Dualidades Diluídas: desafios conceituais acerca da circulação do audiovisual na Internet [Diluted dualities: conceptual challenges about audiovisual circulation on Internet]

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ANAIS DO XIII SEMINÁRIO INTERNACIONAL DE COMUNICAÇÃO, PUCRS, 2015

SESSÃO III – NARRATIVAS, REPRESENTAÇÕES E NOVAS FORMAS DE CIRCULAÇÃO Dualidades Diluídas: desafios conceituais acerca da circulação do audiovisual na Internet23 Dra. Angela Meili (UNESPAR/UV)

Resumo: Na contemporaneidade, um período que pode ser pensado como hipermodernidade (LIPOVETSKY e SERROY, 2009), quando o excesso de velocidade e de conexão nas trocas econômicas e informacionais problematiza categorias de pensamento da modernidade, notamos o impacto direto das redes digitais na economia do audiovisual, que encontra diluídas uma série de categorias que antes definiam e estruturavam esse mercado. No presente artigo, apresentamos de que maneira as plataformas digitais de distribuição audiovisual influenciam na diluição uma série de dualidades antes consideradas estáveis, quais sejam: formalidade e informalidade, legalidade e ilegalidade, grátis e pago, acesso e privilégio, cooperação e oportunismo, profissionalismo e amadorismo. Palavras-chave: economia audiovisual, plataformas digitais, distribuição, pirataria, cinema.

Introdução A cultura humana, que se manifesta nas mais variadas dimensões da percepção e do trabalho, encontra, nos modos de registro simbólico dos suportes materiais, a possibilidade de expandir espacialmente e temporalmente o alcance dos caracteres racionais e estéticos das suas linguagens. O desenvolvimento de formas culturais sempre também acompanha o desenvolvimento de técnicas ou tecnologias, seja de registro, seja de difusão dos signos. Sabe-se que o nascimento de tecnologias como a escrita, a imprensa ou a fotografia promoveu à humanidade o incremento de suas manifestações culturais e formas de pensamento; veja, por exemplo, o fundamento da racionalidade moderna, que é diretamente dependente de um pensamento linearizado e que se constrói, sobretudo, na forma escrita; ou, ainda, veja a integração de identidades e percepções nacionais que foi, ao longo da história, impulsionada pela consolidação da imprensa como um meio de comunicação e difusão da informação (BHABHA, 1990).

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Este trabalho apresenta reflexões desenvolvidas na tese de doutorado Cinema na Internet: Espaços Informais de Circulação, Pirataria e Cinefilia, defendida, pelo autor, no Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social, da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, em 2015.

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Entende-se que a constante criação e recriação de tecnologias comunicacionais (considerando, portanto, o registro e a difusão de signos), é um movimento que coincide com a própria conformação dos processos culturais e civilizatórios. A dinâmica das relações humanas, formalizada nos inúmeros modos de representação e expressão sígnica, está constantemente sofrendo impactos provenientes do avanço tecnológico. Sobretudo, o próprio avanço tecnológico é também um componente cultural, que, a todo momento, sofre releituras e obtém investimentos de atores que, com as mais variadas intenções, normalmente associadas à dinâmica capitalista, promovem um ambiente de constante instabilidade, onde a única certeza que se pode ter é a de que os meios nunca param de se alterar. Desde os brinquedos ópticos pré-cinematográficos, passando pela criação do cinematógrafo, pela expansão e consolidação do cinema enquanto uma instituição cultural, atravessando o grande impacto da televisão – que tão próxima do rádio, também trouxe suas próprias dimensões imagéticas –, chegando ao videotape e, por fim, à mídia digital, a produção e circulação da imagem em movimento foram uma história (não tão longa, pode-se dizer) de constantes inovações e recriações, não só no que se refere à cultura das formas imagéticas, mas também ao mercado, ou seja, à exploração econômica dessas formas. A cultura da imagem encontrou alto valor no cerne da formação das civilizações contemporâneas, que passaram a utilizar intensamente a sua força simbólica. Uma força simbólica com potencial de atuar nos mais diversos campos sociais e que passou a ocupar, a partir da expansão dos meios eletrônicos e, logo em seguida, digitais, intensamente os espaços de interação proporcionados pelas mídias. As tecnologias digitais de comunicação estabeleceram um novo paradigma sobre como se lidar com a informação, especialmente porque a imaterialidade da cópia e do registro somada à interconectividade e abrangência da emissão e recepção por polos cada vez mais heterogêneos, resultaram em uma convergência das mídias no mesmo espaço de trocas, em um mundo digital constituído de códigos, cujas possibilidades de rearranjo e reconstrução infinitas resultaram no desenvolvimento de soluções de distribuição de conteúdo informacional até então desconhecidas, o que alterou sobremaneira os mercados midiáticos e culturais. Em pesquisa de doutorado, desenvolvida junto ao Programa de Pós-graduação em Comunicação Social da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, em 2015, observamos os meandros da circulação do audiovisual dentro da internet, chamando a atenção para a complexidade inerente ao fenômeno, onde os modos de 30

acesso à mídia audiovisual assumem formas diversas e produzem um âmbito muito mais amplo e dinâmico de contato e experiência com tais bens culturais, cuja abrangência insere novos atores e métodos de distribuição e recepção. Se os meios tradicionais de comunicação trabalham, desde sempre, com uma série de dualidades que os caracterizam, notamos que os meios digitais promovem uma desconstrução ou diluição dessas dualidades, que acabam por se articular de diversas maneiras, dependendo da plataforma ou do fenômeno específico que observamos. Trabalharemos, no presente artigo, com a ideia de que não é mais plena a distinção entre as seguintes dualidades: formalidade e informalidade, legalidade e ilegalidade, grátis e pago, acesso e privilégio, cooperação e oportunismo, profissionalismo e amadorismo. Essas dualidades diluem-se na malha tecnológica e simbólica do espaço digital. Apresento tal diluição, a partir de uma pesquisa que explora a ecologia das janelas de distribuição, a pluralidade dos discursos e práticas piratas e as plataformas BitTorrent. Em um processo de hibridização de formas midiáticas e culturais, o fenômeno da circulação informal digital desconstrói paradigmas da indústria. O mercado formal influencia as redes informais, ao mesmo tempo em que estas se formalizam em seu próprio espaço de legitimidade; os mesmos espaços são reapropriados e explorados por agentes formais. A coexistência da circulação oficial e da circulação desobediente faz notar, em ambas, tanto traços de formalidade, como de informalidade. O fenômeno participa da desestabilização do direito autoral, o que exige superar abordagens criminalistas sobre a pirataria, cuja significação produz um espectro semântico cada vez mais amplo. Legalidade e ilegalidade passam a ter percepções morais relativizadas, o que se liga à extensão e abrangência do fenômeno. Abrangência gerada pela possibilidade infinita de cópia, cuja superabundância de conteúdos gera novas apreciações do preço (ou valor) do bem cultural. A fruição ocorre sem mediação da compra e outros engajamentos são mobilizados pelo usuário. A cultura do grátis, todavia, não exclui a exploração comercial das obras, produzindo novos modelos de negócio. Mesmo sendo, os piratas, amadores e entusiastas, a qualidade do seu trabalho e conhecimento, em muitos casos, é profissional; hackers, programadores, produtores independentes, tradutores, colecionadores, ainda que não tenham vínculos formais de trabalho com seus projetos, os levam a sério e agregam alto valor ao mercado informacional.

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Ainda que plataformas, canais, arquivos e ferramentas informais sejam produzidos para viabilizar a circulação e, assim, o acesso aos bens culturais, há muitas camadas protetivas que controlam o espalhamento. Grupos piratas privados produzem espaços de acesso privilegiado, criando zonas de exclusividade. Assim, mesmo que esses espaços tenham um caráter essencialmente colaborativo, não se trata de uma rede de relações perfeitamente horizontal, pois a coletividade não suprime o indivíduo, que está em relações de disputa e legitimação pessoal. Ele é movido por interesses pessoais, de consumo, visibilidade e legitimação e encara o acesso livre como direito adquirido no contexto da (quase) total disponibilidade de conteúdos. Seguimos agora para a apreciação específica de cada uma dessas dualidades.

Formalidade e Informalidade O cinema foi a origem da “tela mágica” e, ao longo do tempo, emprestou a sua própria semiótica aos descendentes. Conforme Manovich (2001), telas de todos os tipos, desde a televisão até a própria interface gráfica dos computadores, reapropriaram-se do princípio comunicativo e estético do cinema, que é a imagem em movimento. Na ecranosfera (LIPOVETSKY e SERROY, 2009), um sistema cultural complexo e integrado, o cinema interage com tantas outras telas. Pode-se dizer que o desenvolvimento tecnológico potencializa a força do cinema, principalmente quando ele passa a circular com maior velocidade, menor controle e maior qualidade de recepção. A circulação informal intensifica a experiência com o audiovisual, sendo uma irradiação derivada de eixos centrais da indústria cinematográfica. Ainda que o conteúdo amador esteja presente na internet, os âmbitos formais do cinema compõem um eixo central e legitimado de produção de conteúdo. Mesmo assim, conforme lembra Lobato (2012), a exibição nas salas deixa de ser o epicentro da cultura cinematográfica, dividindo espaço com todas as outras fatias oficiais e, também, informais. De acordo com Ponte (2008), o rápido espalhamento dos conteúdos cinematográficos nas redes digitais vem forçando os distribuidores a criarem novas estratégias de lançamento, como o lançamento simultâneo (street date), a reduzir a distância entre as suas janelas de lançamento e, ainda, a desenvolver estratégias de exploração nas plataformas digitais. Pode-se dizer que a disposição dos produtores em tolerar as práticas informais e utilizá-las a seu favor já são peças chave na evolução do vídeo nas plataformas digitais. Trata-se de um mercado em amplo desenvolvimento e que, além de coexistir com a informalidade, também a utiliza como potencializadora, tanto no que se refere à 32

publicidade, quanto à compreensão e estudo das preferências e hábitos do público. Em um ambiente complexo e inseguro para investidores, a distribuição formal pela internet pertence a um contexto de desenvolvimento tecnológico que demanda por inovações que satisfaçam tanto o consumidor como o produtor. De acordo com Cunningham e Silver (2013), forma-se um tipo de circulação híbrida que poderia ser entendido como a reinvenção da televisão, formada por características essenciais que conhecemos da televisão (abrangência, programação, patrocínio, anúncios, branding, produção e aquisição

de

conteúdo),

adaptada

aos

múltiplos

suportes

tecnológicos,

à

transnacionalidade das redes digitais, à interatividade e à variedade de público e conteúdo. A audiência, por sua vez, é uma distribuidora eficiente de mídia, a massa molda a presença do vídeo na internet e sugere as formas de consumo que o cinema irá encontrar nas próximas décadas. Por isso, é importante olhar mais atentamente para o panorama informal de circulação e compreendê-lo como parte integrante da economia audiovisual contemporânea. Uma circulação que é sintomática das demandas sociais, do modelo centralizado de produção e distribuição do cinema, do papel da indústria do entretenimento e da heterogeneidade cultural. De acordo com Lobato (2012), as redes informais são componentes das indústrias midiáticas e não exceções. Ainda, vale ressaltar que a informalidade esteve presente em todas as fases do desenvolvimento da indústria cinematográfica, acentuando-se conforme o progresso das tecnologias reprodutivas de vídeo. Tendo em vista essas dinâmicas de circulação do audiovisual que caminha entre âmbitos de formalidade e informalidade, podemos desenvolver uma reflexão que considere o aspecto da formalidade a partir de um ponto de vista no qual essa oposição se dilui; para isso, consideramos a noção de forma a partir de dois entendimentos. O primeiro deles percebe que a circulação informal é propriamente informal no sentido de que se situa fora dos processos burocráticos e estruturas do mercado de circulação. Sabe-se, todavia, conforme já apresentamos, que esse tipo de informalidade possui dependências inerentes à indústria do entretenimento, que é a principal fornecedora de conteúdo, ao marketing, aos provedores de internet, aos fabricantes de softwares, hardwares e à mídia em geral. Este é um tipo de dependência que, ao mesmo tempo, convive com a livre apropriação de recursos e ferramentas, em um contexto predominantemente institucionalizado.

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O segundo entendimento que podemos ter da formalidade tem a ver com uma propriedade conceitual da forma, relacionada à estruturação técnica das redes informais e aos acordos sociossimbólicos interativos. Compostas em fluidez de difícil retenção, as redes informais estabelecem temporariamente acordos simbólicos que resultam em formas fundamentais, as quais permitem o surgimento desses sistemas comunicativos. Observamos, na análise de grupos privados de compartilhamento BitTorrent, que uma série de acordos simbólicos são formulados – formalidades cujo intuito é fixar diretrizes para um projeto coletivo, estabelecendo limitações e recursos para a participação. Tratase da conformação de estruturas participativas que institucionalizam esses espaços informais, produzindo regras de funcionamento. As regras das comunidades fechadas de compartilhamento referem-se a como os usuários deveriam se comportar, quanto e como deveriam contribuir, à padronização dos conteúdos e técnica das plataformas, entre outros. Regras também estruturam sites abertos, ainda que de maneira um pouco menos rigorosa, e permitem que essas plataformas apresentem um alto grau de formalidade, conforme aponta Andersson (2012), institucionalizando-se como entidades despersonalizadas provedoras de conteúdo, que se apresentam de forma altamente eficaz para o público em geral. Tais plataformas, tanto as fechadas, quanto as abertas, para Cardoso et al. (2012) podem ser pensadas como protótipos para a distribuição do cinema na era digital e, conforme Bodó e Lakatos (2012), originam uma lógica única de programação, que relaciona o mainstream com as demandas fragmentadas de nicho, reservando espaços para os gatekeepers tradicionais e, ainda assim, oferecendo possibilidades de escolha e heterogeneidade sem precedentes. Para Schäfer (2011), essa composição é feita por formas que dependem de fatores diversos, como a relação entre discursos, as apropriações coletivas e o design tecnológico, resultando em um fenômeno denominado pelo autor de material-digital, ou seja, uma conjunção entre recursos materiais e dispositivos digitais. Essas formas são, portanto, dispositivos comunicantes que integram funcionalidades e permitem os processos de armazenamento, organização e troca informacional. A digitalização dos suportes comunicacionais produziu perspectivas híbridas da relação entre informação e forma. Essa hibridização manifesta-se tanto na interface quanto na base de dados dos serviços. Quando observamos a circulação dos bens informacionais na era digital a partir de uma perspectiva rizomática (DELEUZE e GUATTARI, 1995), notamos que as 34

interações ponto a ponto assumem um número diversificado de formas. É justamente o diálogo entre as formas que permite às redes informais e formais misturarem-se a ponto de, progressivamente, terem difícil distinção. As redes de pirataria têm trabalhado a serviço da divulgação de conteúdo da indústria do entretenimento, além de oferecerem para ela muitas ideias quanto aos modos de exploração dos meios digitais; além disso, o pirata continua sendo um grande consumidor de conteúdo pago. Conforme Mattelart (2012), quando se pensa no grande volume do conteúdo pago encontrado no âmbito da informalidade, pensa-se em redes subterrâneas e marginais, todavia as atividades econômicas informais desenvolvem-se de modo altamente conectado às economias oficiais. Por isso, não se pode pensar na informalidade como sendo algo menor, mas de grande impacto econômico e que promove circulação significativa de bens e riquezas.

Legalidade e Ilegalidade Tanto a organização social dada, quanto as apropriações transformadoras no seio da criatividade formulam o contexto de discussão dos direitos do autor. Se a Renascença foi uma era propícia para a consolidação da propriedade intelectual e da noção de autoria, o tema entra em crise na contemporaneidade por razões contextuais, pode-se dizer, da mesma natureza, pois também motivada por variáveis de ordem tecnológica, econômica e cultural. Principalmente a tecnológica tem um peso importante, tanto na Renascença, com as invenções mecânicas, quanto na atualidade, com as invenções eletrônicas. Ao longo dos séculos, o direito do autor apresenta uma genealogia que deriva de uma origem institucional positiva, onde se produzem as leis, os mecanismos burocráticos de privilégios, que protegem a competição, e uma origem ideológica que resulta de desenvolvimentos culturais em um contexto social que sofre diversos impactos (NIMUS, 2006). Hoje, a violação de algumas dimensões do direito autoral é comum, não sendo moralmente condenada por grande parte da sociedade (BARRON, 2010; DENT, 2012), ocorrendo um acordo moral resultante da força conquistada pela circulação informal, quando esta atende às necessidades de consumo. O direito do autor é desafiado, pois o critério de valoração dado ao conhecimento e seu registro nem sempre é estável. A relação entre as estruturas normativas e a sociedade não é fixa ou homogênea (LEMOS, 2005), especialmente em termos de políticas da tecnologia; é comum haver disparidade entre a norma, de caráter ideal, e a constante transformação social, ou seja, as normas jurídicas enfraquecem diante da importância factual das comunidades de conhecimento 35

(ibid.). Apesar da aparente universalidade da lei positiva, entre as bases que pautam a proibição e as práticas, vemos uma distância muito grande. Este é um campo aberto para a exploração investigativa das dinâmicas culturais, que revelam as instabilidades da relação entre as instituições de poder e o movimento das trocas informacionais, que são, por sua vez, mediadas por tecnologias da inteligência cada vez mais complexas (CASTELLS, 1996). CRISE DO DIREITO AUTORAL Levando em conta o sentido histórico aplicado ao termo “pirataria” e a transformação das bases tecnológicas e econômicas da sociedade, atribuir (i)moralidade ao seu sentido passa a ser um tema polêmico e impreciso. A atribuição de agressão ao direito da propriedade intelectual pode ser mais ou menos flexível, dependendo de situações específicas. Comentadores das leis anglo-americanas do século dezenove, e por tal razão expositores correntes da lei positiva, chamam de infração a violação dos direitos do autor. No século dezenove parece que o termo foi usado indistintamente ao de pirataria (...). Hoje, pirataria implica a reprodução comercial (como na pirataria de discos) e, portanto, traz uma nódoa de vergonha moral. Por isso, retoricamente carregada e, para muitos, tem um caráter altamente contestável chamar o file-sharing de pirataria. (GINSBURG, 2010, p. 83, tradução nosssa). Sendo a aplicação do direito autoral dada a partir de propósitos estritamente econômicos, sabe-se que a pirataria conecta-se fundamentalmente ao espírito capitalista, conforme Adam Smith (1904[1776]) chamara atenção: Nem muitas pessoas são escrupulosas quanto ao contrabando, quando, sem perjúrio, podem encontrar uma oportunidade fácil e segura para fazê-lo. Fingir ter escrúpulos quanto a bens contrabandeados... seria na maioria dos países considerado como uma hipocrisia pedante. O que está implícito na afirmação é que o comércio ilegal sempre foi uma prática recorrente, com objetivos utilitaristas de proveito próprio e que, consequentemente, poderia beneficiar, com o enriquecimento, grupos ou nações. Dentro do clássico impasse sobre quem veio antes, o ovo ou a galinha, pode-se dizer que a cópia de bens culturais é tão antiga quanto a própria cultura (ALFRORD, 1995), justamente porque a definição de propriedade intelectual é posterior ao surgimento dos instrumentos de representação e produção de objetos culturais. A pirataria é tão antiga quanto o próprio

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cinema e tem sido condutor fundamental de distribuição desde o início24 do século XX. A distribuição não autorizada assumiu diferentes formas e abrangências, dependendo da tecnologia emergente e foi epidêmica nas décadas iniciais do cinema. Isso nos sugere uma nova perspectiva para pensar o conceito estabelecido de que a pirataria impede a criatividade, já que o cinema, desde sempre, se desenvolveu em convivência com a pirataria. Há, ainda, que se considerar a multiplicidade discursiva que envolve a questão da pirataria; tal multiplicidade negocia contradições socioculturais, estando em constante movimento e participando de mudanças concretas nas sociedades. A noção de pirataria transforma-se de acordo com os processos socioeconômicos e adapta-se historicamente, havendo uma transformação fundamental na sua percepção moral, não sendo mais vista pela maioria das pessoas como algo amoral ou antiético. Por fim, o tema levanta questões importantes de natureza política, catalisando debates democráticos sobre a internet e o uso das tecnologias informacionais; ele se relaciona com outros fenômenos, como a dissolução da noção de autoria, a desobediência civil, o movimento de inovações tecnológicas, os grupos anônimos, a crise econômica, a cultura participativa, o empreendedorismo digital, o mercado audiovisual, as economias informais, entre outros. A pirataria é, portanto, uma atividade política e cultural que corresponde a uma gama de interesses coletivos de dimensão global.

Grátis e Pago Considerar que o consumo informal de bens midiáticos depende da “vontade de pagar” é uma imprecisão que desconsidera uma série de fatores que interferem diretamente nesse tipo de relação, pois além da vontade de pagar, há casos em que faltam recursos para consumir, existem as limitações do mercado distribuidor, que não oferece o produto de forma eficiente, além de uma maior ou menor desenvoltura com os mecanismos tecnológicos que facilitam a pirataria, ou de um acesso mais facilitado ou não às mídias piratas, dentro e fora da internet, tornando-a menos ou mais conveniente. 24 Logo no início, os filmes não eram protegidos, mas sim os equipamentos, que tinham patentes rígidas. Essa

restrição de uso do invento cinema (aplicada inicialmente por Thomas Edison) ainda não enxergava os filmes enquanto obras intelectuais. A produção de direitos autorais os filmes foi se desenvolvendo com o tempo, na medida da consolidação das obras como produto cultural e do cinema dentro de um modelo de indústria.

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Por exemplo, Karaganis (2011) aponta que a ubiquidade da pirataria nos países em desenvolvimento é consequência da inadequação entre os preços cobrados pelos distribuidores e os recursos dos consumidores; as multinacionais precificam seus produtos a partir da média dos países desenvolvidos para proteger seus próprios mercados e manter uma posição de dominação, atrapalhando o crescimento de mercados menores. Ainda, a circulação informal não necessariamente deixa de se converter em recursos para as indústrias midiáticas. Um exemplo é a pirataria promocional; conforme lembra Croxon (2007), a internet com seus blogs, salas de bate-papo e outros ambientes, viabiliza que a fofoca entre os consumidores se espalhe globalmente, gerando o buzz, o hype, o marketing viral, o boca-a-boca. Segundo o autor, o boca-a-boca é um veiculador importante do sucesso de vendas, especialmente da indústria do entretenimento. Pode ser que a pirataria não prejudique diretamente a indústria, se ela encontrar modos de satisfazer os consumidores em um cenário onde a cultura livre se instaura. A free culture possui dois sentidos que se manifestam na tradução para o português da palavra free: grátis (receber algo sem pagar) e livre (autonomia dos sujeitos na apropriação das tecnologias e dos bens culturais, ideologia da desconstrução da propriedade intelectual) (ANDERSON, 2009). A dualidade não é apenas uma coincidência lexical, mas um fato observado na relação da sociedade com o conhecimento, os bens simbólicos e as tecnologias. Por um lado, temos o espalhamento de um comportamento de massa, que consiste em consumir e replicar conteúdos culturais, apesar das restrições colocadas pelo direito autoral (a cultura do grátis). Por outro lado, temos atitudes de apropriação tecnológicas motivadas pelo discurso da liberdade de acesso ao conhecimento (cultura livre). Ambas têm implicações econômicas e nem por isso destroem o sistema, mas o obrigam a se adaptar. A circulação grátis de produtos é uma lição antiga do marketing promocional (CROXON, 2007) e serve para influenciar psicologicamente o consumidor, mexendo com a sua percepção e, consequentemente, produzindo demandas ao tornar os produtos mais atraentes. Por exemplo, em 2008, vídeos do Monthy Python foram distribuídos gratuitamente no YouTube, o que resultou na multiplicação de vedas dos DVDs na Amazon.com. E, ainda, houve o emblemático caso do filme Tropa de Elite (José Padilha, 2007) que revelou o poder promocional da pirataria: o lançamento previsto para novembro de 2007, a cópia pirata começou a circular nas ruas em agosto, o que fez com que a estreia fosse antecipada em um mês, acontecendo no dia 12 de outubro. 38

Estima-se que 12 milhões de pessoas tenham assistido às cópias piratas (LOBATO, 2012), tendo sido o filme mais pireteado da cinematografia nacional e, apesar do pouco investimento em publicidade, o sétimo mais assistido no Brasil, naquele ano, alcançando um público de quase 2,5 milhões de espectadores (CARDOSO et al, 2012), quantidade que, supõe-se, não teria sido alcançada sem a publicidade pirata. Pode-se dizer que o livre compartilhamento dá visibilidade a obras de fontes mais heterogêneas, o que torna a pirataria um agente cultural “pedagógico” que interfere nas sensibilidades do público. Hoje, o grátis encontra proporções amplas e diversas: ele está relacionado à imaterialidade dos bens culturais e suas novas formas de circulação no espaço digital. É parte integrante de um novo sistema econômico resultante da sociedade da informação, dos bits ao invés de átomos (NEGROPONTE, 1999). O aumento da oferta, sem aumento da demanda, a imaterialização do suporte, a facilidade de acesso, o estímulo da indústria informática, que obtém vantagens com a gratuidade, e o aparecimento de uma nova geração que se acostuma a compartilhar livremente os conteúdos, sem restrições morais, são os principais fatores que deram força ao conceito free. Os sistemas alternativos e descentralizados de distribuição da informação contribuem para o surgimento de mercados inovadores, revelando públicos e culturas. Quanto mais diversa a distribuição de uma arte ou produto, maior a possibilidade de surgirem novos mercados. As rádios piratas dos anos 1960, na Inglaterra, chamaram a atenção para o público do rock, o que, posteriormente, tornou-se uma das maiores indústrias do entretenimento do século XX (MASON, 2009). Quanto mais disseminadas as práticas descentralizadas de informação, maior a possibilidade de inovação. No sistema capitalista, o lucro vem na inovação. Principal mote de “como ganhar dinheiro”, inovar é o movimento constante das trocas. Um outro aspecto sobre a gratuidade, importante de ser mencionado, é que, principalmente em comunidades fechadas de torrent, notamos um alto engajamento dos usuários, que, para obterem uma série de privilégios dentro desses grupos ou até mesmo para terem o direito de participar deles, precisam investir em trabalho ativo, acrescentando conteúdo, fazendo legendas, traduções, organizando o banco de dados, moderando comentários e contribuindo com banda de internet, ao fazerem uploads; ainda, como lembra Kosnik (2012), os usuários precisam também investir financeiramente, ou seja, gastar dinheiro, ao contratarem serviços de internet com boa conexão, comprarem hard disks, assinarem contas em redes privadas virtuais, entre outros. Notamos, em nossa análise, o que vai de acordo com De Sá (2013), que há uma 39

quantidade significativa, no âmbito informal, de pessoas engajadas em produzir traduções e legendas, o que exige bastante trabalho dos voluntários. Isso quer dizer que, em muitos casos, o grátis pode não ser totalmente grátis, quando notamos todos esses investimentos e engajamentos no âmbito do consumo informal, sem contar nos riscos de punição, perante a lei, que os usuários podem estar correndo ao participarem dessas redes.

Acesso e Privilégio Quando observamos o universo torrent, nos damos conta de que ele tem como mote principal o acesso à informação e aos bens culturais, tomando isso como uma bandeira ideológica que se posiciona no enfrentamento às indústrias culturais e aos mediadores oficiais, procurando se afirmar como representantes de uma legítima apropriação dos recursos tecnológicos para a liberdade da informação. Em nossa pesquisa, analisamos um site de convites para grupos de torrent privados, o Torrentinvites.com, e observamos que, em sua chamada principal, existe a afirmação de que seus membros seriam fiéis ao “verdadeiro sentido do compartilhamento”, tendo como objetivo criar uma “comunidade de torrent verdadeiramente global”. O site promete conter informações atualizadas sobre os trackers privados e guiar o usuário, introduzindo-o a este “verdadeiramente secreto e iluminado público”. Perceba que há um grande entusiasmo em relação a esse universo, onde o uso repetido da palavra “verdade” refere-se a um espectro discursivo segundo o qual a comunidade coloca-se como representante legítima de uma cultura da pirataria, cujos eixos ideológicos já estão estabelecidos e são compartilhados por um grupo seleto de pessoas. Sites de convites, como esse, apresentam-se como mediadores entre pessoas comuns e tal mundo secreto, articuladores que promovem ritos de passagem, que exigem engajamento e conhecimento dos usuários para que estes conquistem seu lugar em um mundo de privilégios. Também notamos uma perspectiva parecida ao analisarmos um grupo cinéfilo privado de torrent25, dedicado exclusivamente ao cinema, cujo slogan é o “verdadeiro cinema”, o que, por implicação, leva a pensar que o grupo trabalha com uma cinematografia considerada legítima de ser chamada de cinema, ao contrário de outras que seriam menos dignas ou falsas. Por isso mesmo, ainda que a perspectiva central do

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Maiores detalhes sobre o estudo desse grupo podem ser encontrados na tese.

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site seja disponibilizar e facilitar o acesso a cinematografias diversas, para além da cultura de massa, o site coloca-se numa zona intelectual privilegiada, de um público específico e selecionado, ao passo que também o conteúdo é rigorosamente selecionado e está muito distante do que se pode pensar como sendo um gosto comum. Por outro lado, as redes de compartilhamento de conteúdo cinematográfico na internet são, claramente, constituídas para o acesso, ou seja, posicionam-se dentro de um viés pós-colonialista, no sentido de que estão ativamente engajadas em diminuir o déficit cultural que assola grande parte da população mundial, no sentido de que esta não encontra meios para acessar uma série de conteúdos, seja pelo fato de não são massivamente distribuídos ou, ainda, pelo simples fato de não possuírem disponibilidade econômica para o consumo cultural. Muitas vezes, a pirataria é uma atividade cotidiana praticada em contextos onde não existem alternativas legais; conforme aponta Dent (2012), as práticas informais tornam-se antídotos contra o alto preço de acesso aos produtos culturais, resultante de um regime de propriedade intelectual que encoraja tendências monopolistas, cuja causa é a desigualdade de poder econômico entre as partes interessadas. Notamos um paradoxo, quando pensamos que o acesso aos bens culturais, hoje, implica em um problema na relação entre tecnologia e a cidadania, pois, para estar integrado, o indivíduo necessariamente precisa manipular os aparatos tecnológicos. Dessa forma, em uma sociedade tecnológica, a possibilidade de engajamento cívico requer conhecimento especializado, tratando-se de um caminho ativo dos indivíduos na busca das suas cópias dos produtos culturais. Por isso, ainda que as tecnologias propiciem a liberdade de acesso, fazer parte do mundo tecnológico e conhecer a sua linguagem e os seus meandros, funcionalidades, especificidades, ainda é um privilégio para poucos.

Cooperação e Oportunismo Andersson (2012) chama a atenção para o caráter abrangente e massivo da circulação informal dos sites de torrent, os quais funcionam como utilidades genéricas de compartilhamento, repositórios de informação bastante vastos, altamente conectados e ubíquos. Para além de uma perspectiva comunal, é possível perceber a circulação informal como uma infraestrutura de larga escala, uma ferramenta massiva de superabundância de dados. Esta produz uma impressão ou, até, a certeza de que a obtenção dos conteúdos já é um direito adquirido, de que sua oferta é um dado 41

incontestável, ou seja, todos sabem que podem encontrar na rede tudo o que desejam, ainda que nunca tenham, de fato, contribuído para ou participado em alguma comunidade. A rede é vista, portanto, como um repositório livre de conteúdo, do qual se pode desfrutar sem, necessariamente, haver a necessidade de qualquer contrapartida. É por isso que a tecnologia BitTorrent já possui acoplada uma série de recursos para controlar a cooperação, tornando-a mandatária e automática. Mesmo assim, nota-se uma preocupação muito grande por parte dos mantenedores de comunidades (especialmente as fechadas) em controlar e exigir a participação dos usuários. Daí o aparecimento do que se pode chamar de uma ética pirata, no sentido de que a falta de cooperação é moralmente condenada no âmbito torrent, especialmente em grupos fechados. Ao observarmos o fenômeno, notamos um discurso de bom senso em relação às regras pré-estabelecidas, trata-se da manutenção de acordos coletivos, apoiados no corpo de regras dos grupos e na própria estrutura técnica da interação BitTorrent, resultantes de um sistema hierárquico que cria uma codependência entre agentes. A eficiência da tecnologia BitTorrent dá-se justamente pelo fato de que ela é programada para otimizar o uso de banda e, consequentemente a colaboração. Se há a necessidade tática de uma tecnologia para que se force o compartilhamento, então, notase que, ainda que essas redes sejam essencialmente colaborativas, na prática a colaboração não ocorre necessariamente, havendo a necessidade de proteção contra agentes oportunistas. Para isso, conforme explica Cohen (2003), uma série de estratégias é utilizada, como por exemplo, fazer com que a taxa de download seja sempre proporcional à taxa de upload (ratio), o que serve de estímulo ao peer para contribuir com a rede; quanto maior a velocidade de upload liberada pelo peer, mais rápido ele também pode obter o conteúdo que deseja. Isso é denominado de esquema tit for tat, que procura encorajar uma troca justa. Além de a tecnologia BitTorrent já ter automaticamente um mecanismo que regula a taxa de ratio, para dificultar a dominação de peers parasitas e desperdício de banda, há algoritmos que permitem bloquear o envio de dados para usuários específicos que não estejam cooperando. Além disso, há um sistema de recompensas, ou seja, um usuário ativo pode acumular, ao longo do tempo, o que é denominado de crédito ratio. Isso faz parte de um sistema econômico utilizado em uma série de trackers privados, com o intuito de melhorar a qualidade das transmissões, estimulando os peers a compartilharem mais. Assim, da mesma forma que um usuário pode acumular créditos, também pode ficar em dívida com o grupo, correndo o risco de ser banido. 42

Grupos Privados de Torrent são essencialmente colaborativos, são comunidades que se sustentam a partir de um trabalho e investimento humanos voluntários, que, em geral, não almejam lucro. Desde a base de dados, até a configuração estrutural das plataformas e organização dos processos interativos são tarefas que exigem grande trabalho e dedicação por parte dos voluntários, são grupos que promovem a cultura da participação. Ideia que, além de pertencer a um discurso que se popularizou como promessa para a promoção de novas tecnologias, é também uma categoria utilizada nos estudos acadêmicos para explicar um fenômeno cultural emergente e central nas práticas de mídia contemporâneas (SCHÄFER, 2011). Observamos, em grupos privados de torrent, três categorias de participação que foram apontadas por Schäfer (ibid.): acumulação da informação, arquivamento (organização) da informação e construção da interface e ferramentas. Estes são domínios que se sobrepõem, sendo que cada participante contribui com o aspecto que desejar, resultando na composição do artefato/site, que é o elemento agregador da comunidade e resultado do seu trabalho. Ainda assim, o mesmo tempo em que esses grupos necessitam da colaboração para se estruturar, nem sempre a motivação para a colaboração se dá por motivos altruístas, pois há uma série de outras motivações que levam os usuários a se engajarem ativamente nessas redes, desde, obviamente a possibilidade de aquisição de conteúdo e uma série de vantagens nesse sentido, até o desejo de encontrar reconhecimento dentro dos grupos e galgar posições hierárquicas que são, na maioria dos casos, estabelecidas no seio dessas comunidades. Percebemos, em nossas análises, que grande parte desses grupos possuem classificações hierárquicas de acordo com as quais os usuários atuam e que causam um grande impacto simbólico dentro das redes e na formação das identidades dos participantes.

Profissionalismo e Amadorismo A prática da pirataria se dá a partir da apropriação tecnológica, que é um processo resultante das relações entre os grupos humanos e as entidades/elementos técnicos e envolve, para isso, o desenvolvimento de habilidades práticas de cooperação que se desenvolve no uso das ferramentas técnicas e plataformas de mídia, envolvendo modos particulares de usos, narrações únicas que envolvem espaços, objetos e corpos. Para Certeau (1998), trata-se da possibilidade de recontextualização e transformação de entidades dadas em formas expressivas, em uma performance, uma narração que detém traços de liberdade individual para além do determinismo tecnológico. 43

De acordo com Mylonas (2012), as práticas de compartilhamento informal são a superação de obstáculos dados pela tecnologia, política ou leis, a partir de um uso particular da solução tecnológica, o que potencializa a participação dos indivíduos no espaço público e, por isso mesmo, acaba por diminuir a distância entre instâncias oficiais, legitimadas de produção ou distribuição e as pessoas comuns, em outras palavras, entre profissionais e amadores. Com o surgimento da Web 2.0, a internet tornou-se uma feira livre de soluções, serviços, ferramentas, levando ao ápice um processo que remonta ao início da era digital. Desde a popularização da computação pessoal, profissionais e hackers apropriam-se de ferramentas especializadas para criar soluções lucrativas, prosumers (TOFFLER, 1980) emergem como uma classe cultural que dá movimento a um fluxo de informações cada vez mais volumoso. O software livre (e todo o movimento político que o cerca) provou que, para produzir serviços, linguagens e soluções digitais de grande valor não é necessário um vínculo formal a instituições e, nem mesmo, possuir titulação profissional adquirida em bancos universitários; na era digital o autodidatismo é o grande produtor de conhecimento especializado, pois, conectados à internet, participando de fóruns de discussão e experimentando com as ferramentas, os usuários amadores puderam se tornar os principais agentes das novas formas de conhecimento. Leadbeater e Miller (2004), ao sugerir a categoria de pro-am (profissionaisamadores) chama a atenção para o fato de que as barreiras entre profissionalismo e amadorismo são muito difíceis de ser definidas, pois a flexibilidade dos processos interativos e a convergência de ferramentas e recursos - qual seja, a integração de tecnologias da inteligência (LEVY, 1993) cada vez mais complexas -, somados à infinita possibilidade de publicização e monetização, permitiram com que as pessoas descobrissem por conta própria muitas possibilidades de explorar esse novo mundo, sem depender de qualquer vínculo empregatício ou instituição que legitimasse as suas práticas. Trata-se de uma liberalização extrema do trabalho e do mercado, onde o empreendedorismo pessoal ficou cada vez mais fácil e o que era apenas um hobby ou curiosidade teve a possibilidade de vir a se tornar uma atividade lucrativa ou, senão, de resultar em produtos, serviços ou plataformas bem feitos e de grande utilidade e valor. Falando especificamente sobre o mercado audiovisual, é notável que plataformas como o YouTube (BURGESS & GREEN, 2009) viabilizaram o surgimento de novas audiências para novos enunciadores, indivíduos ou grupos que passaram a produzir seus próprios vídeos e uma linguagem própria para esse novo tipo de experiência, que é 44

condicionada a limitações estruturais de produção características do amadorismo. Um amadorismo que, todavia, tornou-se altamente lucrativo e conquistou visibilidade, sendo, muitas vezes reapropriado pelos grandes meios, seja quando copiam formas e modelos, quando contratam figuras com grande popularidade no mundo digital para atuarem em suas produções, quando aproveitam o público dessas plataformas para inserir anúncios ou, até mesmo, quando compram produções já prontas para retransmitir em seus canais de televisão. Os amadores passaram a ter a possibilidade de se profissionalizar, a partir dessas tantas ferramentas, sem depender de uma mediação ou legitimação de agentes já consolidados e produziram seu próprio mercado, ao encontrarem novas formas de diálogo com o público. Quanto à produção de plataformas informais de distribuição de conteúdo, também notamos que os seus modos de estruturação e organização apresentam-se em um grau de profissionalismo elevado, dada a sua qualidade, funcionalidade e eficiência, o que exige, como mencionamos anteriormente, um grande engajamento dos voluntários, que dedicam bastante tempo de suas vidas nesse trabalho, ainda que, em muitos casos, não seja um trabalho remunerado ou, talvez, ainda que não seja uma remuneração regularizada dentro dos âmbitos da legalidade. Considerações Finais O estudo das redes digitais e seu impacto na sociedade e, mais especificamente, o estudo da circulação do audiovisual nas redes digitais encontra grandes desafios metodológicos quando uma série de categorias que costumavam definir essencialmente as estruturas midiáticas tradicionais tornaram-se instáveis, diluindo dualidades que, antes, pareciam suficientes para delimitar campos e espectros analíticos. Apesar de os fenômenos aparentarem desenvolver características paradoxais, já que as categorias aqui apresentadas seriam, normalmente, autoexcludentes, notamos que elas coexistem e convivem, assumindo diversas combinações e arranjos dependendo do fenômeno específico, dentro de toda a complexidade e hibridez encontrada nas plataformas digitais de comunicação. As tecnologias da informação e comunicação provocaram mudanças irreversíveis no modo de se lidar com os bens culturais, uma transformação cujos agentes originamse das mais diversas bases culturais. A diluição dualidades aqui apresentadas não exclui a existência de opostos, mas faz notar que eles podem coexistir em soluções e ferramentas específicas e estão em constante diálogo e rearranjo. O espaço da circulação 45

digital tende à convergência crescente de meios e ferramentas, por isso as soluções de entrega e consumo de audiovisual valem-se da hibridização tecnológica, combinando e fazendo uso de incontáveis elementos técnicos. Demonstramos que o espaço tecnológico, ao passo que se estabiliza em serviços e práticas, também se transforma e adapta a interesses e condições particulares. Cabe, aos estudos da comunicação, da linguagem e da cultura, encontrar estratégias metodológicas que não estejam totalmente presas a essas dualidades, para dar conta dos processos que emergem nesse tipo de fenômeno. O presente artigo limitou-se a apenas apresentar a problematização dessas dualidades que, acredita-se, serem apenas algumas dentre uma série de categorias que se encontram em processo de dissolução na contemporaneidade e que ainda merecem estudo e discussão aprofundados, para uma compreensão ainda mais enriquecedora da sociedade e da cultura digital. Referências ALFRORD, W. D. To Steal a Book is an Elegant Offense: Intellectual Property Law in Chinese Civilization. Stanford: Stanford University Press, 1995. ANDERSON, C. Free: the Future of Radical Price. London: Business Books, 2009. ANDERSSON, J. The Quiet Agglomeration of Data: How Piracy is Made Mundane. International Journal of Communication. (6) 2012. 585-605. BARRON, A. Copyright Infringement, “free-riding” and the life world. In: BENTLY, L. Copyright and Piracy: an Interdisciplinary Critique. Cambridge: University Press, 2010. BHABHA, H. Nation and Narration. London: Routledge, 1990. BODÓ, B.; LAKATOS, Z. Theatrical Distribution and P2P Movie Piracy: a Survey of P2P Networks using Transactional Data. International Journal of Communication. (6) 2012. BURGESS, J.; GREEN, J. YouTube: Digital Media and Society Series. Cambridge: Polity Press, 2009. CARDOSO, G. et al. P2P in the Networked Future of European Cinema. International Journal of Communication. (6) 2012. 795-821. CASTELLS, M. O Poder da Identidade. São Paulo: Editora Paz e Terra, 1996. CERTEAU, M. de. Artes de Fazer: a Invenção do Cotidiano. Petrópolis: Editora Vozes, 1998. COHEN, B. Incentives Build Robustness in BitTorrent, 22 de maio de 2003. Disponível em Acesso em 23/06/14. CROXON, K. Promotional Piracy. Oxiconomics (2), 2007. CUNNINGHAM, S.; SILVER, J. Screen Distribution and the New King Kongs of the Online World. Basingstoke: Palgrave Macmillan, 2013. 46

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