas com deficiência, quando necessárias. (Artigo 2, parte final) 6 http://giovanimiguez.com/files/noticia/20120811192037_midia_e_conformismo.pdf (acesso em 13/09/2012)

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das pessoas com deficiência no Brasil, que ainda está por acontecer, em face das circunstâncias antes aludidas. Há de se reconhecer, no entanto, o caráter histórico, emancipatório e de Justiça desse empenho de Governo. Ninguém há de tirar-lhe esse mérito do qual todos aqueles que sofremos discriminação em razão de deficiência reconhecemos. Todavia, a garantia de Acesso à Justiça por parte das Pessoas com Deficiência vai muito além de um simples reconhecimento público sobre a validade jurídica de determinada disciplina legal. Conforme acentuado, há uma distância entre o que está posto normativamente e o mundo real, o plano dos acontecimentos em que os direitos deveriam estar sendo plenamente gerenciados também positivamente. O fato incontestável é que a norma convencional, incorporada constitucionalmente em toda sua extensão e sem ressalvas, inclusive no que se refere ao seu Protocolo Facultativo, é autoaplicável, naquilo que comportar, traduz cláusula pétrea, por se tratar de matéria que envolve a Doutrina dos Direitos Humanos e foi aprovada com quorum qualificado por ambas as Casas Legislativas — Senado Federal e Câmara dos Deputados —, e é também insuscetível de revisão constitucional (derivada). Deveria ser comumente aplicada pelos Juízes e Tribunais sem titubeios, reticências ou desconhecimentos de causa, tudo isso que revela mais discriminação, qualificada e agravada pelos seus atributos funcionais específicos. Sobre o Protocolo Facultativo, também incorporado na Constituição Federal brasileira, entende-se que por sua subscrição o país reconhece a competência do Comitê sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência para receber e considerar comunicações submetidas por pessoas ou grupos de pessoas, ou em nome delas, sujeitos à sua jurisdição, alegando serem vítimas de violação das disposições da Convenção por um Estado-parte (Artigo 1, do Protocolo Facultativo). Isto significa, na prática, que as matérias concernentes à solução de controvérsias que versem à fiel aplicação da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência podem ser discutidas ou rediscutidas para além da Ordem Jurídica interna. O Supremo Tribunal Federal, nesses casos, não detém, portanto, a última palavra. Pela norma convencional, a alteridade passou a fundamentar mais ostensivamente as ações do poder público e também as relações do setor privado de uma sociedade aberta. Isso explica o interesse social crescente pelos negócios de Estado e pela construção social como um todo, aclara o despertar das dormitâncias da cidadania em países ainda submetidos às desigualdades sociais mais agudas e sinalizam para um futuro de mais prosperidade para todos. Todavia, ainda estamos nos construindo a partir das bases. Tudo ainda parece muito incipiente, distante de concretização sistemática. Os casos isolados bem sucedidos acabam sendo tomados como excepcionalidades, frequentemente exitosos em face da sensibilidade pessoal de alguns ou da pressão social e servem, por isso mesmo, como confirmação da regra geral omissiva da qual se reporta neste texto7. 4. DISTÂNCIA ENTRE A FORMA E A CONCRETUDE Temos lei, certamente, mas no Brasil ainda se vive como se a lei não existisse, ou como se ela apenas funcionasse para poucos. O Estado, por meio do Poder Executivo, não parece suficientemente aparelhado para garantir a todos o recurso ao pleno exercício de seus direitos (Acesso à Justiça). Enquanto isso, o Poder Judiciário brasileiro, engalfinhado em questões prosaicas e corporativistas, frequentemente vaidosas, não raro vencimentais, acaba perdendo a chance de realmente distribuir Justiça aos brasileiros em qualidade e quantidade que a justifiquem politicamente. E 7  O Conselho Nacional de Justiça, órgão integrante do Poder Judiciário do Brasil, encarregado de controlar a atuação administrativa e financeira de todos os seus elementos integrativos (Juízes e Tribunais), conforme os termos do art. 103-B, da Constituição Federal, considerou pela imposição de comando gerencial no sentido da produção de estudos e providências quanto à acessibilidade de todos os recintos judiciários para cumprimento em até 120 dias (cf.: Pedido de Providências n° 1236). Essa deliberação, sobre ter sido compreendida, na origem e na destinação, como viés de “rota acessível”, tampouco foi inteiramente cumprida até os dias que correm. E mais não se tem debatido a respeito. Chegou-se a um ponto de inflexão tal que só a presença de pessoal qualificado pela vivência, pela condição e pelo comprometimento será capaz de oferecer resposta adequada, e mesmo assim veladamente resistida.

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não há democracia efetiva — que mede com participação — sem que se compreenda a existência de um Poder Judiciário que realmente funcione e que sobrepaire acima de todas as críticas sociais e desconfianças públicas. Nada obstante, o que vemos é que os Tribunais brasileiros acabam sendo, ainda, estruturas como que feudais, pesadas, burocratizantes, territórios de um passado que somente nos deixará quando forem reoxigenadas as suas composições sob o crivo da meritocracia real e da participação popular. Ajudará muitíssimo se as populações vierem a compreender a necessidade de transformação institucional para os cenários judiciais em nossa Pátria, a começar pela reciclagem pedagógica de seus quadros. A propósito, poucos são os Juízes que já ouviram falar na Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e, quando isso acontece, mediante uma tomada de consciência mais ou menos relevante e séria, se não se envergonham do quanto desconheciam em detrimento dos destinatários da Ordem Jurídica, a quem devem servir, e do feixe de suas próprias responsabilidades constitucionais, às quais estão submetidos funcionalmente, insistem em fazer de contas que essa disciplina simplesmente não existe, ou não se lhes parece tão relevante em face do círculo de giz em que se encontram represados, escravizados pelo próprio Poder que representam. Nesse contexto, as carreiras judiciais encontram terreno fértil às defecções de toda ordem, porque fica estabelecido um dilema funcional crudelíssimo e também antissocial: manter a independência funcional e abrir mão da possibilidade de ascender nas carreiras, ou tornar-se moralmente laxista para aspirar às suas promoções. Com efeito, nomenclaturas, institutos, conceitos diversos estão seguramente abrogados pela norma convencional, após sua internalização com status constitucional no país. Mas, para que a tanto se reconheça é necessário um esforço hermenêutico de atualização sistemática que tem a ver com o modo de como se haverá de ler o conjunto ressaltado das disposições legais preexistentes, inclusive aquelas constantes do corpo da própria Constituição Federal, ainda não revisada para isso, e o que está regulado hodiernamente, mas que poucos dominam, é lamentável. Essa atitude vale também para boa medida dos quadros do Ministério Público, inclusive aqueles que cuidam dos interesses coletivos ou difusos, cuja atuação, em tese, resulta em maior volume de atenção e cuidado para as questões de fundamento constitucional. Chega-se ao ponto de passar ao desaviso uma regra processual de proteção da cidadania, inscrita no Artigo 5º, da Lei 7853/1989, que exige a participação efetiva do Ministério Público, enquanto fiscal da lei (custos legis), em todas as ações relativas à questão dos direitos das pessoas com deficiência, qualquer que seja esse direito, qualquer que seja a pessoa, desde que relacionados, um e outra, com a deficiência8.[9] Também o Acesso à Justiça está, de um modo especial, tratado na Convenção de Nova Iorque, mas, se contemplamos as reais possibilidades desse enfrentamento, nos damos conta que há um gap tremendo entre o que está positivado e o que de fato acontece em termos de possibilidades concretas de execução dos postulados da Ordem Jurídica estabelecida, do atendimento aos direitos subjetivos e de sua efetividade. É desse modo que a igualdade de condições preconizada pela Convenção, além da capacitação de Juízes e servidores, nos termos do Artigo 13, ítens 1 e 2, da norma convencional, tem sido solenemente negligenciada pelas repartições de Justiça no Brasil, inclusive no que se refere à linguagem empregada em seus sistemas9. Sobre isso, o processo judicial eletrônico, por exemplo, que exige interoperabilidade comunicacional, mesmo em razão de disposições processuais aplicáveis, simplesmente não pode ser lido pelas pessoas cegas, dado que esse processo se materializa por meio de dados imagéticos os quais, sem o auxílio da ferramenta da audiodescrição ou da ledoria (Mesas de Atermação e consulta) sem custo adicional para a parte, simplesmente não consegue conhecer e avaliar. Essa característica estranha do processo judicial eletrônico no Brasil — de não dispor de 8  Art. 5º, Lei nº 7853/89 - O Ministério Público intervirá obrigatoriamente nas ações públicas, coletivas ou individuais, em que se discutam interesses relacionados à deficiência das pessoas. 9  Artigo 13 – Acesso à Justiça: 1. Os Estados Partes assegurarão o efetivo acesso das pessoas com deficiência à Justiça, em igualdade de condições com as demais pessoas, inclusive mediante a provisão de adaptações processuais adequadas à idade, a fim de facilitar o efetivo papel das Pessoas com Deficiência como participantes diretos ou indiretos, inclusive como testemunhas, em todos os procedimentos jurídicos, tais como investigações e outras etapas preliminares. 2. A fim de assegurar às Pessoas com Deficiência o efetivo acesso à Justiça, os Estados-partes promoverão a capacitação apropriada daqueles que trabalham na área de Administração da Justiça, inclusive a polícia e os funcionários do sistema penitenciário.

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tecnologia assistiva satisfatória, talvez nenhuma, para garantir o acesso de todos aos seus recursos —, inaugurado às pressas sobejamente por motivações em grande parte midiáticas, importa em que uma pessoa cega possa vir a ser condenada sem saber do que se trate a imputação que lhe é feita no processo de tipo eletrônico sem acessibilidade comunicacional. E sem a mínima acessibilidade comunicacional, ademais, as pessoas surdas falantes da Língua Brasileira de Sinais (Libras) sequer têm acesso, por intermédio dessa que é também uma língua oficial no país, aos principais documentos legais como a Constituição Federal e a própria Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, em mídia eletrônica (DVD) que possa ser ordinariamente distribuída, país afora, juntamente com outras mídias convencionais já em uso sistemático, comercialmente ou não. O mesmo se diga quanto às pessoas surdas usuárias do vernáculo, igualmente desassistidas, em geral, quanto às soluções de acessibilidade de que precisam. A comunicação é fundamental para que o Acesso à Justiça se planifique entre as Pessoas com Deficiência de tipo sensorial (RESENDE in RESENDE; VITAL, 2008, p. 68). Paradoxalmente, falta-nos, ainda, uma lei que torne a tudo isso obrigatório, sob risco de penalidade severa e eficaz, e que conjuntura ou ideologia alguma de momento possa sentir-se na mais remota legitimidade para objetar tudo isso, acesso a todos ao processo e as rotinas da Justiça em seu país ou fora dele. Vale mais à Nação o direito natural de conhecer-se a si mesma e propiciar a comunicação efetiva entre os seus filhos. Vale mais a humanidade realizar-se enquanto tal. Por outro lado, para a imensa maioria dos Juízes e dos servidores de Justiça no Brasil — digo-o, sem receio, assumindo, embora, a leviandade de não dispor de uma pesquisa social aplicada quanto ao enredo —, mas com base em minhas observações participativas de trinta anos de judicatura inteiramente engajada e crítica do corporativismo do setor, acessibilidade não passa de “rota acessível”, quando muito. Em termos gerais e mesmo que venha a ocorrer uma ou outra recomendação de gestão positiva a respeito do assunto, inclusive da parte do Conselho Nacional de Justiça, órgão que exerce o controle externo do Poder Judiciário, mas que não se ocupa das atividades de mesmo viés da Suprema Corte e de seus Ministros, não se tem noção do que acessibilidade em meio judicial quer significar em toda sua extensão! Ora, o simples implemento da mudança dos sistemas processuais em direção a uma mídia tecnologicamente sofisticada em sociedades como as da América Latina ignora solenemente o estado de desigualdades sociais em que ainda vivemos. E agrava o estado de embarreiramento das pessoas mais economicamente desassistidas quanto ao Acesso à Justiça nessas sociedades. Tratase de um dilema paroxístico que pede reflexão, porque, enquanto os sistemas processuais estão migrando, as pessoas menos felicitadas estão padecendo mais exclusão. As Pessoas com Deficiência são parte desse processo e formam um contingente dos mais vulneráveis. Cheguei a fazer consulta sobre isso ao Conselho Nacional de Justiça, remetendo expediente escrito a um de seus Conselheiros, lancei reptos em Listas de Discussão de Magistrados e também nas Redes Sociais, mas obtive o silêncio como resposta. É como se o Estado brasileiro estivesse mais interessado em construir molduras, montar cenários, mas sem conteúdos realmente consistentes e, sobretudo, de acordo com a Constituição Federal que, em nosso caso, incorporou a Convenção de Nova Iorque, sem ressalvas, inclusive quanto ao seu Protocolo Facultativo. Cumpre destacar, outrossim, que todos os Tribunais Superiores do Brasil investiram largamente para migrar do formato processual do papel (mídia tradicional) ao meio eletrônico (mídia moderna), sem cuidar da acessibilidade tão importante quanto inadiável, porque diferentemente importa em violar o direito do cidadão, qualquer que seja ele, de se socorrer da Administração da Justiça para obter o cumprimento de seus direitos por parte de terceiros e até do próprio Estado. Adicionalmente, os sistemas processuais eletronicamente disponibilizados restringem o potencial de armazenamento de dados, o que traduz situação que controverte ao princípio constitucional do Acesso à Justiça para todo e qualquer cidadão. Toda limitação ao direito de produzir defesa útil aos demandantes em geral é injustificável do ponto de vista da Doutrina dos Direitos Humanos. E quanto ao exercício dos direitos das PcD, quando questionados juridicamente, eventual interpretação restritiva constitui vício epistemológico insanável, cabendo, por isso, ser aproveitados ao máximo possível até o ponto de equalização técnica, que é a igualdade real. Tampouco o Poder Judiciário tem sido sensível à constituição de quadros funcionais compostos, em escala significativa, de PcD. Há quem ainda considere, absurdamente, que pessoas 194

cegas, por exemplo, não podem ser Juízes. Juízes que, nada obstante, superam as barreiras de atitude que têm de enfrentar em sua vida pessoal e profissional, acabam sendo excluídos das promoções na carreira e não compartilham dos ciclos discursivos e nem compõem a pauta dialógica das Cortes, limitando-se a um exercício como que burocrático de suas funções. Não há espaços para a expansão de suas atividades. Um certo ostracismo ao mesmo tempo cínico e cruel se estabelece e mesmo entre os mais jovens, sucede que eles já sabem dos estigmas daqueles, motivo pelo qual os evitam também. É um cenário absurdamente kafkiano para quem, sendo PcD, tenha superado os desafios do embarreiramento atitudinal, logrado galgar posições institucionais — um cargo de Juiz, por exemplo —, sobretudo nos modelos tecnoburocráticos, cujo acesso se faz por meio de seleção pública, mas se flagram a si mesmos impotentes de evoluir por outras razões jamais confessadas, mas que se exprimem como preconceito e discriminação. O curioso é que até as normas legais e constitucionais acabam sendo subvertidas ou violadas para evitar o avanço propositivo dessas pessoas, porque: a uma, sabem o valor da própria dignidade; a duas, porque, em face desse reconhecimento, se esforcam para manter a integridade de sua independência e a qualidade das decisões que proferem em seu exercício. 5. ACESSIBILIDADE E EMPODERAMENTO Essa abordagem, rigorosamente convencional, pressupõe, além da igualdade, da acessibilidade e da inclusão, um outro atributo indissociável, a saber: o empoderamento! Empoderar é garantir ao vulnerável, a plenitude de suas possibilidades humanas, mediante a disponibilização e o emprego, no caso das pessoas com deficiência, de recursos assistivos, tecnológicos ou criativamente dimensionados para as diversas espécies de limitação ou dificuldade que tenham de ser superadas, seja no trabalho, na escola, no lazer, em casa, em todo lugar e em todas as atividades nas quais se pretenda inserir, para que essa pessoa possa exercitar, já empoderada para o autogoverno, de igual para igual, os seus direitos que estão associados ao seu patrimônio jurídico e à sua dignidade, não à sua condição física, intelectual, psicossocial, sensorial ou múltipla. As deficiências, desse modo, refletem um estágio de desenvolvimento social do meio organizado em que se vive, não um extrato de dignificação da condição humana da pessoa com deficiência, que é um axioma jurídico, um valor como que absoluto, insuscetível a relativizações especiosas ou não consubstanciais à própria deficiência, vista a partir do foco da PcD (“Nada de nós, sem nós!”). Com efeito, a única resposta possível de ser oferecida quanto ao trato dos Direitos Humanos é que eles são inegociáveis, irrenunciáveis, imprescritíveis, incondicionais e jamais excludentes. Porque todo ele resulta da insubmissão aos propósitos de manutenção de certos extratos de exclusão ativados por séculos a fio, durante os quais muitos foram privados de seus direitos, do acesso à riqueza e ao poder que esses mesmos excluídos ajudaram a construir a toda carga e a pleno sacrifício. Assim sendo, a interpretação que serve à ontologia dos Direitos Humanos não pode ser restritiva, mas extensiva. O Acesso à Justiça é, pois, substanciamente a efetivação dos direitos daqueles que postulam. Os direitos das pessoas com deficiência, portanto, são interpretáveis amplamente, por forma a garantir-lhes empoderamento sem o que tampouco se estabelece a “paridade de armas” indispensável ao Acesso à Justiça, como categoria fundamental tanto na Ordem Jurídica interna quanto internacional. Não por acaso, um Protocolo Facultativo foi anexado à Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência de modo a que esses direitos relacionados possam ser discutidos, ainda que o Estado Parte se manifeste, concretamente, como desaparelhado a fazê-lo bem. Além disso, as condições para esse empoderamento podem ser naturais ou constituídas. Muitos superam por si mesmos as próprias dificuldades e são muito bons! Esses, porém, não traduzem referências paradigmáticas para o estabelecimento de uma política pública afirmativa da Inclusão Social, pois o que serve de substrato a uma tal regulação é o promédio da condição humana a ser protegido contra toda vulnerabilidade que as pessoas superdotadas de talento não chegaram a experimentar radicalmente, apesar de suas diferenças e do caldo de cultura que o preconceito findou por sufocá-los de algum modo. Já ouvi heresias do tipo a rechaçar a política 195

afirmativa e compensatória de cotas, sobretudo nas Universidades, em razão da presença proativa, embora isolada, de um Ministro do Supremo Tribunal Federal, ante o fato de Sua Excelência ser uma pessoa negra. Convém destacar que no Supremo Tribunal Federal do Brasil jamais atuou um julgador com algum tipo de deficiência. Já ouvi outras tantas, tão ou mais vituperiosas como aquela de que Juízes em geral não podem ser cegos. Quanta estupidez que associa, numa química explosiva, ignorância cognitiva e prepotência situacional de dominação! Dentre as barreiras que constantemente se nos afligem, contam-se inúmeras abominações éticas que insistem em não largar a contemporaneidade. É preciso combatê-las e, fazê-lo, é antes de tudo conquistar espaços e trabalhar pela transformação social, a partir do exemplo. De fato, a Suprema Corte brasileira, que já superou a barreira étnica e a de gênero, pelo visto, reclama também a superação da barreira atitudinal que impediu, ao longo de sua história, de ter uma pessoa com deficiência em seus quadros para contribuir no aprimoramento da construção da jurisprudência que vai favorecer, por medida de Justiça e em razão do perfeito atendimento da Carta Política e da legislação de regência ao universo de pessoas com deficiência no Brasil, sem necessidade de que tenhamos de nos socorrer, a todo instante, do Protocolo Facultativo que nos garante o direito de demandar ao Comitê da ONU encarregado da composição desses conflitos em sede internacional. Esta possibilidade, no entanto, deveria ser melhor aparelhada pelas Entidades que congregam os propósitos de emancipação e direitos das PcD no Brasil e no mundo. O monitoramento internacional dos litígios relacionados deve ser uma prática regular na dimensão das lutas inclusivas. A pressão que vem de fora fomenta o aprimoramento dos sistemas internos, quando um Estado é parte de um ajuste internacional, caso da Convenção de Nova Iorque e de nossos países latino-americanos. Pode-se, pois, afirmar que o Acesso à Justiça é talvez a cláusula mais recorrente de empoderamento com que as pessoas com deficiência passam a lutar, com eficiência, pela observância fiel e exaustiva de seus direitos, a partir da construção de meios com os quais efetivamente pelejam e se autoafirmam na medida justa, ainda que o mundo não lhes proporcione as adequações razoáveis a que também têm direito fundamental. Para isso, será sempre necessário um corpo judicial qualificado tecnicamente o bastante e também preparado e sensível do ponto de vista atitudinal para garantir, por meio da aplicação sobranceira e racional do Direito, a superação das barreiras idiopaticamente montadas para impedirem o florescimento da paz, da prosperidade e da felicidade para todos. Repete-se, ao fim, o que diz o Professor Ferdinand Cavalcante Pereira, da Universidade Federal do Piauí, Brasil: O empoderamento devolve poder e dignidade a quem desejar o estatuto de cidadania, e principalmente a liberdade de decidir e controlar seu próprio destino com responsabilidade e respeito ao outro. O débito social das instituições políticas e estatais diminui à medida que seus agentes desenvolvam ações e condutas de efetiva participação e mudança sociais10 6. ACESSIBILIDADE GERAL PREVISTA NA CONVENÇÃO DE NOVA IORQUE O conceito jurídico de acessibilidade, além do mais, está analiticamente estabelecido na Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, de acordo com o seu Artigo 9, o qual dispõe de dois ítens com diversas alíneas. A norma convencional estabelece que, para o fim de possibilitar às pessoas com deficiência viver de forma independente e participar plenamente de todos os aspectos da vida — todos, sem exceção! —, deverão ser adotadas medidas ajustadas ao asseguramento do acesso dessas pessoas, em igualdade de oportunidades com as demais pessoas, ao meio físico, ao transporte, à informação e instalações abertas ao público ou de uso público, tanto na zona urbana como na rural. Pressupondo a identificação de barreiras e obstáculos à acessibilidade, também e principalmente as de atitude que derivam comumente de preconceitos arraigados no socius, não raramente reveladores de viés autoritário e colonizador, tais medidas se devem prestar ao redimensionamento funcional de prédios, estradas, meios de transporte e demais instalações internas e externas em geral com vistas ao seu uso conforme o parâmetro do desenho universal. Do mesmo modo, as informações, 10 http://www.fapepi.pi.gov.br/novafapepi/sapiencia8/artigos1.php (acesso em 12/09/2012).

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as comunicações e outros serviços, inclusive os veiculados por meio eletrônico, além dos emergenciais, precisam guardar o desenho universal, que confere acesso a todos, não somente a uma suposta maioria. Além disso, os Estados-partes estão obrigados a estabelecer padrões mínimos de normatização técnica para a garantia da acessibilidade, segundo o padrão do desenho universal, proporcionar formação e capacitação aos atores envolvidos, dotar os espaços públicos ou de uso público de plena sinalização em formatos de fácil assimilação e leitura, mediação, guias, ledores, intérpretes de língua de sinais, promover outras formas de assistência e apoio a pessoas com deficiência tendo em vista as informações de que necessitem, promover o acesso dessas pessoas a novas tecnologias da informação e comunicação, inclusive à Internet, conceber, desenvolver e disseminar a produção de novos sistemas e tecnologias de informação e comunicação, objetivando acessibilidade com custo mínimo. Tudo isso revela alteridade, palavra que concentra uma síntese muitíssimo apertada, embora inteiramente substanciosa quanto às necessidades de descrição do objeto aqui comentado. Mas, afinal, o que pode ser definido como alteridade que serve a esse propósito sintetizador? É ser capaz de apreender o outro na plenitude de sua própria dignidade, e não na conformidade de nossa própria ética ou na supremacia dos próprios interesses. Olhar para o outro, conforme a sua perspectiva para, sem abandonar a própria identidade, procurar compreender com mais profundidade e menos superficialidade os objetos que se encontram à nossa volta, sobretudo aqueles que se relacionam com os direitos alheios. É respeitar as diferenças e reconhecer, sobranceiro, que a diversidade é o que há de mais convergente na existência humana, pois a dignidade da pessoa notabiliza a todos e não somente a alguns. O sentimento de alteridade exclui a possibilidade de um substituir-se a outro. E quanto menos alteridade existir no contexto das relações intersubjetivas e sociais, mais conflitos acontecem. Se a falta de alteridade acontece no âmbito interno aos umbrais da Justiça, fica descortinado o palco para grandes sofrimentos e atavismo social. Consolida-se, pois, institucionalmente, a desigualdade e se transforma em letra morta tudo o quanto se construiu até agora em termos de plataforma normativa de referência universal para as relações sociais no trato dessa questão fundamental da luta pelos direitos das PcD. Se mais fosse possível referir ao instituto da acessibilidade das pessoas com deficiência junto aos setores públicos ou aos ambientes e serviços de uso público, muito não se poderia acrescentar, salvo pelo registro de que, muito embora não se trate de um termo equívoco ou indeterminado, presta-se, por outro lado, a robustecer a ideia de expansão lógica de seu conteúdo e de suas possibilidades. E é exatamente o caráter construtivista que melhor afirma, de modo progressivo e potencial, a sua natureza. Pois, afinal, também “o homem é um ser inacabado”, conforme genial intuição de Cabral de Moncada, filósofo português (MONCADA, 1966, p. 342). 7. ACESSO À JUSTIÇA COMO PROBLEMA E A INCLUSÃO SOCIAL Conforme restou implícito linhas atrás, no campo da Inclusão Social ainda prevalece a ignorância e a falta de alteridade, mesmo da parte de atores oficiais que deveriam, outrossim, sofrer algum tipo de atualização modernizadora no que respeita aos fundamentos de sua própria funcionalidade. Juízes, Representantes do Ministério Público, Advogados, Serventuários de Justiça, Autoridades Policiais, Fiscais e Penitenciárias, Funcionários Executivos e até Professores de Direito integram essa pletora de qualificados “analfabetos funcionais”. Entre eles, ressalvando-se as honrosas exceções, predomina a insensibilidade, o descuidado e a prepotência socavada e sibilina que prevalece à toda razoabilidade. O despreparo é gritante e o fomento ao ensino inclusivo e à interdisciplinaridade, além de raro, desencorajado. Esses elementos, na verdade, são os fantasmas mais recorrentes e explícitos com que ainda temos de lidar incessantemente. Enfrentá-los a todo instante na tarefa de eliminação das barreiras que temos de superar o tempo inteiro também no âmbito da atividade jurisdicional do Estado é o que nos cabe para a construção efetiva e permanente de uma sociedade realmente justa e igualitária, por isso mesmo inclusiva, de bem-estar social a todos os cidadãos. Sobre isto, muitos ainda imaginam que incluir é simplesmente integrar, mantidas as bases sociais e antropológicas da exclusão vigente no passado de degredo e sofrimento, de “apartheid”. 197

Sobre isto, veja-se o gráfico a seguir sobre o quê parece a Inclusão Social11:

Conforme o que ressaltei em Palestra que tive a oportunidade de proferir no último mês de setembro, em Brasília, em matéria de inclusão a ordem é descolonizar. Para tanto e a fim de que se garanta o Acesso à Justiça das PcD, em particular, não se divisa uma forma mais eficaz de descolonização, senão ocupando espaços, assim horizontal quanto verticalmente, nas esferas do Poder Judiciário, sobretudo, por efeitos de exemplaridade e multiplicação de condutas. Para se promover o “desenho universal” idealizado pela causa inclusiva, parece indispensável eliminar os “senões”, as questiúnculas de somenos importância, os receios de avançar decididamente, mediante uma experimentação crescente e afirmativa de possibilidades reais que realmente preencham o que se considera uma agenda positiva, em face de uma estrutura como 11  Fonte: What inclusion looks like?, Sarantsetseg Otgonlkhagva (Facebook)

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que esvaziada de partícipes positivamente comprometidos com os fundamentos da própria Ordem Constituída. Insiste-se: por que, afinal, o Brasil jamais conheceu um Ministro (Juiz) PcD na sua Suprema Corte? Por acaso, um país continental como o nosso não dispõe de quadros ajustados a esse exercício honorabilíssimo? Somos, enfim, uma espécie de categoria social inferior? Evidente que não, mas isso tudo parece servir, à saciedade, para esclarecer o estado em que nos encontramos na atualidade de desenvolvimento social e político. De um lado, são cerimonialmente reconhecidos direitos às PcD; de outro, desgraçadamente, transparece histórico que essas pessoas vem sendo ignoradas. É preciso superar a fase diagnóstica acerca dos problemas da exclusão. É preciso fundamentalmente oferecer a resposta que os Direitos Humanos são de fato e de Direito inegociáveis, nem restringíveis e nem se prestam a eufemismos de ocasião, no sentido uma sua relativização que se mostra simpática no trato, mas discriminatória na ação. A questão do Acesso à Justiça integra esse fenômeno histórico e é imprescindível que esse quadro se desconstrua o quanto antes, no Brasil e em toda parte em que essas restrições idiopáticas estejam acontecendo em detrimento dos direitos das PcD, bem assim como de todos os cidadãos em geral. A propósito, o sofrimento de um só cidadão repercute de um modo deletério e alargado nos quadros sociais que refletem instabilidade. A sociedade é uma estrutura de vasos comunicantes e a violação que se perpetra aqui, degenera acolá ainda mais e, assim, sucessivamente. A metáfora cabível é que o preconceito é um câncer metastásico! Agora, com apoio em registros históricos clássicos pode-se afirmar que desde quando a força cedeu lugar à razão para que por meio de normas as relações humanas pudessem ser reguladas efetivamente, e a partir de quando, outrossim, o Estado também chamou a si o monopólio da Jurisdição, o Acesso à Justiça tornou-se uma variável altamente problemática, além de contraditória. A eliminação dessas barreiras tampouco se presta a soluções pontuais, isoladas, haja vista que os problemas decorrentes muitas vezes são interrelacionados socialmente (CAPPELLETTI; BRYANT, 1988, p. 29). Mudanças podem suscitar questões periféricas de tipo corporativo ou estratificado e é preciso, antes de tudo, ultrapassar paradigmas nem sempre fincados em diretivas justificáveis do ponto de vista dos Direitos Humanos e da comunhão universal, da intergrupalidade; porque, do contrário, poderemos regressar aos conceitos pré-inclusivos, os quais, embora representando um avanço histórico em relação à exclusão clássica, desservem, no entanto, à causa da Inclusão Social, a exemplo do esforço de enquadrar, também preconceituosamente, as deficiências em um plano puramente clínico ou definir a inclusão como sinônimo de mera integração social. Bem por isso, mais se justifica que a visão dos vulneráveis possa compor as formulações dos veredictos e, antes, das políticas públicas associadas ao fundamento substancial do Acesso à Justiça, entendido como o direito de demandar e de obter efetivos resultados concretizadores dos direitos em geral. Importa em exercício pleno da cidadania. No mesmo sentido, afirmam Cappelletti e Garth: O “acesso” não é apenas um direito social fundamental, crescentemente reconhecido; ele é, também, necessariamente, o ponto central da moderna processualística. Seu estudo pressupõe um alargamento e aprofundamento dos objetivos e métodos da moderna ciência jurídica (CAPPELLETTI; GARTH, 1988, p. 13).

É a partir desse ponto lógico que não se desconhece mais a importância dos saberes interdisciplinares e participativos na compreensão e na composição dos direitos das PcD, à luz do que se erigiu em termos normativos universais com o advento da Convenção de Nova Iorque. Pode-se chamar a isso, com um mínimo de esforço, de “aliança pró-inclusão”, conforme o superior pensamento de Romeu Sassaki, a quem costumo denominar, pelo conjunto de sua obra invulgar e também pela sua humanidade explícita e luminosa, de “Príncipe da Alteridade brasileira” (SASSAKI, 2010, p. 167-168). De fato, garantir direitos a quem jamais os obteve não é tarefa fácil de executar na medida em que - antes de mais nada - os preconceitos, ante a sua raiz cultural, não se eliminam por de199

creto, embora seja de todo importante que penalidades significativas venham a ser exemplarmente estabelecidas e impostas por forca de leis que vinguem realmente. Integrar as PcD aos processos de construção da Justiça, novamente, parece fundamental. No propósito da matéria inclusiva, não há lugar para ideologismos de ocasião. A causa inclusiva é, sobretudo, um caminho sem volta, uma via de mão única, historicamente pavimentado, passo-a-passo, crescentemente, pois aponta para os fundamentos mais elementares da convivência humana, para os pilares da própria humanidade, afinal revelados e reconstruídos, marcadamente a partir do pós-guerra. Nada obstante, esse fato histórico não esconde as contradições de toda ordem em matéria de Direitos Humanos. A luta entre o bem e o mal persistirá durante o hiato de existência da humanidade sobre a face da Terra, bem o sabemos. Mas, é nessa luta em que podemos encontrar o sentido mais adequado da perfeição humana. Valemos pelos nossos ideais, não exatamente pela nossa corporeidade, tão bela quanto efêmera. Cumpre-nos o dever de pelejar por um mundo mais justo para as atuais e para as futuras gerações. É a transcendência que nos afirma como agentes de transformação social, agora e enquanto vida nos restar para ser vivida. Porque mais definitivo que a morte física é a letargia de uma vida sem sabor, sem inspiração, sem propósitos nobilitantes que haverão de marcar a nossa posteridade e o respeito das futuras gerações. O que se divisa e objetiva no contexto histórico atual é a presença cardinalíssima do homem diante de si mesmo e do seu semelhante. Sem discussão possível que induza algum contraponto razoável a este passo da história da civilização. 8. CONSIDERAÇÕES FINAIS Sucede que, diante do que foi exposto, não há outro registro mais significativo a proceder do que situar os conceitos de acessibilidade, empoderamento e cidadania, a cujo serviço se posta a Administração da Justiça nas sociedades democráticas e sociais de Direito, como que sinonímicos, restando semanticamente pleonástica a associação dessas palavras numa só oração, quando se tratem de direitos das PcD, à luz da Convenção de Nova Iorque, diploma legal que marca a “era dos direitos” para esse contingente bastante significativo da humanidade. De tal modo que acessibilidade sem cidadania (que envolve quebra de empoderamento) é construção inútil. Cidadania sem acessibilidade e empoderamento, disfuncional. Assim, nos sistemas judiciários dos tipos empírico-primitivos e tecnoburocráticos que predominam na América Latina, as Supremas Cortes exercem papeis formidáveis na construção, fomento e eventual controle das políticas públicas, dos direitos individuais e coletivos e da cidadania. Cumpre destacar, sobre isto, que no caso brasileiro a Constituição Federal tem densificado a Jurisdição do STF, mediante o estabelecimento de mecanismos jurídicos que acentuam suas competências e agregam outras tantas — Ações Diretas de Inconstitucionalidade, Repercussão Geral, Recursos Repetitivos, Súmulas Vinculantes, entre outras — concentrando-as de tal modo que o exercício difuso da própria Jurisdição pelos demais Juízes e Tribunais acaba se transformando em um mero exercício de chancela, em simples ritos de passagem, inteiramente burocráticos. Nesses casos, os Juízes sequer se ocupam de produzir as próprias decisões, substituídas por colagens. Os assessores o fazem e lhes resta a atividade de subscrever os documentos respectivos. A lógica do devido processo legal, também uma categoria fundamental de Direito, nessas condições, perde consistência epistemológica e também normativa. O Poder Judiciário, enquanto estrutura de verticalidades, como que se desconstrói nesses casos e as expectativas jurídicas da população, sob a justificativa de um suposto “neoconstitucionalismo”, quanto aos fundamentos nem sempre sistemáticos das decisões-vetor, espécie agravada dos precedentes dos sistemas do Common Law, de tradição saxônica, sofrem radical restrição e o espectro de previsibilidades do sistema judicial regional, de tradição romano-germânica, igualmente. Pode-se imaginar o cenário de instabilidades em que as pessoas em geral acabam sendo projetadas dentro em um ambiente “primitivo”, conforme locução do exponencial do jurista argentino Eugênio Raúl Zafarani, constante de sua obra aqui citada (referência 3). Um tal “primitivismo” se intensifica em relação às políticas de constituição das composições das Cortes Supremas dessas sociedades, quando recaiam sobre atores enlaçados pelo sistema político e não por exigências sociais clássicas de legitimidade e representação. De fato, as composições do Supremo Tribunal Federal do Brasil são constitucional e livremente enredadas pelo Chefe(a) do Poder Executivo, 200

mediante singular sabatina do Senado Federal (atividade que se tem revelado pró-forma), entre brasileiros natos com idade que medeia os 35 e 65 anos, além de dispor de notável capacitação jurídica e reputação ilibada. É o que basta a um brasileiro se tornar Ministro do STF, a Corte Suprema do seu país. Ora, é histórico que dificilmente o STF controverta aos interesses do Poder Executivo naquilo que mais se lhe afeta a ideologia de sustentação política. O instituto da reeleição para a Presidência da República agravou esse quadro no caso brasileiro, porque composições quase que inteiras podem ser constituídas por uma só autoridade presidencial. Por melhor que seja a autoridade, isso não parece republicano. É um fenômeno, no entanto, que não se declara, por revestirse de perturbadora insubmissão às propriedades institucionais da Suprema Corte de um Estado soberano e à interdependência funcional dos Poderes Políticos da República. Torna-se claro, desse modo, que uma avaliação positiva acerca da presença de uma ou mais de uma PcD, devidamente comprometida(s) com a Inclusão Social, nos quadros das Supremas Cortes dos Estados latino-americanos é de todo pertinente e de certo modo fundamental aos propósitos de efetivação de seus direitos, em particular, mas não apenas os deles, senão também e principalmente o de todos, indistintamente. Ao passo da sugestão de edição de uma espécie de Moção de Apoio a essa causa, a ser dirigida a quem de Direito, também parece fundamental, conforme já ressaltado anteriormente, fomentar e preparar, no âmbito do terceiro setor das sociedades latino-americanas do qual a RIADIS é pioneira, o “monitoramento internacional” das questões pertinentes à defesa dos direitos e à emancipação política, econômica e social das PcD, sobretudo em face do Protocolo Facultativo à Convenção de Nova Iorque, plataforma normativa de referência, regulação e fomento das atividades que nos congregam na causa comum e universal de incluir a todos nos bens da vida e na construção de um tempo de mais felicidade e menos sofrimento para todos. Enfim, pelo bem da humanidade e do desenvolvimento integral de nossas sociedades. Em matéria de Inclusão Social, pois, a ordem é descolonizar e, de vez, instalar a cidadania para todos! No que diz respeito à processualística, cumpre destacar que a ponderação e a razoabilidade assumem funcionalidades próprias com o objetivo de incluir para acessar à Justiça, em particular, as Pessoas com Deficiência, à luz da Convenção de Nova Iorque que, no Brasil, tem força de Emenda Constitucional. REFERÊNCIAS CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant.Acesso à Justiça. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1988. MONCADA, L. Cabral de. Filosofia do Direito e do Estado - Doutrina e Crítica. vol. 2º. Coimbra: Coimbra Editora, 1966. ORTEGA Y GASSET, JOSÉ.A Rebelião das Massas. São Paulo: Martins Fontes, 1987. RESENDE, Ana Paula Crosara de.Acesso à JustiçaIn: Resende, Ana Paulo Crosara de; Vital, Flavia Maria de Paiva: A Convenção sobre as Pessoas com Deficiência – versão comentada.2ª Ed. Brasília: CORDE, 2008. SASSAKI, Romeu Kazumi.Inclusão – Construindo uma sociedade para todos. 8ª Ed .Rio de Janeiro: WVA, 2010. ZAFFARONI, Eugenio Raúl.Poder Judiciário – Crise, Acertos e Desacertos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995. http://giovanimiguez.com/files/noticia/20120811192037_midia_e_conformismo.pdf (acesso em 13/09/2012) http://www.fapepi.pi.gov.br/novafapepi/sapiencia8/artigos1.php (acesso em 12/09/2012). 201

O DIREITO À MEMÓRIA NA CONSTITUIÇÃO DE 1988: um olhar a partir da obra Eichmann em Jerusalém de Hannah Arendt

Aline da Silva Machado Joaquim Raquel Fabiana Lopes Sparemberger1

1. INTRODUÇÃO Este texto parte da obra Eichmann em Jerusalém – Um relato sobre a banalidade do mal, escrita por Hannah Arendt a partir da cobertura jornalística do julgamento de Otto Adolf Eichmann. Ao relatar o julgamento e os fatos que levaram o acusado ao tribunal, a autora estabelece um panorama no qual o conceito abstrato de justiça se consolida na identidade de um povo e de um Estado por meio do direito à memória. Nesse sentido, num primeiro momento o texto analisa os fundamentos jurídicos do Direito à memória presentes na Constituição Federal de 1988. Demonstra também que a Constituição de 1988, endossa o direito à memória ao estabelecer o acesso à informação e o princípio democrático como direitos fundamentais. Perquirindo-se acerca da justiça de transição e da abertura do princípio da informação ao princípio da memória, sendo este notadamente mais amplo que aquele, pretender-se-á afirmar que o direito à memória é acolhido pela legislação pátria. Num segundo momento, apresenta o direito à memória como um direito Humano fundamental e traz a abordagem arendtiana do direito à memória, por fim, apresenta a discussão da aplicabilidade do direito à memória no Brasil e às consequências advindas desta aplicabilidade. De fato, cuida-se de um estudo sobre a abertura constitucional brasileira ao direito à memória e a sua importância para o reconhecimento da identidade do Estado que formamos.

1 Pós-doutora em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC. Doutora em Direito pela Universidade Federal do Paraná - UFPR. Mestre em Direito pela UFPR. Possui graduação em Direito pela Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul (1995). Professora adjunta da Universidade Federal do Rio Grande -FURG, professora do Programa de Mestrado em Direito da Universidade Federal do Rio Grande -FURG. Professora convidada da UNESC - Universidade do Extremo Sul de Santa Catarina- UNESC. Participante dos Advogados Sem Fronteiras. Tem experiência na área de Direito, com ênfase em Teoria Geral do Direito, Direito Constitucional, Direito Ambiental e Direitos Humanos, América latina e questões decoloniais. Professora pesquisadora do CNPq e FAPERGS. Professora participante do Grupo de Pesquisa em Antropologia Jurídica -GPAJU da UFSC e Pesquisadora responsável pelo Grupo de Pesquisa Direito, Ambiente e Interculturalidade e do Grupo de Estudos da FURG sobre o Constitucionalismo Latino-Americano.Advogada.

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2. MÉMORIA E RESPONSABILIDADE: A CONTRIBUIÇÃO DE HANNA ARENDT Este estudo tem sua origem na apresentação da obra de Hannah Arendt Eichmann em Jerusalém, Um relato sobre a banalidade do mal. E todas as suas considerações são feitas tendo por base o relato do julgamento daquele ex-oficial nazista. Trata-se de uma abordagem sucinta dividida em duas partes. Na primeira, o estudo se restringe à apresentação do julgamento. Na segunda parte, procura-se relacionar o pensamento de Hannah Arendt com os crimes cometidos contra a humanidade. A obra de Hannah Arendt Eichmann em Jerusalém, Um relato sobre a banalidade do mal, foi escrita com base no julgamento, perante a corte distrital de Jerusalém, de Adolf Eichmann. O réu foi acusado e condenado por crimes cometidos contra judeus e outras minorias. A condenação compreendeu crimes levados a efeito durante o regime nazista em diversos países do continente europeu. A despeito do fato de a autora professar a religião judaica, a obra referência primordial deste estudo foi escrita com autonomia e polidez, sem qualquer sentimentalismo ou retórica vingativa (CAMASMIE, 2007). De outra esfera, o que torna esta obra singular é a análise fria de um período extenso em que, em nome do Estado de direito, foram cometidas atrocidades sem tamanho. Além disto, destaca-se não somente a importância histórica de se debruçar diante do passado com veracidade, mas, sobretudo, a contribuição jurídica que este olhar pode acrescentar a uma nação. A narrativa parte do pressuposto de que, diante do tribunal, está um sujeito. Mas tal indivíduo é, de fato, tão somente o centro de todo aparato jurídico constituído no polêmico julgamento da corte israelense: A justiça exige que o acusado seja processado, defendido e julgado, e que fiquem em suspenso todas as questões aparentemente mais importantes – “Como pôde acontecer uma coisa dessas?” e “Por que aconteceu?”, “Por que os judeus?” e “ Por que os alemães?”, “Qual o papel das outras nações?” e “Até que ponto vai a responsabilidade dos aliados?”, “Como puderam os judeus, por meio de seus líderes, colaborar com sua própria destruição?” e “Por que marcharam até a morte como carneiros para o matadouro?”. A justiça insiste na importância de Adolf Eichmann, filho de Karl Adolf Eichmann, aquele homem dentro da cabine de vidro construída para a sua proteção: altura mediana, magro, meia-idade, quase calvo, dentes tortos e olhos míopes, que ao longo de todo julgamento fica esticando o pescoço para olhar o banco das testemunhas (sem olhar nem uma vez para a platéia), que tenta desesperadamente, e que quase sempre consegue, manter o autocontrole, apesar de seu tique nervoso que lhe retorce a boca provavelmente desde muito antes do começo deste julgamento. Em juízo estão os seus feitos, não o sofrimento dos judeus, nem o povo alemão, nem a humanidade, nem mesmo o anti-semitismo e o racismo. (ARENDT, 2011, p.15).

A obra escrita por Arendt revela que, não obstante a autoridade exercida pelo governo de Hitler no continente europeu, a alternativa de extermínio dos judeus não era a única opção. O julgamento de Eichmann permitiu delinear a história de um povo que foi submetido a situações extremas, à custa da obediência inescrupulosa de inúmeros agentes do Estado. De outro ângulo, traçou um paralelo com a atitude de países que se negaram a compartilhar a oposição aos judeus. De fato, as contribuições do julgamento não se limitaram à pessoa do condenado. Os relatos de partes, tidas como opostas, estabeleceram um elo entre o passado e o presente. De forma tal que, cada depoimento, foi imprescindível para que se percorresse um período da história, preenchendo-se aquela lacuna de forma coerente. Nítido, ademais, na obra de Arendt, é o esforço para se abstrair daquele julgamento um relato límpido, livre de toda emotividade que cercava cada depoimento. E peça por peça, a cada relato e a cada pergunta, formava-se um panorama que possibilitou adentrar num momento separado pelo tempo e pelo espaço. Vislumbra-se que, sob este prisma, a postura inequívoca dos juízes que conduziram o julgamento foi primordial para a concretização daquilo a que Arendt denomina justiça: 203

E a Justiça, embora talvez uma “abstração” para quem pensa como o sr. Ben-Gurion, vem a ser um amo muito mais severo até que um primeiro-ministro com todo o seu poder. [...] A Justiça não admite coisas desse tipo; ela exige isolamento, admite mais a tristeza do que a raiva, e pede a mais cautelosa abstinência diante de todos os prazeres de estar sob a luz dos refletores (ARENDT, 2011, p. 16).

Para Arendt, a função da justiça está acima de todo poder. Enquanto para o Estado de Israel – representado na pessoa de seu primeiro ministro – o julgamento de Eichmann se limitava a uma questão de honra, a justiça não cuidava tão somente de condenar ou absolver. Certamente o veredito teria de ser imposto, mas, fundamentalmente, tratava-se de delinear os fatos partindo-se do presente para o passado. Quando Adolf Eichmann foi levado ao tribunal de Israel, havia uma fenda entre o passado e o presente que se estendia por exatos dezenove anos quando do término da II Guerra Mundial. O decorrer do tempo somente evidenciou a necessidade de se observar os fatos, não somente pelo ângulo da defesa ou da acusação, mas, sobretudo, com o objetivo de traçar a história com precisão. O que se denota, da leitura de Arendt, é que o julgamento de Eichmann permitiu que se delineasse a história com a ausência de qualquer equívoco. De fato, trazer à tona elementos do passado indicou que a formação do Estado Democrático perpassa, inevitavelmente, pela identificação de seus indivíduos e pela relação advinda de seus atos. O julgamento de Eichmann não se deteve a figura do acusado. De outra tangente, a partir dos relatos de Eichmann, da sua relação com o outro, se configurou a história e o pensamento coletivo de um Estado. As considerações feitas por Arendt acerca do julgamento de Eichmann partem justamente da identificação da pessoa do acusado: Otto Adolf, filho de Karl Adolf Eichmann e Maria, em solteira Schefferling, capturado num subúrbio de Buenos Aires na noite de 11 de maio de 1960, voou para Israel nove dias depois, foi levado a julgamento na Corte Distrital de Jerusalém em 11 de abril de 1961, objeto de cinco acusações: “entre outros”, cometera crimes contra o povo judeu, crimes contra a humanidade e crimes de guerra, durante o período do regime nazista e principalmente durante o período da Segunda Guerra Mundial. [...] A cada uma das acusações, Eichmann declarou-se: “Inocente, no sentido da acusação”. (ARENDT, 2011, p. 32).

Dentre inúmeros nazistas, o que tornou a figura do acusado ímpar foi o fato de ter sido ele o responsável pelo problema dos judeus durante grande parte do governo de Hitler. Com base nos seus relatos, observa-se que ele foi conduzido inclusive pela filosofia judaica, ainda que mediante uma interpretação errônea: Em resumo, quando Eichmann começou seu aprendizado em assuntos judeus, nos quais, quatro anos depois, seria reconhecidamente um “perito”, e quando fez os primeiros contatos com funcionários judeus, tanto sionistas como assimilacionistas falavam em termos de uma grande “ressurreição judaica”, um “grande movimento construtivo do judaísmo alemão” e ainda discutiam entre eles em termos ideológicos se a emigração judaica era desejável, como se isso dependesse de suas vontades. [...] Cada um dos Escritórios Centrais da SS, em sua organização de guerra, era dividido em seções e subseções, e o RSHA acabou tendo sete seções principais. A seção IV era o departamento da Gestapo, chefiado pelo Gruppenfuhrer (major-general) Heinrich Muller, cuja patente era a mesma que tinha na patente bávara. Sua tarefa era combater “oponentes hostis ao Estado”, que eram divididos em duas categorias, tratadas por duas seções: a Subseção IV-A cuidava dos “oponentes” acusados de comunismo, sabotagem, liberalismo e assassinato, e a Subseção IV-B cuidava das “seitas”, isto é, católicos, protestantes, maçons (o posto continuava vazio) e judeus. Cada uma destas seções tinha um escritório próprio, designado por um número

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arábico, de forma que Eichmann acabou sendo nomeado, em 1941, para a mesa IV-B-4 no RSHA. (ARENDT, 2011, p. 82-84).

Diante da corte de Jerusalém estava, portanto, aquele que foi reconhecido como perito na questão judaica. Justamente por esta característica, manteve contato com representantes do judaísmo e do nazismo por todo o período que compreendeu o Holocausto. Esta peculiaridade do acusado desencadeou, durante todo o julgamento, mais de um lado da moeda. Pelo o que se depreende da narrativa de Arendt, Eichmann tornou-se mais um dos quais realmente achavam que o regime nazista e suas façanhas tiveram algo de decente: [...] “Ter chegado ao topo e, a não ser pelas exceções causadas pela fraqueza humana, ter permanecido decentes, isso é que nos enrijeceu. Essa é uma página gloriosa da nossa história que nunca foi escrita e jamais será reescrita”. [...] O que afetava a cabeça desses homens que tinham se transformado em assassinos era simplesmente a idéia de estar envolvidos em algo histórico, grandioso, único. [...]. Isso era importante, porque os assassinos não eram sádicos ou criminosos por natureza; ao contrário, foi feito um esforço sistemático para afastar todos aqueles que faziam prazer físico com o que faziam. (ARENDT, 2011, p. 121).

Para a autora, o indivíduo que estava sob julgamento, de certa forma, perdera a capacidade de pensar. Estava fadado a absorver toda convicção nazista sem estabelecer qualquer entrave ao que lhe era proposto. E, neste aspecto, destaca que esta não era uma peculiaridade do réu: Bastava Eichmann relembrar o seu passado para se sentir seguro de não estar se enganando, pois ele e o mundo em que viveu marcharam um dia em perfeita harmonia. E a sociedade alemã de 80 milhões de pessoas se protegeu contra a realidade e os fatos exatamente da mesma maneira, com os mesmos auto-engano, mentira e estupidez que agora se viam impregnados na mentalidade de Eichmann. (ARENDT, 2011, p. 65).

E foi, talvez, na averiguação da fatal normalidade do acusado que residiu um dos pontos primordiais deste julgamento. Uma vez que não se trata de uma mente diabólica, é inevitável a constatação de que todo homem está sujeito a cometer atrocidades, quando a consciência coletiva encontra-se corrompida: Eles sabiam, é claro, que teria sido realmente muito reconfortante acreditar que Eichmann era um monstro; se assim fosse, a acusação de Israel contra ele teria soçobrado ou, no mínimo, perdido todo o interesse. Não é possível convocar o mundo inteiro e reunir correspondentes dos quatro cantos da Terra para expor o Barba Azul no banco dos réus. O problema com Eichmann era exatamente que muitos eram como ele, e muitos não eram nem pervertidos, nem sádicos, mas eram e ainda são terrível e assustadoramente normal. Do ponto de vista de nossas Instituições e de nossos padrões morais de julgamento, essa normalidade era muito mais apavorante do que todas as atrocidades juntas, pois implicava que – como foi dito insistentemente em Nuremberg pelos acusados e seus advogados – que esse era um tipo novo de criminoso, efetivamente hostis generis humani, que comete seus crimes em circunstâncias que tornam praticamente impossível para ele saber ou sentir que está agindo de modo errado. (ARENDT, 2011, p. 299). E assim como a lei de países civilizados pressupõe que a voz da consciência de todo mundo dita “Não Matarás”, mesmo que o desejo e os pendores do homem natural sejam às vezes assassinos, assim a lei da terra de Hitler ditava a consciência de todos: “Matarás”, embora os organizadores soubessem muito bem que o assassinato era contra os desejos e os pendores normais da maioria das pessoas. No Terceiro

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Reich, o Mal perdera a qualidade pela qual a maioria das pessoas o reconhecem – a qualidade da tentação. Muitos alemães e muitos nazistas, provavelmente a esmagadora maioria deles, deve ter sido tentada a não matar, a não roubar, a não deixar seus vizinhos partirem para a destruição (pois eles sabiam que os judeus estavam sendo transportados para a destruição, é claro, embora muitos possam não ter sabido dos detalhes terríveis), a não se tornarem cúmplices de todos os crimes tirando proveito deles. Mas Deus sabe como eles tinham aprendido a resistir à tentação. (ARENDT, 2011, p. 167).

Diante da narrativa de Arendt, não há como negar que levar Eichmann a julgamento foi determinante para que fosse concedida identidade aos personagens protagonistas do período em que era propósito do governo alemão tornar a Europa livre de todos os judeus. Naquele cenário montado para que o réu recebesse a sentença da corte, colidiram interesses diversos. Inclusive, em cada um destes interesses, ficou demonstrada a necessidade de se propiciar a busca da verdade:

Desde o começo, não há dúvidas de que é o juiz Landau quem dá o tom, e de que ele está fazendo o máximo, o máximo dos máximos, para evitar que este julgamento se transforme num espetáculo por obra da paixão do promotor pela teatralidade. Entre as razões pelas quais ele nem sempre consegue isso está o simples fato de que as sessões ocorrem em um palco diante da platéia, com o esplêndido grito do meirinho no começo de cada sessão produzindo o efeito de uma cortina que sobe. [...] Evidentemente, este tribunal não é um mau lugar para o espetáculo que David Ben-Gurion, primeiro ministro de Israel, tinha em mente quando resolveu mandar raptar Eichmann na Argentina e trazê-lo à Corte Distrital de Jerusalém para ser julgado por seu papel na questão da “solução final”. E Ben-Gurion, adequadamente chamado de “arquiteto do Estado”, é o diretor da cena do processo. Não comparece a nenhuma sessão; no tribunal, fala pela voz de GideonHausner, o procurador-geral que, representante do governo, faz o que pode para obedecer a seu senhor. E se, felizmente, seus esforços nem sempre atingem objetivo é porque o julgamento está sendo presidido por alguém que serve à Justiça com a mesma fidelidade que o sr.Hausner serve ao Estado de Israel. (ARENDT, 2011, p. 14-15). Ele [Eichmann] contou ao juiz Halevi como estava “contente com essa oportunidade de separar a verdade das inverdades que haviam sidos despejadas em cima dele durante quinze anos” e como estava orgulhoso de ser submetido a um interrogatório mais longo que qualquer outro conhecido antes. (ARENDT, 2011, p.244).

Outra peculiaridade demonstrada por Arendt reside na forma como relata a história dos judeus que, durante aquele período, descobriram que nem todos foram vítimas daquele regime. Muitos se colocaram ao lado dos opositores: O maior “idealista” que Eichmann encontrou entre os judeus foi o dr. Rudolf Kastner, com quem negociou durante as deportações judaicas da Hungria e com quem firmou um acordo: Eichmann permitiria a partida “legal” de milhares d e judeus para a Palestina (os trens eram, de fato, guardados pela polícia alemã) em troca de “ordem e tranquilidade” nos campos de onde centenas de milhares eram enviados para Aushwitz. Os poucos milhares salvos por este acordo, judeus importantes e membros de associações jovens de sionistas, eram, nas palavras de Eichmann, “o melhor material biológico” (ARENDT, 2011, p. 54).

Se o julgamento indicou a participação “eficiente” dos judeus em cada passo em direção ao Extermínio, também revelou outra face alemã. Tratava-se de uma postura singular. Ao tempo em que tal atitude enobreceu a sociedade alemã, indicou o quanto à história das vítimas daquele go206

verno poderia ter sido distinta se o pensamento coletivo não estivesse deturpado: Durante os poucos minutos que Kovner levou para contar sobre a ajuda recebida de um sargento alemão, baixou um silêncio sobre o tribunal; era como se a multidão tivesse espontaneamente decidido observar os costumeiros dois minutos de silêncio em honra de um homem chamado Anton Schmidt. E nesses dois minutos, que eram como uma explosão de luz em meio à impenetrável, insondável escuridão, um único pensamento se recordava claro, irrefutável além de qualquer questão – como tudo teria sido tão absolutamente diferente nesse tribunal, em Israel, na Alemanha, em toda Europa, e talvez em todos países do mundo, se mais dessas histórias pudessem ser contadas. (ARENDT, 2011, p. 253).

Possível abstrair daquele momento de grande relevância que o julgamento se consolidou como marco na reconstrução da história de todo o povo judeu. À medida que se traça a identidade de um indivíduo, está-se, inevitavelmente, atribuindo identidade a um povo. Em outras palavras, concede-lhe reconhecimento: Essa história não levou mais de dez minutos para ser contada, e quando terminou – a destruição sem sentido, sem necessidade, de 27 anos em menos de 24 horas – era de pensar que todo mundo, todo mundo deveria ter seu dia na corte. (ARENDT, 2011, p. 251).

Em suma, o julgamento de Eichmann não se limitou tão somente à atribuição de responsabilidade a determinado sujeito. No caso em apreço, a submissão do acusado ao julgamento perante a corte investida de poderes para condenar ou inocentar foi um passo essencial para se preencher inúmeras lacunas. Ao definir a verdade dos fatos, a retrospectiva dos fatos consubstanciou o direito à memória – independentemente de qual fosse a verdade, importava estabelecer a memória daquele Estado. Para este estudo, pertinente avaliar o quanto a análise da Arendt foi abrangente. Isto no sentido em que, tendo acompanhado as infindáveis sessões do julgamento, indicou em sua obra mais do que a história daquele homem, ou de suas vítimas. De fato, para a autora, aquele episódio foi crucial para estabelecer a postura dos Estados que aderiram ou se opuseram ao regime nazista. O julgamento de Eichmann tornou evidente a essência do pensamento que predominou na Alemanha nazista. As vítimas eram tratadas de forma tão indiferente, como se não mais fizessem parte da humanidade, como se estivessem alheias ao corpo coletivo, formado, inclusive, por cada deles: Além disso, em julho do mesmo ano [1941], poucas semanas depois do chamado de Heydrich, ele recebeu um memorando de um homem da SS estacionado no Warthegau, dizendo que “os judeus não mais poderão ser alimentados no próximo verão”,e acrescentando a sua consideração uma proposta que perguntava se “não seria uma solução mais humana matar por meios mais rápidos aqueles judeus incapazes de trabalhar. Isto, de toda forma, seria mais agradável do que permitir que morressem de fome”. Numa carta adjunta, endereçada ao “Caro camarada Eichmann”, o autor admite que “essas coisas às vezes soam fantásticas, mas são bastante realizáveis”. (ARENDT, 2011, p. 111).

Sob este prisma, permitir que se trouxessem à tona elementos do passado, não só conferiu reconhecimento àquele período, como consolidou a memória da humanidade. E é neste sentido que o julgamento de crimes que afrontaram a humanidade está intimamente ligado ao direito à memória: A grande vantagem de um julgamento centrado no crime contra o povo judeu era

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fazer emergir a diferença entre crimes de guerra, como fuzilamento de guerrilheiros e assassinatos de reféns, e “atos desumanos”, como “expulsão e aniquilamento” de populações nativas para permitir a colonização por um invasor, mas também que se esclarecia a diferença entre “atos desumanos” (realizados com algum propósito conhecido, embora criminoso, como a expansão pela colonização) e o “crime contra a humanidade”, cujo intento e propósito eram sem precedentes (ARENDT, 2011, p. 298).

Coexiste ainda outra conclusão extremamente pertinente apontada por Arendt. Conferir a culpa dos crimes cometidos contra a humanidade ao coletivo, ao Estado, sem denominar o papel de cada individuo é, em sentido prático, o mesmo que não atribuir responsabilidade a ninguém. Logo, percebe-se que, no que tange aos crimes contra a humanidade, responsabilidade e identidade estão consubstancialmente ligados entre si: Você disse também que seu papel na Solução Final foi acidental e que quase qualquer pessoa poderia ter tomado o seu lugar, de forma que potencialmente quase todos os alemães são potencialmente culpados. O que você quis dizer foi que onde todos são, ou quase todos, são culpados, ninguém é culpado. (ARENDT, 2011, p. 301).

Por fim, importa salientar que, no que toca aos crimes cometidos contra a humanidade, não há que se falar em uma política de esquecimento. Porquanto os crimes que afrontam o status humano deixam pendentes uma pergunta para a humanidade, cuja resposta, inevitavelmente, passa pela reconstrução da memória do período em que os crimes foram cometidos: Os buracos do esquecimento não existem. Nada humano é tão perfeito, e simplesmente existem no mundo pessoas demais para que seja possível o esquecimento. Sempre sobra um homem para contar a história. Portanto, nada pode ser “praticamente inútil”, pelo menos a longo prazo. Seria uma grande utilidade prática para a Alemanha de hoje, não meramente para o seu prestígio no estrangeiro, mas para a sua condição interna tristemente confusa, se houvesse mais dessas histórias para contar. [...] Politicamente falando, a lição é que em condições de terror, a maioria das pessoas se conformará, mas algumas pessoas não, da mesma forma que a lição dos países aos quais a Solução Final foi proposta é que ela “poderia acontecer na maioria dos lugares”, mas não aconteceu em todos os lugares. Humanamente falando, não é preciso nada mais, e nada mais pode ser dito dentro dos limites do razoável, para que este planeta continue sendo um lugar próprio para a vida humana. (ARENDT, 2011, p. 254).

De outro modo, crimes de proporção tal, que ultrapassam a pessoa da vítima e passam a afrontar a humanidade em seu todo, não estão, em nada, sujeitos ao esquecimento. Assim, tendo por base a obra arendtiana, possível a afirmação de que permitir a construção da memória, em oposição ao esquecimento, é um direito inerente ao sujeito, à nação e ao Estado. Diante de crimes que afrontam a humanidade, persiste a pergunta: estaria a problemática do esquecimento e da memória encerrados na questão ética? Importa, agora, compreender em que medida a memória encontra-se presente no ordenamento jurídico brasileiro, dirigindo a análise para a Constituição Federal de 1988, a fim de se estabelecer se a memória, aqui, configura-se como um direito. 3. A CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988 E O DIREITO À MEMÓRIA Da análise da obra de Arendt constata-se que os crimes que afrontam a humanidade não estão condicionados ao esquecimento. Verifica-se, ainda, que a atribuição de responsabilidade a determinado sujeito, por condutas cometidas contra a humanidade, permite que se caracterize 208

a identidade do próprio Estado. Porquanto, na medida em que se reestabelece a memória de um Estado, está-se corroborando com a ideia de democracia e de cidadania. Com base nas averiguações advindas do estudo da obra de Arendt, este texto lança seu foco para a Constituição de 1988. Indubitável, como premissa, entender em que cenário foi adotada a Constituição em questão. Neste sentido, este item tem sua base pautada no período de transição política entre o regime ditatorial e o regime democrático brasileiro, e seu ápice na análise do texto constitucional. A Constituição da República de 1988 é marcada pelo seu caráter democrático. O seu surgimento rompeu com o período em que, no Brasil, vigorava um regime de exceção em que direitos humanos fundamentais foram suspensos. E quando se fala naquele período ditatorial, inevitavelmente, está-se falando em graves violações de direitos humanos. De fato, entre os anos de 1964 e 1985, em nome da Segurança Nacional, o país foi governado pelos militares. Ocorre, no entanto, que a população não detinha exata noção dos mecanismos de governo adotados por aquelas autoridades. Mas aquele regime teria o seu fim - por razões econômicas, pela frágil empatia com a população, pela pressão internacional tangente às violações aos direitos humanos. E as autoridades passaram a dar indícios de uma possível transição para o governo democrático. Sinalizavam, contudo, que a transição determinante para a democracia brasileira teria de ser adquirida mediante uma política de compensação. Sob este prisma, a transição democrática brasileira pode ser conceituada como uma transição negociada. De fato, a manutenção do poder se deu entre as forças predominantes, sem a participação eficiente da sociedade: A transição democrática brasileira caracteriza-se por dois fatores importantes: em primeiro lugar, trata- se de uma transição negociada, ou seja, não houve ruptura com o regime, e seus atores negociaram a manutenção de poder dentre as forças predominantes, sem envolver o debate mais amplo com a sociedade; esta transição é considerada, portanto, “endógena”, ou seja, por um lado, articulada com o próprio governo, e, por outro, sem imposição de modelos específicos por atores internacionais. (MCARTHUr, 2012, p.82).

No Brasil, a transição entre o regime ditatorial e o regime democrático foi articulada pelo governo vigente àquela época. Esta peculiaridade põe em relevo a legitimidade e a intenção de tal proposta. Uma vez que o governo ditatorial direcionava a discussão acerca da transição, indubitável a constatação de uma possível manipulação tendenciosa, visando a ocultar a face inescrupulosa daquele governo. As características da forma com que se estabeleceu a transição entre o regime ditatorial e o regime democrático no Brasil indicam que a identidade do Estado brasileiro possa ter sido maquiada. Contudo, a justiça de transição, em seu cerne, exige um acerto de contas com o passado. De fato, as medidas adotadas no período transicional merecem ser analisadas com a lente da democracia de forma imperativa. Em suma, a justiça de transição tem seu conceito intimamente ligado às medidas adotadas para se reestabelecer a democracia. Notadamente, a justiça de transição é oriunda da necessidade, quase que urgente, de se pôr fim a um regime de exceção. Quando se fala em justiça de transição, está-se, necessariamente, falando em uma política estatal de compensação por crimes cometidos em nome do Estado. É justamente neste sentido que discorrem Tavares e Angra: A justiça reparadora, de transição ou transicional se configura naqueles procedimentos que têm a finalidade de compensar abusos cometidos contra direitos humanos em regimes ditatoriais, em períodos de exceção ou de situações de anomalia constitucional. Normalmente ela ocorre em períodos de transição, quando do restabelecimento do Estado de Direito. Trata-se de responder à difícil e delicada pergunta sobre quais as medidas a serem adotadas por um novo regime em relação aos

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fatos ocorridos durante o regime que o precedeu, indagação especialmente difícil quando a ditadura truculenta e sufocante sucede a democracia aberta e plena. [...] Essa necessidade de prestar contas com o passado torna-se imperiosa como forma de pacificar a sociedade, permitindo que ela possa evoluir sem a constante recordação das feridas abertas do passado. (apud SOARES, 2009, p.71)

Portanto, quando se pensa em justiça de transição está-se fazendo referência a uma justiça de reparação. A justiça de reparação se constitui com fundamento no estado democrático, uma vez que não se pode pensar em democracia sem conferir ao Estado e aos seus cidadãos identidade. A justiça de transição pretende ser coerente com o princípio democrático assegurado pela Constituição de 1988. Aqui, quando se fala em justiça de reparação, está-se fazendo referência as possíveis vítimas de violações aos direitos humanos. No entanto, a chamada justiça de reparação tem seu cerne ligado ao reestabelecimento da verdade, cujo interesse, diz respeito a toda sociedade: As transições, que habitualmente processam-se nos circuitos políticos, passaram a ser informadas com peso, pelas influências do direito. Outrora prospectivas, adotando uma perspectiva unilateral de pacificação em detrimento da justiça, as transições passam a ser vistas também como momentos privilegiados para se olhar pro passado e efetivar-se uma reparação tanto daqueles que sofreram diretamente as violações dos direitos humanos, como da sociedade (QUINALHA, 2012, p. 159).

A justiça de transição, ademais, impõe ao Estado deveres advindos dos próprios arbítrios que violaram o sujeito humano. Sob este prisma, se o Estado deixou de proteger seus cidadãos e, mais além, se protagonizou as violações aos direitos humanos, inevitável atribuir a ele deveres com as supostas vítimas. Tais deveres, contudo, não se limitam tão somente às eventuais vítimas, uma vez que foi lesionado o status humano. Desta feita, lidar com o legado advindo de um governo arbitrário é papel do Estado Democrático. A proteção aos direitos humanos é responsabilidade do Estado, porquanto foi legitimado para tanto. Assim, não se pode falar em justiça de transição sem se procurar retificar as atrocidades cometidas em nome do Estado. No Brasil, a justiça de transição caminha a passos lentos. A tentativa de efetuar a transição de forma justa, no período em que o regime ditatorial deu lugar à democracia, restou frustrada. Neste norte, vislumbra-se que, aqui, a transição se consolidou com a promulgação da Lei de Anistia (6.683), em 1979. A Lei de Anistia brasileira repeliu o processo transicional, haja vista que autoanistiou aqueles que cometeram crimes de lesa-humanidade. Os crimes sequer foram investigados, o perdão advindo pela anistia abarcou crimes sem permitir que houvesse conhecimento dos atos ocorridos naquele extenso período. Desta feita, sob o manto da Lei de Anistia, pretendeu-se apagar os atos cometidos em nome do Estado, deixando inúmeras páginas em branco na memória de nosso Estado. No conceito de justiça de transição está intrínseca a ideia de ruptura com a ordem autocrática, dando ensejo ao surgimento do Estado Democrático. Não há como negar que a justiça reparadora tem o condão de por fim a prática de crimes que corrompem com a dignidade humana. Mas, esta afirmação não abstrai o propósito de adentrar no passado com o fim de garantir a realização da democracia. Assim, conforme a democracia ganha corpo – pela via da justiça de transição -, adquire relevo o direito à memória: [...] o principal alvo da justiça transicional não é culpar individualmente os repressores. Mas, sim, ultrapassar objetivamente o estado de exceção e promover a transição para o novo regime, ao mesmo tempo em que estabelece a verdade dos fatos ocorridos justamente para que sejam a memória de um estado de coisas ao qual não se deve voltar (CURY, 2012, p. 301).

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De fato, no que toca à justiça de transição, cuida-se de um desafio que visa à garantia do Estado Democrático. Neste aspecto, importa que as concessões ao passado não corrompam com a ordem democrática. Sobre esta perspectiva, assinala Flávia Piovesan: A justiça de transição lança o delicado desafio de como romper com o passado autoritário e viabilizar o ritual de passagem à ordem democrática. O risco é que as concessões ao passado possam comprometer e debilitar a busca democrática, corrompendo-a com as marcas de um continuísmo autoritário. Justiça e paz; justiça sem paz; e paz sem justiça são os dilemas da transição democrática (2007, 204).

A problemática brasileira não reside tão somente na promulgação da Lei de Anistia, com uma abrangência irrestrita. No que tange à justiça de transição não há como negar que a promulgação da referida Lei consistia em um de muitos passos a serem dados. Nesta esfera, salienta Monclaire que a transição: “era somente um dos momentos da construção democrática. Isso obrigava a ver mais adiante, a considerar que à transição sucedia uma outra fase, rapidamente batizada pelos transitólogos arrependidos como consolidação democrática” (2001, p. 63). Nesta seara, vislumbra-se que a justiça de transição impõe a adoção de medidas condizentes com o Estado Democrático que vigora no Brasil. De fato, o fenômeno da transição política no Brasil deve seranalisado a partir da justiça de transição. Logo, o Estado possui o dever de se preocupar com a promoção de reformas que conduzam à constituição/preservação da memória e da verdade, imprescindíveis, para o rompimento do legado autoritário anterior. Ademais, a efetiva promoção da justiça de transição no Brasil indicaria que a República pós-88 compromete-se, terminantemente, com a alteração das instituições políticas. E, que tal preocupação, engloba a ampla garantia dos direitos humanos. Pelo o que se denota neste estudo, a justiça de transição parte do passado para reestruturar a ordem social. No entanto, no Brasil, a Justiça de transição caracteriza-se como inacabada, uma vez ser pendente uma análise responsável acerca do período ditatorial: Dessa forma, a Justiça de Transição brasileira é considerada atrasada, “postergada”, encontrando- se, ainda, quase 25 anos após a promulgação de nossa Constituição Democrática, sob intenso desenvolvimento e concretização. A Justiça de Transição no Brasil é, ademais, criticada por sua “descontinuidade lógica”, ao alternar, sem uma maior sistematização temporal ou estratégica, mecanismos de responsabilização do Estado, de reparações às vítimas, e de busca da verdade (MCARTHUR, 2012, p. 86).

A democracia exige que o Estado não legitime crimes que atentem contra a humanidade. Incumbe ao Estado, desta feita, trazer à tona elementos do passado visando ao fortalecimento do Estado Democrático. O Brasil, no tocante à justiça de transição, encontra-seentre aqueles Estados que estudos denominam de vertente minimalista. Notadamente em razão de ter adotado a anistia como forma geral para tratar das violações aos direitos humanos ocorridas no passado. Com a anistia brasileira, somada ao aspecto de legalidade autoritária (PEREIRA, 2010) existente durante o período de exceção, adotou-se a política do esquecimento quantoaos fatos ocorridos na ditadura militar. O Estado democrático brasileiro manteve-se inerte por extenso período, e há de se destacar que as suas recentes ações foram impulsionadas pelas cortes internacionais. Não obstante a existência de políticas que visam a garantir o direito à memória, não há como negar que se trata de um direito que está sendo constituído. O direito à memória e à verdade no Brasil ainda é algo pendente, uma vez que, até hoje, a história contada sobre o regime ditatorial é permeada de lacunas lineares e narrativas fechadas e silenciosas (SILVA FILHO, 2010). Assim, encontrando respaldo no texto constitucional, inevitável a constatação de que a justiça de transição deve ser encarada com maturidade e autonomia pelo Estado Democrático do Brasil. Neste sentido, vislumbra-se que a efetivação de uma justiça de transição, sob a égide da democracia, somente poderá enobrecer a nossa história. O conhecimento acerca da nossa história 211

tornará possível a superação das ofensas aos Direitos Humanos: Ao ingressar no século 21, o Brasil se revela portador de todos os ingredientes de uma verdadeira democracia política. Reúne, portanto, condições plenas de superar os desafios ainda restantes á efetivação de um robusto sistema de proteção aos Direitos Humanos. Não pode temer o conhecimento mais profundo a respeito do próprio passado. (Secretaria Especial dos Direitos Humanos, 2008, p. 29).

Se a justiça de transição se traduz como justiça de reparação, no que toca aos atos atentatórios ao ser humano, levados a efeito durante o regime militar, possível se apontar uma pendência história. Como no caso de Eichmann, constata-se que não se trata tão somente de emitir sentenças condenatórias ou absolutórias, mas, mais além, cuida-se de garantir o direito à memória. Nesta esfera, a justiça de transição está intimamente ligada ao princípio democrático protegido como cláusula pétrea em nossa Constituição. Percebe-se assim que a justiça de transição, na medida em que cumpre a sua função reparadora, traz à tona elementos históricos desconhecidos. Tais elementos estão intimamente ligados com a democracia, uma vez que não se pode pensar em democracia sem garantir aos seus integrantes os fatos pertinentes à sua história. Nesta vertente, à medida que se restitui o passado, está-se garantindo o direito à memória. Em princípio, poderia se afirmar que a problemática do direito à memória está restrita à questão ética. Ocorre, contudo, que esta afirmação não condiz com o arcabouço jurídico brasileiro. A Constituição de 1988, ao estabelecer o acesso à informação como princípio fundamental da república brasileira, respalda o direito à memória. De fato, o rol de princípios estampados no texto constitucional não é exaustivo. E, inclusive no que toca ao direito de acesso à informação, há de se ter um olhar ampliado: Estamos diante de um direito fundamental quanto mais ele se aproxima da indisponibilidade da pessoa humana. Isso serve para delinearmos claramente que o rol de direitos fundamentais da nossa Constituição, como já consagrado em doutrina e jurisprudência, não é taxativo. Outros existem, além daqueles dispostos em nosso art. 5º, com vistas ao incremento de dignidade na vida humana. O mesmo se dá com o direito de acesso à informação, que permeia um bom número de dispositivos constitucionais e legais (SOUZA, 2012, p. 164).

O direito à informação está, na qualidade de direito fundamental, intrinsecamente ligado aos direitos humanos. Conforme Nogueira Junior, o direito à informação é um direito fundamental constituinte do Estado Democrático de Direito, pois “contém um núcleo dotado de eficácia jurídico-normativa concretamente bastante e voltado à proteção dos cidadãos contra a prepotência e o arbítrio” (apud SILVA, 2007, p. 55). Sob este aspecto, o direito à informação visa a garantir a soberania popular frente ao possível abuso estatal. O direito de acesso à informação foi contemplado na Constituição de 1988, sem que fosse pacífica a sua inserção. Conforme Costa e Fraiz (1989, p. 63) as dificuldades de aceitação da noção de direito de acesso à informação pela Assembleia Nacional Constituinte foram de diversas ordens, com destaque para a tendência conservadora de alguns constituintes. Não obstante a existência de certa resistência, o fato é que o direito à informação é um direito indissociável do Estado Democrático Brasileiro. Em suma, como visto, o direito de acesso à informação está presente no corpo da Constituição, consubstanciado como cláusula indissociável da democracia. Não há como afastar o direito à memória do direito à informação. Porquanto é, inclusive, pela via da informação que se constrói o direito à memória. No entanto, para este estudo, necessária se faz a distinção entre o direito à memória e o direito à informação. O direito à informação está presente no direito à memória na medida em que permite que a sociedade consolide o Estado Democrático. Com maior amplitude se revela o direito à memória, uma vez que este não se encerra no acesso à informação, mas se consolida na 212

sua apropriação e no rompimento com o passado. Neste sentido, é o dizer de Petrus: A partir daí, o direito à memória e à verdade apresenta-se como uma chave dialética que abre, ao mesmo tempo, duas portas aparentemente opostas. Conecta com o passado, na medida que constitui, como preceitua a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, um “direito de caráter coletivo que permite à sociedade ter acesso à informação essencial para o desenvolvimento dos sistemas democráticos”. Mas também rompe com o passado, medida que possibilitaria às instituições do Estado que se envolveram na repressão converterem-se de fato à democracia, pois mostrariam na prática cotidiana que “o que elas são agora não é completamente ligado àquilo que fizeram no passado”. No caso brasileiro, estamos longe de abrir ambas as portas. (2010, p. 282).

Sob esta vertente, percebe-se que, no Brasil, o advento da Lei 12.528/11 (Lei de Acesso à informação) deflagrou um caminho em direção ao direito à memória. De fato, à luz da referida lei surgiu a Comissão Nacional da Verdade, cuja natureza não finda no acesso à informação. O que se constata, com razão, é que o acesso à informação efetiva o direito à memória como direito fundamental: Em uma primeira acepção, podemos identificar esse ponto de contato como uma via pública de comunicação entre a Comissão Nacional da Verdade e as vítimas e testemunhas, que permita e facilite o acesso destas à Comissão e, assim, a revelação de dados e fatos que impulsionem o desenvolvimento dos trabalhos. A fim de possibilitar o acesso da sociedade à Comissão Nacional da Verdade, a Lei no 12.528/11 (art. 4o, § 6o) confere a qualquer interessado o direito de prestar informações ou requerê-las da Comissão. Embora não estabeleça procedimentos ou prazos para essa troca de informações, a Lei abre espaço para que os cidadãos, especialmente vítimas e testemunhas, reivindiquem sua participação e possam contribuir com seus relatos e depoimentos. Na medida em que a Comissão Nacional da Verdade tem como finalidade efetivar o direito à memória, à verdade histórica e promover a reconciliação nacional, torna-se imperioso que ela se mantenha aberta e, não só possibilite, como encoraje o exercício desta prerrogativa da sociedade (CURY, 2012, p. 299).

Portanto, o direito à memória difere do direito de acesso à informação. Pode-se afirmar que este está contido naquele. Considerando que a Constituição de 1988 não é exaustiva em seus princípios, a previsão constitucional de um destes direitos equivale à previsão do outro. Ademais, o direito à informação abarca o direito de informar, ser informado, ter acesso à informação. O direito à memória, por sua vez, possui a função de construir a identidade histórica de um Estado fazendo uso das informações. O direito à memória é um direito individual e coletivo, uma vez que a memória não está limitada ao indivíduo, tampouco se restringe aos limites temporal e espacial. Além disso, a inércia prolongada em relação ao esclarecimento desses crimes provoca um efeito negativo nas memórias, individual e coletiva. Se, por um lado, longe do clamor dos acontecimentos, as paixões e os discursos inflamados cedem mais facilmente lugar à razão, por outro, um lapso de tempo tão dilatado pode provocar sensação de incerteza, distorções ou esquecimento de fatos e dados, dificuldade de reconhecimento de agentes implicados. A memória liga o passado e proporciona a construção de uma identidade histórica. No Brasil, o passado foi mantido por tanto tempo desligado do presente, que a solidez de nossa identidade histórica é coloca-

da em cheque (CURY, 2012, p. 306). 213

Nesta esfera, por exemplo, quando se cogita a revisão da Lei de Anistia não se está falando tão somente no direito de acesso à informação. Mais além, a pretensão reside na preocupação com memória coletiva, com a identidade do Estado. Ao passo que, a reconstrução de um momento histórico, fundado no direito de acesso à informação, implica na aquisição do direito à memória. O direito a memória amplia o direito de acesso à informação. Se a informação contém a individualidade, o direito à memória possui o condão de trazer o individual para o coletivo: O direito à verdade assegura o direito à construção da identidade, da história e da memória coletiva. Serve a um duplo propósito: proteger o direito à memória das vítimas e confiar às gerações futuras a responsabilidade de prevenir a repetição de tais práticas. Sob a ótica republicana e democrática, a releitura da Lei de Anistia e o direito à verdade rompem com o pacto do silêncio e com uma injustiça continuada. Lançam luzes à dimensão sombria de nossa história, na defesa dos direitos à justiça, à verdade e à memória individual e coletiva (PIOVESAN, 2007, p. 38).

O direito de acesso à informação é uma pedra angular para a perpetuação do Estado Democrático de Direito. Razão pela qual, encontra-se elencado no rol de direitos fundamentais que incorporam a Constituição de 1988. De igual forma, não se pode cogitar a compreensão do passado sem a garantia fundamental do acesso à informação. De fato, o direito de acesso à informação possui papel fundamental na reconstrução do passado. E a superação do passado perpassa, inevitavelmente, pela sua compreensão. Logo, a previsão constitucional do acesso à informação e o princípio democrático que emana da Constituição de 1988, conferem legitimidade ao direito à memória. Se a informação, conforme afirmado, é elemento de justiça, o direito à memória dilata a justiça democrática até o passado. Por fim, indubitável a constatação de que o acesso à informação é um direito fundamental, de igual forma o princípio democrático se consubstancia como pedra angular do estado democrático fruto da Constituição de 1988. Se o direito à memória nasce do princípio democrático e traz em seu bojo o direito de acesso à informação, poder-se-ia afirmar que também ele se consolida como direito fundamental. 4. O BRASIL E O DIREITO À MEMÓRIA Se, como dito, o direito à memória se encontra entre aqueles elencados como direitos humanos fundamentais do Estado brasileiro, persiste o questionamento acerca da sua aplicabilidade. Os direitos fundamentais, assim erigidos pelo constituinte, devem preponderar sobre o mero formalismo e devem nortear o direito em todas as suas faces. Por esta razão, toda interpretação das leis se fará em conformidade com a Constituição (REGLA, 2012). A afirmação de que o direito à memória encontra respaldo no texto constitucional da República Brasileira implica em consequências pertinentes ao passado e ao presente deste Estado. Se um direito não se traduz em artigos, a legislação pátria necessita ser observada sob o prisma do direito à memória. E, nesta seara, constata-se que, com o reconhecimento de que o direito à memória faz parte do arcabouço jurídico brasileiro, advém, necessariamente, a exigência de se reconhecer fatos levados a efeito no passado. O direito à memória se corporifica na verificação das violações aos direitos humanos ocorridas ao longo da história do país. A construção da memória nacional atribui ao Estado a preocupação em agregar contornos reais à sua história. No dizer de Silva Filho, a memória do Estado está atrelada à busca por “narrativas diferentes e todas importantes para recompor o caleidoscópio da história, mas ao mesmo tempo é imprescindível que seja construída uma narrativa pública reconhecida pelo Estado em relação aos abusos cometidos em nome dele mesmo” (2010, p. 31). Neste campo, não basta que o sujeito reconheça as incongruências cometidas em nome do Estado. O direito à memória substancia o dever de contar-se a história pertinente ao Estado de forma pública (LAFER, 2005). Tal reconhecimento deve partir do Estado, isto porque o direito à memória importa à coletividade e não somente ao indivíduo. De fato, o princípio democrático traz em seu núcleo o papel do Estado em identificar even214

tuais fatos que não se coadunam com os direitos fundamentais. As violações aos direitos humanos são de interesse do Estado, porquanto afrontam a humanidade, sem a qual o Estado perderia a razão de ser. O direito à memória está previsto na Constituição de 1988 como direito fundamental, o que possibilita uma série de consequências. No que tange aos direitos humanos, implica na obrigação de o Estado atentar-se para as violações cometidas, em seu nome, no passado. Sob este prisma, admitir que o direito à memória está inserido no ordenamento jurídicoconsiste, sucintamente, naadoção de medidas pontuais: investigar e esclarecer violências levadas a efeito pelo Estado no passado; julgar os responsáveis; conceder reparação material às vítimas; reformar ou extinguir instituições responsáveis pela repressão política; exercer a memória das violações. (ZYL, 2009; CIURLIZZA, 2009). Tais estratégias, no entanto, não possuem sequência definitiva e poderão ser adotadas pelos Estados, na medida em que forem pertinentes à consolidação do direito à memória. No Brasil, o direito à memória não está restrito à norma constitucional. O Estado tem caminhado na direção da construção do direito à memória, e duas notáveis posturas indicam que o direito à memória não se finda na previsão legal. Tratam-se da anistia conferida ao marinheiro João Cândido, por meio da Lei 11.750/2008, e da recente decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo que determinoua retificação do registro de óbito do jornalista Vladimir Herzog. Seja na promulgação da referida Lei, seja na decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo, denota-se que a reconstituição da história, sob a égide da verdade, tem se consolidado como um legado para a democracia atual. Ademais, vislumbra-se que o direito à memória se deflagra como uma preocupação dos poderes legislativo, executivo e judiciário com eventos pretéritos. Ambas as posturas corroboram com a ideia de que o direito à memória está intrinsecamente ligado como Estado Democrático Brasileiro. O direito à memória exige do Estado uma postura ativa no que tange às violações aos direitos humanos cometidas, em nome do Estado, no passado. Considerando que as posturas acima elencadas estão fundamentadas no direito à memória, este estudo se debruçará, brevemente, nos dois casos. Notadamente, em razão de, em ambas as hipóteses, estar explícito que a Constituição de 1988 prevê o direito à memória e que o Estado Brasileiro, na postura de todos os seus poderes, demonstra o interesse em consolidá-lo. O direito à memória torna-se tangível na medida em que o Estado se apropria da sua história. As suas consequências alcançam eventos ocorridos no passado. Assim, seguindo a premissa de que o direito à memória encontra amparo na Constituição de 1988, importante destacar a concessão de anistia póstuma a João Cândido e para a determinação da retificação da certidão de óbito de Vladimir Herzog.2 2 A concessão de anistia post mortem a João Cândido Felisberto. Admitir que o direito à memória encontra-se presente na Constituição de 1988 significa assumir que o Estado deve rever eventos ocorridos no passado, sobretudo quando estes constituírem violações aos direitos humanos. Na medida em que o Estado possibilita que sejam revistos fatos ocorridos no passado, está-se, naturalmente, em pauta o direito à memória. É justamente neste sentido que a promulgação da Lei 11.750/2008 representa uma das faces do direito à memória no direito pátrio. O advento da Lei 11.750 – aprovada por unanimidade no Congresso Nacional e sancionada pelo Presidente da República em 23.7.2008 - indica que o Estado Brasileiro, tem voltado seu olhar para o passado. De fato, o disposto em seu artigo 1º alcança eventos ocorridos em 1910. A concessão da anistia póstuma a João Cândido e aos marinheiros que participaram da Revolta da Chibata revela que na democracia está intrínseca a afirmação dos direitos humanos: [...] a história de um país é ponto chave para compreendermos o presente e prepararmos o futuro. Trazer à tona a permanência das teias do passado (gerado, primordialmente, pelo trabalho escravo e baseado na grande agricultura monocultora de exportação) é tocar em preconceitos, desigualdades e violências ainda hoje mal resolvidos, apesar das conquistas e melhorias. E tal escolha do tema aponta, sobretudo, para a disposição em transformar democraticamente tal realidade, valorizando a afirmação dos Direitos Humanos no Brasil em suas variadas dimensões. (MOREL, 2008, p. 9). O núcleo central da referida Lei reside na restauração dos direitos assegurados pelo Decreto 2.208/1910 ao marinheiro João Cândido e aos demais marinheiros envolvidos na Revolta da Chibata. Isto porque, naquele período, o Decreto 8.400 permitiu a exclusão da Armada de todos os marujos cuja presença fosse julgada inconveniente por seus superiores (HNB apud MANCUSO, 2007). E, dentro desta possibilidade, foi instaurada uma realidade de repressão em massa, cuja principal característica foi a arbitrariedade. A revolta da Chibata, que antecedeu o Decreto 2.208/1910, consistiu na manifestaçãodos marinheiros contra a forma desumana como eram tratados por seus superiores. A legislação de época não permitia que os marinheiros fossem corrigidos por meio de pancadas de espada e de chibata.Ainda assim, os resquícios do Brasil Colonial imputavam aos marinheiros tais afrontos. Liderados por João Cândido, que havia sido alvo das duras penas, os marinheiros instauraram aquela que ficou conhecida como A Revolta da Chibata. O movimento tinha como objetivo acabar com tamanha violência, visavapor um fim aos castigos corporais na Marinha e, para tanto, afirmava estar disposto a bombardear a ci-

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dade do Rio de Janeiro (HNB apud MANCUSO, 2007). Para aquele movimento era inconcebível a forma como os marinheiros eram tratados: “Nós que vínhamos da Europa, em contato com outras marinhas, não podíamos admitir que na Marinha brasileira ainda o homem tirasse a camisa para ser chibateado por outro homem” (CÂNDIDO apud MOREL, 2008, p.30). Diante da situação ameaçadora, o Marechal Hermes da Fonseca, pelo Decreto 2.280/1910, garantiu a anistia a todos os envolvidos na Revolta da Chibata. Os marinheiros por sua vez, devolveram os navios apreendidos e colocaram um ponto finalnaquele manifesto.No entanto, rapidamente, o Decreto 2.280 perdeu seu valor e todos os anistiados viram-se excluídos da Marinha brasileira. A revogação da anistia concedida aos marinheiros envolvidos na Revolta da Chibata corroborou com as violações aos direitos humanos, naquela época, refletidas nas chibatadas desferidas contra os marinheiros. A exclusão da Marinha brasileira daqueles que se opuseram aos castigos corporais foi uma medida que, na prática, eternizou cada uma das chibatas. Assim, com a revogação da anistia, o Estado reiterou as ofensas ao ser humano. Atualmente, por força da Lei 11.750/2008, observa-se que é pretensão do Estado Democrático assegurar os direitos humanos pertinentes, inclusive, ao passado. Na restauração da anistia outrora concedida aos marinheiros envolvidos na Revolta da Chibata encontra-se consumado o direito à memória. Em suma, a observação dos fatos que ocasionaram a Revolta da Chibata indica que os seus líderes não foram os únicos responsáveis pelo manifesto. De igual forma, não se pode agregar as origens da Revolta tão somente às chibatadas. O que estavam em foco eram os direitos que há longo tempo estavam sendo abstraídos pelo Estado. Assim, ao tempo em que a Lei 11.750/2008 restaura a concessão da anistia aos marinheiros integrantes da Revolta da Chibata, o Estado Brasileiro está assumindo a responsabilidade pelos fatos ocorridos naquele período. Trata-se de uma postura que tem o condão de reestabelecer a verdade. A Revolta da Chibata não foi resultado tão somente da indignação dos marinheiros, ela teve suas raízes em uma problemática na qual a responsabilidade do Estado estava devidamente inserida. Neste sentido, enfrentar os fatos ocorridos há mais de um século permite a compreensão de problemas que dizem respeito à sociedade brasileira. Também aqui se verifica que o direito à memória foge dos limites do indivíduo e passa a pertencer à coletividade:Relembrar João Cândido hoje significa compreender que seus gestos trazem à tona problemas ainda inquietantes para a sociedade brasileira, como o racismo, a desigualdade social, a violência cotidiana do Estado sobre as camadas pobres da população e a democratização das Forças Armadas – sem esquecer o mito de que existe uma tradição ordeira e pacífica na história do Brasil. (MOREL, 2008, p.111).Garantir o direito à memória implica na constatação de que, talvez inúmeras vezes, o Estado possa ter sido protagonista de violações aos direitos humanos. É neste sentido que se rompe com a ideia fantasiosa de que a história do Estado Brasileiro, necessariamente, é pautada pela tranquilidade, de que a democratização foi conquistada de forma pacífica.O direito à memória abarca o dever estatal de assumir as suas responsabilidades, na busca pela verdade. Desta feita, pode-se afirmar que “O direito à verdade está atrelado ao direito à memória, pois a memória é composta do aprendido e do vivenciado, é a partir dela que construímos referenciais, nossas identidades e elaboramos nossos projetos” (RODRIGUES, 2012, p. 262). Assim, a identidade estatal está intimamente ligada ao direito à memória.Logo, quando se garantem direitos - ainda que póstumos - a um indivíduo, o que se está garantindo é um direito inerente à humanidade. Nesta senda, aproximar-se da figura de João Cândido, pela via normativa, possibilita adentrar no passado visando um futuro mais democrático:É responsabilidade coletiva garantir que os Direitos Humanos sejam realidade para todos, independente de posição social, nível de instrução, gênero, religião, cor da pele, opção política, etc. Aproximando-se o centenário da Revolta da Chibata, podemos constatar que a vida de João Cândido traz muitas lições para aprendermos e ensinarmos: virar as páginas de sofrido passado em direção a um futuro melhor (MOREL, 2008, p.9). No mais, percebe-se que a reparação oriunda da Lei 11.750/2008 abre a possibilidade de pagamentos de indenizações às famílias dos marinheiros, agora, protegidos pela anistia. Este estudo não se descuida para o fato de que possíveis indenizações serão objetos de análise do poder judiciário. Contudo, ainda que sujeitas ao controle do judiciário, não há como negar que também aqui se faz presente uma consequência da previsão constitucional do direito à memória. Enfim, diante da análise da Lei 11.750/2008, inevitável a constatação de que o direito à memória não se limita ao texto constitucional brasileiro. De outro ângulo, a sua consolidação agrega conquistas que dizem respeito a toda sociedade brasileira. Portanto, possível afirmar que, na concessão póstuma de anistia aos marinheiros envolvidos na Revolta da Chibata, identifica-se a aplicabilidade do direito à memória. A retificação da certidão de óbito de Vladimir HerzogNa afirmação de que o direito à memória está previsto na Constituição de 1988, como um direito fundamental, encontra-se a premissa capaz de substanciar a alteração de dados públicos. O direito à memória agrega ao Estado o dever de estabelecer a verdade seja ela pertinente ao passado ou ao presente. E, sob este vértice, o formalismo deve se submeter às consequências oriundas do direito à memória. Nesta seara, a decisão proferida nos autos do Processo autuado sob o n. 004669064.2012.8.26.0100, que tramitou no Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, consolida a afirmação de que o direito pátrio está arraigado no Direito à memória. De fato, ao determinar que fosse retificada a certidão de óbito de Vladimir Herzog, o Exmo. Juiz Márcio Bonilha Martins Filho (Juízo da 2ª Vara de Registros Públicos da Capital) fez emergir o direito à memória.Tal alteração não se encerra na retificação da causa mortis, em seu cerne está presente a admissão de que o de cujus foi vítima de violações que atingiram a humanidade. Para que se possa compreender a dimensão de tal decisão, necessário se faz o regresso até o ano de 1975. Tratava-se de um período em que as prisões arbitrárias faziam parte da normalidade brasileira. Não obstante ao fim das guerrilhas, os militares continuavam enxergando subversivos em todos os lados (JESUS, 2009). E foi neste cenário que, em outubro de 1975, o jornalista Vladimir Herzog, diretor de jornalismo da TV Cultura foi intimado a comparecer no Destacamento de Operações e Informações – Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-CODI) de São Paulo. Após ter sido submetido a inúmeras lesões corporais, Herzog sairia morto daquele ambiente em que as violências eram impetradas em nome do Estado. A versão oficial, no entanto, acerca da causa da morte indicava que o jornalista havia cometido suicídio por enforcamento. Em hipótese alguma o Governo Militar poderia, naquela época, admitir a prática da tortura. Tampouco faria referência à repressão, pelo uso da força e da humilhação, aos que se eram contrários a ditadura: A morte de Vladimir Herzog ocorreu em um contexto em que muitos jornalistas foram presos e torturados. Como os grupos armados de esquerda haviam sido eliminados, o foco do aparato repressivo militar voltou-se para todos os que defendiam o fim da ditadura. Para Frota, o exército precisava continuar a ação energética que vinha adotando, desde a edição do AI-5, para evitar que a situação voltasse àquela existente, em 1964, que motivara o golpe. (TAMAS,

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Na medida em que o Estado regressa ao passado pretendendo restituir a verdade, alterar os dados inverídicos, se identifica a existência do direito à memória no Brasil. Quando, impulsionada pela Comissão da Verdade, a justiça determinou que no atestado de óbito de Vladimir Herzog passa-se a constar como causa da morte:lesões e maus-tratos sofridos durante o interrogatório nas dependências do segundo Exército DOI-Codi, pode-se verificar a aplicabilidade do direito à memória no Brasil. No mais, poderiam aqui ser apontadas outras consequências nascidas da constatação de que o direito à memória está alicerçado como premissa fundamental do Estado Brasileiro. A hipótese deste estudo é que a mais importante das consequências encontra seu respaldo na abordagem de Hannah Arendt acerca do direito à memória. Por tal razão, este texto encerra com a observação, ainda que breve, acercada contribuição da autora para o tema alvo deste estudo. 5. O DIREITO À MEMÓRIA A PARTIR DE HANNA ARENDT: CONSIDERAÇÕES Assumir que um Estado é amparado pelo Direito à memória, implica no dever de responsabilidade perante o passado (AMORIM, 2008). Afirmar que o direito à memóriaestá previsto na Constituição de 1988, como um direito fundamental, significa admitir que o Estado Democrático Brasileiro deve adotar posturas que se coadunam com seus princípios. Assim, nascem desta afirmação: a declaração de direitos, a condenação ao pagamento de indenizações e, possivelmente, a condenação dos envolvidos em crimes que afrontaram a humanidade. No entanto, na observação das constatações de Arendt possível uma compreensão ainda mais profunda acerca do direito à memória. É a memória que “garante o acabamento necessário para que todo o acontecimento vivido possa transmitir seu significado” (ARENDT, 1997, p. 31). Nesta senda, uma das maiores contribuições da consolidação da memória está presente na identidade cultural do país, que se forma a partir da reconstrução do passado. No dever de não esquecimento da história, surge um legado para as gerações futuras. E, nesta ótica, aproximar-se do passado permite a interrupção das violações que podem se perpetuar no tempo: Por meio das ações (estas que não podem ter um fim predeterminado) os eventos interrompem os processos históricos e, na concepção de Arendt, só podem ser dotados de algum significado na medida em que eles se distanciam do passado, sendo descobertos pelo historiador que, através do exercício do pensamento, enfatiza os feitos singulares e as experiências humanas significativas (MAGALHÃES, 2008, p. 78).

Para Arendt, aproximar-se do passado é exercer o pensamento e, neste sentido, romper com a lacuna entre o passado e o presente. Sob este prisma, salienta a autora que uma sociedade tornase cúmplice da demência totalitária do Estado na medida em que partilha as mentiras do sistema não por engano, mas pela recusaem perscrutar a verdade dos fatos (HSIAO, 2007). Foi justamente 2009, p.167).O Estado não estava disposto a admitir a verdadeira causa da morte de Herzog. Afirmar que Herzog tinha cometido suicídio era uma postura cômoda e que atribuía à vítima a responsabilidade por sua morte. Assim, foi mantida a versão de que a morte foi causada por vontade de Vladimir Herzog e, naturalmente, no registro de seu óbito fez-se constar como causa da morte: enforcamento por asfixia.Com o passar do tempo, pareceu que a questão estava encerrada. De fato, com a inércia do Estado, “criou-se um fosso entre o passado e o futuro, como se para compor o futuro fosse preciso esquecer o passado” (ROLLEMBERG, 2006, p. 85). Em consequência, a discussão acerca da causa da morte de Herzog ficou suspensa até meados de 2012.Com a sentença que determinou a alteração de dados públicos, ocorridos em 1975, restou vencida a frágil ideia de que é preciso virar a página da história da ditadura militar brasileira sem que se tome conhecimento das violações cometidas em nome do Estado. O Estado Democrático deve se sobrepor a ideia de esquecimento. Está intrínseca na democracia a oposição à supressão da verdade no que toca às violações aos direitos humanos ocorridos no passado. O esquecimento dos crimes, dos fatos e das violações cometidas no passado, foi o resquício do regime totalitáriobrasileiro. A utilização equivocada da anistia, enquanto um autoperdão, uma espécie de amnésia histórica imposta, em nome de uma alegada pacificação social, deixou no limbo da impunidade determinados delitos (PERRONE, 2002). Foram construídas narrativas falsas – aqui consistentes na causa morte de Herzog – na tentativa de se manipular a verdade.

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neste sentido que a sociedade alemã demonstrou a incapacidade de pensar, porquanto compartilhou, sem barreiras, com o holocausto levado a efeito pelo governo hitlerista. No caso emblemático do julgamento de Eichmann, constata-se que as contribuições para àquele Estado escaparam dos limites individuais. Naquele espaço jurídico estava presente a história de todo um Estado. Diante da figura do acusado, dos seus relatos, observa-se que o Estado pode, erroneamente, legitimar afrontas aos direitos humanos: Talvez por sentir-se escudado na noção de indeterminação da lei Adolf Eichmann tinha repetido, tantas vezes, que as palavras do Führer tinham força de lei. Arendt observa que Eichmann, bem menos inteligente que seus superiores, sem nenhuma formação, percebeu, ao menos vagamente, que não uma ordem, mas a própria lei os havia transformado todos em criminosos (RODRIGUES, 2006, p. 167).

Ao apontar a fragilidade do acusado, Arendt aponta, inclusive, para a sociedade nele refletida. Neste aspecto, para Arendt (2011) a massa assassina é assustadoramente normal, o seu perigo reside na incapacidade de pensar. Naquele julgamento “O que está em evidencia é a própria ação moral engendrada na realidade cotidiana” (RODRIGUES, 2006, p.162). Portanto, quando o Direito propicia o regresso ao passado, são traçadas a identidade dos indivíduos, do pensamento coletivo e, naturalmente, do Estado. Quando Arendt relata o julgamento do ex-oficial nazista Adolf Eichmann e se defronta com a incapacidade de obstar as atrocidades determinadas pelo Estado, ela passa a analisar a banalidade do mal. Em Arendt,“há um arquivo vivo, Adolf Eichmann, Mas, encontram-se nesse arquivo, os entraves de suas próprias negativas e subterfúgios. A sua volta dezenas de testemunhas, também arquivos vivos, concorrem para a complementação de uma história” (RODRIGUES, 2006, p.184). Os relatos de Eichmann fizeram emergir a identidade de tantos. As suas escolhas se confundiram com as escolhas do Estado. E, no regresso ao passado, consubstanciado no seu julgamento, verificam-se os traços da humanidade. Arendt nota que o homem contemporâneo vive em um momento em que a história e a natureza tornam-se alheias a ele. A essência do homem já não pode ser compreendida em termos de uma ou de outra, mas em termos de humanidade. Assim, identificando no homem a humanidade, o direito a ter direitos ou o direito de cada indivíduo pertencer a humanidade, devem ser garantidos pela própria humanidade (ARENDT, 2004). É nesta seara que o direito à memória se deflagra como um direito fundamental, uma vez que o seu cerne não está ligado a um indivíduo, a um episódio isolado. De outra esfera, trata-se de um direito que condiz com a própria humanidade. E, em Arendt, é a capacidade de pensar que pode afastar a banalidade do mal: Eichmann é um excelente exemplo de alguém que desistiu de compreender o sentido de suas ações no mundo. Não pensar é também negar a si a responsabilidade pelos seus atos, e é justamente quando não refletimos sobre o mal que podemos realizá-lo, quando anestesiamos a criticidade (FERRAZ, 2009, p. 11).

O conhecimento do passado e a apropriação do direito à memória devem orientar o Estado Democrático. E, no dizer de Arendt, somente a capacidade de pensar pode oprimir os riscos advindos dos regimes totalitários. Foi justamente na incapacidade de pensar dos indivíduos que se deflagrou um dos maiores holocaustos da humanidade. Arendt não acredita que exista um Eichmann em cada um de nós, mas suas características é que se multiplicariam em sociedades de massa, inclinadas ao não exercício do pensamento e à falta de profundidade. Quanto maior a falta de profundidade, maior seria a suscetibilidade ao cometimento do mal, e, no momento da segunda grande guerra, teria sido a sociedade de massa nazista, conquistada por meio da propaganda ideológica, que possibilitou a banalização do mal naquelas

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proporções (FERRAZ, 2009, p. 9).

E, se o homem deve ser compreendido na sua totalidade, na concepção de Arendt é na memória coletiva que se estabelece a identidade da humanidade: O espaço público-político, na concepção de Arendt, é o espaço correspondente à polis grega. É o “espaço de imperecibilidade”, isto é, o espaço onde os homens juntos poderiam estabelecer a memória eterna de suas ações e de inspirar às gerações futuras a admiração, fazer parte no devir em forma de lembrança. Esse espaço se constitui enquanto espaço de aparência permitindo que os atos e palavras ganhassem permanência na lembrança da posteridade (MAGALHÃES, 2008, p. 93).

A memória tem seu locus consubstanciado no espaço público, o espaço por excelência do exercício da política, que preserva a ação do esquecimento. Da mesma forma, a construção do mundo comum, portanto, a construção da história, depende da memória. Em suma, o Estado deve se preocupar em estabelecer o direito à memória. A humanidade inerente a cada indivíduo deve ser consolidada através do direito à memória. E, é pela égide do conhecimento, da investigação do passado, que se formará a identidade do estado brasileiro: Transmitir conhecimentos é imprescindível, mas educar para o pensamento – com abertura, imprecisão e sem garantias – parece ser uma urgência para os nossos tempos difíceis. Apesar de a atividade do pensamento lidar com o invisível e ser fora da ordem, talvez ela seja a possibilidade de favorecer um ambiente que nos proteja da banalidade do mal; talvez seja a possibilidade de construção de um ambiente desfavorável para as intolerâncias assassinas de tempos tão sombrios. Educar na perspectiva do pensamento, então, seria despertar a si mesmo e os outros do sono de irreflexão, abortando nossas opiniões vazias e irrefletidas. Educar para o pensamento seria uma atitude consciente de abrir nossas janelas conceituais para o vento do pensamento. Quiçá sejamos capazes de formar mais Sócrates do que Eichmanns, mas com uma única convicção: educar para e no pensamento é colocar-se no campo das possibilidades, e não das certezas (ANDRADE, 2008, p. 124).

Não se pode pensar em Estado Democrático sem que se eduque na perspectiva do pensamento. E este passo só será dado na medida em que seja possibilitada a reconstrução do passado. “Arendt nos legou uma herança sem testamento, para que olhemos para o passado e captemos os fatos históricos, os ensinamentos para que vivamos num mundo melhor, dando nossa parcela de contribuição neste, pois a história se repete” (HSIAO, 2007, p. 218). Assim, a construção do direito à memória abarca responsabilidades do Estado. Revela o pensamento coletivo. E, se não garante um futuro melhor, possibilita um presente mais autêntico, democrático e verdadeiro. 6. CONSIDERAÇÕS FINAIS O estudo de uma das obras mais polêmicas da autora Hannah Arendt propiciou a constatação de que nunca é tarde para se reconhecer as infrações aos direitos humanos. Os crimes que afrontam a humanidade fogem aos interesses da suposta vítima e, enquanto penderem de responsabilização, estarão perpetuando a ofensa à humanidade. Os crimes levados a efeito em nome do Estado, por sua vez, indicam o risco advindo da incapacidade do sujeito em obstar, se consolidando naquilo que a autora denomina de banalidade do mal. É justamente neste ângulo que a figura de Eichmann representa inúmeros agentes do Estado que foram incapazes de reconhecer a dimensão dos seus atos. Quer parecer que, por esta razão, o direito à memória deve aproximar-se desta mácula a fim se ser coerente com o princípio democrático amparado pela Constituição de 1988. 219

De fato, o indivíduo está atrelado ao Estado e a sua identidade, inúmeras vezes, se confunde com a identidade do próprio Estado. O brevíssimo estudo acerca do julgamento de Eichmann trouxe à tona a constatação de que o indivíduo reflete a vontade do Estado e o pensamento coletivo se traduz nas suas ações. Nesta senda, ao tempo em que se fala em direito à memória, necessariamente, está-se falando em um direito pertinente ao homem, ao Estado e à humanidade. Diante da abertura principiológica da Constituição de 1988, este estudo constatou que o direito à memória está previsto no ordenamento jurídico pátrio. Ademais, a concessão de anistia póstuma a João Cândido e a alteração do registro de óbito de Vladimir Herzog indicam que o direito à memória está sendo aplicado pelo Estado brasileiro. Portanto, verifica-se que o direito à memória está além da previsão moral ou ético. O direito, notadamente no que toca aos direitos humanos, há muito rompeu com os limites territoriais, no entanto, ainda resiste em romper com os limites temporais. A contagem do tempo, diriam os filósofos e os matemáticos, é uma invenção humana, e, se assim o for, a história do Estado desconhece o início e o fim. O estudo do direito à memória faz emergir a conclusão de que um Estado é formado pelo seu passado, e que, adentrar no pretérito nada mais é do que assumir o presente com a responsabilidade indissociável da democracia. Por derradeiro, constata-se que as leituras e releituras necessárias à elaboração deste estudo fazem crer que o tema abordado, sem sombra de dúvidas, não se encerra nos limites deste trabalho. O tempo previsto para a realização da pesquisa revelou-se insuficiente e, neste trajeto, fizeram-se necessários recortes, abreviações, ponderações. No entanto, tal aspecto não retira a profundidade deste estudo, apenas indica o quanto o direito à memória é amplo, é relevante, e merece, pelas portas da academia, ser amadurecido. De fato, seria uma incongruência a tentativa de esgotar o estudo do direito à memória nas páginas desta pesquisa. O reconhecimento do direito à memória, como um direito fundamental do Estado brasileiro, se traduz na constatação de que as escolhas do Estado não dizem respeito tão somente à sua história, são pertinentes aos seus indivíduos e, fundamentalmente, não estão sujeitas ao esquecimento.Em suma, nunca foi pretensão desta monografia limitar um direito que, dada a sua magnitude, não deve ter um alfa ou um ômega. Este trabalho se encerra com a certeza de que, se todo passo deve ser dado com responsabilidade, ainda mais prudentes devem ser aqueles percorridos em nome do Estado. Os direitos humanos se dissociam da ideia de passado, presente ou futuro. Por esta razão, o Estado possui o dever para com os seus de - ao assumir seus erros, ao reconhecer suas responsabilidades, ao regressar ao passado de forma autêntica -, garantir a democracia, garantir o acesso à informação e, mais além, constituir o direito à memória do Brasil e da própria humanidade refletida nasescolhas e nos atos do Estado Brasileiro de hoje e de outrora. REFERÊNCIAS AMORIM, Jan Yuri Figueiredo de. Conflitos armados e vítimas: da necessidade de se preocupar com elas para uma maior efetividade da proteção dos direitos humanos. 2008. 102 f. Dissertação (Mestrado em Direito). UnB, Brasília. ANDRADE,Marcelo. A banalidade do mal e as possibilidades da educação moral: contribuições arendtianas.Revista Brasileira de Educação, v. 15. n. 43, jan/abr 2010. ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém – Um relato sobre a banalidade do mal. 11ª Ed. São Paulo: Companhia da Letras, 2011. ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro. São Paulo Editora: Perspectiva, 1997. ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 20ª Ed. São Paulo: Malheiros, 2007. CAMASMIE, Ana Tereza. Narrativas de histórias pessoais: Um caminho de compreensão de si mesmo à luz do pensamento de Hannah Arendt. 2007, 115 f. Dissertação (Mestrado em Filosofia). 220

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SOCIEDADE DA INFORMAÇÃO E JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO: DESAFIOS DA LIBERDADE DE COMUNICAÇÃO E DA LÓGICA “WIKILEAKS” NA RESTAURAÇÃO DAS DEMOCRACIAS EM TRANSIÇÃO

Alexandre Henrique Tavares Saldanha1

1. INTRODUÇÃO Este trabalho parte de uma questão geral a respeito de haver ou não limites para o direito à informação quando se trata de documentos estatais ou documentos sob a tutela do poder público. O debate versa sobre se o direito do cidadão de ter acesso à informação restringe-se a informações pessoais, individuais e não-estatais, ou se não há documento estatal sigiloso e estes devem ser acessados por qualquer interessado, instituição ou pessoa isolada. Esta discussão torna-se ainda mais complexa quando contextualizada na denominada era da informação, também chamada sociedade da informação, uma vez que os comportamentos típicos da cibercultura estão normalmente associados com valores como transparência, abertura de informações, livre acesso a cultura e ideias etc. Em outros termos, é possível argumentar que a cibercultura, como característica de uma época ou como tendência de comportamento, redimensiona o direito fundamental da liberdade de comunicação, ou ao menos propõe uma reanálise diante de novos fenômenos e novos atores sociais, tais como a rede mundial de computadores, as redes sociais e o compartilhamento de material digital. Especificando ainda mais a abordagem realizada neste trabalho, a proposta é voltada para analisar o direito à informação na cibercultura nas democracias em transição. Em breves termos, as democracias transicionais ocorrem em Estados que, em passado recente, tiveram experiências 1 Bacharel em Direito pela UNICAP. Especialista, Mestre e Doutorando em Direito pela UFPE. Professor das Faculdades Integradas Barros Melo em Olinda/PE. Advogado e Consultor Jurídico.

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com governos ditatoriais e, consequentemente, um histórico de censura, perseguições políticas, asilos e outras práticas que terminam por fazer parte da formação cultural da nação, mas não possuem todos os seus contornos devidamente delimitados. O tema, porém, será abordado em seu aspecto generalizado, sem analisar especificamente experiências isoladas como as da Alemanha, África, América Latina etc. Em Estados com esta experiência foram formadas espécies de comissões cujo objetivo é o de buscar informações que retratem fatos ocorridos no contexto do governo ditatorial. Tudo isto como uma espécie de “jornada pela verdade” dos fatos. Daí então o retorno à questão de se os documentos estatais devem ser liberados para análise, se ainda podemos falar em sigilos oficiais nos idos da segunda década do século 21 ou se a cibercultura veio com a proposta de ampliar os limites do direito fundamental de acesso às informações. 2. CIBERCULTURA E LIBERDADE DE COMUNICAÇÃO Neste idos de terceiro milênio, convive-se numa época de acesso à quantidade inigualável de informações em comparação a contextos históricos passados, fazendo, inclusive, com que alguns autores nomeiem o tempo presente como a “era da informação”, a da “sociedade informacional” ou qualquer expressão semelhante, que represente o redimensionamento e aumento da complexidade do acesso à cultura. Esta busca por informação, ou busca pelo acesso a ela, é uma característica da chamada cibercultura, sendo esta uma expressão que representa os impactos socio-culturais das tecnologias digitais na sociedade. Pierre Lévy usa a expressão “dilúvio de informação” na contemporaneidade, defendendo inclusive que trata-se de um caminho sem volta, característica da qual os tradicionais institutos sociais devem ficar acostumados e assim saber conviver (LÉVY, 2010, p. 163). Certamente, um dos atores sociais que mais precisa se adequar às características da cibercultura é o ordenamento jurídico, acostumado com pretensões à estabilidade e controle, que deve então conviver com algo bastante efêmero como as alterações comportamentais nesta “ciber-era”. A ausência de estabilidade inerente ao domínio da virtualização das relações sociais e digitalização da criação artística aumenta consideravelmente a dificuldade de compreensão dos impactos causados pelas tecnologias da informação (LÉVY, 2010, p. 24). Dentre as tensões do ordenamento jurídico em se compatibilizar com a cibercultura, pontos de alta complexidade residem no controle das mídias, no acesso à informação e na tutela da propriedade intelectual no meio digital. A relação conflituosa entre evolução do acesso à informação, bem como a influência das mídias na divulgação de informações, e a preservação de direitos individuais ou coletivos constitucionalmente garantidos, vem sendo ponto de preocupação na contemporaneidade (VENERAL, 2012, 66). Hoje, cada pessoa tem direito a acessar a rede mundial de computadores, recebendo a oportunidade de entrar em contato com um mundo de informações e bens culturais incabíveis numa biblioteca física. Considerando que o acesso aos meios de acesso à rede (microcomputadores, tablets, smartphones etc.) cresce consideravelmente de importância, teórica e prática, nos comportamentos sociais, este mundo de informações passa a ser acessível em qualquer hora e em qualquer local. Daí então a questão: é possível especificar quais são os limites para o acesso a informações? Inicialmente era mencionada apenas a liberdade de expressão como direito fundamental que garante a livre manifestação do pensamento, das ideias, artes etc. Porém, o desenrolar dos comportamentos sociais e das revoluções tecnológicas provocaram releituras e derivações deste direito fundamental no intuito de compatibiliza-lo com novas exigências e circunstâncias. Daí hoje falar-se em liberdade de comunicação e liberdade de informação, além da de expressão. E ainda há quem use a expressão liberdade de expressão e comunicação “para representar o conjunto dos direitos, liberdades e garantias relacionadas à difusão das ideias e das notícias” (FARIAS, 2007, p. 156). Apesar do argumento de juntar as expressões ser interessante, pois no fundo é possível achar uma intersecção entre elas, é típico do trabalho do Direito diferenciar expressões próximas para poder achar aplicações distintas mais facilmente. Sendo assim, quando fala-se em liberdade de expressão quer se apresentar o direito que todos têm de livremente manifestar suas ideias, pensamentos, posições religiosas, ideológicas etc., o que é diferente da liberdade de comunicação, concedendo esta o direito de divulgar informações 224

tais como fatos e notícias. Ainda assim a questão não é resolvida, uma vez que a liberdade de comunicação envolve sujeitos diversos e uma diversidade de direitos em consequência. Evidente que a comunicação propriamente dita não é sujeito de direitos, mas a diferença entre o emissor do objeto comunicado e o receptor da comunicação repercute em dimensões diferentes desta liberdade, daí surgindo a liberdade de informação também como direito fundamental. Basicamente, a liberdade de informação é uma decorrência da liberdade de comunicação, porém dando ênfase aos direitos fundamentais de informar algo, de se informar e de ser informado (FARIAS, 2007, p. 172). Destes, o que interessa para a proposta sugerida neste trabalho é a última das dimensões deste direito, a liberdade para ser informado. Esta dimensão do direito à informação não é novidade desde que na própria declaração universal dos direitos humanos, em seu artigo 19, já há uma manifesta previsão da liberdade de receber informações por quaisquer meios e sem limitações. A questão está em associar informação com exercício de cidadania, com o direito de todos serem informados sobre o que está acontecendo na sociedade, sobre fatos relevantes e, principalmente sobre conteúdos que transcendam as esferas do público e do privado, e atinja o nível de interesse geral (FARIAS, 2007, p. 175). Uma vez informados, os cidadãos terão condições de melhor participar da sociedade civil, de melhor interagir com o poder público e, de certa forma, melhor compreender as próprias características culturais de sua sociedade. Diante disto, torna-se possível criar uma linha de raciocínio e defender que no atual panorama cultural trazido pela cibercultura, ou pela sociedade da informação, o direito fundamental de ser informado, ou de ter acesso a informações, possui mais meios de encontrar plenitude de eficácia. Em outros termos, pela quantidade de meios disponíveis para acessar redes infindáveis de informação, o direito de ser informado pode ser melhor satisfeito do que em outras circunstâncias nas quais os indivíduos não possuíam instrumentos tecnológicos suficientes para buscar tal acesso. Resta ainda a indagação quanto ao limite das informações, ou, por outro ângulo, sobre a possibilidade de alguém, indivíduo ou instituição, limitar acesso a informações. Quanto a este ponto, diante dos argumentos de que a declaração universal dos direitos humanos prevê o direito de obter informações, de que os comportamentos sociais da cibercultura se voltam para acesso a informações e de que tais informações são necessárias para criação de cidadania e identificação de traços culturais, soa fora de razoabilidade qualquer limitação a informações de natureza pública. Informações quanto às vidas privadas são protegidas pelo próprio direito fundamental de privacidade, o que não pode ser relativizado por mais “informacional” que seja a sociedade contemporânea. Porém, quanto a informações públicas, estatais ou não, estas não devem sofrer quaisquer qualidades de bloqueios de acesso, por representarem ofensa a direito fundamental expresso. Em época de comunicação de massa, mídias oficiais e não oficiais, rede mundial de computadores e informações, qualquer pretensão normativa de inibir o acesso a informações será aclamada inconstitucional por força da própria sociedade civil (VENERAL, 2012, p. 73). Resta analisar se em qualquer contexto democrático, ou em qualquer dimensão da expressão democracia, esta afirmativa permanece podendo ser sustentada, o que passa a ser analisado. 3. DOCUMENTOS ESTATAIS EM JUSTIÇAS DE TRANSIÇÃO A expressão justiça de transição é própria de Estados que sofreram recentes experiências com regimes autoritários e ditatoriais. Tais Estados, hoje organizados como democracias, lidam com a dúvida sobre como lidar com o passado recente, mais especificamente, como lidar com a memória do regime ditatorial e fortalecer as instituições democráticas. É comum defender a ideia de que é necessário enfrentar os desafios de como lidar com as consequências do regime autoritário e com seus responsáveis, porém não há uniformidade quando a questão se trata do como isto será feito (GALINDO, 2012, 199). Evidente que pontos como responsabilidade dos responsáveis pelo regime, punição por crimes contra direitos humanos, resgate de informações estatais devem ser enfrentados por uma questão de “satisfação histórica”, mas também por valores associados à democracia, tais como transparência, verdade e senso comum popular. Porém, as medidas, manobras e instrumentos a serem usados para alcance de tais fins variarão conformes os contextos socio-político-culturais de determinado Estado. Apontam-se ao menos quatro dimensões ou fases que devem estar presentes nos processos 225

de justiça de transição: a reparação, a informação da verdade e construção de uma memória, a regularização da justiça institucionalizada e a garantia de igualdade perante a lei, e por fim a reforma das instituições violadoras de direitos humanos inerentes aos regimes autoritários (ABRÃO e TORELLY, 2011, p. 215). Destes, para os fins deste trabalho e da sua proposta de analisar a liberdade de informação, será melhor analisada a questão do resgate de informações que criem uma sensação de verdade sobre fatos ocorridos no tempo do governo totalizante, bem como o acesso a informações necessárias para sedimentação de uma memória da época para construção de uma identidade cultural da nação em democracia de transição. Por mais que haja dificuldades em conceituar justiça de transição e traçar objetivamente suas características, há uma compreensão mínima de quais seriam providências mínimas para alcance dos objetivos que estão ao fundo das acima mencionadas fases do processo de transição. Dentre elas há a necessidade de esclarecimentos de verdades históricas, o que traz a ideia da necessária abertura de documentos oficiais produzidos no período, e a necessidade de criar espaços que mantenham a memória da fase autoritarista para que futuras gerações saibam do ocorrido (GALINDO, 2012, p. 204). Já com esta breve abordagem sobre as providências da justiça de transição percebe-se o quanto é necessário o acesso irrestrito a documentos e informações sobre fatos ocorridos na circunstância do poder autoritário. Alguns exemplos de medidas práticas podem ser identificadas como providências para informação e memória em estados que possuem contexto de justiça de transição. Exemplos como as audiências públicas realizadas na África do Sul e como o memorial do Holocausto na Alemanha concretizam estas providências. No Brasil, medidas também vêm sendo tomadas para alcance das exigências democráticas associadas como o reconhecimento e superação das violações a direitos humanos ocorridas na oportunidade do governo militar autoritário. No que diz respeito ao fornecimento da verdade e construção de memória, alguns avanços são identificados na democracia brasileira, projetos do ministério da justiça, audiências públicas, financiamento de projetos e ações da sociedade civil e publicação de obras sobre a memória da época ditatorial são exemplos de medidas de justiça de transição brasileira (ABRÃO e TORELLY, 2011, p. 224). Tais medidas expressam a ideia de que a justiça de transição no Brasil está em ação e com força suficiente para produzir avanços no que diz respeito a políticas de reparação, mas, isto não significa que está tudo indo bem e que não haja pontos a serem enfrentados, tais como o fornecimento de narrativa do poder público de fatos da época sem quaisquer desvios (ABRÃO e TORELLY, 2011, p. 230). Quanto a este ponto os avanços são bastante tímidos, por mais que tenham sido criadas comissões associadas com a verdade, uma vez que o poder público silencia quanto a alguns fatos, às vezes arguindo pelo perecimento de documentos, ou pela sua natureza sigilosa, o que representa um argumento no mínimo incoerente considerando os fins em jogo. Práticas como indenizações reparatórias por violações a direitos humanos e como concessões de anistias retoricamente consideradas sociais e humanistas camuflam uma espécie de “esquecimento oficial” (GALINDO, 2012, p. 200) do poder público quanto à responsabilidade de conceder informações necessárias para reconstrução da memória da época. Este esquecimento, aparentemente bem mais proposital do que fortuito, em si já é uma violação de direitos humanos, uma vez lembrado do direito humano à liberdade de informação, já acima discutida. Violação esta que se torna ainda mais grave se inserida no contexto da justiça de transição. Em outros termos. Havendo o reconhecimento de uma liberdade de informação como direito humano, o poder público fica obrigado a fornecer informações de natureza pública seja qual for o contexto da exigência. Tratando-se de Estado em justiça de transição, este direito de ser informado fica redimensionado, ganhando uma força possivelmente superior, considerando as características e fases da justiça de transição. E se ainda for levado em conta que vive-se em pleno século 21, numa sociedade taxada de informacional, a ideia de sigilo estatal e não fornecimento de informações soa ao menos anacrônica e inadequada aos parâmetros da cibercultura. Por fim, resta associar estes temas (direitos à informação e cibercultura) com características da justiça de transição, no intuito de arguir pela total transparência dos dados estatais, não somente por satisfação de um direito, mas também para restauração cabível nas sociedades que vivenciaram recentes experiências com regimes autoritários. O que passa a ser feito no ponto a seguir. 4. FORNECIMENTO DE INFORMAÇÕES EM ESTADOS COM JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO NA 226

SOCIEDADE DA INFORMAÇÃO Em tempos de digitalização das interelações sociais e da inclusão da máquina de computador como ator social, a governança sofre efeitos da cibernética no sentido de dever se adaptar a novos comportamentos e exigências sociais. O espaço virtual (ou ciberespaço) ao mesmo tempo que permite acesso a quantidades infindáveis de informação útil para conhecimento, pesquisa e cultura, permite também uma espécie de maior transparência nas relações pessoais entre indivíduo e indivíduo, e entre indivíduo e poder público. Entrando numa rede social, por exemplo, qualquer pessoa tem acesso a informações sobre quaisquer outros, seja sobre cotidiano, preferências, família etc. Esta transparência levada para as atividades das instituições públicas cria uma nova dimensão para a relação entre público e privado, uma vez que as força a trabalhar com a hipótese de livre acesso a informações e dados estatais. Aparentemente frias, as ações praticadas no ciberespaço podem refletir fortes emoções e clamores, uma vez que o virtual não exclui responsabilidades e opiniões individuais, nem se torna isento de julgamentos pela opinião pública (LEVY, 201, p. 130). Exigências públicas por verdades e transparência podem ser instrumentalizadas pela internet e rede mundial de computadores, demonstrando, por exemplo, que cidadãos estão insatisfeitos com determinadas políticas públicas, ou com posturas dos representantes do poder a respeito de pontos diversos. Os princípios de publicidade que regem a administração pública fazem com que a rede virtual funcione como canal de comunicação que serve para divulgação de fatos realizados pelo Estado, bem como para estabelecer contato direto entre este e cidadãos (PINHEIRO, 2009, p. 216). Isto torna a tecnologia da informação uma interessante aliada na reivindicação de direitos pela sociedade civil e seu controle do que vem sendo feito pelo poder público, pois a digitalização dos dados traz maior transparência e acesso (PINHEIRO, 2009, p. 217). Independente de Estados possuírem características de democracia em transição, a cibercultura e a transparência própria de seus comportamentos trazem efeitos significativos na forma como poder público e sociedade civil “se examinam”. Explicando melhor. Praticamente, hoje todos os dados de uma pessoa estão armazenados em bancos de dados digitai, não havendo controle pessoal de quem tem e quem não tem acesso a tais informações. O que facilita ao Estado buscar informações numa investigação criminal, buscando-se um exemplo que possa ser visto sob uma ótica positiva. Por outro lado, a “governança digital” é capaz de promover para a sociedade civil acesso a informações estatais. O problema está nas instituições estatais fornecerem ou não os dados. Esta discussão encontra-se concretizada em casos envolvendo, por exemplo, o Wikileaks, que é uma “organização transnacional sem fins lucrativos, sediada na Suécia, que publica, em sua página, postagens de fontes anônimas, documentos, fotos e informações confidenciais, vazadas de governos ou empresas, sobre assuntos sensíveis”2. Esta organização promoveu, e ainda promove, alterações na forma como se interpreta o conceito de publicidade das informações sobre o poder público. Sem contar a alteração na própria forma como a mídia se relaciona com os dados estatais. Palavras de jornalistas que cobriram o início das atividades da organização deixam bem claro que: O desafio que o Wikileaks representou para os veículos de comunicação de modo geral (sem falar nos Estados, empresas ou corporações globais sujeitos ao escrutínio indesejado) não era confortável. O instinto inicial do site era publicar quase tudo e, no início, eles estavam profundamente desconfiados de qualquer contato entre seus colegas nos jornais e qualquer tipo de autoridade. Falar com o Departamento de Estado, o Pentágono ou a Casa Branca, como o The New York Times fez antes de cada etapa da publicação, era um campo minado em termos de manutenção de uma relação tranquila com o Wikileaks. Na época da publicação do Cablegate, o próprio Assange, consciente dos riscos de causar danos não intencionais aos dissidentes ou outras fontes, ofereceu-se para falar com o Departamento de Estado – oferta que foi recusada (LEIGH, 2011, p. 21)

2 Esta definição é apresentada pela Wikipédia quando é colocado o próprio verbete “Wikileaks”.

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Apenas para melhor ilustrar como as práticas do Wikileaks estão relacionadas com as discussões a respeito do direito fundamental de liberdade de informação na era digital, pede-se a licença de transcrever mais o seguinte trecho: De modo geral, parece-me que o Wikileaks e organizações semelhantes são admiráveis em sua visão obstinada da transparência e da abertura. Notável é como o céu não caiu, apesar da enorme quantidade de informação liberada durante meses. Os inimigos do Wikileaks fizeram repetidas declarações sobre os danos causados pela divulgação do material. A julgar pela resposta que tivemos de países sem as vantagens de uma imprensa livre, houve uma considerável sede pelas informações dos telegramas – uma fome de conhecimento, que contrastava com os ocasionais bocejos bem informados de pessoas sofisticadas das metrópoles que insistiam em dizer que os telegramas não traziam novidades. Em vez de uma reação instintiva por mais sigilo, essa poderia ser a oportunidade para refletir sobre as vantagens e desvantagens da transparência forçada (LEIGH, 2011, p. 22)

A lógica que está por trás do Wikileaks, a de transparecer ao público geral informações dos Estados e seus governos, pode ser transferida ao contexto das justiças de transição para melhor alcance das etapas da restauração democrática. Como visto, nos Estados em democracia de transição um dos elementos essenciais para restauração e reparação é a informação, seja para uma questão de satisfação da verdade, seja para construção de uma memória fiel que seja inserida nos traços culturais da sociedade. No processo de transição no Brasil, como exemplo, vem sendo possível revelar verdades históricas tendo acesso a documentos, registros públicos, e realizando debates públicos, havendo, inclusive, sido criada uma comissão responsável pela busca das verdades (ABRÃO e TORELLY, 2011, p. 242). Há de se reparar como as ferramentas e comportamentos da cibercultura podem reforçar bastante o alcance a tais informações em busca de uma narrativa credível dos fatos ocorridos. Por meio da rede é possível promover uma interação social ao ponto de permitir que cada cidadão narre suas experiências com o governo autoritário, narre seu conhecimento dos fatos, bem como é possível que a sociedade civil por meio da rede pressione os responsáveis e autoridades que trabalham nesta etapa de restauração. A maior interação da sociedade no processo de transição encontra justificativa já em âmbito moral, por permitir maior amplitude nos debates e promover participação na solução de divergências, sem que os temas fiquem sendo resolvidos apenas por autoridades competentes (BAGGIO, 2011, p. 259). Se já é possível justificar a participação da sociedade na transição democrática do ponto de vista moral, o direito humano fundamental de liberdade de informação apresenta justificativas jurídicas para a liberação de documentos, registro e quaisquer informações necessárias para a restauração da memória e identidade cultural. E ainda, a transparência no acesso às informações democratiza o próprio processo. Ou melhor: É exatamente disso que se trata a luta por reconhecimento, principalmente, no âmbito da comunidade de valores. Enquanto houver espaço para a reversão de determinadas realidades, é preciso tornar o mais público possível os valores éticos envolvidos nos debates sobre a justiça de transição para que a disputa valorativa junto à sociedade torne-se uma possibilidade concreta de progresso moral e, consequentemente, de melhora das relações sociais, o que, em matéria de justiça transicional no Brasil, significa a melhora das condições democráticas em sociedade (BAGGIO, 2011, p. 275).

A participação da sociedade civil não somente é útil para a justiça de transição, ao ponto que fornece elementos de informação essenciais para a construção de um retrato fidedigno de uma época, como também é eficaz como ferramenta de pressão. Se o que está em questão é a verdade de fatos necessários para criar uma memória de uma época que deve estar inserida na identidade cultural de um povo, a sociedade deve pressionar não 228

somente pela sua participação, mas pela própria atuação das comissões e autoridades competentes para tal. Por mais que seja bastante complicado falar em identidade cultural em tempos de pós-modernidade, o resgate de fatos que caracterizam uma nação faz parte de sua identificação (HALL, 2011, p. 47). As identidades culturais são delineadas por meio das identidades nacionais, que por sua vez são formadas por representações de fatos (HALL, 2011, p. 49), daí a relação entre a restauração de uma identidade com a transparência e com a participação da sociedade neste processo. É preciso então oferecer meios para que os cidadãos participem da transição, não somente confiando naqueles que compõem as comissões, mas tendo acesso às discussões travadas sobre pontos complexos e informações analisadas em busca das verdades. E a informática, o ciberespaço e algumas práticas sociais contemporâneas podem servir como importantes ferramentas de eficácia da transição, bem como a lógica apresentada pelo Wikileaks em busca da transparência dos documentos estatais. 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS Partindo da proposta de analisar a liberdade de informação em dois contextos específicos, um o da cibercultura e da chamada era digital, outro o dos Estados em transição democrática, chega-se a alguns pontos neste trabalho. Mais pontos de partida para novas discussões do que pontos finais conclusivos, porém: - As variações históricas da compreensão das liberdades, fizeram com que a liberdade de expressão fosse redimensionada para expressão e comunicação. Liberdade de comunicação que por sua vez foi também remodelada para outras liberdades, dentre elas a liberdade de ser informado, o que cria em paralelo o direito de ter acesso a informações; - Este direito fundamental de ter acesso a informações encontra hiperdimensão uma vez inserido no contexto da era da informação, expressão usada para identificar traços da sociedade contemporânea caracterizados pela cibercultura e comportamentos relacionados com a vida em rede virtual e a amplitude de dados disponíveis nela; - A discussão sobre liberdade de informação na era digital já é em si complexa, mas torna-se ainda mais quando trazida para Estados em justiça de transição. Esta justiça de transição expressa políticas, medidas, determinações que ocorrem em sociedades que vivenciaram experiências com regimes autoritários em passado recente, e que ainda precisam lidar com a memória desta fase de sua história para poder reparar injustiças e perpetuar a memória da época no intuito de que as próximas gerações saibam dos fatos e não cometam os mesmos erros. A questão está então em haver, ou não, limites para as investigações sobre os fatos e em que ponto o cidadão deve participar deste processo de restauração de traços de identidade cultural. - É possível então criar uma linha de raciocínio e argumentação no sentido de defender ausência de limites para as investigações, bem como defender ampla participação social neste processo. O exemplo atual da organização Wikileaks é simbólico pela luta por transparência de documentos oficiais, denunciando irregularidades ou, no mínimo, fornecendo informações de interesse geral, o que revela que a internet e demais ferramentas da tecnologia da informação serve bastante para democratizar o processo de transição, ampliando o acesso a dados, impedindo sigilos inadequados e abrindo espaço para participação popular na criação de uma memória cultural. Tudo isto sob a justificativa de satisfação de direitos humanos próprios da contemporaneidade. REFERÊNCIAS ABRÃO, Paulo e TORELLY, Marcelo D. As dimensões da justiça de transição no Brasil, a eficácia da Lei de Anistia e as alternativas para a verdade e a justiça.In: PAYNE, Leigh A., ABRÃO, Paulo e TORELLY, Marcelo D (organizadores). A anistia na era da responsabilização: O Brasil em perspectiva internacional e comparada. Oxford: Oxford university, Latin America Centre, 2011. Páginas 212 a 248. BAGGIO, Roberta Camineiro. Anistia e Reconhecimento: o processo de (des)integração social da transição política brasileira. In: PAYNE, Leigh A., ABRÃO, Paulo e TORELLY, Marcelo D (organi229

zadores). A anistia na era da responsabilização: O Brasil em perspectiva internacional e comparada. Oxford: Oxford university, Latin America Centre, 2011. Páginas 250 a 276. FARIAS, Edilsom Pereira de. Estatuto teórico da liberdade de expressão e comunicação. In: LOIS, Cecília Caballeros e BASTOS JUNIOR, Luiz Magno Pinto (coordenanores). A constituição como espelho da realidade: interpretação e jurisdição constitucionais em debate: homenagem a Silvio Dobrowolski. São Paulo: LTr, 2007. Páginas 156 a 180. HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: Ed. DP&A, 2011. GALINDO, Bruno. Justiça de transição na América do Sul: possíveis lições da Argentina e do Chile ao processo constitucional de transição no Brasil. In: FEITOSA, Enoque (Et. Al.). O Judiciário e o discurso dos direitos humanos: volume 2. Recife: Ed. Universitária da UFPE, 2012. Páginas 197 a 240. LEIGH, David. Wikileaks: a guerra de Julian Assange contra os segredos de Estado. Campinas: Ed. Verus, 2011. LÉVY, Pierre. Cibercultura. São Paulo: Ed. 34, 2010. PINHEIRO, Patrícia Peck. Direito Digital. São Paulo: Saraiva, 2009. VENERAL, Débora. Liberdade de expressão e direito à informação: um contraponto à violação dos direitos e garantias fundamentais e a à preservação da dignidade da pessoa humana. In: AFFORNALLI, Maria Cecília Naréssi Munhoz e GABARDO, Emerson (Coordenadores). Direito, informação e cultura: o desenvolvimento social a partir de uma linguagem democrática. Belo Horizonte: Ed. Fórum, 2012. Páginas 64 a 84.

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O SISTEMA JURISDICIONAL NORTE-AMERICANO: ANÁLISE COMPARATIVA SOBREO DIREITO, O PROCESSO E A CLASSIFICAÇÃO DAS AÇÕES NOS EUA

Alexandre Freire Pimentel1

1. NOTAS INTRODUTÓRIAS: DA ORIGEM DO DIREITO NORTE-AMERICANO E A ADOÇÃO DO SISTEMA DA COMMON LAW

No início da colonização norte-americana houve uma concomitante aplicação de sistemas jurídicos derivados de diferentes países nas respectivas áreas das suas colônias. Os ingleses ficaram responsáveis pelas colônias da Virgínia (1607), Plymouth (1620), Massachussetts (1630), Maryland (1632). A Pennsylvania foi inicialmente colonizada pela Suécia e Nova Iorque pelos holandeses. Além disso, a França colonizou parte do Canadá (Quebec) e dos EUA (Louisiana). E a Espanha ocupou a parte sul dos EUA. O direito aplicável nas colônias inglesas, para os ingleses, era o da commom law, por conta do princípio do Calvin´s Case.2 1  Professor Adjunto da Universidade Católica de Pernambuco e da Faculdade de Direito do Recife (UFPE). Juiz de Direito. 2  A situação era inicialmente confusa, tanto que René David, sobre o assunto, vai, primeiro, indagar para, depois, esclarecer o seguinte: “A que direito estão submetidas estas colônias inglesas? Se se exigir de Londres a resposta a esta pergunta, essa resposta, em conformidade com o Calvin´s Case, julgado em 1608, será a seguinte: a commom law inglesa é, em princípio, aplicável; os súditos ingleses levam-na com eles, quando se estabelecem em territórios que não estão submetidos a nações civilizadas. As colônias inglesas da América incluem-se nesta situação. Por consequência, a commom law foi em princípio admitida nelas, e com a commom law as leis (statutes) que, anteriormente à colonização da América, podiam tê-la modificado ou completado, a data tomada em consideração neste aspecto é, segundo Kent, para todas as colônias americanas, o ano de 1607, data em que foi fundada a primeira colônia” (DAVID, 1998,

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O Calvin´s Case ficou conhecido como o Case of the Postnati e foi estabelecido na Inglaterra, durante o início do século XVII, quando um tribunal real decidiu favoravelmente a um escocês chamado Robert Calvin, que herdou propriedades em solo inglês, mas teve os seus direitos contestados por não ser inglês. A aplicação desse precedente nos EUA, no entanto, serviu para estabelecer que todos os ingleses nascidos em solo norte-americano teriam os mesmos direitos que os ingleses possuíam, aplicando-se-lhes a commom law. Sobre esse precedente, Williams, Jr. acrescenta que: The English Crown had historically based its privilege to charter colonies and control the lands of North America on the theory that is Norman-derived prerogative rights of conquest attached immediately to infidel-claimed territories discovered by English subjects. As Lord Coke had clearly articulated in Calvin’s Case in the early seventeenth century, the Crown was presumed to be at perpetual war with infidels, who were, in turn, presumed incapable of conforming their laws or conduct to natural law (1990, p. 269).

Acontece que a commom law não se adequava bem à realidade norte-americana, pois pressupunha a aplicação de um processo judicial arcaico e pensado para uma realidade inglesa-feudal, diferente, portanto, do que ocorria no novo mundo. Além do mais, muitos dos problemas surgidos nos EUA não haviam sido abordados nos precedentes ingleses, de modo que a commom law não agradou, sobretudo, aos colonos.3 Nessa fase da colonização norte-americana a commom law não vigorou na maior parte dos casos e a ignorância foi o principal fator de formação de novos direitos. Foi assim, que em algumas colônias houve a aplicação do direito baseado na bíblia, caracterizado pelo forte arbítrio dos juízes. Tal como se deu na França, também na América iniciou-se a etapa de reação ao arbítrio dos magistrados. Em seguida, começam as tentativas de codificação. Em Massachussetts e na Pennsylvania, respectivamente em 1634 e em 1682, surgem dois códigos que demonstram a preferência dos colonos pelo direito legislado (DAVID,1998, p. 360). É realmente interessante esse dado: os ingleses preferiram a commom law porque, dentre outros motivos, temiam que o direito legislado acarretasse o arbítrio dos juízes.4 Mas os colonos norte-americanos, a exemplo dos cidadãos franceses, preferiram o direito legislado pelo fato de o direito costumeiro haver gerado abusos e autoritarismo judicial, pelo que o direito codificado serviria para limitar a atuação do juiz em conformidade com a lei.5 Acontece que a prosperidade ocorrida no século XVIII alterou essa tendência à codificação, com a melhoria nas condições de vida dos colonos a commom law passou a ser-lhes útil, desta feita contra o autoritarismo da Coroa inglesa, servindo-lhes de defesa das liberdades públicas individuais, sobretudo porque, a essa altura, a Inglaterra já dominava a praticamente a totalidade do território dos EUA. Apesar de o número de juristas ser, ainda, escasso, os tribunais passaram a adotar várias leis inglesas na resolução de conflitos de interesse surgidos na América (DAVID, 1997, p. 13-15). Outro fator importante favorável à aceitação da commom law, foi a divulgação nos Estados Unidos dos Commentaries on the laws of England, de Blackstone, pois neles havia um didático esclarecimento acerca das leis que deveriam ser aplicadas nas colônias inglesas, vejamos: Besides these adjacent islands, our more distant plantations in America, and elsewhere, are also in some respect subject to the English laws. Plantations or colonies, p. 359). 3 “... em muitos casos ele foram obrigados a emigrar porque eram perseguidos, e estão pouco preparados para ver nesta commom law, como os juristas ingleses, o baluarte das liberdades do indivíduo”. (DAVID,1998, p. 360). 4  O fator de proteção das liberdades inglesas é visto por Radbruch na instituição do tribunal do júri inglês: “El tribunal es la ‘garantía de la libertad inglesa’, ‘el baluarte de Constitución inglesa’. Como el Parlamento inglés ha sido un modelo para el mundo liberal. Y, sin embargo, fue en su origen ‘más francés que inglés, más real que popular, más bien el signo del sojuzgamiento que el distintivo de la libertad” (RADBRUCH, 1958, p. 103). 5 “Observa-se aí, desde a origem, uma divergência entre os pontos de vista inglês e americano, e uma orientação dos americanos para as fórmulas que não são aquelas que gozam de bom acolhimento junto aos juristas ingleses”(DAVID, 1998,p. 360).

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in distant countries, are either such where the lands are claimed by right of occupancy only, by finding them desert and uncultivated, and peopling them from the mother-country; or where, when already cultivated, they have been either gained by conquest, or ceded to us by treaties. And both these rights are founded upon the law of nature, or at least upon that of nations. But there is a difference between these two species of colonies, with respect to the laws by which they are bound. For it hath been held, that if an uninhabited country be discovered and planted by English subjects, all the English laws then in being, which are the birthright of every subject,(m) are immediately there in force. But this must be understood with very many and very great restrictions. Such colonists carry with them only so much of the English law as is applicable to their own situation and the condition of an infant colony; such, for instance, as the general rules of inheritance, and of protection from personal injuries (BLACKSTONE, 1893, p. 107-108).

Outro fator favorável à adoção do sistema da commom law nos Estados Unidos foi o fim da ameaçada francesa, que se constatou com a anexação do Canadá pela Inglaterra em 1763, e pela aquisição do Estado da Louisiana em 1803, fez desaparecer um severo óbice à adoção da commom law, sobretudo porque a França passou à condição de aliada dos EUA (BLACKSTONE, 1893, p. 107-108). O sistema da common law foi, enfim, explicitamente adotado pelos Estados Unidos em sua Constituição. Na sétima emenda, de 1791, inscreveu-se que “In Suits at common law, where the value in controversy shall exceed twenty dollars, the right of trial by jury shall be preserved, and no fact tried by a jury, shall be otherwise re-examined in any Court of the United States, than according to the rules of the common law”.6Essa consagração em norma constitucional foi uma decorrência da fundação do federalismo americano em 1787, e ainda hoje continua em vigor, baseando-se na supremacia da lei. A partir de então, determinou-se a submissão de todos à jurisdição ordinária (commom law).7 Malgrado isto, deve ser obtemperado que os EUA possuem tribunais administrativos, mas suas decisões não excluem o reexame pelo Poder Judiciário (DAVID, 1998, p. 337). À exceção do estado da Louisiana e de Quebec, os direitos norte-americano e canadense inspiraram-se e inspiram-se no modelo inglês, mas com a inclusão de elementos novos.8 Um marco importantíssimo no direito processual dos EUA foi a declaração de direitos da Virginia. Em 1776, foi declarada a carta da Virgínia, que continha dezoito artigos e, sobre matéria processual, garantiu, no artigo 10o, o princípio do contraditório e do devido processo legal estipulando que nos processos de pena capital os acusados tinham direito: a indagar sobre a causa e a natureza da acusação, de ser acareado com as testemunhas de acusação; de apresentar suas testemunhas; de exigir a agilidade no processo; e que fossem julgados por júri imparcial de sua cir6 “Nos processos de common law em que o valor em litígio exceda vinte dólares, o direito a um julgamento por júri será mantido e nenhum facto julgado por um júri poderá ser submetido ao novo exame de um outro Tribunal dos Estados Unidos, a não ser de acordo com as regras do common law”. O texto, no original, encontra-se em: GUY, Warner W. Secret proceedings and debates of the convention – Assembled at Philadelphia , in the year 1787 for the purpose of forming the Constitution of United States of America. California: Alston Mygatt, 1838, p. 291. 7  A propósito da exportação do sistema inglês, de jurisdição única, Hely Lopes Meirelles anota que: “Esse sistema de jurisdição única transladou-se para as colônias norte-americanas e nelas se arraigou tão profundamente que, proclamada a Independência (1775) e fundada a Federação (1787), passou a ser cânone constitucional (Constituição dos EEUU, art. III, seção 2ª). Pode-se afirmar, sem risco de erro, que a Federação Norte-Americana é a que conserva na sua maior pureza o sistema de jurisdição única, ou do judicial control, que se afirma no rule of law, ou seja, na supremacia da lei” (MEIRELLES, 2014, p. 52). 8  No sentido de que a Louisiana e Quebec inspiraram-se em fontes romanas veja-se GILISSEN, op. cit. p. 206. Mas em René David encontra-se maiores detalhes dessa influência, vejamos: “Triunfo da commom law. Contudo, os Estados Unidos acabaram finalmente por se manter no sistema da commom law, a exceção do território de New Orleans, que se tornou em 1812 o Estado da Louisiana. Os outros territórios anexados à União podiam, em teoria, ter sido submetidos às leis francesas, espanholas ou mexicanas: na realidade, estas leis eram aí desconhecidas; o Texas, a partir de 1840, e a Califórnia, a partir de 1850, adotam, em princípio, a commom law inglesa, conservando apenas a tradição anterior no que se refere a certas instituições particulares (regimes matrinomiais, regime fundiário). Por toda a parte se impõe a preponderância das concepções admitidas nas antigas colônias e estas continuam fundamentalmente ligadas à commom law” (DAVID, 1998, p. 362).

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cunvizinhança de modo que se o júri não deliberasse à unanimidade, quanto à sua culpa, ele não poderia ser considerado culpado. Este artigo estabeleceu ainda que ninguém poderia ser obrigado a produzir prova contra si mesmo e, também, que ninguém poderia ser privado de sua liberdade, a não ser através de julgamento pelos seus pares e segundo as leis do país. O artigo 13 estabeleceu que nas ações referentes à propriedade e negócios pessoais a antiga forma de processo através de jurados era preferível a qualquer outra e foi considerada como sagrada. Protegeu ainda a liberdade de imprensa (ALTAVILA, 1989, p. 216-842). Mas, apesar da adoção expressa na Constituição Federal dos EUA, a recepção do regime da commom law não foi plena, e nem pura.9 Note-se que a afirmação feita acima de que os EUA inspiraram-se no direito inglês não quer significar que o direito ali existe coincida integralmente com o direito inglês. As estruturas sistemáticas não eram as mesmas e a consciência jurídica também diferia.10 A ideia de um direito federal convivendo harmonicamente com direitos estaduais, por exemplo, não existe na Inglaterra. No entanto, as semelhanças sobressaem-se às diferenças. Ambas as estruturas sistemáticas baseiam-se numa concepção jurisprudencial do direito. A processualização é o fator que lhes confere cientificidade jurídica, tanto que existem, em ambos, inúmeras leis, mas a consciência dos juristas ingleses e norte-americanos não permitem que sejam tidas como a regra jurídica natural, normal, do direito. É por isso que a integração completa da lei ao sistema jurídico norte-americano somente vai acontecer quando um tribunal a tiver interpretado e aplicado. A referência de validade e, sobretudo, de eficácia normativa não pertence à lei exclusivamente, ao contrário, lastreia-se no precedente jurisprudencial que aplicou a norma. A ausência do precedente importa, como observa Alan Watson, na conhecida expressão: “There is no law on the point”(WATSON, 2001, p. 93). Nessa senda, só há que se falar em direito sobre a questão quando houver o precedente. 2. JUÍZES LEGISLADORES: A QUESTÃO DOS PRECEDENTES ESTÁTICOS E DINÂMICOS O direito processual norte-americano, à semelhança do inglês, mas com as restrições e diferenciações acima consignadas, pressupõe a atuação dos magistrados primeiramente em conformidade com a Constituição, depois com a lei e com a observância dos precedentes firmados pelas cortes superiores. Os precedentes, por sua vez, subdividem-se em estáticos, pertinentes ao direito material, e dinâmicos, referentes ao direito processual.11 Se a atividade judicial no sistema fran9  Exemplo disso nos é dado por Guido Soares: “Os EUA receberam a Equity no momento histórico em que as oposições Commom Law v. Equity já se encontravam esmaecidas. Nos EUA inexistem commom lawyers e equity lawyers e, a partir da última unificação, em 1938 (na justiça federal), na atualidade, as actions at law e os suits in equity se encontram reunidos no que se denomina civil actions”. SOARES, Guido Fernando Silva. Common law. Introdução ao direito dos EUA. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, p. 36. Mais adiante, na p. 73 e seguintes, o autor acrescenta o dado da influência que a doutrina possui nos EUA, demonstrando tratar-se de um sistema jurídico verdadeiramente misto. 10 “Não são unicamente as regras dos dois direitos que diferem. Os próprios conceitos se tornaram muitas vezes diferentes e os dois direitos inglês e americano, já não se identificam pela sua estrutura”. (DAVID, 1998, p. 365). 11  CARDOSO, Benjamin Natan. A natureza do processo judicial. Tradução de VIEIRA, Silvana. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 105. Mas a ideia de um substantive e procedural law já era mencionada numa excelente obra publicada já em 1936, na Inglaterra, onde Buckland e McNair registraram o seguinte: “To many persons, especially to those theorists who maintain that there are no rights but rights of action, the Law of Procedure, or, rather, the Law fo Actions, is the most important part of the system. It is not easy to think of it as merely the machinery by which the real law, the substantive law, is put into operation. Thus it comes about that our earliest legal text-book of any importance, Glanvill’s, though called a Treatise Laws and Customs of England, is mainly concerned with procedure. In modern times J. D. Mayne states a great part of the substantive law in a treatise on Damages, i.e., he regards a man’s right as, essentially, what can be recovered by litigation. So too Henry Roscoe in the same way satates a great mass of substantive Criminal Law in a work entitled The Law of Evidence and Pratice in Criminal Cases. There is nothing new in this: it is indeed the primitive way of looking at law. (...) ‘substantive law has at first the look of being gradually secreted in the interstices of procedure’, the XII Tables begin with, and appear to deal must fully with, procedure. The Edict and Digest follow dis plan. It is only in the institutional books that procedure takes its place as an instrumental or adjective law. In Justinian’s law the old forms of action are gone: the plaintiff states his case in the way which seems most convenient to him. Nevertheless the Byzantine lawyers still think in terms of actions: in considering what must be proved in any claim, what is involved in any legal relation, they talk of the natura actionis. With them, as with us, though the forms of action are dead, ‘they still rule us from their graves’”. (BUCKLAND; MCNAIR, 1936, p. 315).

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cês e no dos países que se filiaram à família romano-germânica é terrivelmente prejudicada pela adstrição da atuação jurisdicional em conformidade estrita com a lei, no sistema norte-americano, por decorrência da influência do inglês, a situação é inversamente proporcional. Nestes, há um verdadeiro judge made law, pois os tribunais gozam de liberdade criativa do direito, guiando-se, obviamente, primeiramente pelas normas e princípios constitucionais, pelas regras legais (no sentido acima esclarecido) e costumeiras, mas, também, pela lógica da equidade e, até mesmo, pelo direito natural, nas situações de ausência ou inadequação de regra costumeira ou jurisprudencial. Mas, como explica Benjamin Cardoso, tal sistema deriva do exercício pleno do ius imperium, que tem no direito pretoriano romano sua fonte mais longínqua, e não se consubstancia numa espécie de ditadura jurisdicional, porquanto: O sistema de criar o Direito por meio de decisões judiciais que fornecem a norma para transações realizadas antes do pronunciamento da sentença seria de fato intolerável em seu rigor e em sua opressão se o Direito natural, no sentido em que empreguei o termo, não fornecesse a principal regra de julgamento ao juiz quando o precedente e o costume faltassem ou estivessem deslocados (CARDOSO, 2004, p. 105).12

Impende refrisar, no entanto, que nos Estados Unidos a atuação jurisdicional queda-se, inexoravelmente, estabelecida e limitada pela Constituição. Não há, como registra Owem Fiss, uma espécie de legitimação dos juízes para agirem em nome da sociedade na criação de normas jurídicas gerais e abstratas, tal função é exclusiva do parlamento. Segundo Fiss, a função judicante norte-americana não tem a prerrogativa de “... falar pela minoria ou aumentar sua expressividade, mas dotar os valores constitucionais de significado, o que é feito por meio do trabalho com o texto constitucional, história e ideais sociais. Ele procura o que é verdadeiro, correto ou justo, não se tornando um participante nos interesses das políticas de grupo” (FISS, 2004, p. 36). Noutra ponta, e sem desconsiderar as limitações das atribuições jurisdicionais acima registradas, não se pode negar que o direito processual na Inglaterra e nos EUA confere uma incomensurável gama de poderes ao poder judiciário. E isso se explica em razão de os ingleses, que passaram mais quinhentos anos sob o domínio de Roma, quando criaram o sistema da commom law, inspiraram-se na figura do praetor romano como standard para os seus juízes, diferentemente dos franceses que se inspiraram na figura do iudex, também, romano. A distinção logra sentido, quando percebemos que os praetores atuavam com ius imperium ao passo que os iudex agiam com fulcro na iurisdictio desprovida de imperium. Os pretores romanos, além de exercitarem a jurisdição com poderes coercitivos explícitos, também tinham a prerrogativa de criarem norma jurídica nova no ordenamento romano, desde que não confrontasse com o ius civile. Nesse sentido, Buckland e McNAIR asseveram que: “The Praetor, however, seems to have had a free hand than the Clerk’s of the Chancery. If he wished he could definitely introduce what was in fact a new rule of law by creating a formula” (1936, p. 324-325). Foi esse modelo de jurisdição que se desenvolveu na Inglaterra e que, mais tarde, foi exportado para os Estados Unidos. Pelo judge-made law,13 pode-se, inclusive, afastar a incidência do conteúdo normativo da regra emanada do parlamento, na verdade as normas jurídicas inglesas e norte-americanas têm como principal fonte criativa a atividade jurisprudencial, não a parlamentar. A propósito, Dicey extirpa qualquer dúvida sobre os limites de tal sistema, vejamos: The Special Characteristics of Judicial Legislation in Relation to Public Opinion. As all lawyers are aware, a large part and, as many add, the best part of the law of England is judge-made law – that is to say, consists of rules to be collected from 12  Note-se que de acordo com Henry Sumner Maine também o praetor romano baseava-se no direito natural para criar a regra jurídica específica permitida pelo ordenamento romano: “La parte del derecho que la razón natural dicha a todo el género humano es el elemento que se suponía haber introducido el pretor en la jurisprudencia de aquel pueblo” (MAINE, 1893, p. 41). 13  “Decisão que se afasta do conteúdo estrito da norma escrita; norma jurisprudencial; norma derivada dos precedentes judiciais” (MELLO, 1994,p. 358).

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the judgments of the Courts. This portion of the law has not been created by Act of Parliament, and is not recorded in the statute-book. It is the work of the Courts; it is recorded in the Reports; it is, in short, the fruit of judicial legislation (DICEY, 1948, p. 361-362).

Em conclusão, a teleologia do direito processual civil norte-americano parece bem resumida por Benjamin N. Cardoso, que foi membro da Suprema Corte dos EUA, e para quem interessa menos a demarcação da linha divisória entre os sistemas da commom law e o do direito legislado romano-germânico, e mais a ideia de efetivação da justiça através do processo.14 Esta, aliás, era, também, a opinião de Carlos Cossio, pois já demonstrara que só há mesmo uma única natureza de norma jurídica: aquela que se aplica através de sentença, como complementa Julio Gottheil: “La verdad de las normas se alcanza en su vigencia”.15 Mesmo partindo do ponto de vista das normas gerais existentes nesses distintos sistemas jurídicos, é sim possível distinguir a amplitude de poderes jurisdicionais, até porque os poderes de imperium exercidos pelos juízes ingleses e norte-americanos não se originam, mediatamente, de cada sentença aplicada em concreto, mas do ordenamento genérico (antecedente) que permite aos magistrados assim atuarem. O que queremos é realçar a gama de poderes que os juízes possuem nesses diferentes sistemas, no tocante à efetivação de suas decisões judiciais. E, quanto a isto, as teorias jurídicas de cada sistema levaram em conta uma tentativa de fugir da concentração do poder numa das funções estatais: ora no executivo; ora no judiciário. Como vimos, os ingleses e norte-americanos optaram pela commom law porque entendiam, dentre outros motivos, que melhor lhes servia para limitar os poderes do governante e garantir as liberdades públicas. Os franceses, temerosos com a hipertrofia do judiciário, ao contrário, trataram de limitá-lo ao máximo, resumindo sua atuação à de um mero tradutor das palavras da lei e sem permitir o controle do poder executivo pelo poder judiciário (MONTESQUIEU, 1992, p. 193). E foi na esteira da ideia liberal-francesa que a teoria geral do processo brasileiro foi construída. Bem a propósito, Cossio ensinava que a generalidade deve ser entendida a partir da individualidade.16 Mas se considerarmos os sistemas jurídicos regidos pela civil law, iremos concluir que esse papel criativo do judiciário é menor do que nos sistemas regidos pela commom law. E é exatamente do ponto de vista do direito material que se pode comparar a atividade criadora do juiz à do legislador. Obviamente que isso merece ressalvas, pois como adverte Cappelletti, apesar de a criatividade jurisdicional do direito representar uma vicissitude dos tempos atuais e de corresponder a exi14 “Não farei qualquer tentativa de dizer onde estará localizada, um dia, a linha divisória. Estou convencido, porém, de que sua localização, onde quer que seja, será regida não por concepções metafísicas acerca da natureza do Direito criado pelos juízes, nem pelo fetiche de algum preceito implacável, como o da divisão dos poderes governamentais, mas por considerações de conveniência, de utilidade e dos mais profundos sentimentos de justiça”(CARDOSO, 2004, p. 110). 15  Embora pareça-nos cabalmente possível distinguir os sistemas em questão pelas peculiaridades das normas gerais de cada um. Diferentemente, Julio Gottheil entende que: “Es imposible perseguir las modalidades que tipifican un sistema jurídico a partir de las normas generales, que parecen ser su verdadera base, ya que las normas generales carecen de todo sentido si non puestas en contacto con la realidad social, mediante la creación e impresión de normas individuales. Sucede que generalmente los jueces siguen las determinaciones normativas de la ley o del precedente, dando así impresión a las estructuras básicas de cada sistema en estudio. (...) El hecho, de todas maneras, permite descalificar todo estudio que se haga sobre la base del punto de vista que ofrecen las normas generales” (GOTTHEIL, 1960, p. 64-65). 16  Como lembrava Cossio, apesar de a lei de certo modo demarcar a atuação do juiz e de circunscrever o seu campo de atuação a priori, nada obstante isto, a sentença é o ato que concretiza o direito, e, portanto, que lhe dá existência, verbis: “La ley entendida de esta manera, es, evidentemente, a-priori a la sentencia; está dada al Juez por antecipado. La ley, además, prefigura o predetermina en algún grado lo que la sentencia dirá, pues encauza la resolución judicial demarcándole un círculo cerrado de posibilidades a las que el juez tiene que acomodarse. La ley es, pues, el ámbito de la sentencia; y, en tal sentido, contiene toda su estructura. Pero como la ley es un pensamiento que enuncia cosas generales para indefinidos casos, resulta que la ley es formal respecto de la sentencia que es concreta. O dicho de otra manera: la ley no es la forma sensible que va a tener la sentencia en concreto, sino que es la forma pensada de esa experiencia jurídica que va a resultar existente en la sentencia y solo en ella”(COSSIO, 1964, p.148). A saliência é nossa.

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gências não só jurídicas, mas econômicas, políticas e sociais, isso não significa dizer que os juízes possam atuar exatamente na mesma medida dos legisladores. Se pelo aspecto material realmente criam o direito, há que se adstringir essa criatividade ao caso concreto. Além disso, quanto ao aspecto procedimental as duas atividades (legislativa e jurisdicional) são integralmente distintas.17 No entanto, em ambos os sistemas o fenômeno da individualização e concretização da norma de direito material ocorre de maneira semelhante, isto é, através de um processo no qual a questão central é resolvida pela sentença, e não com as normas genéricas (lei e precedente). Seja por meio do uso do silogismo com subsunção ou por argumentação retórico-entimemática, a solução dos conflitos individuais e coletivos será sempre dada e delimitada pelos princípios jurídicos e pelas regras genérico-sistemáticas antecedentes que orientam a atuação dos juízes, sobretudo pelos princípios e regras constitucionais. Nos EUA, por exemplo, ao interpretar o artigo 3º da Constituição, Edward Corwin bem esclarece que o exercício do poder jurisdicional resta delimitado pela norma maior: “Judicial power” is the power to decide “cases” and “controversies” in conformity with law and by the methods established by the usages and principles of law. Like “legislative” “and executive power” under the Constitution, “judicial power,” too, is thought to con-not certain incidental or “inherent” attributes....”18 Se um juiz inglês pode julgar com a imposição de ordem, porque lastreado pelo ius imperium, e se o juiz brasileiro apenas podia resolver a lide dizendo o direito (iurisdictio) a ser aplicado no caso concreto, mas sem prerrogativa de – no processo de conhecimento regido pelo procedimento comum, antes da vigência da lei nº 10.444/02 – ordenar, isso era uma decorrência do próprio sistema, que representava um controle prévio dos poderes da jurisdição brasileira, cujo standard adotado foi o do estado liberal, com uma tutela cognitiva meramente ressarcitória. Por isso, no procedimento comum (CPC, art. 272), não era permitido ao juiz brasileiro, por exemplo, impor pena pecuniária ao réu, nas obrigações para entrega de coisa, simplesmente porque, antes da vigência daquela lei alhures mencionada, elas somente eram passiveis de aplicação às obrigações de fazer e não-fazer. E é lógico que isso consistia num estabelecimento genérico-antecedente (CPC, art. 461), que se revelava existente na ora da prolatação da sentença. No entanto, uma sentença que, nada obstante isso, aplicasse um direito contrário ao previsto pelo ordenamento estatal era passível de anulação ou reforma pelo tribunal ad quem, conforme o caso concreto, que tanto se dá através de recurso ou de ação anulatória de sentença. Assim, à obediência procedimental à lei processual é uma garantia comum às partes e à sociedade civil. Sobre isso Marshall já advertia que: “O poder judicial nunca é exercido com o propósito de fazer cumprir a vontade do juiz; é sempre com o propósito de fazer cumprir a vontade da legislatura; ou, em outras palavras, a vontade da lei”.19 17  Dissertando sobre a atividade dos juízes, Cappelletti esclarece: “Efetivamente, eles são chamados a interpretar e, por isso, inevitavelmente a esclarecer, integrar, plasmar e transformar, e não raro a criar ex novo o direito. Isto não significa, porém, que sejam legisladores. Existe realmente, como me proponho a agora demonstrar, especial diferença entre os processos legislativo e jurisdicional. Certamente, do ponto de vista substancial, tanto o processo judiciário quanto o legislativo resultam em criação direito, ambos são “law-making processes”. Mas diverso é o modo, ou se se prefere o procedimento ou estrutura, desses dois procedimentos de formação do direito, e cuida-se de diferença que merece ser sublinhada para se evitar confusões e equívocos perigosos. O bom juiz bem pode ser criativo, dinâmico e “ativista” e como tal manifestar-se; no entanto, apenas o juiz ruim agiria com as formas e modalidades do legislador, pois, a meu entender, se assim agisse deixaria simplesmente de ser juiz”(CAPPELLETTI, 1999, p. 74). Sem negrito, no original. 18  Em continuação, acrescenta o autor: “One of theses is the ability to interpret the standing law, whether the Constitution, acts of Congress, or judicial precedents, with na authority to wich both the other departments are constitutionally obliged to defer” (CORWIN, 1948,p.117). 19  Esta citação foi retirada da obra de CARDOSO, Benjamin Natan, acima citada, p. 126. Mas, melhor nos parece a conclusão deste, que também invoca um trecho de discurso do Presidente Roosevelt dirigido ao Congresso dos EUA, que melhor traduz nosso entendimento sobre a matéria, vejamos: “Os principais legisladores de nosso país talvez sejam, e muitas vezes são, os juízes, pois é neles que assenta a autoridade final. Toda vez que interpretam contratos, propriedades, direitos adquiridos, o devido processo legal e a liberdade, eles necessariamente convertem em lei partes de um sistema de filosofia social; e como essa interpretação é fundamental, eles direcionam todo o processo de criação das leis. As decisões dos tribunais sobre questões econômicas e sociais dependem de sua filosofia econômica e social; e, para o progresso pacífico do nosso povo durante o século XX, estaremos principalmente em débito com esses juízes que defendem uma filosofia econômica e social do século XX e não uma filosofia há muito superada, produto ela própria de condições econômicas primitivas”.ROOSEVELT, ap. CARDOSO, Benjamin Natan, op. cit. p. 127. É

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Isso não significa, porém, que o juiz sempre aplicará a regra de direito material em conformidade com a vontade do parlamento, ou da própria norma, da mens legis. Kelsen já havia explicado, na sua teoria pura do direito, que uma sentença confrontante com a norma jurídica material estatal que regula a hipótese concreta podia até vir a transitar em julgado. Neste caso, a norma jurídica individual dissociar-se-ia da norma genérica antecedente, mas, ainda assim, seria válida e eficaz. Contudo, esse fato não desconstrói a teoria pura e também não afeta nosso propósito acima infirmado. Isto apenas retrata uma entropia sistemática: exceção incapaz de anular a regra. Esta, como é cediço, pressupõe a atuação dos juízes conforme o padrão adotado previamente pelo Estado: due process of law. No tocante ao direito processual constitui dever jurisdicional a obediência aos princípios processuais relativos ao procedimento conforme a lei, independentemente da vontade pessoal do aplicador do direito; ademais, a decisão judicial deve manter uma relação de pertinência com os valores médios otimizados em normas principiológicas do grupo social ao qual pertence, mormente às normas jurisprudenciais uniformizadas, pois que estas já passaram pelo processo de filtragem dos variados entendimentos e debates sobre o assunto e o valor nela contido traduz a “ vontade da média contemporânea”, que, iniludivelmente, supera possíveis excentricidades individualizantes.20 Em suma, a norma jurisprudencial detém um peso altíssimo no vetor decisional a ser adotado em casos futuros, pois já contém em si mesma o processo de depuração e de discussão judicial que lhe conferem caráter democrático. Não porque o juiz deva a ela obedecer por imposição da vinculação do precedente, mas porque ela traslada uma atividade jurisdicional da qual a sociedade civil participa nas mais variadas instâncias judiciais, legitimando, portanto, os respectivos conteúdos, sobretudo porque a norma jurisprudencial detém um inegável conteúdo de justiça, na medida em que trata a todas as pessoas que estão em situação idêntica, de forma idêntica. Nos Estados Unidos, em especial, esse objetivo é facilitado através das class actions, pelas quais ocorre uma irradiação dos efeitos da coisa julgada para atingir terceiros não participantes da demanda, mas que se encontram na mesma situação jurídica. 3. O GRAU DA (IN)DEPENDÊNCIA DOS JUÍZES NORTE-AMERICANOS Um dos pressupostos do constitucionalismo norte-americano é, precisamente, a independência dos seus juízes. Owem Fiss trata do assunto contrapondo algumas restrições em face dos seguintes aspectos: 01- em relação às partes envolvidas no litígio; 02- quanto à autonomia funcional; 03- quanto à separação de poderes; 04- quanto à independência política; 05- quanto à possibilidade de impeachment dos juízes; 06- pela dependência de reajuste remuneratório dos vencimentos em face do Congresso; 07- a limitação da competência das cortes federais por ato do Congresso; 08- a manutenção do número de juízes frente a inflação processual. No tocante às partes envolvidas, a independência do juiz consiste no fato de ele ser imparcial, isto é, de não manter nenhuma relação com os envolvidos capaz de permitir a existência de influências, que nos parecem alopoiéticas, e que redundariam num direcionamento, ainda que inconsciente, na decisão da causa. Dentre elas, destacam-se: a possibilidade de suborno; afinidacurioso, mas esta referência a Rossevelt além de nos parecer importante, daí a sua transcrição, bem como a Benjamin N. Cardoso, também o foi para Cappelletti, tanto que em seu Juízes Legisladores?, traduzido por Carlos Alberto Álvaro de Oliveira, ela vem destacada logo após o título e antes do sumário. Vide: CAPPELLETTI, Mauro.Juízes legisladores? Porto Alegre: Fabris Editor, 1999. 20  Impassível de retoque é o magistério que se extrai da seguinte e brilhante lição de Benjamin Cardoso: “Não me indisponho, portanto, com a doutrina de que os juízes devem estar em sintonia com o espírito de sua época. (...) A cada dia, porém, nasce em mim uma nova convicção acerca da inevitável relação entre a verdade de fora de nós e a que vem de dentro. O espírito da época, tal como se revela em cada um de nós, muitas vezes nada mais é que o espírito do grupo no qual os acasos do nascimento, da educação, da profissão ou da comunhão de interesses nos deram um lugar. Nenhum esforço ou revolução da mente destronará, completa e definitivamente, o império dessas lealdades subconscientes. (...) As excentricidades dos juízes se equilibram. Um juiz examina os problemas do ponto de vista da história; outro do de vista da filosofia; um terceiro, do ponto de vista social; um é formalista; outro, tolerante; um tem medo de mudanças; outro está insatisfeito com o presente. Do atrito entre diversas mentes cria-se algo que tem uma constância, uma uniformidade e um valor médio maiores do que seus elementos componentes” (CARDOSO, 2004, p. 128-132).

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des ideológicas ou culturais, dentre outras. Considera a doutrina norte-americana que constitui paradigma difícil de ser alcançado, em especial no pertinente às identificações culturais e ideológicas.21 A questão da independência funcional dos juízes norte-americanos refere ao relacionamento mantido pelo juiz com os demais membros componentes do poder judiciário, de modo que as decisões individuais não devem ficar sujeitas a pressões da própria corporação.22 Contudo, a partir de 1980, com a lei da reforma dos conselhos judiciais, a independência dos juízes distritais de primeira instância ficou severamente ameaçada, pois se passou a permitir que grupos de juízes federais pudessem desviar-se dos procedimentos recursais ordinários e formar comitês com o desiderato de investigar e de impor sanções aos juízes distritais (FISS, 2004, p. 154). Quanto à separação de poderes, a independência judicial norte-americana coincide com o aspecto da imparcialidade concebido em relação às partes envolvidas. Mas isso só vai se verificar de fato quando um dos outros dois poderes forem parte numa determinada demanda. Para evitar ingerências indevidas dos outros poderes sobre o judiciário, os juízes federais norte-americanos possuem a garantia constitucional da vitaliciedade e da irredutibilidade de vencimentos. Mas a legitimação do sistema norte-americano se evidencia na medida em que as partes e os advogados participam da formação dos precedentes, os quais se formam da base para o topo da escala judiciária hierárquica, consoante Catherine Elliot e Frances Quinn: “In deciding a case, a judge must follow any decision that has been made by a higher court in a case with similar facts The rules concerning which courts are bound by which are know as the rules of judicial precedent, or stare decisis. As well as being bound by the decisions of courts above them, some courts must also follow their own previous decisions; they are said to be bound by themselves” (2000, p. 8). Porém, quanto à independência política,o judiciário norte-americano sofre a interferência direta do Presidente da República que se alastra perante todo o judiciário federal, embora fique sujeita ao controle do Senado.23 Mas o fato de as promoções dos juízes também dependerem de ato do Presidente da República representa indisfarçável interferência política na gerência jurisdicional, pois que, obviamente, as nomeações e promoções na carreira irão coincidir com as preferências político-ideológica dos juízes.24 Na magistratura federal, os juízes são nomeados pelo Presidente da República,25 enquanto 21  Como diz Fiss: “Tal exigência tem como objetivo afastar graves ameaças à imparcialidade, como, por exemplo, o suborno e a existência de laços estreitos de parentesco entre juízes e litigantes. Todavia, muitas violações menos ostensivas, como afinidades culturais e identificações ideológicas, entre outras, na prática não podem ser prevenidas.A independência do juiz, portanto, no que tange às partes litigantes, é um ideal que só pode ser parcialmente alcançado” (FISS, 2004, p. 153-154). 22 “Ela requer que o juiz seja limitado por pressões corporativas ou institucionais ao decidir questões de fato e de direito. De acordo com essa regra, as decisões judiciais são questões concernentes à consciência e responsabilidade individual do juiz. Esse aspecto da independência do juiz, de caráter individual, tem suas raízes em padrões culturais abrangentes e é reforçado pela prática norte-americana de recrutar juízes entre indivíduos bem-sucedidos na prática do direito ou na política. (...) Assim, como a neutralidade judicial, a autonomia funcional é um ideal apenas parcialmente realizado” (FISS, 2004, p. 154). 23 “Uma das principais limitações impostas à independência política do Judiciário é o processo de nomeação. Em alguns países o Poder Judiciário é dotado de autoridade para selecionar seus próprios membros, como uma forma de intensificar sua independência política. Nos Estados Unidos, o Presidente é investido do poder de nomear juízes federais e esse sistema necessariamente introduz um elemento de controle político sobre a composição do Poder Judiciário. Os Presidentes naturalmente tenderão a selecionar juízes cujo conceito de justiça aproxime-se do seu, os quais tenderão a apoiar as políticas de suas respectivas administrações” (FISS, 2004, p. 156). 24  No âmbito do judiciário norte-americano, isso fica esclarecido por Fiss, nos seguintes termos: “Mesmo após a realização do juramento do juiz, o controle do Presidente sobre as promoções pode servir como uma fonte de influência contínua. Aqueles que almejam uma posição superior na hierarquia judicial, ou, talvez, um outro posto no governo podem evitar decisões passiveis de desagradar ao Presidente ou impor obstáculos a sua confirmação no cargo. Ademais, é provável que os juízes se considerem em débito com o Presidente que o nomeou. Esse sentimento de gratidão pode produzir uma orientação judicial tendenciosa, favorável à Administração. (...) Em algumas situações memoráveis, tal como aquela que envolveu o juiz Louis Brandeis e o Presidente Franklin Roosevelt, os juízes em sessão agiram como conselheiros do Presidente, comprometendo, de forma extremamente grave, sua independência” (FISS, 2004, p. 156-157). 25  Los Magistrados de la Corte Suprema, los jueces federales de primera instancia, de los Tribunales de Apelación y los jueces del Tribunal de Comercio Internacional son nombrados según dispone el Título III de la Constitución Política. Ellos son designados y nombrados por el Presidente de los Estados Unidos y [la nominación] debe ser ratificada

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a carreira dos juízes estaduais varia de Estado para Estado, em alguns deles se dá por indicação do governador ou pelo parlamento e, noutros, ocorre através de eleição direta pela população. Quanto à possibilidade de impeachment dos juízes,a Constituição estabelece no seu artigo 3º que a permanência dos juízes em seus cargos estará a depender de comportamento “adequado”.26 Não se trata de norma inibidora da independência dos juízes, mas apenas de imposição de um comportamento pessoal, de caráter ético generalizante. Entretanto, foi com base nela que o Congresso norte-americano, no século XIX, chegou a invocar esse poder de impeachment somente porque discordou, isto é, desaprovou determinada decisão judicial. Mesmo não tendo havido precedente de afastamento de juízes pelo Congresso por este motivo, a ameaça remanesce, apesar de o consenso ser no sentido de que sua aplicação restringir-se-ia a casos de alcoolismo crônico, condenação criminal e corrupção.27 A questão da dependência de aumento remuneratório em face do Congresso, nos EUA, é uma realidade, pois o reajuste dos vencimentos dos juízes federais dependem de ato do parlamento. Isso leva Fiss a concluir que a independência dos juízes fica abalada na exata medida em que as decisões judiciais não tenderiam a desagradar o pode legislativo, que, por seu turno, não está obrigado a reajustar os valores remuneratórios dos juízes na mesma medida da perda decorrente da inflação, assim como também pode interferir na manutenção dos serviços judiciais acessórios.28 Quanto à limitação da competência das cortes federais por ato do Congresso, é fato que as decisões judiciais que interpretam a Constituição norte-americana só podem ser afastadam através de emenda constitucional, que nos EUA além de quorum diferenciado no parlamento ainda encontra a possibilidade de veto pelos Estados-membros, o que significa dizer que as decisões judiciais encontram fortíssimo lastro de substância constitucional. Contudo, quando a decisão refere-se à lei, o Congresso pode reverter o seu conteúdo interpretativo. Para tanto, basta recorrer à edição de atos legislativos.29 Problema maior é que o Congresso pode limitar e alterar a competência das cortes federais, podendo mesmo determinar o encaminhamento de processos a cortes estaduais ou outros órgãos federais, inclusive da administração pública.30 Enfim, quanto ao problema da por un voto mayoritario del Senado. Los magistrados y jueces nombrados bajo el amparo del Título III ejercen sus funciones de carácter vitalicio y sólo pueden ser destituidos por el Congreso mediante el processo de impugnación que dispone la Constitución Política. El Poder Judicial no toma parte en el proceso de nominación o ratificación. El criterio principal para ser nombrado como juez federal son los éxitos académicos y profesionales. A los candidatos a la judicatura no se les administran pruebas. Más bien, quien aspira a una judicatura debe completar un formulario muy extenso que establece detalladamene las cualificaciones y éxitos profesionales, incluyendo aspectos tales como el trasfondo académico, la experiencia laboral, artículos publicados, actividades intelectuales, causas legales que haya gestionado, y actividades extracurriculares. Los candidatos serán objeto de entrevistas, investigaciones y preguntas complementarias minuciosas”. El sistema federal judicial en los Estados Unidos. Presentación para jueces y personal administrativo del ramo judicial en países extranjeros. Washington: Thurgood Marshall Federal Judiciary, 2000, p. 13. 26 “’Article III – This article complets the framework of the National Government by ‘the judicial power of the United States’. ‘Section I’. ‘The judicial power of the United States shall be vested in one Supreme Court, and in such inferior courts as the Congress may from time to time ordain and establish. The judges, both of the Supreme and inferior courts, shall hold their offices during good behavior, and shall, at stated times, receive for their services a compensation which shall not be dismissed during their continuance in office’ (CORWIN, 1948, p.117). Aqui o autor elucida que os juízes norte-americanos devem decidir em conformidade com a Constituição, com as leis emanadas do Congresso ou com os Precedentes, mas, sempre, respeitando os princípios constitucionais. 27 Mas, como frisa Fiss, a ameaça ainda existe: “De fato, nenhum desses procedimentos específicos resultou no afastamento de juízes e formou-se um entendimento geral no sentido de que os juízes só podem ser impedidos se violarem as mais elementares tarefas decorrentes do cargo (...) Ainda assim, a ameaça de impeachment, frequentemente externada por ideólogos que não têm esperança de êxito, pode ter uma influência inibidora” (FISS, 2004, p. 157). 28 “Não obstante a Constituição ofereça uma garantia contra a redução de vencimentos, o direito atualmente assente nos Estados Unidos desobriga o Congresso de aumentar os salários dos juízes federais de acordo com a variação inflacionária. Juízes preocupados com a manutenção do valor real de seus vencimentos podem, portanto, adaptar suas ações para não desagradar os demais Poderes. Ademais, o juiz fica vinculado a certos benefícios acessórios do cargo, como secretárias, assistentes e motoristas, podendo produzir-se um efeito semelhante, posto que esses benefícios também são controlados pelo Congresso e pelo Presidente” (FISS, 2004, p. 158). 29 “Esse poder tem sido exercido inúmeras vezes, não obstante o fato de ser limitado por uma norma que nega ao Congresso o poder de prescrever ou alterar a norma aplicável a um caso concreto já pendente” (FISS, 2004, p. 158). 30 “Nos últimos anos, ocasionalmente, o Congresso tem procurado controlar a adjudicação de ações constitucionais

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manutenção do número de juízes frente à inflação processual,a doutrina norte-americana considera que o fato de o aumento do número de juízes depender de ato do Congresso constitui mais um fator a pesar contra a independência do judiciário. Essa possibilidade de controle tanto pode constatar-se na tentativa de manter o número de juízes, para que o trabalho da máquina judiciária emperre, quanto na de aumentá-lo, para fazer superar determinada corrente de pensamento existente nas cortes contrária aos interesses do governo, tal como já tentou fazê-lo o presidente Roosevelt.31 É interessante o fato de a Constituição norte-americana não estipular o número de juízes componentes da suprema corte, e nem mesmo das cortes inferiores.32 O sistema jurisdicional brasileiro encontra-se em estágio bem mais avançado que o norte-americano, quanto às garantias legais e, sobretudo, constitucionais preservadoras da imparcialidade e independência jurisdicional, inclusive de ordem administrativa e financeira. Perceba-se que a imparcialidade, que não significa necessariamente neutralidade, do juiz em face das partes envolvidas vem garantida nos artigos 134 e 135 do código de processo civil, que impõem ao juiz a vedação de manter com as partes litigantes qualquer vínculo relacional limitador de sua parcialidade, sejam os de índole parental ou de amizade íntima, ou inimizade, ou de atuar como juiz em processos que já tenha atuado como advogado da parte, etc. Enfim, garante a lei brasileira que as decisões judiciais sejam imparciais, mas, assim como nos EUA, esse postulado é de dificílima constatação quando refere aos defeitos de amizade, não só com as partes, mas com os seus advogados,33 quando diz respeito aos aspectos de suspeição, posto cingirem-se a questões de ordem subjetiva que não são demonstráveis de plano, como os são os defeitos de impedimento, que trazem restrições objetivas, e, portanto, mais fáceis de serem demonstráveis. Mas, quanto à independência constitucional-funcional, as garantias brasileiras são mais abrangentes que a dos juízes norte-americanos. Não apenas os juízes federais logram garantias de irredutibilidade de vencimentos (subsídios) e não só estes são vitalícios. Todos os juízes togados brasileiros, isto é, todos que ingressam na carreira de juiz estadual, do trabalho, militar, federal, nos termos preconizados pela Constituição Federal, são vitalícios. Todos são inamovíveis, ressalvada a possibilidade de os tribunais, só os tribunais, procederem com a remoção compulsória com quorum de dois terços, garantido, mesmo assim, o direito ao contraditório e à ampla defesa. Veja-se que esta garantia não é consagrada aos juízes norte-americanos no texto da Constituição. Outra questão cinge-se à impossibilidade de interferência do poder legislativo no direcionamento de processos em tramitação, como acontece nos EUA. No Brasil, essa possibilidade constitui afronta à independência jurisdicional brasileira e não se compadece com o modelo de separação de poderes instituído na Constituição Federal de 1988. Depois, perceba-se que no Brasil não apenas os juízes federais são os legítimos intérpretes da Constituição, como se dá nos EUA, mas qualquer juiz investido de jurisdição tem poder para declarar, no caso concreto, a inconstitucionalidade da lei ou de ato normativo (emanado de qualquer dos poderes da República). Em resumo, no Brasil, não há diferenças de garantias entre juízes federais e estaduais, o que favorece um poder judiciário nacional ainda mais independente. Diferentemente, nos EUA, só os juízes federais

por meio do estabelecimento de limitações às medidas judiciais, em vez de buscar a modificação da competência das cortes federais sobre tais ações judiciais. Com relação à segregação escolar, por exemplo, o Congresso limitou as condições sob as quais o transporte escolar pode ser organizado. Além disso, empregou, recentemente, estratégia semelhante para interferir em um processo em trâmite perante uma corte federal que tinha por objeto a reforma das condições das penitenciárias” (FISS, 2004, p. 159). 31 “Durante o século XIX o Congresso por vezes manipulou a quantidade de juízes da Suprema Corte como forma de influenciar o curso das decisões judiciais. Contudo, desde a malograda tentativa do Presidente Franklin Roosevelt no sentido de alterar a composição da Corte na década de 30 - um esquema que previa o acréscimo de um novo juiz para todo aquele que ultrapassasse setenta anos de idade, de modo a minar as decisões contrárias aos programas do New Deal -, uma norma informal surgiu nos Estados Unidos desfavorecendo esse tipo de manipulação” (FISS, 2004, p. 160). 32  Mas, como anota Fiss: “Essas formas de exercício do controle legislativo são mais viáveis no que tange às cortes federais de grau inferior, pois não há normas gerais sobre o número adequado de juízes para essas cortes (diversamente da Suprema Corte, cujo número de nove juízes parece ter sido fixado pela imaginação popular) e elas raramente despertam grande atenção por parte do público” (FISS, 2004, p. 160). 33  Que no nosso sistema não constitui fator de parcialidade.

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detêm o reconhecimento da doutrina como tendo mitigada independência.34 E neste aspecto, no Brasil verifica-se mais fortemente o fenômeno pelo qual quanto mais democrático for um Estado, mais ele conferirá poderes ao judiciário para garantir o exercício da jurisdição sem vinculação ou dependência da própria sociedade civil, controlando, inclusive os outros poderes, que, paradoxalmente, são exercidos através da escolha do voto.35 Outra, porém, é a questão dos poderes processuais dos juízes. Vejamos o caso dos EUA. 4. PODERES PROCESSUAIS JURISDICIONAIS NO PROCESSO CIVIL NORTE-AMERICANO: CONTEMPT POWER, CONTEMPT OF COURT; ADJUDCATION; INJUNCTION; E REMEDIAL PHASE Já vimos acima, que os juízes norte-americanos exercem a jurisdição com ius imperium. Essa prerrogativa foi-lhes transpassada pelo sistema de processo civil inglês, que se instalou nos EUA. Atuam, portanto, no processo, com a possibilidade constante de recorrerem ao contempt power, isto é, podendo enquadrar as partes e os advogados que praticarem atos atentatórios à dignidade da jurisdição, que atuarem em contempt of court, à submissão de sanções pecuniárias.36 De acordo com Hazard Jr e Tarufo, o sistema processual norte-americano sofreu uma grande reforma em 1938, quando foi adotado o Federal Rules fo Civil Procedure, o qual sofreu sucessivas reformas visando ao aperfeiçoamento do acesso à justiça. O velho sistema da commom law vinha sofrendo críticas de diversos matizes, dentre os quais destaca-se “... among other deficiencies the plaintiff was given little access to evidence in the hands of a suspected wrongdoer”. O Federal Rules de 1938 simplificou o sistema probatorio para ampliar radicalmente as oportunidades pelas quais uma parte pode ter acesso às provas pertencentes à parte adversa (HAZARD; TARUFO, 1993, p. 205). Além disso, através da sistemática da adjudcation,37 os juízes exercitam a jurisdição dando significado a valores públicos, sobretudo aos pertinentes ou inseridos na Constituição. Pela adjudcation os juízes podem reestruturar a organização estatal visando à eliminação de ameaças aos valores constitucionais. E o meio pelo qual essas diretivas jurisdicionais de reestruturação são efetivadas denomina-se: injunction, ou seja, uma ordem judicial que impõe ao réu determinado comportamento, seja impondo a prática de certa conduta consistente numa obrigação de fazer ou numa imposição de omissão, inibição para que deixe de fazer, ainda que o réu seja o próprio poder

34 “Os juízes federais gozam de certa independência no que se refere às partes litigantes e a outros membros do Judiciário, mas essa independência está longe de ser absoluta. (...) eles não são, de maneira nenhuma, completamente independentes dos demais poderes. Uma vez que a Constituição norte-americana concede aos Poderes Executivo e Legislativo as prerrogativas de fazerem nomeações, decidirem se os salários devem ser reajustados de acordo com a inflação e definirem a jurisdição e estrutura do Judiciário, o que é agravado pelo fato das cortes precisarem, com frequência, de tais Poderes para a implementação de suas decisões, eles podem exercer uma influência significativa sobre elas. Os juízes são independentes, mas não tanto quanto, na verdade, é apropriado em uma democracia” (FISS, 2004, p. 161).Salientamos. 35  Como registra Fiss: “A despeito de sua importância, a separação dos poderes impõe um certo dilema à teoria democrática: quanto mais independente estiver o Judiciário em relação às instituições governamentais controladas pelo voto popular, maior será a sua capacidade de interferir em suas políticas e, consequentemente, de frustrar a vontade popular”(FISS, 2004, p. 155-156). 36  Sobre esse instituto, Carlos Alberto de Salles esclarece: “O contempt of courtconsiste, de maneira geral, “em um ato ou omissão perturbando ou obstruindo o processo judicial em um caso em particular”. SALLES, Carlos Alberto de. Vide anotações à obra de FISS, especificamente, a nota de nº 07, p. 161. 37  O termo “adjudicação” no processo civil dos EUA denota, na prática, significação totalmente distinta da existente no processo civil brasileiro, embora não incompossível. Aqui, a expressão designa uma das formas pela qual a jurisdição efetiva a expropriação do patrimônio penhorado do réu no processo de execução (artigo 647 do CPC), bem como nas ações que versam sobre o domínio. Nos EUA, como esclarece Salles: “Adjudcation é a forma usual na literatura de língua inglesa para designar a atividade realizada pelo Judiciário na solução de conflitos. Não obstante o vocábulo correspondente em português seja mais utilizado nas relações de posse e propriedade (e. g., a “adjudicação compulsória”), é correta na sua extensão para o sentido utilizado na língua inglesa. O juiz, ao julgar em determinado caso, aplica a norma ao caso concreto adjudicando – isto é, atribuindo uma solução, entre outras possíveis, para controvérsia em questão”. SALLES, Carlos Alberto de, op. cit. p. 26.

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público, sob ameaça de prisão, inclusive, no caso de descumprimento.1 Mas essa extraordinária gama de poderes jurisdicionais foi conquistada pela atuação da suprema corte dos EUA, a partir da reforma estrutural empreendida nos anos 50 e 60, do século passado, quando foi determinada a extinção do sistema educacional dual, que segregava crianças negras de brancas.2 Nos EUA a execução da sentença não é dependente de processo autônomo e distinto do cognitivo. No entanto, a remedial phase, isto é, a execução do julgado ou o enforcement of judgments não atendido espontaneamente pelo réu, mas pode não ser procedida nos mesmos autos da ação originária. Exigem, em certas situações, a instauração de um procedimento acessório geralmente conduzido por uma autoridade policial ou um master cujo escopo é o de aplicar a medida estipulada no processo principal. Diferente é a situação quando o processo tem por objeto a eliminação de ameaças a valores constitucionais, como, por exemplo, a adequação de instituições destinadas à prestação de serviços de saúde mental às normas constitucionais ou legais aplicáveis, em tais casos a execução dá-se nos próprios autos.3 Mas, semelhantemente ao sistema processual civil 1  Tecendo comentários sobre a classificação das ações cíveis nos EUA, Guido Soares adverte que no processo civil norte-americano: “... uma primeira (classificação) se baseia na espécie dos remédios judiciais administrativos: se forem reparações monetárias compensatórias (compensatory moneydamages), trata-se de um suit at commom law e, no caso de não serem cabíveis, portanto, se forem ordens dirigidas contra a pessoa de alguém, expedidas sob a sanção de desobediência à ordem da corte (contempt to court), penalizadas com multas (fines) ou a prisão (imprisonment), trata-se de um suit in equity, cujas exteriorizações mais conhecidas são o decree of specific performance (ordem de fazer determinados atos ou de dar determinadas coisas, portanto insusceptíveis de transformação em compensação monetária) e os writs of injunction, que serão analisados logo mais. O segundo tipo de classificação das ações no processo civil dos EUA consistiria em distinguir o que poderíamos denominar de ritos ordinários, de um lado e de outro, as de rito especial (estas, atualmente nos EUA, denominadas no seu conjunto writs of prerrogatives)...”. SOARES, Guido Fernando Silva, op. cit. p. 109, onde o autor anota a existência de quatro espécies de ações ordinárias, são elas: 01- as actions in personam, que visam compensar com indenização financeira um dano específico; 02- as actions in rem, incidentes sobre direitos reais gerando a produção de efeito erga omnes, podem ser manejadas por qualquer pessoa; 03- as actions quase in rem, pelas quais se obtém uma declaração de um direito que será exercido em relação à determinada coisa;04- as actions declaratory judgements, que se assemelham às nossas ações condenatórias do processo de conhecimento, posto que nos EUA não se conhece de ações meramente declaratórias sem que exista questão jurídica controvertida. As ações de rito especial incluem os writ of certiorari (similar do nosso recurso extraordinário), writ of habeas corpus (que se assemelha ao nosso e é cabível nas esferas estadual e federal), writ of injunction (tutela de urgência), writ of prohibition (assemelha-se a um mandado de segurança impetrado contra ato do juiz, além de também possuir caráter recursal), writ quo warrant (parece-se com a nossa ação popular) e, segundo Guido Soares, também serve para: “ ... solicitar determinação judicial no sentido cassar uma concessão de serviço publico, licença ou permissão ou ainda relacionado à demissão de funcionário publico...”, ibidem. 2  Como esclarece Owem Fiss, toda essa possibilidade e extensão do poder jurisdicional nos EUA decorreram da reforma estrutural, verbis: “Essa injunction é o meio pelo qual essas diretivas de reconstrução são transmitidas. Como um gênero de litígio constitucional, a reforma estrutural tem suas raízes nos anos 50 e 60 do século passado, quando a Suprema Corte norte-americana estava sob a presidência de Earl Warren e realizou-se um extraordinário esforço para colocar em prática a decisão no caso Brown vs Board of Education. Esse esforço exigiu das cortes uma transformação radical da realidade social. As cortes tiveram de superar a mais intensa resistência e, ainda mais problematicamente, precisaram intervir e reestruturar organizações de grande porte, os sistemas de educação pública. O imaginário era rural e individualista – a criança negra entrando em uma escola composta inteiramente por crianças brancas -, mas a realidade era claramente burocrática, especialmente em meados dos anos 60, quando o foco, e a nação, de um modo geral, mudou para os centros urbanos. Brown exigia nada menos que a transformação dos “sistemas duais de escolas”, com escolas separadas para negros e brancos, em “sistemas unitários de escolas não-raciais”, o que implicava em uma reforma organizacional profunda (...) Após receberem da Suprema Corte seus mandados para agirem, os juízes federais de instâncias mais baixas descobriram o que a tarefa exigia e ajustaram as formas de procedimento tradicionais para atender às necessidades existentes. A legitimidade foi igualada à necessidade e, nesse sentido, o procedimento tornou-se dependente da substancia. Um compromisso primordial com a igualdade racial motivou a inovação procedimental, constituindo a justificativa para os distanciamentos da tradição”.FISS, Owem, op. cit. p. 28-29. 3 “A medida judicial é destinada a corrigir ou prevenir um evento isolado e, geralmente, a função judicial exaurese quando a decisão é anunciada e o total de danos calculado ou quando a decisão referente a determinado evento isolado é proferida. Sob essas considerações, o processo judicial tem quase uma dramática unidade aristotélica, um começo, um meio e um fim. Nos casos envolvendo réus que oferecem grande resistência pode haver mais espaço para a fase de execução – por exemplo, sequestro e venda de bens ou um processo de aplicação do contempt of court. Porém, essas medidas com relação ao réu que oferece resistência são a exceção, não sendo consideradas parte integrante do procedimento principal. Elas geralmente envolvem um procedimento acessório conduzido por diferentes pessoas, uma autoridade policial ou um master, para a implementação da medida judicial concedida no processo inicial”( FISS, 2004, p. 63).

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brasileiro, o norte-americano não permite que o juiz instaure a execução de ofício, como anotam Hazard Jr e Tarufo “Thus, a judgment for damages obliges the defendant to pay the amount specified; a judgment against a plaintiff usually involves an award of court costs that creates a similar obligation. However, the obligation created by a judgment is not self-enforcing, and the court does not provide enforcement on its own initiative” (HAZARD; TARUFO, 1993, p. 194). A doutrina classifica as ações norte-americanas, primeiramente, em: administrativas e jurisdicionais. São consideradas administrativas aquelas nas quais o juiz profere ordensa ser cumprida pela parte ré, são uma nítida evolução dos interditos romanos que foram trazidas pela exportação do direito inglês para os EUA. Mas no âmbito do direito inglês, há que se distinguir ações que radicam na commom law das que se originam da equity. Derivam, pois, da commom law as demandas que requerem compensações monetárias, e da equity aquelas ordens judiciais expedidas em decorrência da desobediência jurisdicional e que impõem multas ou mesmo a prisão dos que agridem a dignidade da jurisdição.1 A bem da verdade, a classificação doutrinária que impõe às ações que objetivam a concessão de ordem a ser atendida pela parte ré a mecha de procedimentos administrativos, decorre de uma comparação com o direito romano clássico, especialmente da atividade do pretor com a dos juízes na atualidade. Contudo, hodiernamente constitui ideia superada a de não conceber natureza jurisdicional aos procedimentos que importam na determinação de ordem, seria o mesmo que, no Brasil, não conferir caráter jurisdicional às ações mandamentais. Ações jurisdicionais stricto sensu. A doutrina subdivide essa classe de ações, em: ordinárias e de rito especial. Há, pelo menos, quatro espécies de ações ordinárias, são elas: 01- as actions in personam, que visam compensar com indenização financeira um dano específico; 02- as actions in rem, incidentes sobre direitos reais gerando a produção de efeito erga omnes; 03- as actions quase in rem, pelas quais se obtém uma declaração de um direito que será exercido em relação à determinada coisa;04- as actions declaratory judgements, que se assemelham às nossas ações condenatórias do processo de conhecimento, posto que nos EUA não se conhece de ações meramente declaratórias sem que exista questão jurídica controvertida. As ações de rito especial incluem: os writ of certiorari, similar do nosso recurso extraordinário; writ of habeas corpus, que se assemelha ao nosso e é cabível nas esferas estadual e federal; writ of injunction, que, como já visto, cuida detutelas de urgência; writ of prohibition, assemelha-se a um mandado de segurança impetrado contra ato do juiz, além de também possuir caráter recursal; writ quo warrant, que se parece com a nossa ação popular.2 REFERÊNCIAS ALTAVILA, Jayme de. Origem do direito dos povos.São Paulo: Ícone, 1989. BLACKSTONE, William. Commentaries on the laws of England. Vol. 1. Philadelphia: J. B. Lippincott Company, 1893. BUCKLAND, W. W. & McNAIR, Arnold D. Roman law & commom law. A comparison in outline. Cambridge: At the University Press, 1936.

1  Tecendo comentários sobre a classificação das ações cíveis nos EUA, Guido Soares adverte que no processo civil norte-americano: “... uma primeira (classificação) se baseia na espécie dos remédios judiciais administrativos: se forem reparações monetárias compensatórias (compensatory money damages), trata-se de um suit at commom law e, no caso de não serem cabíveis, portanto, se forem ordens dirigidas contra a pessoa de alguém, expedidas sob a sanção de desobediência à ordem da corte (contempt to court), penalizadas com multas (fines) ou a prisão (imprisonment), trata-se de um suit in equity, cujas exteriorizações mais conhecidas são o decree of specific performance (ordem de fazer determinados atos ou de dar determinadas coisas, portanto insusceptíveis de transformação em compensação monetária) e os writs of injunction, que serão analisados logo mais. O segundo tipo de classificação das ações no processo civil dos EUA consistiria em distinguir o que poderíamos denominar de ritos ordinários, de um lado e de outro, as de rito especial (estas, atualmente nos EUA, denominadas no seu conjunto writs of prerogatives)...” (SOARES, 1999, p. 109). 2  Esta última, segundo Guido Soares, também serve para: “... solicitar determinação judicial no sentido cassar uma concessão de serviço publico, licença ou permissão ou ainda relacionado à demissão de funcionário publico...”, ibidem.

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LA POLÍTICA MIGRATORIA DE LOS ESTADOS DESARROLLADOS COMO FACTOR FACILITADOR DE LA TRATA Y DEL TRÁFICO HUMANO

Vanessa Alexsandra de Melo Pedroso1

1. INTRODUCCIÓN En cualquier comentario sobre el tema de la migración se debe tener en consideración la complejidad que exige el tema, ya que el referido fenómeno es protagonizado por personas que, a su vez, poseen su propia forma de vida, su cultura, expectativas, etc. La historia enseña que raza no es un dato biológico-natural o aun un concepto político-ideológico (...) la ideología racial, toma como base un punto de vista etnocéntrico del mundo que retiene el propio origen superior a los otros, extendiendo ideas de desigualdad y de una equivocada dignidad de los seres humanos (LUDWIG, 1999, p. 185).2(traducción libre) 1 Pos-doctoranda en Ciencias Sociales por la Fundación Centro Internacional de Educación y Desarrollo Humano (CINDE) y Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales (CLACSO). Dra. en Derecho Penal por la Universidad Complutense de Madrid (España). Profa. de Derecho Penal de la Universidade Católica de Pernambuco e de la Faculdade Boa Viagem (Brasil). 2  “La storia insegna che “razza” no è un dato biologico-naturale quanto un concetto politico-ideologico (...) l’ideo-

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Por otro lado, hay que tener en cuenta que además de estos factores y del elemento de la economía de mercado hay que observar el tratamiento jurídico y político que los Estados prestan al referido fenómeno en su legislación y políticas internas (VACAS FERNÁNDEZ, 2007, p. 28). Incluso, conviene percibir que la migración es un proceso y como tal se puede invertir su posición en cualquier momento, sino véase que el emigrante puede regresar a su país y/o, aún, los Estados considerados de origen (VICTAL ADAME, 2004, p. 12) en un determinado momento pueden cambiar a la condición de países de transito y, después al status de países de destino en otro momento determinado (VACAS FERNÁNDEZ, 2007, p. 29)3 o quizá en un mismo momento, yá que un país de salida para un puede ser de entrada para otro. Hay, aún un otro hecho que fundamenta la complejidad no sólo del fenómeno de la migración, sino también, del estudio de esta circunstancia y es la cantidad de datos e informaciones no fiables y completas que se manejan, ya que las encuestas e investigaciones realizadas en este tema no tienen carácter continuado. Lo que proporciona una inadecuación de las respuestas en el ámbito de las políticas (VACAS FERNÁNDEZ, 2007, p. 29). Todos estos, son factores que demuestran la gran complejidad que es tratar del tema de la migración, pues como se puede notar el referido fenómeno trae consigo una cantidad infinita de variables. Es por esta razón que se considera más importante para este momento observar el movimiento migratorio desde una perspectiva actual, es decir, la movilidad como un rasgo sistémico y estructural de la globalización o, mejor, de la ideología globalista (DE LUCAS, 2004, p. 24). Hecho que no disminui su complejidad, ya que la globalidad es heterogénea. Sino, nótese que la manifestación de la migración consiste en un proceso donde “varían los presupuestos, las necesidades, las condiciones y las causas de los desplazamientos migratorios, y, con ello, (...) los factores de impulso (desde el origen) y de atracción (desde el destino)” (DE LUCAS, 2004, p. 26). Sin embargo, ayuda a puntuar un determinado momento histórico. 2. EL MOVIMIENTO MIGRATÓRIO Integralmente se debe comprender el hecho de que la inmigración consiste antes que nada en un fenómeno que además de político es también social, ya que los desplazamientos de personas a nivel internacional se fundamentan en diferentes causas que dependen del momento histórico y así son ejemplos los movimientos migratorios debidos a causas políticas, bélicas o religiosas (MARTÍN Y PÉREZ DE NANCLARES, 2002, p. 17; GARCÍA ESPAÑA, 2001, p.25; GUARDIOLA LAGO, 2007, p.18), y más recientemente ambientales aunque tradicionalmente la causa económica es la que siempre estuvo presente tras la migración. Para Saskia Sassen4 el proceso migratorio actual presenta múltiples características que proceden de la reunión de las circunstancias que están presentes en nuestros días, es decir, las jerarquías formales del poder centradas en el Estado y que a su vez, es formada por el surgimiento de nuevas instituciones globales que van desde los mercados electrónicos financieros a los regímenes de derechos humanos. Estas instituciones globales, a su vez, han permitido una multiplicación de dinámicas y logia razziale, basandosi su una visione del mondo etnocentrica, che ritiene la propia origine superiore alle altre, diffonde idee di diseguaglianza e di una differente dignità degli eseri umani”. Basado en esta idea el autor añade que la discriminación de los seres humanos en lo que atañe la atribución de su etnia ha cumplido una larga y triste tradición, que ya fue prácticada desde el Medievo contra los hebreos y gitanos, retomando su auge con la ¨doctrina de la raza¨ en el siglo XIX (...). De acuerdo con esa doctrina, la legislacion de la raza en la forma de gobierno ¨nacionalsocialismo¨ declaróo la realización de la eugenía por las vias formales del Estado (...) siguiendo ulterior y sistematicamente entre otras formas, por las afro-americanas en los Estados meridionales de Norte America y la política sudafricana del apartheid. “La discriminazione di eseri umani per la loro appartenenza etnica ha una lunga e triste tradizione. Già praticata nel Medievo contro gli ebrei e gli zingari, ritornò in auge, con la ¨dottrina della razza¨, nel XIX secolo (...). Conformemente a tale dottrina, la legislazione razziale del regime nazionalsocialista dichiarò l’eugenetica compito dello Stato (..) seguito ulteriori e sistematiche discriminazioni razziali, fra le altre, quella degli afro-americani negli Stati meridionali del Nordamerica e la política sudafricana dell’apartheid. 3  Ver apartado sobre migración en el Estado español. 4 SASSEN, Saskia. Inmigrantes en la Ciudad Global. Página electrónica: http://www.nodo50.org/tortuga/article. php3?id_article=4093 (Acceso: 19 de julio de 2008).

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actores políticos informales en un espacio que la autora denomina de “ciudades globales”5(SASSEN, 2006). En estas “ciudades globales” existe lo que se considera un espacio parcialmente desnacionalizado que permite la promoción diaria y simultánea de políticas subnacionales y transnacionales, puesto que lo político se implanta y se reinventa a partir de un amplio espectro de intereses particulares de los actores críticos – las grandes empresas globales, las minorías y los inmigrantes – de este nuevo orden territorial (SASSEN, 2006). Por otro lado, nótese que mientras estas “ciudades globales” o mejor dicho, estas grandes metrópolis congregan los sectores líderes del capital global y un número considerable de grupos vulnerables que congrega, también, un terreno estratégico para una cantidad innumerable de conflictos y contradicciones. Sin embargo, el conflicto más importante es aquel que gira entorno de la estratificación del trabajo inmigrante. En este contexto, la observación de estas “ciudades globales” lleva a la clara evidencia de una reestructuración de la demanda laboral en estos núcleos, separada en tres diferentes grupos, el primero sería un grupo con alto grado de especialización y que por lo tanto reciben los ingresos más elevados o, aún medianos, un segundo grupo formado por los trabajos de poca remuneración, que poseen escasa calificación, pero tienen total dominio del idioma y, por fin el grupo de los inmigrantes que producen servicios de todo y cualquier orden (SASSEN, 2000, p. 503-524). Lo que se puede decir es que el mundo actual presenta una verdadera estratificación mundial del mercado de trabajo, ya que la globalización económica propicia todo un conjunto de condiciones específicas de inserción laboral de los inmigrantes a través de los empleos de baja calidad - aquellos “‘trabajos serviles’ siempre rechazados por los ciudadanos” (CARUSO, 2001, p. 243) o, aún, como aduce Claudia Pedone: “empleos inestables, precarios y estaciónales donde acude la mano de obra migrante extracomunitaria en condiciones de irregularidad jurídica que favorece la explotación de trabajadores y trabajadoras con débiles pautas de contratación” (PEDONE, 2003, p. 56), ya que tales inmigrantes son una mano de obra barata, no sindicalizada y abundante. Esta convivencia a partir de la asociación de los segregados actores con la intención de promover el provecho de una existencia común para los mismos, es más evidente cuando el mercado de trabajo inmigrante va destinado a la mujer también inmigrante, como veremos a continuación. 3. DE LA FEMINIZACIÓN DE LA MIGRACIÓN De todos son conocidas las tristes historias donde el hombre, fuente de ingresos de su familia, emigra hacia otra ciudad o país, con la finalidad de ganar algún dinero ya que, donde ellos viven, prevalecen las condiciones inherentes a la pobreza o pobreza extrema y es imposible obtenerlo por la falta de oportunidades de trabajo. En un principio, la mujer/familia recibe envíos de dinero del hombre que se fue quien, a cambio, le pide que se quede viviendo en el mismo lugar, para esperar a que regrese el jefe de família (LOPÉZ GARACHANA, 2008, p. 150).

Así se pudo observar en toda la historia delas sociedades tradicionales, donde las mujeres no eran estimuladas a abandonar su hogar, ni a moverse más allá de los límites de la unidad familiar, puesto que su responsabilidad consistía en el cuidado de los hijos y, en algunas pocas sociedades, al cuidado de los padres mayores. La búsqueda de una vida mejor más allá del horizonte que determina el hogar siempre ha sido un privilegio de los varones(SKROBANEK; BOONPAKDI; 5  “Las ciudades globales son una especie de nueva zona fronteriza tanto para el capital global como para los nuevos actores políticos informales. No sólo el nuevo capital global, sino también los inmigrantes que trabajan y luchan en estas ciudades emergen como actores críticos en hacer la historia contemporánea postcolonial. (…) la ciudad global ha surgido como un lugar estratégico precisamente gracias a estas innovaciones y transformaciones en múltiples dominios institucionales. Factores claves de la globalización y digitalización económica se establecen en este tipo de ciudades y producen dislocaciones y desestabilizaciones de los órdenes institucionales y los marcos legales, regulatorios y narrativos vigentes para manejar las condiciones urbanas. Es justamente esta elevada concentración de nuevas dinámicas en estas ciudades lo que genera innovaciones y respuestas creativas. Se trata, muy probablemente, de un proceso que requiere cruzar un cierto umbral en cuanto a concentración y diversidad de condiciones”.

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JANTHAKEERO, 1999, p. 46-47)6, pues la migración cuanto al hecho migratorio considerada un mero elemento de elección y decisión familiar ya que la migración femenina es consecuencia de la agrupación familiar. Este prejuicio cuando sumado a los intereses de los Estados centrales estableció a partir del Consejo Europeo de Tampere, en 1999 una política migratoria común basada en un sistema de migración ordenada en función de las necesidades laborales y económicas, diseñando plataformas sexuadas (y sexistas) de entrada y residencia regular: el trabajo formal masculinizado y la reagrupación familiar para esposas dependientes (...) hemos construido y consolidado una ciudadanía laboral que reconoce derechos al trabajador, previamente definido como hombre y cabeza de família (MESTRE I MESTRE, 2008, p. 212).

Por esta razón, la explotación laboral internacional hay mostrado de manera general una preferencia por los trabajos realizados por los hombres. Por otro lado, este pensamiento encuentra algunas fronteras en la actualidad, ya que es posible observar en materia de migración algunas transformaciones estructurales en las sociedades de origen y de llegada. Sino, cumple observar que el 49% de los migrantes en 2005 eran mujeres. En tiempos actuales las mujeres representan la mayoría de los migrantes a los Estados considerados desarrollados, pues suman 52,2%. Sin embargo, son solamente 45,5% cuando se refiere a la migración para Estados subdesarrollados(VACAS FERNÁNDEZ, 2007, p. 34). La feminización de los flujos migratorios es un hecho constatado hace poco tiempo y el punto de partida para su análisis, generalmente, encuentra fundamentación en la idea de que la mujer pasa a ser parte, es decir, no consecuencia, de un proyecto familiar estructurado en decisiones de socialización entre género y generaciones(GARCÍA CANCLINI, 1990, p. 10). Es en otras palabras afirmar que, muchas son las mujeres que pasan a encabezar una familia monoparental y por esta razón ellas pasan a intervenir de manera decisiva en el fenómeno migratorio ya que ellas mismas pasan a poner en marcha la referida cadena migratoria. Pero, hay que reflexionar sobre cual es el elemento que pasó a cambiar ese modo de enfrentamiento en el tema de la migración. Es verdad que muchos son los factores, sin embargo, un ejemplo claro de elemento de atracción para el establecimiento de la migración femenina es la incorporación de la mujer en el mercado de trabajo asalariado en los Estados considerados centrales. Sino, véase que determinada demanda, es decir, la feminización del mercado de trabajo aún que en condiciones de desigualdad en todos los países del mundo, cuando auxiliada por los problemas estructurales y económicos de los países periféricos, termina por determinar los flujos migratorios femeninos de los países subdesarrollados hacia los Estados desarrollados (SASSEN, 1984, p. 1150), formando un proletariado feminizado en estos centros. Dicha afirmación encuentra apoyo en los datos estadísticos, ya que estos revelan que fue desde mediados del decenio de 1980 cuando un número cada vez mayor de mujeres se desplaza6 No se pretende un análisis detallado de la cuestión del género en este trabajo, porque este no es el objeto concreto de estudio, pero se reconoce la necesidad de tocar el tema de manera tangencial y en este sentido para poder definir de manera muy sucinta lo que viene a ser género, podríamos decir que “género hace referencia a los roles, responsabilidades y oportunidades asígnados al hecho de ser hombre y ser mujer y a las relaciones socioculturales entre mujeres y hombres y niñas y niños. Estos atributos, oportunidades y relaciones están socialmente construidos y se aprenden a través del proceso de socialización. Son específicos de cada cultura y cambian a lo largo del tiempo, entre otras razones, como resultado de la acción política. En la mayor parte de las sociedades hay diferencias y desigualdades entre mujeres y hombres en las actividades que realizan, en el acceso y control de los recursos así como en las oportunidades para tomar decisiones. El género es parte del contexto sociocultural. Otros importantes criterios del análisis sociocultural incluyen la clase social, la raza, el nivel de pobreza, los grupos étnicos y la edad”. E añade, “ese conjunto de roles, responsabilidades y oportunidades asígnados al hecho de ser hombre y ser mujer forma parte de la identidad de los sujetos, de su concepción del mundo y de su propia subjetividad. Tienen una gran fuerza porque (...) están en la base de la identidad de género de todas las personas y de las identidades sociales Asígnadas y reconocidas al resto de las personas (...). Si algo es indiscutible para las personas, es el significado de ser mujer o ser hombre, los contenidos de las relaciones entre mujeres y hombres y los deberes y prohibiciones para las mujeres por ser mujeres y para los hombres por ser hombres” (LÓPEZ MÉNDEZ; SIERRA LEGUINA, 2001, p. 2-3).

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ron por su cuenta para asumir puestos de trabajo en otros países (MORENO FONTES-CAMMARTIN, 2007, p. 2).7 Es decir que los cambios de la demanda laboral en los países de llegada pueden de una manera o de otra transformar la oferta inmigrante. Sin embargo, se percibe que la idea de un estatus de menor rechazo social y una supuesta igualdad social traída con la posibilidad de acceso al trabajo asalariado en los Estados considerados de destino consiste, en la mayoría de las veces, en una gran falacia, puesto que tales conceptos cuando son aplicados al paradigma de la feminización de la inmigración, encuentra su fundamentación en la pertenencia y sujeción de estas mujeres emigrantes a dos grupos de trabajos. El primero, sigue el camino de los servicios domésticos8, venta callejera, personal de bares y/o restaurantes o los trabajos donde se realizan actividades productivas y el segundo grupo se refiere a la industria sexual, sea para el ejercicio de la prostitución propiamente dicha o más específicamente para el tráfico ilegal de mujeres9 para su posterior explotación sexual comercial (SASSEN, 2000, p. 504). Así, es posible afirmar que los instrumentos estructurales de exclusión social típicos de los contextos neoliberales de globalización actuales encuentran refuerzo cuando se aplican hacia los más débiles y en este caso hacia la discriminación del trabajo feminino (MAQUEDA ABREU, 2008, p. 187). Esa circunstancia encuentra refuerzo en el hecho de que las pautas migratorias de la población femenina difieren de las de los hombres, ya que las mujeres no poseen los mismos antecedentes sociales y sus razones para emigrar son diversas, como diferente son, también, sus recursos para viajar y sus destinos (SKROBANEK; BOONPAKDI; JANTHAKEERO, 1999, p. 34). Hechos que, a su vez, generan un tipo de rede informal de ayuda a esta migración considerada discriminatoria y, por lo tanto, marginal. 3.1. Redes informales de ayuda versus el pánico popular de las “esclavas sexuales” En un primero momento, cumple preguntar: ¿qué se puede considerar como redes infor7  Añade que las tendencias indican que las mujeres que emigran son jóvenes, solteras, viudas o divorciadas, y que estas trabajadoras no siempre tienen hijos y, de tenerlos, rara vez los ven. 8  Según Emma Martín Díaz el servicio doméstico constituye para las mujeres migrantes de la actualidad la más importante fuente de trabajo con carácter legal. Hecho que a su vez exige de los Estados centrales un verdadero cambio de sus legislaciones, regulación y reconocimiento de esta actividad laboral. En el caso español, las peculiaridades de la Ley de Extranjería y de la Ley que regula el servicio doméstico establece un conglomerado de preceptos que dificulta el reconocimiento social del servicio doméstico para las inmigrantes (CASAL; MESTRE I MESTRE In DE LUCAS; TORRES, 2002, p. 123). Hoy, en España, muchas son las mujeres inmigrantes que mientras se incorporan al servicio doméstico, se ven sometidas a una doble limitación, pues como inmigrantes que son ven una significativa disminución de sus derechos, y como trabajadoras están sujetas a una legislación laboral discriminatoria con respecto a otros sectores de la actividad. Pero, estos no son los únicos abusos a que están sometidas las mujeres migrantes. Hay también aquellos abusos frutos de condiciones demandadas por un nuevo pensamiento racista que se fundamenta en elementos étnicos. Y asi cabe destacar que “En general, se tiende a buscar alguien que pueda suplantar al “ama de casa”, creándose una escala de preferencias basada en elementos étnicos, y no en saberes y experiencias profesionales, que carecen de reconocimiento formalizado”. Además, se percibe que la idea de inferioridad étnico-nacional de las domésticas inmigrantes bajo sus empleadoras aún está muy extendida. El nuevo significado del papel de “ama de casa” y el reconocimiento de las trabajadoras migrantes como “domésticas” supone una peligrosa reformulación de los modelos de género imperantes, ya que por un lado, el poder de las empleadoras se centra en el control sobre la persona empleada y no sobre las actividades realizadas; y por otro, el papel de las “domésticas migrantes” de países periféricos acentuando una doble desigualdad en tanto que encargadas de realizar las actividades “sucias” del hogar. “Su origen cultural distinto fomenta un racismo implícito que pone en duda el supuesto ideológico sobre el género femenino: a saber, que todas las mujeres son capaces y saben realizar “bien” las tareas domésticas. La puesta en duda de los conocimientos, las relaciones intergénero, marcadas por la desigualdad en el poder en la que se enmarca este empleo y los problemas que generan los conflitos entre empleadoras-empleadas, son signos del nuevo eurocentismo colonial en el que estamos incertos”(MARTÍN DÍAZ, 2008, p. 198/200). 9  Nótese que a pesar de la autora reconocer la existencia de la trata de hombres y/o niños para la posterior explotación sexual comercial. El trabajo solamente tendrá atención a las mujeres víctimas de referido hecho. En lo que atañe la explotación de niños véase: RODRIGUES MESA. María José. “Explotación sexual y pornografía infantil. Un análisis de la regulación penal en España a la luz de los requerimientos internacionales y comunitarios”, en ÁLVAREZ GARCÍA, F. Javier. (Dir); ÁLVAREZ GARCÍA, F. Javier; MANJÓN-CABEZA OLMEDA, Araceli y VENTURA PÜSCHEL, Arturo. (coords). La adecuación del derecho penal español al ordenamiento de la Unión Europea: La política criminal europea.Tirant lo Blanch. Valencia, 2009, p. 321/339.

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males de ayuda a la migración femenina? De pronto se puede afirmar que estas redes son lo que vulgar, mediática y criminológicamente se conoce como poderosas mafias internacionales que mediante engaño explotan las pobres mujeres10 víctimas de la trata. Sin embargo, nótese que en realidad estas redes de tráfico esconden una multiplicidad de distintas organizaciones (e incluso fenómenos de carácter familiar) que no siempre coinciden con esta imagen estereotipada(BAUCELLS LLADÓS; CUENCA GARCÍA apud GARCÍA ARÁN, 2006, p. 143). De esta manera se observan los casos de mujeres víctimas del engaño de una amiga cercana y/o, también, de las mujeres vendidas por sus familiares, y en esta coyuntura no se habla de “red de apoyo” a la facilitación del ejercicio de estos trabajos desregularizados, privatizados y feminizados ofrecidos de manera estratificada en los países centrales. La gran mayoría de las veces esos contactos forman parte de un conjunto de las “redes sociales” con caracteres, sobre todo, de parentesco, de amistad o vecindad. Coincidimos con Carmen Gregorio Gil en el sentido de que no se puede olvidar el hecho de que esos contactos se encuentran implicados, de una manera o de otra, en relaciones casi siempre profesionalizadas en el seno de organizaciones que están orientadas a proveer de medios necesarios a quienes se proponen emigrar y no pueden hacerlo de otra manera (GREGORIO GIL, 1998, p. 39), es en otras palabras sostener que aunque de manera indirecta estas “redes sociales” de la emigración están envueltas por las “redes marginales” de inmigración. De esta manera, resulta interesante destacar la reestructuración global a partir de lo que Sassen llama “contrageografías de la globalización”. El término es utilizado por esa autora para designar aquellos elementos directos o, también indirectos que a pesar de, en principio, no presentar conexiones con los procesos de la globalización, pueden resultar asociados a las circunstancias que posibiliten estructurar el núcleo de la economía global (SASSEN, 2003, p. 34). Lo que la autora trae a discusión es la necesidad de observar en el mundo económico actual una tendencia a la facilitación de los flujos migratorios - sean ellos internacionales o locales - auxiliados a la promoción de un carácter marginal, que, a su vez, une elementos de la economía formal a los elementos de la economía sumergida y convierten a los ciudadanos – hombres y mujeres – en apenas migrantes. Es en otras palabras decir que la feminización de la migración bajo la aplicación del modelo actual trae como consecuencia una autonomía de la mujer cuando de su elección del proceso migratorio. Sin embargo, tal movimiento tras el difícil acceso de las políticas discriminatorias y crecientemente restrictivas que dominan las reglamentaciones migratorias genera un movimiento de personas al margen de la autorización y reglamentación del Estado (AZIZE, 2004, p. 167). Por otro lado, importante tener en cuenta que tal fenómeno, es decir, la trata es digna de cuidado por parte del Estado que debe prevenir y punir su práctica. Pero, no se puede observar tal circunstancia bajo el prejuicio formado entorno de la idea de que el flujo de explotación del trabajo femenino tiene carácter marginal y que solamente, es posible acceder a estos trabajos a través de las redes informales de ayuda, pues que tal hecho genera en las comunidades periféricas un punto de vista de la migración femenina fundamentado en la explotación de la mujer migrante por parte de los Estados centrales. Para Maqueda Abreu, esta observación solamente favorece la representación de un “recurso que se ha evidenciado muy específicamente a la hora de alentar políticas públicas represivas y de control de los movimientos migratorios”(MAQUEDA ABREU, 2008, p. 185) de cualquier orden, pues que: se trata de una estrategia interesada que oculta prejuicios étnicos y de clase y, desde luego, de género frente a la temida autonomía de las mujeres, especialmente su autonomía sexual. Bajo ella, se silencian las raíces económicas, legales, sociales y 10  Nótese que a pesar de la autora reconocer la existencia de la trata de hombres y/o niños para la posterior explotación sexual comercial y también para otras prácticas. El trabajo solamente tendrá atención a las mujeres víctimas de referido hecho. En lo que atañe a la explotación de niños véase: RODRIGUES MESA. María José. “Explotación sexual y pornografía infantil: Un análisis de la regulación penal en España a la luz de los requerimientos in terncionales y comunitarios”. En: ÁLVAREZ GARCÍA, F. Javier (Dir.); ÁLVAREZ GARCÍA, F. Javier; MANJÓN-CABEZA OLMEDA, Araceli y VENTURA PÜSCHEL, Arturo (Coords.). La adecuación del Derecho penal español al ordenamiento de la Unión Europea: La política criminal europea. Tirant lo Blanch. Valencia, 2009, p. 321/339.

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políticas de una inmigración legítima que buscan ser ignoradas a toda costa.

Así, añade la autora que “las verdaderas perdedoras son las mujeres que quedan a merced de pánicos populares – como ‘esclavas sexuales’ - y de la falta de reconocimiento de su capacidad de agencia y de la realidad de sus proyectos emancipadores”(MAQUEDA ABREU, 2008, p. 185).11 4. LEYES PARA EXTRANJEROS O MANIFIESTO PODER SOBERANO DEL ESTADO DE DESTINO? Es verdad que el tema de la migración está casi siempre fundamentado en los elementos de expulsión en los países periféricos e atracción (GUARDIOLA LAGO, 2007, p. 24; PÉREZ CEPEDA, 2004, p. 33; LEÓN VILLALBA, 2003, p. 24)12 en los Estados centrales. Sin embargo, nótese que el fenómeno migratorio constituye toda una heterogeneidad de causas, características, instrumentos y en fin, de elementos que, a su vez, promueven una cantidad infinita de problemas en el establecimiento de las acciones de política migratoria, puesto que “conduce a un modelo holístico, de aproximación global a su tratamiento, en el que todos los instrumentos, incluidos los convencionales y dentro de ellos tanto los multilaterales como los bilaterales, pueden ciertamente resultar útiles”(VACAS FERNÁNDEZ, 2007, p. 70). En este estado de la cuestión aparece la problemática alrededor de una política de inmigración que se fundamenta en la negación del inmigrante, puesto que se le niega la libertad en su proyecto migratorio ya que no se le reconoce el derecho a inmigrar13 del que todos son merecedores y que debería ser asegurado por todos los poderes públicos. A ese respecto es interesante traer las palabras de Ruiz Castillo cuando aduce que existe un derecho a emigrar, pero no existe un correlativo derecho de inmigrar (RUIZ CASTILLO, 2003, p. 33)14, es en otras palabras afirmar que el derecho otrora reconocido difícilmente es puesto en práctica, puesto que en la realidad lo que se ejerce es el derecho de soberanía de las naciones en imponer restricciones o denegar la entrada a extranjeros (SKROBANEK; BOONPAKDI; JANTHAKEERO, 1999, p. 43). Por eso, se dice que el fenómeno de la inmigración en Europa pasa en la actualidad, por un cambio de conceptos, ya que de cuantitativo que era anteriormente pasa a ser cualitativo, es decir, el derecho de migrar asume una naturaleza discriminatoria, que hace distinción entre buenos y malos inmigrantes. La política migratoria actual asume una posición favorable entre los que se 11  Es lo que se considera “enfoque trafiquista”, que consiste en la simplificación de la realidad entre los malos y los buenos, es decir, de una parte estan las mafias criminales que engañan y explotan y de otro las pobres víctimas engañadas y explotadas. De manera que no se admite prueba en contrario, ni de lo uno ni de lo otro, puesto que se trata de una estrategia interesada de raíces económicas, legales, sociales y políticas de una inmigración que busca ser ocultada a toda y cualquier costa (MAQUEDA ABREU In SERRA CRISTÓBAL, 2007, p. 299). 12  Los primeros, generalmente consisten en la necesidad vital de mejores condiciones para su desarrollo personal y social; ya los segundos son establecidos por la buena marcha de la economía en los Estados centrales ayudado por la disminución de la natalidad y necesidad de cubrir algunos sectores laborales. Dictamen del Comité Económico y Social sobre Comunicación de la Comisión al Consejo y al Parlamento Europeo sobre una política comunitaria de inmigración COM (757) final. 13  Derecho reconocido a nível internacional en el art. 13 de la Declaración Universal de los Derechos Humanos de 10 de diciembre de 1948. “art. 13. 1. Toda persona tiene derecho a circular libremente y a elegir su residencia en el territorio de un Estado. 2. Toda persona tiene derecho a salir de cualquier país, incluso del propio, y a regresar a su país”. Así mismo estos derechos considerados fundamentales son reconocidos en el art. 12 del Pacto Internacional de Derechos Civiles y Políticos. Adoptado y abierto a la firma, ratificación y adhesión por la Asamblea General en su resolución 2200 A (XXI), de 16 de diciembre de 1966 y con entrada en vigor en 23 de marzo de 1976. También reconoce los referidos derechos el art. 5 apartado D ii) de la Convención Internacional sobre la Eliminación de todas las formas de discriminación racial de 21 de diciembre de 1965 y art. 22 del Protocolo núm. 4 del Convenio Europeo para la Protección de los Derechos Humanos y de las libertades fundamentales. 14  Con relación a ello es curioso percibir que el mismo art. 12 del Pacto Internacional de Derechos Civiles y Políticos que garantiza el derecho de emigrar establece, también, límites a referido derecho. Si no, véase que el apartado 3 de este mismo artículo aduce que dicho derecho no será “objeto de restricciones salvo cuando éstas se hallen previstas en la ley, sean necesarias para proteger la seguridad nacional, el orden público, la salud o la moral públicas o los derechos y libertades de terceros, (...)”.

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ajustan a lo que se considera inmigrantes necesarios ya que estos se encuentran adecuados a la coyuntura oficial del mercado formal de trabajo y rechaza otros tantos por realizar actos de delincuencia, o aún por seren considerados imposible aceptarlos (DE LUCAS In REMIRO BROTÓNS; MARTÍNEZ CAPDEVILA, 2004, p. 27). Castles, ha sintetizado el concepto de estos flujos de la siguiente manera: la inmigración necesaria consiste fundamentalmente en la entrada de capital financiero especulativo a través de la propiedad intelectual, trabajadores cualificados y/o necesarios para los nichos laborales que han de localizarse en el Norte15, ya la inmigración innecesaria o mejor dicho, no deseada hace mención a los “trabajadores de baja calificación, inmigrantes forzosos, refugiados, modos de vida alternativos, valores culturales no occidentales o definido sin más como particularistas” (CASTLES, 2002 apud MARTÍNEZ DE PISÓN; GIRÓ, 2003, p. 23). Así, es posible decir que consiste en un grande engaño asegurar que el discurso de los gobiernos europeos se fundamenta en una política restrictiva al ingreso específico de los inmigrantes extracomunitarios. No, pues la referida política se ocupa de establecer la “inmigración necesaria” o, también, “legal” de la cual los Estados desarrollados reciben con gran facilidad y la “inmigración innecesaria” del extranjero preterido por los Estados considerados centrales. Es el aumento de esta inmigración innecesaria que despierta en los Estados desarrollados la preocupación de controlar ese determinado flujo, puesto que la referida inmigración promueve, por otro lado, un déficit en las cuentas públicas de los Estado considerados centrales como ya se ha apuntado anteriormente.16 Es también por la inmigración innecesaria que se manifiesta el poder soberano del Estado de destino en permitir o no permitir el acceso de los no nacionales en su territorio, estableciendo por lo tanto el cierre de las fronteras de los Estados a través de complejas y restrictas “leyes para extranjeros” que más que protegerlos de tratamientos xenófobos, protege a sus nacionales del contacto con lo que les parece diferente. Nótese, que en lo que atañe a las materias de reagrupación familiar o de salvaguarda del derecho de asilo y refugio – materias referentes a las obligaciones internacionales – parte de la doctrina afirma que actualmente se han desarrollado legislaciones más restrictivas, fruto de una política fundamentada en el control de los flujos (DOMÍNGUEZ AMORÓS; OLIVELLA, 2000, p. 234) o en otras palabras, de los malos flujos. El establecimiento de una política que segrega los migrantes – hombres y/o mujeres - antes de su entrada genera la búsqueda por las redes informales de ayuda a la entrada en los Estados de atracción. Las víctimas de esta migración por medio de las redes informales – para no decir clandestinas - de ayuda, generalmente, son mujeres víctimas de la trata. El hombre, a su vez, casi siempre llegan hasta esas redes via el tráfico humano. Sin embargo, no hay duda que en esta inmigración las personas son, generalmente, sometidas a medios que evitan el tratamiento digno que todo ser humano es poseedor por derecho. De ahí la idea que la universalidad de los derechos humanos no tiene que está bajo el concepto de las fronteras de los Estados o, aún, la protección de los límites geográficos y de la soberanía de un país no justifican la utilización de políticas que posibiliten la explotación futura de cualquier persona, hombre o mujer; nacional o extranjero. Entonces, cual será la acción ideal para la contención del referido flujo? Para algunos autores “la tolerancia pluralista es la medida más eficaz tanto en la prevención de explosiones étnicas 15  Dicha circunstancia se fundamenta en el panorama del mercado laboral europeo, donde aquellas plazas antes designadas a los naturales de los países desarrollados se quedan vacantes, ya que existe una escasez de la mano de obra cualificada en Europa para el sostenimiento de la economía europea. Esta cuestión se refleja en la propuesta presentada por la comisión europea de instituir la ¨tarjeta azul¨ para inmigrantes de terceros países con alta calificación profesional. 16  Importante percibir que la autora no está de acuerdo con la idea de Guardiola Lago en lo que atañe al hecho de que el cierre progresivo de fronteras a través de normativas cada vez más complejas y estrictas para los extranjeros encuentra fundamento en la circunstancia del aumento significativo de la inmigración, puesto que este pasa a ser percibido como un fenómeno de “alarma social”, de “amenaza” para los Estados receptores (CASTLES, 2002 apud MARTÍNEZ DE PISÓN; GIRÓ, 2003, p. 25). La autora, a su vez, afirma que el fenómeno migratorio presenta dos tipos esenciales de migración; la “buena” y la “mala” y es esta ultima la que promociona todo el malestar para la estabilidad social y económica del Estado, mientras que la inmigración buena sólo promociona la inversión financiera y recauda impuestos para el Estado.

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reactivas como en la integración a largo plazo de los inmigrantes a la vida urbana”(PORTES In MORENTE MEJÍAS, 2000). Mejor es afirmar que los Estados centrales y, por lo tanto, considerados de destino consideren la existencia de los elementos de expulsión de los Estados considerados periféricos, de manera que vengan a establecer una colaboración con estos países, puesto que así garantizarían el derecho de los nacionales de estos países subdesarrollados de no verse obligados a ejercitar su derecho a emigrar (PEREZ CEPEDA, 2004, p. 11) y cuando así elijan, es decir, cuando elijan migrar que esta elección sea libre de factores económicos, por lo menos. 5. CONCLUSIÓN El fenómeno migratorio fundamentado en la concentración económica de los Estados centrales genera en estos países la necesidad del establecimiento de una política migratoria que, a su vez, se presenta como una política de identificación y acepte de los extranjeros considerados necesarios y el cierre de las fronteras a los demás, ya que son considerados innecesarios. Esta circunstancia, auxiliada por los medios de comunicación y por el poco conocimiento sobre la relación de la economía versus fenómeno migratorio produce un verdadero aumento de la xenofobia de los ciudadanos centrales, además de generar las “redes informales de ayuda” a la esclavitud de los ciudadanos periféricos en los grandes centros económicos. La esclavitud promovida en razón del fenómeno migratorio se realiza a través de dos especies esenciales: el comercio de personas representado por la trata y que consiste en la marginalización de los inmigrantes para diferentes actividades delictivas o no y el cruce ilegal de fronteras que puede ser realizado a través de las modalidades tráfico ilegal e inmigración clandestina. Tal esclavitud es muy evidente en el proceso de feminización de la inmigración, ya que estas mujeres emigrantes (innecesarias) generalmente están subordinadas en los países de destino a los grupos domésticos o a la industria del sexo a través de la prostitución propiamente dicha o más específicamente en razón de la trata de mujeres para la explotación sexual comercial. Nótese que no se pretendió en ningún momento victimizar a estos inmigrantes innecesarios, tampoco estereotipar estas redes ilegales o informales de ayuda a la inmigración irregular, pero analizar como funciona el mercado laboral global de la inmigración y sus reflejos para estos inmigrantes. Por lo todo dicho, lo cierto es que el fenómeno de migración está acompañado de muchísima tensión, conflicto y desorden que termina por causar un cierto daño en el proceso de cambio social. De ahí, se puede decir que la transformación estructural por la que pasan los Estados desarrollados solamente será de gran relevancia para el futuro de la sociedad mundial si fundamentada en la reordenación de las fronteras, es decir, de las diferencias y esta es una tarea para los países desarrollados, ya que el éxito de este proceso de migración es dependiente de ellos, de sus acciones, de la manera de pensar e intervenir en esta cuestión17. BIBLIOGRAFIA ARANGO VILA-BELDA, Joaquín. ¨La fisonomía de la inmigración en España¨, en TAGUAS, David. (dir). El Campo de las Ciencias y las Artes: El Nuevo Orden Demográfico. Servicio de estudios del BBVA. Madrid, 2002. AZIZE, Yamila. “Empujar las fronteras: mujeres y migración internacional desde América Latina y el Caribe. ¿Migraciones, tráfico o un poco de cada cosa?” en OSBORNE VERDUGO, Raquel María. (coord.) Trabajador@s del sexo: derechos, migraciones y tráfico en el siglo XXI. Bellaterra. Barcelona, 2004. BAUCELLS LLADÓS, Joan y CUENCA GARCÍA, María José. “El perfil criminológico del tráfico para la explotación sexual en España: un fenómeno viejo con características nuevas”. Citado porGARCIA ARÁN, Mercedes, en GARCÍA ARÁN, Mercedes. (Coord.). Trata de personas y explota17 ARANGO VILA-BELDA, Joaquín. ¨La fisonomía de la inmigración en España¨, en TAGUAS, David. (dir). El Campo de las Ciencias y las Artes: El Nuevo Orden Demográfico. Servicio de estudios del BBVA. Madrid, 2002, p. 269.

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