Drogas, o encarceramento em massa e a questão do crackeiro

July 26, 2017 | Autor: L. Pascholatti Ca... | Categoria: Sociology, Sociologia, Brasil, Sociology of Punishment, War on Drugs, Sociologia da Punição
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FACULDADE DE FILOSOFIA LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

FSL0531 - PRISÃO NA SOCIEDADE MODERNA LAURINDO DIAS MINHOTO

Ana Carolina Stanger M. Mazzotini Gustavo A. Mugica Lucas Pascholatti Carapiá

Nº USP 7551658 Nº USP 6471421 Nº USP 7131187

DROGAS: O ENCARCERAMENTO EM MASSA E A QUESTÃO DO CRACKEIRO NAS ESTRUTURAS PUNITIVAS BRASILEIRAS

São Paulo Junho de 2013

Na discussão sobre a questão criminal no Brasil de hoje, não importa que o extermínio, a violência contra os moradores de favelas e os semterra, a tortura e o isolamento nas prisões não tenham nenhum efeito sobre as condições reais de segurança. Não importa que quanto mais prendamos, torturemos e matemos, não melhore em nada a situação dos nossos jardins cercados, a brutalidade e o extermínio fazem sentido por si; trata-se de um engajamento subjetivo à barbárie. É por isso que a criminologia do senso comum vai precisar de filósofos, psicanalistas, antropólogos e sociólogos que destilem emoções baratas. O importante é que a população não se identifique e não se compadeça da face mestiça e pobre da questão criminal no Brasil contemporâneo. Vera Malaguti Batista

A PROIBIÇÃO DAS DROGAS E O ENCARCERAMENTO EM MASSAS O jurista soviético Evgeny B. Pashukanis afirma que Bentham estaria certo ao afirmar que as leis criam direitos, por criarem crimes (em tradução livre da versão em inglês). O conceito de roubo foi criado antes do conceito de propriedade - dado que, historicamente, os específicos tratados de relações legais foram adquiridos, primeiramente, como um resultado das violações da lei. Um exemplo clássico seria o do código de Hamurabi, onde a punição mais antiga se daria pela lei do “olho por olho, dente por dente”. Assim, Pashukanis afirma que, de todos os tipos de lei, é precisamente o código criminal o que detém a capacidade de afetar o indivíduo da forma mais direta possível. Logo, o direito criminal, em seus primórdios, estaria ligado a uma relação de vingança entre as partes. De mesmo modo, historicamente, conforme afirma o historiador Henrique Carneiro em várias entrevistas sobre a questão da proibição das drogas1, o uso de

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Em especial no documentário independente Cortina de Fumaça (2009), dirigido por Rodrigo Mac Niven. In: www.youtube.com/watch?feature=player_embedded&v=x24pV4Di_Zg#at=28.

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entorpecentes para os seres humanos, em todas as sociedades, é tão natural quanto a alimentação - talvez a única exceção seria a sociedade dos esquimós, por não terem a flora necessária. Proibir o uso de algumas substâncias psicoativas não condiz com as culturas humanas, pois os mesmos sentem necessidade de utilizá-las para apaziguar as dores, terem experiências transcendentais, ou atingir níveis de consciência diferenciados. O uso de substâncias psicoativas sempre foi natural à sobrevivência humana. Carneiro afirma também que o catolicismo, em especial, definiu o álcool como sendo a única droga aceitável entre seus fiéis, a exemplo do uso do vinho nos rituais católicos. Portanto, tem-se uma tradição do uso do álcool entre os ocidentais, a qual mais tarde incorporou abertamente o tabaco, a partir da colonização da América. Isso a princípio não baniu o uso da canábis e de outras drogas, na medida em que elas foram sendo descobertas. De acordo com o documentário canadense, Grass – The History of Marijuana dirigido por Ron Mann, o uso industrial da maconha era natural entre os norte-americanos, até mesmo a constituição dos EUA foi escrita em folha de canhamo. A origem de todas as proibições das drogas estaria relacionada com as populações imigrantes, com o racismo e com o controle dessas mesmas populações, usando-se de termos foucaultianos, de uma disciplinarização contemporânea dos corpos desses indivíduos por parte dos diferentes Estados. No Brasil, a maconha chegou a nós através dos escravos negros, o que contribuiu para sua proibição. Nos EUA, além dos negros, havia grandes massas de imigrantes mexicanos, que passaram a trabalhar em lavouras do sul e fazer uso da substância. O ópio veio com os imigrantes chineses. Não podemos excluir também relações econômicas por detrás disso, nem mesmo as questões religiosas e morais, que envolvem um conservadorismo estatal - fenômeno refletido até mesmo na proibição do álcool nos EUA, aumentando a criminalidade e o poder das máfias. Na América Latina, temos o uso das folhas de coca, tradicionalmente entre os indígenas, e que mais tarde seriam refinadas e transformadas em cocaína, cujo uso era legalizado e natural no início do século XX - era possível comprar esta droga em farmácias. Nos EUA, o uso das drogas começou a ser proibido já no início do século XX. Uma a uma foram ilegalizadas, sem maiores estudos a respeito dos efeitos ou possíveis males causados à saúde dos consumidores e nenhum rigor científico a respeito do uso

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das diversas substâncias e suas diferenças, benefícios ou motivos sociais que envolviam seu consumo. O intuito não era informar acerca de tais substâncias, mas demonizá-las. Chegou-se ao ponto de proibição de início e conclusão de estudos científicos sobre as diferentes drogas. Esse processo de proibição foi seguido por diversos outros Estados pela Europa e pela América Latina, Brasil inclusive, cujo marco legal é a “Convenção da ONU de Combate às Drogas” de 1961. Contudo, desde antes a OEA e Liga das Nações já tinham estabelecido marcos pela proibição, que influenciaram fortemente as políticas no Brasil, já no período de Getúlio Vargas. A partir de meados do século XX, foram feitos fortes investimentos em propagandas contra o uso das drogas, que tinham um certo intuito de demonizá-las, assim como os seus consumidores2. Tais propagandas incluíam muitas afirmações, até hoje senso comum e que já foram refutadas há um bom tempo pela ciência, como aquelas de que a canábis seria porta de entrada para o uso de outras drogas mais fortes ou de que esta deixaria as pessoas violentas e propícias a assassinarem outras pessoas (a própria palavra “assassino” remete a guerreiros árabes que faziam uso de canábis, mais especificamente “hashish”, e matavam cristãos3). O termo “guerra contra as drogas” foi cunhado nos anos 70, pelo presidente americano Richard Nixon, que passou a investir bilhões de dólares para banir o uso de drogas, o que multiplicou o número de encarceramentos em massa. Segundo dados de 2012 da Transform Drug Policy Foundation4, os EUA gastaram mais de 1 trilhão de dólares na guerra contra às drogas nos últimos 40 anos. Como resultado, o número de presos em territórios americanos por violações desse tipo saltou de 38 mil para 500 mil. O país gasta 30 mil dólares ao ano por preso e só 11 mil dólares ao ano por aluno da rede pública. Apesar da repressão, o tráfico não diminuiu. Como demonstra Loïc Wacquant, sobre o Estado penal e policial que se tornou os EUA, apesar do discurso existe um ambiente violentamente anti-estatal, o que pode ser aplicado também ao analisar o Brasil, de certo modo. Wacquant, ao demonstrar o crescimento de 314% da população carcerária estadunidense, de 1970 a 1991, que aumentou de 199 mil para 824 mil, sendo uma maioria formada por negros (de 81 mil para 395 mil), afirma que: “A causa mestra deste 2

Vide documentário Grass: History of Marijuana. Disponível em: http://steinhardts.wordpress.com/2006/11/10/assassino. Acesso em: 20/06/2013. 4 Página da Transform Drug Policy Foundation: http://www.tdpf.org.uk/. Acesso em: 21/06/2013. 3

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crescimento astronômico da população carcerária é a política de “guerra à droga”, política que desmerece o próprio nome, pois designa na verdade uma guerrilha de perseguição penal aos vendedores de rua, dirigida contra a juventude dos guetos para quem o comércio a varejo é a fonte de emprego mais diretamente acessível”. Isso nada difere do caso brasileiro: em nossas favelas, a nova Lei de Drogas de 2006 (Lei 11.343, 2006)5, se foi um avanço ao deixar de criminalizar o usuário comum, ao atribuir o julgamento de quem seria usuário e quem seria traficante subjetivamente aos delegados de polícia passa a ser ainda mais danosa aos moradores das periferias, os quais passam a ser ainda mais encarcerados como traficantes - quando em sua maioria são consumidores ou pequenos vendedores a varejo. Segundo Paulo Gadelha, da Comissão Brasileira sobre Drogas e Democracia 6 em entrevista à revista Carta Capital, “Um cidadão branco de bairro rico pego com maconha será visto como usuário. O pobre será visto como marginal, traficante, ficará na cadeia até um juiz decidir. E não se livrará mais do estigma de criminoso”. Wacquant continua afirmando que, “é uma guerra que não teria razão de ser, visto que o uso de estupefaciente está em descenso desde o final dos anos 70 e que era perfeitamente previsível que se abateria de maneira desproporcional sobre os bairros deserdados: neles a presença policial é particularmente densa, o tráfico ilícito é facilmente identificado e a impotência dos habitantes permite à ação repressiva toda a liberdade”. Desnecessário discorrer sobre a gritante semelhança desta realidade à brasileira. É a política de criminalização das drogas que “escureceu” os ocupantes das celas brasileiras e estadunidenses e as entupiu. Desse modo, tem-se uma clara ideia do quanto a “guerra às drogas” foi um fracasso em todos os lugares do mundo. Os cidadãos comuns de todas as classes sociais, faixas de renda, geografias das urbes, não deixaram de consumir drogas, sejam elas quais forem. Em certas regiões centrais, populações marginalizadas passam a utilizar drogas ainda mais danosas e são vítimas do controle e criminalização do Estado, como é o caso do crack, no Brasil especialmente nas grandes cidades, como o Rio de Janeiro, Brasília e São Paulo. A política usada pelo Estado atualmente vem recrudescer a ação sobre essa população já demonizada, através da 5

Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11343.htm. Acesso em: 19/06/2013. 6 Disponível em: http://cbdd.org.br/pt/. Acesso em: 20/06/2013.

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internação compulsória e da prisão, a exemplo da “des”ocupação da Cracolândia em São Paulo pela Polícia Militar no ano de 2012, dotada de intuito higienista e com o apoio da sociedade, do governador Geraldo Alckmin e do então prefeito Gilberto Kassab. Segundo matéria publicada na revista Carta Capital, nos últimos sete anos, o número de presos por tráfico no país cresceu quatro vezes, de 32 mil para 138 mil. No mesmo período, a população carcerária passou de 294 mil para 548 mil. O custo é alto. Cada vaga nas prisões estaduais consome 21 mil reais por ano. Nas federais, alcança 40 mil. Em comparação, o investimento por aluno do ensino fundamental na rede pública é uma questão de saúde pública. “Abordar o problema do ponto de vista criminal é um erro”, afirma o padre Valdir Silveira, coordenador da Pastoral Carcerária da CNBB, também em entrevista para revista. Enquanto isso, o Brasil vive uma explosão de consumo de drogas lícitas, mas esses abusos não são associados à marginalidade, o que confirma a tese de que esta condenação é moral e social, como afirma Paulo Gadelha.

ORIGENS DA CRIMINOLOGIA NO BRASIL A ciência criminológica, hibridismo entre o Direito e a Medicina, pode ser considerada desde o seu surgimento como um saber destinado ao poder, pois, segundo o sociólogo escocês David Garland, sempre foi valorizada por sua utilidade política, em detrimento da exatidão científica, configurando-se em disciplina “onde o que está em jogo não é a compreensão dos seres humanos envolvidos, mas trata-se de conhecê-los para controlá-los7”. A vertente criminológica que de fato se enraizou na estrutura repressiva brasileira corresponde à Escola Positivista, liderada pelo trabalho do italiano Cesare Lombroso, cuja principal obra é L’Uomo Delinqüente. Ele incorporou e desenvolveu o conceito do “criminoso nato”, fundamentando em estudos antropométricos sua confirmação de que o criminoso constitui um tipo atávico, passível de identificação

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GARLAND, David. As contradições da “Sociedade Punitiva”: O caso britânico. In Revista de Sociologia & Política Nº 13. Nova Iorque: Nov. 1999, p. 73.

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mental e física em meio à multidão. Sua obra “reduziu o crime a um fenômeno natural, ao considerar o criminoso simultaneamente como um primitivo e um doente8”. Tais postulados evolucionistas, defendidos pela criminologia lombrosiana e resumidos no Homo Criminalis (tipificação da espécie ou raça do delinquente), foram estrategicamente incorporados à mentalidade penal do Estado brasileiro em formação, uma vez que forneciam uma explicação “ao mesmo tempo pseudo-científica e tranquilizadora acerca da desordem social9” aqui presente. Assim, com a estruturação da República no Brasil, a visão criminológica serviu às elites para legitimar as desigualdades constitutivas da sociedade brasileira, reafirmando-as no tratamento criminal desigual para indivíduos desiguais. Este “saber normalizador, capaz de identificar, qualificar e hierarquizar os fatores naturais, sociais e individuais envolvidos na gênese do crime e na evolução da criminalidade10” orientou a desqualificação de segmentos significativos da população brasileira, tanto para o direito à condição de cidadãos plenos, quanto para a constituição do mercado de trabalho do país moderno que se pretendia criar.

A CONTRADIÇÃO CRIMINOLÓGICA Nas sociedades ocidentais contemporâneas, o escopo e a abrangência do sistema punitivo vão muito além do estabelecer e cumprir de determinações penais jurídicas. Com o apoio dos supracitados “saberes normalizadores no campo da Lei, a partir do julgamento de crimes e delitos julga-se não apenas os objetos jurídicos definidos pelo código, mas julga-se ao mesmo tempo as paixões, os instintos, as anomalias, as enfermidades, as inadaptações, os efeitos do meio e da hereditariedade 11”. De acordo com Garland, podemos definir como “punitividade” uma dimensão desse quadro mais amplo e complexo de repressão criminal, sendo que ela “em parte é um juízo comparativo acerca da “severidade” das penas com relação às medidas penais 8

ALVAREZ, Marcos César. O homem delinquente e história da Criminologia no Brasil. In Revista Teoria & 2005, p. 80. 9 ALVAREZ, Marcos César. O homem delinquente e história da Criminologia no Brasil. In Revista Teoria & 2005, p. 81. 10 Idem, p. 85. 11 Ibidem, p. 79.

o social naturalizado: apontamentos para uma Pesquisa Nº 47. São Paulo: Julho/Dezembro de o social naturalizado: apontamentos para uma Pesquisa Nº 47. São Paulo: Julho/Dezembro de

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precedentes, [e] em parte depende dos objetivos e das justificativas das medidas penais, assim como também da maneira pela qual a medida é apresentada ao público 12”. Estruturas calcadas nessa lógica tendem a se estabelecer e fortalecer em sociedades dotadas de clivagens acentuadas, crescente insegurança pessoal e econômica, descrédito nas soluções tradicionais de política pública social e altas taxas de criminalidade13. A essa forma punitiva de pensar e aplicar a repressão criminal corresponde uma linha de pensamento criminológica: a “criminologia do outro”, análoga ao Orientalismo elucidado por Edward Said. Garland pontua que, sob a ótica dessa vertente: “o delinquente é “o outro, esse estrangeiro”, alguém que pertence a um grupo social e racial distinto, cujas atitudes e cultura — e talvez mesmos os genes — não guardam mais que uma fraca semelhança com as nossas. É uma criminologia que se nutre das imagens, dos arquétipos, das angústias e da sugestão antes que das análises prudentes e dos resultados de pesquisa, é um discurso politizado do inconsciente antes que uma forma racional de saber empírico. Esse discurso, que opera no contexto do debate político público, está submetido a regras semânticas muito diferentes da lógica

analítica

da

investigação

ou

da

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administração ”.

É com base nessa mesma lógica que o sistema penal pode ser aplicado como uma estrutura de poder responsável por punir e controlar de maneira expressamente diferenciada esse “outro”, o criminoso, fundamentalmente distinguível pelos preceitos da tradição lombrosiana. Nesse sentido, a criminologia brasileira estigmatiza a maior parte da população nacional, configurando-a como o “outro” das elites (ALVAREZ, 2005) e orientando um viés punitivo das estruturas penais, “que emprega os símbolos de condenação e de sofrimento para entregar sua mensagem 15”. Contraditoriamente, existe um conjunto de princípios organizados no que Garland denomina as novas criminologias da vida cotidiana. Seus quatro pilares são a 12

GARLAND, David. As contradições da “Sociedade Punitiva”: O caso britânico. In Revista de Sociologia & Política Nº 13. Nova Iorque: Nov. 1999, p. 60. 13 Idem. 14 Ibidem, p. 74. 15 Ibidem, p. 61.

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teoria da escolha racional, a teoria da atividade de rotina, o crime como oportunidade e a prevenção da criminalidade situacional. Essa nova visão do indivíduo infrator é conhecida como “criminologia do eu” e, calcada na lógica econômica, compreende, na identidade do criminoso, uma escolha não natural, dependente de oportunidades e de ocasiões, e, na identidade da vítima, não o sofrimento e a vingança evocados pela imagem do “outro”, mas a incorporação da prevenção e do cálculo do risco da criminalidade à sua vida cotidiana. Em última instância, a “criminologia do eu” também pode desembocar numa visão de expansão do encarceramento e do controle social, uma vez que facilita a simplificação moral do discurso sobre crime e castigo, pois “se o crime não é senão uma questão de escolha racional, então [nós, enquanto sociedade] podemos compreender menos e condenar mais” (GARLAND, 1999). Resulta que a aplicação da criminologia nas formulações de política penal é atualmente marcada por essa ambivalência, que Garland denomina “uma criminologia esquizoide” e diferenciada, sem mediações (GARLAND, 1999). Se existe a dicotomia entre uma linha de satanização do criminoso, a qual sustenta o temor social e a expansão da punição estatal, e outra que banaliza o crime e promove a ação preventiva, por outro lado é visível que “apesar de contraditórias, ambas as estratégias de controle ao crime apresentam convergências ao priorizarem o controle social 16”.

COMBATE ÀS DROGAS E ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO NO BRASIL: CONTROLE E PUNIÇÃO DOS SUBINTEGRADOS Tomando como base as já citadas palavras de Paulo Gadelha (ver acima), a respeito da existência de uma política de drogas com “dois pesos e duas medidas” no Brasil, em que pobres e ricos são tratados de modo diferenciado pelo aparato repressivo policial, faremos uma breve análise das relações entre justiça e Estado no país, mostrando as contradições existentes no interior dessa estrutura. Em seu Entre Têmis e Leviatã: uma relação difícil, referindo-se à realização do Estado Democrático de Direito no Brasil, Neves postula o caso brasileiro como um 16

SCHLITTLER, Maria Carolina. No crime e na medida – Uma etnografia do Programa de Medidas Socioeducativas em meio aberto do Salesianos de São Carlos. Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”. Araraquara: 2011, p. 42.

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exemplar daquilo que ele chama de “modernidade periférica”, no que toca ao encontro entre Estado e justiça. O autor irá afirmar, quanto a isso, que, em nosso país, “A instrumentalização sistêmica do direito pelos meios ‘dinheiro e ‘poder’ não tem sido contrapesada por sua indisponibilidade e pela imparcialidade do Estado de Direito, que se fundamentariam na presença de uma ‘consciência moral universalista’ e numa

racionalidade

procedimental

orientada

dissensualmente” (NEVES, 2006: 246).

Assim, afirma Neves, não se verifica, no Brasil, o desenvolvimento nem dos direitos humanos e nem da soberania do povo. E isso, porque, em vez de haver no país uma legitimidade democrática das normas jurídicas, o que se observa é “uma tendência à privatização do Estado”. Estado esse que, como escreve o autor, “torna-se palco em que interesses particularistas conflitantes procuram impor-se à margem dos procedimentos constitucionais (NEVES, 2006: 247). Nesse sentido, claro é que as práticas punitivas e repressoras (institucionais ou não) aplicadas aos usuários de drogas do país (e, mais marcadamente, da cidade de São Paulo), irão variar, de acordo com os diferentes níveis socioeconômicos a que pertencem os usuários, quando de sua abordagem pelo aparato policial urbano. De fato, Neves descreve a “dupla exclusão” existente no Estado e na sociedade brasileiros, no que toca ao nosso sistema jurídico, “no sentido da ausência de direitos e deveres partilhados reciprocamente (NEVES, 2006: 248). Essa dupla exclusão baseia-se em duas categorias de “carência de cidadania”, ou seja, dois que grupos excluídos, “por cima” e “por baixo”, como escreve Neves, da totalidade da condição de cidadãos brasileiros. Tais grupos são, nos termos do autor, os subintegrados e os sobreintegrados. Para os primeiros, os subintegrados, a lei é sempre mais “rigorosa”, estando esse grupos privado dos “benefícios do ordenamento jurídico estatal”, porém não totalmente excluídos desse ordenamento, já que “não estão liberados dos deveres e responsabilidades impostas pelo aparelho coercitivo estatal, submentendo-se às suas estruturas punitivas” (NEVES, 2006: 248). Constituem esse grupo, excluído “por baixo”, os socialmente marginalizados, que “são integrados ao sistema jurídico, em regra, como devedores, indiciados, denunciados, réus, condenados etc., não como detentores de direitos, credores ou autores” (NEVES, 2006: 249).

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Redundante é constatar ser esse o grupo majoritariamente presente quando se pensam nos dependentes de crack que se encontram na Cracolândia paulistana. Vítimas constantes dessa condição “subcidadã”, pelas mãos da Polícia Militar do estado de São Paulo, esses brasileiros subintegrados na cidadania sofrem ofensas generalizadas aos seus direitos constitucionais fundamentais, perpetradas por meio dos “quadros da atividade repressiva do ‘aparelho estatal’, ou seja, das ações violentas ilegais da polícia”, sendo um caso particular da descrição que Neves faz de tais procedimentos coercitivos (NEVES, 2006: 250). Como par indissociável dos subintegrados, aparecem, de outro lado, os sobreintegrados. Esses excluídos “por cima”, nas palavras de Neves, “são titulares de direitos, competências, poderes e prerrogativas, mas não se subordinam regularmente à atividade punitiva do Estado no que se refere aos deveres e responsabilidade” (NEVES, 2006: 250). No caso da política estatal antidrogas, os sobreintegrados são os membros de uma elite que não carregará o estigma do “marginal”, do “traficante” ou do “bandido”, mesmo que sejam abordados e flagrados portando drogas. Interessante também é observar como o clamor social em torno do uso de crack se tornou algo relevante apenas nos últimos anos, principalmente em virtude da chegada de brasileiros de classe média ao vício, como se pode ver em reportagens divulgadas em sites e portais de notícias de alcance e importância nacionais 17. Desse modo, serão os subintegrados à cidadania - os excluídos por baixo - os objetos de punição e de controle social, no tocante à política estatal de combate às drogas e, mais especificamente, de combate ao uso do crack. A partir das teses foucaultianas, apresentadas em Vigiar e punir, podemos elaborar algumas críticas ao controle social do “corpo dos condenados”, esses novos “párias” - os usuários de crack , tomando por base o dispositivo da “Internação compulsória para dependentes químicos”, institucionalizado e iniciado em 11 de janeiro de 2013, pelo Governo do Estado de São Paulo. Conforme palavras do próprio Governo, em seu site: O Governo do Estado deu início à parceria com o Ministério Público, o Tribunal de Justiça e a OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) para plantão especial no CRATOD (Centro de Referência de 17

Disponível em: http://g1.globo.com/Noticias/SaoPaulo/0,,MUL10772345605,00+CRESCE+CONSUMO+DE+CRACK+ENTRE+A+CLASSE+. Acesso em: 20/06/2013. Disponível em: http://veja.abril.com.br/noticia/saude/crack-avanca-na-classe-media-e-entra-na-agendapolitica. Acesso em: 24/06/13.

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Álcool, Tabaco e Outras Drogas) para atendimento diferenciado aos dependentes químicos. Em casos extremos, a Justiça pode decidir pela internação compulsória do dependente. (http://www.saopaulo.sp.gov.br/spnoticias/lenotici a.php?id=225660, acessado em 24/06/13).

Como afirma Foucault, o criminoso, o “marginal”, é aquele indivíduo que “rompeu o pacto” e, que, por isso “é inimigo da sociedade inteira (FOUCAULT, 1984: 82). Sendo um inimigo comum, “a sociedade tem o direito de se levantar em peso contra ele, para puni-lo” (FOUCAULT, 1984: 83). Em termos foucaultianos, o direito de punir visa “à defesa da sociedade” (idem; ibidem) contra a (suposta) monstruosidade de seu traidor, o rompedor do pacto social. É nesse ponto que se encontra a conjunção, já secular, entre o campo “científico” e a jurisprudência. Novamente, segundo o site do Governo paulista: O governo criou medidas para o cumprimento mais eficiente da lei. No dia 11 de janeiro de 2013, o Estado de São Paulo viabilizou uma parceria inédita no Brasil entre o Judiciário e o Executivo, entre médicos, juízes e advogados, com o objetivo de tornar a tramitação do processo de internação compulsória (já previsto em lei) mais célere, para proteger as vidas daqueles que mais precisam. (http://www.saopaulo.sp.gov.br/spnoticias/lenoticia. php?id=225660, acessado em 24/06/13).

A disposição acima, tomada pelo poder público como benéfica aos usuários de crack, se inscreve na lógica descrita por Foucault, segundo a qual a associação entre a psiquiatria, a antropologia criminal e a criminologia, têm a função de, Introduzindo solenemente as infrações no campo dos objetos suscetíveis de um conhecimento científico, dar aos mecanismos da punição legal um poder justificável não mais simplesmente sobre as infrações, mas sobre os indivíduos; não mais sobre o que eles fizeram, mas sobre aquilo que eles são, serão, ou possam ser. (FOUCAULT, 1984: 22).

Assim é que, de modo perverso, a sociedade, por meio de dispositivos legais heterônomos (posto que, nesse caso, são alheios à vontade do sujeito, isto é, o dependente químico), busca realizar a profilaxia do usuário de crack, com o concurso de uma política higienista de combate às drogas, implementada pelo governo estadual paulista. Como afirma Foucault, o que se busca aqui é “julgar coisa diferente além dos crimes: a ‘alma’ dos criminosos” (FOUCAULT, 1984: 22). 11

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS Documentário

independente

“Cortina

de

Fumaça”.

In:

http://www.youtube.com/watch?feature=player_embedded&v=x24pV4Di_Zg#at=28 Documentário “Grass: History of Marijuana” Disponível em: http://steinhardts.wordpress.com/2006/11/10/assassino. Acesso em: 20/06/2013. Página da Transform Drug Policy Foundation: http://www.tdpf.org.uk/. Acesso em: 21/06/2013. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato20042006/2006/lei/l11343.htm. Acesso em: 19/06/2013. Disponível em: http://cbdd.org.br/pt/. Acesso em: 20/06/2013. GARLAND, David. As contradições da “Sociedade Punitiva”: O caso britânico. In Revista de Sociologia & Política Nº 13. Nova Iorque: Nov. 1999. ALVAREZ, Marcos César. O homem delinquente e o social naturalizado: apontamentos para uma história da Criminologia no Brasil. In Revista Teoria & Pesquisa Nº 47. São Paulo: Julho/Dezembro de 2005. SCHLITTLER, Maria Carolina. No crime e na medida – Uma etnografia do Programa de Medidas Socioeducativas em meio aberto do Salesianos de São Carlos. Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”. Araraquara: 2011. É hora de pensar diferente. Por William Vieira. Carta Capital. 15 de Maio de 2013. Ano XVIII Nº 748. CARNEIRO, Prof. Dr. Henrique S. Bebidas alcoólicas e outras drogas na época moderna. Economia e embriaguez do século XVI ao XVIII. In: www.neip.info CARNEIRO, Prof. Dr. Henrique S. As necessidades humanas e o proibicionismo das drogas no século XX. In: www.neip.info CARNEIRO, Prof. Dr. Henrique S. A fabricação do vício. 2002. In: www.neip.info FOUCAULT, M. “O corpo dos condenados”, pp. 11-32; “A punição generalizada”, pp. 69-93, in Vigiar e Punir. Petrópolis: Vozes, 1984. NEVES,M. “Uma breve referência ao caso brasileiro”, in Entre Têmis e Leviatã: uma relação difícil. São Paulo: Martins Fontes, 2006, 244-258. WACQUANT, Loïc. Punir os pobres: a nova gestão da miséria nos Estados Unidos. pp. 19-54. Revan, 2003.

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