Drama, ritual e religião na versão cénica de Yerma de

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Drama, ritual e religião na versão cénica de Yerma de
João Garcia Miguel

Professor Doutor BRUNO SCHIAPPA[1]

Fotografia sem créditos

1 – INTRODUÇÃO

Ele [Victor Turner] viu no
ritual a operação do "trabalho dos
deuses" – mas trabalho apenas no sentido
do modo em que um grupo desenvolve
formas de dotar o esforço de um sentido
de propósito moral. (TURNER, 1969: vi)

Partindo da premissa de que o teatro é um simulacro enquanto o ritual
é recebido como real, a análise do caso da versão cénica de Yerma, do
encenador português João garcia Miguel a partir do texto original de Garcia
Lorca surge como uma reflexão sobre texto e performance procurando
enquadrar os elementos que transitam de um suporte para outro e que
permitem encontrar uma transversalidade e coexistência temáticas.

2 – YERMA

Yerma, é uma peça de teatro do poeta espanhol Federico García Lorca.
Escrita em 1934, foi apresentada no mesmo ano. É uma obra popular de
caráter trágico, que tem lugar em Andaluzia, no início do século XX. A
seguir ao título, no texto impresso, pode ler-se a designação Poema trágico
en tres actos y seis cuadros.


Sinopse: Yerma é uma mulher que vive o drama de não poder conceber um
filho. Busca de todas as formas engravidar e enfrenta a indiferença do
marido, Juan, que não demonstra nenhum interesse em compartir da sua
angústia.


Diálogo da personagem Maria com Yerma sobre a sensação de carregar um
filho:

- Maria: Não perguntes mais. Nunca sentiu um pássaro vivo apertado na
mão?
- Yerma: Já senti.
- Maria: Pois é o mesmo... mas por dentro do sangue.

Obstinada, Yerma participa, contra a vontade do marido, de um ritual na
casa de uma curandeira, para invocar a maternidade, o que provoca grande
discussão entre os dois. Desesperada, Yerma descobre que o seu marido não
deseja ter filhos e, enlouquecida entre o desejo de conceber um filho e a
sua impossibilidade, estrangula-o.


3 – JOÃO GARCIA MIGUEL e a "sua" YERMA

O teatro é visto [...] como um
instrumento pedagógico e também
catequístico, razão pela qual, os
povos que, como o português,
chamaram a si a tarefa de
crsitianizar o mundo, se servem
dele como uma arma dúctil e
eficacissima para penetrar no
ânimo das gentes conquistadas.
(PICCHIO, 1964: 160)



João Garcia Miguel (João Miguel Osório de Castro Garcia dos Santos,
nascido em Lisboa 1961) é um encenador, dramaturgo, artista plástico e
performer portugês.
Inicia a carreira profissional nos anos 80 percorrendo diferentes
expressõers artísticas.
É um dos fundadores dos coletivos artísticos: Canibalismo Cósmico,
Galeria Zé dos Bois e OLHO – Associação Teatral, da qual foi diretor
artístico entre 1991 e 2002.
Em 2008 é nomeado Diretor Artístico do Teatro-Cine de Torres Vedras.
É artista associado do Actor's Center de Roma e Milão, Itália.
Desde 2002 envolveu-se numa vertente académica ligando-se à docência e
à investigação.
Desde 2007 desnevolve investigação, na Universidade de Alcalá de
Henares, na Universidade de Granada e agora na FBAUL, Faculdade de Belas
Artes de Lisboa, centrando a sua tese de doutoramento sobre o corpo do
artista e as noções de sacrifício e empatia.
Recebeu em 2008 o prémio FAD Sebastià Gash e em 2013 o prémio de
melhor espetáculo do ano com Yerma, pela Sociedade Portuguesa de Autores.
É o Diretor do Teatro Ibérico desde 2016.


No que diz respeito ao teatro, mais do que referir-me a um teatro cabe
pensar na existência de várias ideias de teatro e, consequentemente, de
vários tipos de teatro, como refere Maria João Brilhante[2] uma vez que se
trata de uma "arte que se carateriza pela confluência de diversas
linguagens, pela efemeridade das suas práticas e pela repercussão social e
cultural que possui".[3]
Esta ideia da existência de vários teatros (ou vários tipos de teatro)
impele à necessidade de balizar esta tese na relação direta com o teatro
dito de matriz aristotélica, cujas caraterísticas serão referidas mais
adiante, para que a articulação entre as comparações possa ser inequívoca.
No mesmo catálogo da exposição "O Que é o Teatro?", Brilhante afirma
que:

Do significado original da palavra até à memorabilia que também
constitui o teatro evanescente, é possível ficar a saber o que ele é
descobrindo quem o faz e porquê, onde é feito, quem o vê, quem cria
condições para que exista, de que modo se relaciona com as outras
artes, que lugares ocupa na vida de uma sociedade. (BRILHANTE, 2009:
9)




O facto de as formas de uma ação estarem diretamente relacionadas com
um objetivo que move a dramatis persona ou a persona quid agit a praticá-la
justifica a extrapolação, que vimos fazendo, do teatro enquanto arte para o
teatro enquanto metáfora da sociedade, i. e., para outras formas de ação
social uma vez que, também, socialmente, somos movidos por um objetivo
específico que nos leva a utlizar determinada conduta (ou conjunto de
procedimentos) para que o resultado seja bem sucedido.
Devemos ter em conta que uma ação com significado cultural, é, por seu
turno, um significante cultural. Por isso, Victor Turner designou essa ação
cultural como drama social. Este drama social, enquanto enquadramento de
teatralidade, também ocorre no teatro pois, de acordo com Richard P.
Martin,




A semântica e as convenções associadas ao mais pequeno gesto têm
um impacto, para além das palavras, quando reproduzidos no espaço
maior do teatro, devido à sensibilidade dos espetadores relativamente
a essas ações. (WALTON e MCDONALD, 2007: 37/38)


Este "espaço maior" refere-se à ampliação e amplificação que estão
associadas à teatralidade. A "sensibilidade" dos espetadores é estimulada
exatamente por essa forma de dar a ver através do enquadramento (framing) e
ampliação. A atenção do espetador é direcionada, através desses aspetos,
para uma ação específica.
Significa isto que, o teatro, para viabilizar uma informação, amplia
a ação que representa exatamente por a isolar num espaço e num tempo
específicos que, através do olhar do espetador, ganham uma dimensão
informativa destacada. Essa ampliação estimula a sensibilidade e os
sentidos do espetador de um modo que, no lugar e tempo do acaso quotidiano,
não acontece.




Esta piedade e medo, que tinham sido causadas pela violência das
consequências concretas das heresias e pelo espetáculo de execução pública,
purgavam o público.
Utilizando as designações na divisão estabelecida por Roland
Barthes[4] relativamente às questões da linguagem e da literatura e
alargando o âmbito de aplicação daquelas, encontramos em vários aspetos de
uma sociedade, três caraterísticas das suas práticas culturais:
1 – Residual: integrada no passado e que se mantém no presente;
2 – Transitiva: a residual que está em vias de desaparecer dando lugar
a uma nova ou à mesma muito alterada;
3 – Emergente: a que é recebida como nova




3. 2 – Violência, Pathos E Purgação


A atrocidade que assombrava a execução pública
desempenhava, portanto, um papel duplo:
estabelecia o princípio da comunicação entre crime
e castigo, era também a exacerbação do castigo em
relação ao crime. (FOUCAULT, 1977: 74)


Se mantivermos presente que a violência é uma disrupção de determinada
ordem[5], ou uma rutura do equilíbrio, percebe-se que, ao desafiarem a
ordem da comunidade ou da sociedade, os herejes provocavam, não apenas os
rancores da igreja mas também, um desequilíbrio nos cidadãos concordantes
com o sistema. Esse desequilíbrio exaltava as paixões, os excessos destes
últimos.
Este estado emocional é designado pathos.
Para além de, etimologicamente, ser a designação clínica para um
estado de doença – uma patologia –, pathos é a palavra grega para paixão,
excesso ou catástrofe que implica, durante o trânsito dessa paixão, i. e.,
durante a liminaridade, uma alteração, passagem ou mudança para outro
estádio emocional, através do sofrimento infligido.
Estamos perante mais um caso concreto de um conceito residual, no
mundo ocidental da Idade Média, que remonta à Grécia antiga e que, na
mitologia cristã, designa a paixão de Cristo. Paixão que significa os
suplícios que foram aplicados no corpo de Jesus para remissão dos pecados
do Homem.
Identificamos, portanto, uma violência e um pathos transversais à
tríade que compunha o Auto de Fé: os herejes; o Santo Ofício e a população,
i. e., os espetadores, nesta ordem ou ordem inversa. A violência que surge
do conflito e provoca desordem reside em cada um dos elementos desta
tríade:


6 – CONCLUINDO

João Garcia Miguel é um encenador que trabalha a condição cruel do ser
humano, não no sentido de o julgar mas, antes, no sentido de observar os
domínios em que essa condição se apresenta de modo mais patente.
Se, no texto original de Lorca, podemos encontrar os paradigmas de
Girard, sobre as questões da violência, mimesis e religião – que sustentam
o seu texto O bode expiatório e Deus –, a análise e comparação com a versão
cénica de João Garcia Miguel pretende demonstrar que esses mesmos
paradigmas são transpostos para palco, operando a sua adequação e
integração no contexto estético atual do encenador português.
No caso de Yerma, a questão do Deus católico, castigador e intolerante
surge de modo violento condicionando a existência e expectativas de uma
mulher cujas tentativas para ser mãe são boicotadas.
Se Deus é um "bode expiatório" a partir do qual o ser humano se vai
organizando em sociedade, no indivíduo esse mesmo "bode expiatório"
funciona como inibidor e punidor cruel e sem misericórdia impondo uma
existência miserável e castradora. O contexto da Espanha católica de Lorca
era ostensivo nesse "flagelo" divino.
No caso da versão de Garcia Miguel, a performance consegue veicular
essa relação ritual/religioso que existe no texto original e onde podemos
encontrar a teoria mimética de René Girard bem como a teoria do imaginário
de Durand e a dos ritos de Turner.
Sociólogos e antropólogos como Emile Durkheim e Victor Turner e
teóricos contemporâneos como Michael Silverstein consideram o ritual como
uma ação (rito) social que visa transformações específicas concebidas,
geralmente, em termos cósmicos. Embora essas transformações possam, também,
ser consideradas pessoais, elas derivam numa espécie de evento cósmico: o
próprio expande-se para a "eternidade".































































Referências:
TURNER, Victor, 1969, The Ritual Process, Structure and Anti-Structure, New
York: Aldine de Gruyter
BRILHANTE, Maria João e WERNECK, Maria Helena, (org.), 2009: Texto e
Imagem: estudos de teatro, Rio de Janeiro: 7Letras
WALTON, J. Michael and MCDONALD, Marianne and, (ed.), 2007: Cambridge
companion to greek and roman theatre, Cambridge: University Press
FOUCAULT, Michel, 1977: The Spectacle of the Scaffold, London: Penguin
Books; 2009: Vigiar e Punir, 37ª edição, Petrópolis, RJ: Editora Vozes
PICCHIO, Luciana Stegagno, 1969: História do teatro português, trad. de
Manuel de Lucena, Lisboa : Portugália Editora, 1969
http://www.espacioebook.com/sigloxx_27/lorca/lorca_yerma.pdf
http://www.lusosofia.net/textos/girard_rene_o_bode_expiatorio_e_deus.pdf
http://socioumane.ro/blog/annalesphilosophici/files/2010/10/Abshire.pdf
http://www.educadores.diaadia.pr.gov.br/arquivos/File/2010/sugestao_leitura/
sociologia/regras_metodo_sociologico.pdf
http://www.nesua.uac.pt/uploads/uac_documento_plugin/ficheiro/b7ce361c64c727
c9a974422515d9322de0ff7ea8.pdf
http://www.ihuonline.unisinos.br/index.php?option=com_content&view=article&i
d=4238&secao=382&limitstart=1
http://repositorio.ucp.pt/bitstream/10400.14/14732/1/A%20hipotese%20mim%C3%A
9tica%20e%20a%20paix%C3%A3o%20segundo%20Ren%C3%A9%20Girard.PDF


Data e local: Lisboa, 13/02/2017


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[1]DOUTORADO EM ESTUDOS ARTÍSTICOS PELA UNIVERSIDADE DE LISBOA COM UMA
DISSERTAÇÃO SOBRE A DIMENSÃO TEATRAL DO AUTO DE FÉ
INVESTIGADOR INTEGRADO NO CENTRO DE ESTUDOS DE TEATRO DA FACULDADE DE
LETRAS DA UNIVERSIDADE DE LISBOA
ATOR/ENCENADOR/DRAMATURGO/COREÓGRAFO Especializado nas técnicas de O
Método, de Lee Strasberg

[2] Brilhante, 2008: 9
[3] Ibidem
[4] Apud Roland Barthes, 1989, O grau zero da escrita, Lisboa: Edições 70
[5] A este respeito remeto para a leitura de George Bataille, 1988, O
Erotismo, edição ilustrada, Lisboa: Edições Antígona
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