Duas refutações do cogito \"noturno\" de Descartes: as leituras de Sartre e Bachelard

June 1, 2017 | Autor: Ronaldo Filho Manzi | Categoria: história da Filosofia, Existencialismo, Psicologia, Fenomenologia, Existencialismo
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DUAS REFUTAÇÕES DO COGITO “NOTURNO” DE DESCARTES: AS LEITURAS DE SARTRE E BACHELARD TWO REFUTATIONS OF DESCARTES’S COGITO “OF THE NIGHT”: THE READINGS OF SARTRE AND BACHELARD:

Ronaldo Manzi1

Resumo: É difícil avaliarmos a importância da obra de Descartes tanto para a filosofia moderna quanto contemporânea. Suas Meditações metafísicas parecem instigar várias interpretações apesar de ser escrita, aparentemente, de forma tão direta. Um exemplo clássico no século XX é a discordância entre Foucault e Derrida na interpretação sobre o estatuto da loucura naquelas meditações. Outro ponto é a discordância sobre a possibilidade da dúvida de se estar sonhando ou não como aparece na obra de Sartre e Bachelard. Este texto pretende mostrar um pouco da riqueza possível de interpretações da dúvida hiperbólica que nos propõe Descartes, principalmente levando em conta essas duas refutações possíveis da dúvida sobre o “eu sonhador” das meditações cartesianas relidas por Sartre e Bachelard. Palavras-chave: Dúvida. Sonho. Imaginário. Alucinação. Devaneio. Abstract: It is difficult to estimate the importance of the work of Descartes to modern and contemporary philosophy. His Metaphysical Meditations seems to instigate many different interpretations despite it is apparently written in a form so directly. A classic example in the twentieth century is the disagreement between Foucault and Derrida in the interpretation on the status of madness in those meditations. Another point is the disagreement on the possibility of the doubt of being or not dreaming as it appears in the work of Sartre and Bachelard. This text intends to show some of the richness of possible interpretations of the hyperbolic doubt that Descartes proposes to us, taking into account these two possible refutations of the doubt about the “I dreamer” of Cartesian’s meditations reread by Sartre and Bachelard. Keywords: Doubt. Dream. Imaginary. Hallucination. Reverie.

*** Certa vez Martin Heidegger escreveu que as “ideias extravagantes” nos levam a pensar. As Meditações de René Descartes é um exemplo clássico. Várias são as passagens desta obra que ainda discutimos hoje. Pensadores que parecem tão distantes em suas experiências de pensamento, de algum modo, têm um tema em comum: a forma em que Descartes desenvolveu sua argumentação até encontrar uma suposta certeza. Este texto pretende desenvolver um destes “momentos” de discussão do pensamento contemporâneo sobre o caminho cartesiano até a certeza. Estaremos em

Pós-Doutorando em Filosofia pela Universidade de São Paulo – USP. Bolsista FAPESP. E-mail: [email protected] 1

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volta da possibilidade de podermos afirmar se é possível ou não dizer “eu sonho” tal como Descartes nos faz pensar em sua primeira meditação.

1. Seria possível confundir o mundo dos sonhos com o mundo real?

Na Primeira meditação, Descartes escreve essa passagem em que pressupõe a possibilidade de duvidarmos se estamos ou não sonhando:

[...] contudo, devo aqui ponderar que sou homem, e, consequentemente, que tenho o hábito de dormir e de representar, em meus sonhos, as mesmas coisas, ou algumas vezes menos prováveis, que esses dementes despertos. Quantas vezes me aconteceu sonhar, durante a noite, que me encontrava neste lugar, vestido e próximo do fogo, apesar de me achar totalmente nu em minha cama? Afigura-seme agora que não é com olhos adormecidos que olho para este papel; que esta cabeça que eu movo não se encontra adormecida; que é com intento deliberado que estendo esta mão e que a sinto: o que sucede no sono não parece ser tão claro nem tão inconfundível quanto tudo isso. Porém, meditando diligentemente sobre isso, recordo-me de haver sido muitas vezes enganado, quando dormia, por ilusões análogas. E, persistindo nesta meditação, percebo tão claramente que não existem quaisquer indícios categóricos, nem sinais bastante seguros por meio dos quais se possa fazer uma nítida distinção entre a vigília e o sono, que me sinto completamente assombrado: e meu assombro é tanto que quase me convence de que estou dormindo (DESCARTES, 1999, p. 251).

É esse assombro de Descartes que nos interessa: é bem possível que se possa estar sonhando. Este seria um dos passos da dúvida hiperbólica: o caso da ilusão e da possibilidade de nos enganarmos. Por mais extravagante que seja o exemplo do sonho, há sim, para Descartes, uma possibilidade de ele ser confundido com algo real, como testemunha nesta carta: “depois de o sono ter-me, por muito tempo, feito o pensamento percorrer bosques, jardins e palácios encantados – onde se experimentam todos os prazeres imaginados nas Fábulas –, misturo insensivelmente meus devaneios diurnos aos da noite; e quando percebo estar acordado, é tão-somente para que meu contentamento seja mais perfeito” (DESCARTES apud MATOS, 1997, p. 109). Quando Descartes diz que não percebe algum indício seguro que possa fazer uma nítida distinção entre a vigília e o sono, ele diz, ao mesmo tempo, que há um grão de verdade no sonho. Nada é tão absurdo no sonho que não possamos reconhecer algum

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traço de verdade. Eis como Descartes afirma isso seguindo a dúvida hiperbólica do sonho:

[...] presumamos, então, que nos encontramos dormindo e que todas essas particularidades, ou seja, que abrimos os olhos, que movemos a cabeça, que estendemos as mãos, e coisas análogas, não passam de ilusões; e consideremos que talvez nossas mãos, assim como todo o nosso corpo, não são como os vemos. Contudo, é necessário ao menos confessar que as coisas que nos são apresentadas durante o sono são como quadros e pinturas, que só podem ser formados à semelhança de alguma coisa real e verdadeira; e que, ao menos desta maneira, essas coisas gerais, isto é, olhos, cabeça, mãos e todo o resto do corpo, não são coisas imaginárias, e sim verdadeiras e existentes (DESCARTES, 1999, p. 251).

Assim, Descartes segue um caminho que não exclui as possibilidades de erro, ilusão (tal como o sonho) e loucura. Descartes parte da constatação de que os sentidos algumas vezes nos enganam. Segue mostrando que a loucura é possível, apesar de se tratar de algo extraordinário. E, antes de colocar a possibilidade da existência de um Gênio Maligno (possibilidade mais extrema de Descartes para duvidar de tudo), ele nos diz que é quase impossível sabermos se estamos ou não sonhando, pois sonhamos coisas que reconhecemos ter alguma relação com a realidade. É como se Descartes estivesse fazendo uma “crescente”: da dúvida dos sentidos até o Gênio Maligno. Não por acaso Jacques Derrida vê nisso não só uma continuidade, mas também uma forma de deixar mais “plausível”, mais “natural”, o raciocínio de Descartes: parece exagerado e extraordinário pensar que sou louco, “então vamos pensar um argumento mais profundo e, ao mesmo tempo, mais próximo”: o do sonho – algo que ninguém pode negar que já vivenciou (mesmo porque seria difícil alguém acompanhar o argumento da loucura, uma vez que a pessoa mesma diz que pode estar louca, não nos dando muito motivo para acompanhar o seu raciocínio). Assim, “ele [o exemplo do sonho] constitui, na ordem metódica que é aqui a nossa, a exasperação hiperbólica da hipótese da loucura” (DERRIDA, 1967, p. 79). Por que exasperação hiperbólica? Ao invés de excluir a loucura da sua argumentação, Descartes estaria realizando, com o sonho, um argumento ainda mais extravagante, segundo Derrida: “o que é preciso aqui reter é que, desse ponto de vista, aquele que dorme ou que sonha é mais louco do que o louco. Ou, ao menos, aquele que sonha, aos olhos do problema do conhecimento que interessa aqui a Descartes, está mais distante da percepção verdadeira

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do que o louco” (DERRIDA, 1967, p. 79). O louco pode até se distanciar da verdade, das ideias distintas, mas isso não significa que ele não tenha nenhuma ideia distinta. No caso do sonho, mesmo que aquilo que é sonhado tenha relação com a realidade que vivenciamos quando estamos acordados, não há como diferenciar se se trata ou não de uma ideia distinta. Derrida complementa: o exemplo da loucura “não cobre a totalidade do campo da percepção sensível. O louco não se engana sempre e em tudo; ele não se engana tanto, ele não é jamais tão louco” (DERRIDA, 1967, p. 79). Se o louco não se engana em tudo, se ele possui algum grão de verdade, nada impede que ele também pense. Se isso for verdade, Derrida pode afirmar que eu penso, eu existo, mesmo que eu seja louco. Nada impede que essa afirmação seja verdadeira: “que eu seja ou não louco, Cogito, sum. [...] mesmo que a totalidade do mundo não exista, mesmo que o não sentido tenha invadido a totalidade do mundo, cumpre-se o conteúdo do meu pensamento, eu sou desde que eu pense” (DERRIDA, 1967, pp. 8687).

2. As características da imagem Entretanto, em 1940, em O imaginário – psicologia fenomenológica do imaginário, Jean-Paul Sartre já havia proposto uma teoria que poderia colocar em dúvida essa interpretação de Derrida. O argumento do sonho não poderia ter validade na dúvida hiperbólica cartesiana. Sartre segue aqui a fenomenologia husserliana tentando mostrar como o mundo do sonho não se passa como o mundo real, impossibilitando-nos de duvidar se estamos ou não sonhando. Na verdade, Sartre busca mostrar que o mundo dos sonhos participa do mundo imaginário. Quanto a esta conclusão, não há problemas. Mas, para o fenomenólogo, isso tem um sentido muito específico. A imaginação teria como função transcender ou aniquilar a realidade do mundo percebido, devido a uma intencionalidade que teria a capacidade de aniquilar o mundo. No olhar fenomenológico, “o real e o imaginário, por essência, não podem coexistir. Trata-se de dois tipos de objetos, de sentimentos e de condutas inteiramente irredutíveis” (SARTRE, 1940, p. 188). Ora, seguindo Edmund Husserl, somente a consciência perceptiva tem um contato direto com o mundo. Isto porque somente na percepção o objeto está em proximidade, presente “em carne e osso” – qualquer outro modo nos levaria a um objeto não-presente, como é o caso da imaginação. 56

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Desde 1936, em sua primeira obra, o objetivo de Sartre era mostrar como “a imagem é um certo tipo de consciência. A imagem é um ato e não uma coisa. A imagem é consciência de alguma coisa” (SARTRE, 1989, p. 120). Para chegar nesta conclusão, o filósofo seguiu um caminho crítico aos sistemas metafísicos e ao esforço dos psicólogos para encontrar um método positivo de abordar a imagem. Ele nos mostrava como continuava vivo o associacionismo e como a fenomenologia era, principalmente aquela apresentada em Ideias para uma fenomenologia pura e para uma filosofia fenomenológica (1912), não só totalmente diferente das ciências psicológicas, como apontava um novo modo de pensar: ela exigia que se expulsasse todos os “habitantes” da consciência, “libertando o mundo psíquico de um grande peso” (SARTRE, 1989, p.110). Neste caminho, Sartre pretendia buscar um novo sentido de imagem que não fosse comparável à percepção (como uma percepção fraca, por exemplo). Em A imaginação, Sartre descrevia a imagem sob quatro características:

1) como uma consciência: imaginar é ter um certo tipo de consciência como explicita Carlos Alberto Ribeiro de Moura: “se todos os atos têm relação a um objeto, essa relação é diferente de um tipo de ato a outro e identifica-se à natureza da intenção. É o caráter da intenção que é distinto na percepção, na representação por imagens ou na representação por signos” (MOURA, 1989, p. 79); 2) como um fenômeno de “quase-observação”: há um saber imediato da imagem, pois como ela se dá como um todo, como aquilo que tenho consciência, eu sei o que imagino sem apreender nada dela (porque eu constituo a imagem). Por isso uma quase-observação: uma observação que não apreende nada; 3) algo em que a consciência imaginativa põe seu objeto como um nada: a imagem se põe como um certo nada, porque o objeto intencional imaginado tem uma posição de ausência, de inexistente (“o ato negativo é constitutivo da imagem” (SARTRE, 1940, p. 232); 4) como espontaneidade: porque a consciência imaginativa produz e conserva seu objeto em imagem.

O importante é destacarmos como o problema da imaginação nos leva a pensar uma relação diferente com o mundo. Como se pode perceber, a consciência imaginativa, 57

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descrita por Sartre, nos leva a pensar numa certa negação do mundo percebido, pois a propriedade da imagem é precisamente a irrealidade, o que jamais nos deixaria confundir com o mundo da percepção: [...] a consciência, para produzir o objeto em imagem, ‘Carlos VIII’, deve poder negar a realidade do quadro e só poderá negá-lo tomando um recuo em relação à realidade vista na sua totalidade. Pôr uma imagem é constituir um objeto à margem da totalidade do real, é, portanto, manter o real à distância, liberar-se dele, numa palavra, negá-lo. [...] A condição para que uma consciência possa imaginar é então dupla: é preciso, ao mesmo tempo, que ela possa colocar o mundo na sua totalidade sintética e, ao mesmo tempo, que ela possa colocar o objeto imaginado como fora de alcance em relação a esse conjunto sintético, quer dizer, colocar o mundo como um nada em relação à imagem (SARTRE, 1940, p. 233).

Mais a frente acrescenta: “pois uma imagem não é o mundo-negado, puramente e simplesmente, ela é sempre o mundo negado de um certo ponto de vista, precisamente aquele que permite colocar a ausência ou a inexistência de tal objeto que presentificamos ‘em imagem’” (SARTRE, 1940, p. 234). Em Descartes podemos ter uma confusão entre a imaginação e a percepção, porque na filosofia moderna a questão da representação (seja de uma imagem, seja de algo percebido) é tomada enquanto um “habitante” da consciência: nos dois casos temos uma representação na consciência. Com Husserl, mais especificamente com a fenomenologia, há um “esvaziamento” da consciência. Por exemplo: na percepção a coisa está na minha frente e não na minha consciência; na imaginação o que há é uma negação do mundo. Assim, dificilmente podemos confundir um e outro. Husserl destaca que toda consciência é consciência de algo – a consciência está sempre voltada a algo (que não está necessariamente na nossa frente). Com isso, Husserl nega que o domínio da fenomenologia seja da imanência dos objetos à consciência. A fenomenologia pretende ser o estudo dos fenômenos, quer dizer, do que aparece à consciência. Isso faz com que Husserl rompa com um princípio de imanência (tudo aquilo de que somos conscientes (o mundo da representação) está na consciência) – um pressuposto que comanda a filosofia clássica. Para ficar mais claro, podemos lembrar que, numa análise real do vivido, Husserl denomina noese todo componente próprio do vivido intencional; e, noema seu correlato intencional. Assim,

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Duas refutações do cogito “noturno” de Descartes [...] em tudo é preciso tomar o correlato noemático, que aqui se chama ‘sentido’ (em significação bem ampliada), exatamente assim como ele está contido de maneira ‘imanente’ no vivido de percepção, de julgamento, de prazer, etc., isto é, tal como nos é oferecido por ele, se interrogarmos puramente esse vivido mesmo (HUSSERL, 2006, p. 204).

Com esse correlato, não se trata mais de um mundo representado à consciência enquanto conteúdo mental, mas de algo vivido enquanto sentido para a consciência. Com a redução fenomenológica proposta por Husserl, não se coloca em questão a existência da coisa percebida, mas o que é vivido pela consciência como dado eidético – o sentido essencial do vivido daquilo que aparece enquanto tal, sem precisar buscar qualquer tipo de adequação entre um conteúdo mental e a coisa. O exemplo da árvore é clássico em Husserl:

[...] a árvore pura e simples, a coisa na natureza, é tudo menos esse percebido de árvore como tal, que, como sentido perceptivo, pertence inseparavelmente à percepção. A árvore pura e simples pode pegar fogo, pode ser dissolvida em seus elementos químicos etc. Mas o sentido – o sentido desta percepção, que é algo necessariamente inerente à essência dela – não pode pegar fogo, não possui elementos químicos, nem forças, nem qualidades reais (HUSSERL, 2006, p. 206).

O problema pode ser colocado em termos ainda mais claros: “enquanto os vividos forem tratados como ‘conteúdos’ ou como ‘elementos’ psíquicos [...] não se poderá avançar um só passo” (HUSSERL, 2006, p. 247-248). Sendo assim, o exemplo da comparar a cera em estado sólido e em estado líquido, tal como formula Descartes, não muda em nada o sentido da cera. A consciência não é uma espécie de “caixa de Pandora” cheia de conteúdos mentais em que alguns poderiam ser guardados ou não. É essa teoria que entusiasmava Jean-Paul Sartre em 1936 ao escrever estas palavras em A imaginação: [...] mas, o ‘centauro que toca flauta’ é uma representação, na medida em que chamamos representação o que é representado e não no sentido em que representação seria um nome para um estado psíquico. O centauro em si mesmo não é, naturalmente, nada de psíquico, ele não existe na alma nem na consciência, nem em parte alguma; não existe absolutamente, é em seu todo invenção. Para ser mais exato: o estado de consciência de invenção é invenção desse centauro (SARTRE, 1989, p. 109).

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Tendo isso em vista, para Sartre, Descartes realiza uma espécie de sofisma. Por quê?

3. O suposto sofismo de Descartes

O que acontece com uma consciência que sonha? Para Sartre, ela não tem nenhuma relação com a realidade, com a presença das coisas. O sonho seria a realização de um imaginário “fechado”, como se o sonho fosse um mundo fechado (meu mundo imaginário, meu mundo próprio, com uma estória própria e que, por isso, não tem nenhuma relação com a existência das coisas). Entretanto, quando sonho, no momento em que sonho, eu poderia saber se estou ou não sonhando? É verdade que é possível que no sonho eu possa me imaginar percebendo as coisas. Contudo, Sartre afirma: é impossível eu duvidar que estou percebendo algo quando estou desperto. Posso até fingir que sim, mas se trata de um fingimento: finjo que seja possível que nesse momento não estou percebendo o mundo etc., mas o próprio sujeito sabe que essa suposição é absurda (cf. SARTRE, 1940, p. 207). Sartre acredita que essa suposição é tão absurda quanto a proposição que Descartes nega veementemente: imaginemos que eu não existisse etc. (cf. SARTRE, 1940, p. 207). Ora, essa é a primeira certeza para Descartes: a certeza da sua existência (eu penso, logo existo) – a reflexão de que se está pensando é suficiente para deixar de duvidar que se existe: “[...] podemos falar sem saber que falamos, respirar sem saber que respiramos. Mas eu não posso pensar que eu falo sem saber que eu penso que eu falo” (SARTRE, 1940, p. 195). Franklin Leopoldo e Silva comenta esta passagem:

penso que respiro, logo existo é rigorosamente equivalente a penso, logo existo. E isso vale para todos os argumentos semelhantes, o que indica que pensamento e existência do pensamento são indissociáveis. É isso o que significa a descoberta de si mesmo como ser pensante (LEOPOLDO E SILVA, 1993, p. 54).

É verdade que posso até duvidar que o objeto que percebo seja ou não real, mas não posso duvidar que estou percebendo algo. Segundo Sartre, Descartes mesmo toma como verdadeiro que o homem que percebe está consciente de que percebe: “sem dúvida há uma fórmula familiar: ‘me belisco para saber se não estou sonhando’, mas

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trata-se unicamente de uma metáfora que não corresponde a nada concreto no espírito” (SARTRE, 1940, p. 207). Essa conclusão de Sartre vem de sua concepção da consciência enquanto reflexiva e pré-reflexiva. A seu ver, no momento em que a consciência é reflexiva (momento em que se poderia dizer reflexivamente que “eu estou sonhando”), o sujeito está desperto e, por isso, ele está, de fato, consciente que está percebendo o mundo. Não é o caso quando se está dormindo: no mundo dos sonhos vivemos numa consciência primitiva e irrefletida. Por isto, quando eu digo “eu sonho”, pronuncio algo a partir da consciência reflexiva. O sofisma de Descartes estaria exatamente no questionamento reflexivo sobre se se está sonhando ou não (isso seria impossível para a consciência em estado nãoreflexivo – dormindo). Na verdade, Sartre propõe que é absurda a afirmação de sonhar na forma do presente do indicativo: jamais posso dizer “eu sonho” (isso pressupõe que a consciência esteja desperta). O que poderíamos dizer é: “eu sonhei” ou “eu sonharei” – o sonho é ou uma descrição do que se viveu ou do que é desejado projetivamente. Sendo assim, o fato de saber que se sonha é um ato reflexivo ou uma conclusão: “então aquilo que vivenciei era um sonho” – a consciência precisa voltar a si mesma para anunciar o que vivenciou de forma irrefletida. Tendo isto em vista, eis a conclusão de Sartre sobre aquela passagem de Descartes: “eu percebo é negar que eu sonho, ou se se quiser, é uma motivação suficiente e necessária para eu afirmar que eu não sonho” (SARTRE, 1940, p. 209); ainda: “diríamos que o mundo do sonho não se explica senão se admitirmos que a consciência que sonha é privada por essência da faculdade de perceber” (SARTRE, 1940, p. 212).

4. A questão da crença

Temos, assim, uma diferença de presença para a consciência entre a percepção e o sonho. Não posso duvidar que estou percebendo ou não, porque a coisa está presente na minha frente em carne e osso (o que percebo é uma evidencia – o que é presente e se apresenta para mim sem qualquer possibilidade de se estar sonhando ou não). O sonho tem, para Sartre, outro estatuto: o que se passa no sonho é uma crença. Surge aqui uma aparente dificuldade. Posso até crer em algo que não tenho certeza. Por exemplo, posso crer na existência de um amor sem saber se ele é real ou não. Mas, de qualquer modo, nessa crença, tenho consciência de crer em algo mesmo 61

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que eu não possa prová-lo. Ter uma crença não significa partilhar uma indistinção com o sonho, pois no momento em que creio em algo “duvidoso”, tenho certeza que creio (há o pensamento de crença, tal como a certeza da existência de si: se penso é porque existo de fato; se creio é porque existo de fato). Em outras palavras, é inegável que haja um pensamento de crença: há uma reflexibilidade na crença de algo duvidoso. A diferença com o sonho está aqui: “o sonho é uma consciência que não pode sair da atitude imaginária” (SARTRE, 1940, p. 211), já a crença em geral é reflexiva. O mundo dos sonhos não teria, portanto, nenhuma relação com o mundo real (e nem poderia ser “corrigido” pela percepção). Seria um mundo em que o sujeito crê e não um mundo evidente. Poderíamos até dizer que nos sonhos vivemos numa “atmosfera de mundo”, mas não mais do que isso. O sujeito, no sonho, entra no seu “jogo”: ele entra no onírico e crê no que vivencia (ao menos enquanto está sonhando, pois nesse momento ele não pode refletir e não tem como ter distância da sua crença). Ele está, literalmente, mergulhado na sua crença e “[...] é por isso que ela [a causa do recalque] está na incapacidade de apreender o que quer que seja do real sob a forma de realidade” (SARTRE, 1940, p. 216). Desperto sabemos que sonhamos e podemos decidir acreditar na estória sonhada, assim como ao lermos um livro podemos ficar tão fascinados pela estória que podemos acreditar nela: é “[...] esse gênero de fascinação sem posição de existência que denomino crença”, diz Sartre (1940, p. 217). Mas poderíamos nos questionar: por que creio nos meus sonhos? Sua resposta é: porque há algo mágico, fascinante, no imaginário, principalmente diurno, o que lhe daria um caráter fatal. “Para falar a verdade”, escreve Sartre, “uma consciência que sonha é sempre consciência não-tética dela mesma na medida em que está fascinada pelo sonho, mas ela perdeu seu ser-no-mundo e não reencontrará senão desperta” (SARTRE, 1940, p. 219). Ficamos fascinados porque a estória sonhada nos surpreende, uma vez que não segue a lógica da consciência reflexiva. Ao dormir, vivenciamos um mundo em que tudo pode acontecer, sem que haja realmente uma escolha do sujeito (que exigiria uma consciência reflexiva). “Assim, contrariamente àquilo que poderíamos crer, o mundo imaginário se dá como um mundo sem liberdade: ele não é mais determinado, ele é o avesso da liberdade, ele é fatal” (SARTRE, 1940, p. 218). A conclusão de Sartre é que “o sonho é uma experiência privilegiada que pode nos ajudar a conceber o que seria uma consciência que teria perdido seu ‘ser-no-mundo’ 62

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e que seria privada, no mesmo golpe, da categoria do real” (SARTRE, 1940, p. 225). Daí porque Sartre associa e desassocia o sonho com a alucinação, pois a pessoa que alucina sabe que não se trata de algo real, mas de uma fantasia – de algo que se passa no imaginário. As pessoas que têm alucinação testemunham isso: confessam que tomam uma imagem como uma percepção. Eis a questão central de Sartre: “[...] como o doente pode crer na realidade de uma imagem que se dá por essência como um irreal?” (SARTRE, 1940, p. 195). Todo problema está aqui na crença: o alucinado crê na alucinação mesmo sabendo que não se trata de algo real. Por exemplo, o doente pode nos dizer que está vendo uma lagartixa na parede; bem, se o médico for lá e realmente colocar uma lagartixa na parede o doente logo diz: “mas essa lagartixa é real!”. É fácil concluir que a alucinação é declaradamente algo irreal. A questão é que o doente se fia nessa irrealidade. Aliás, “o doente não fica surpreso pela sua alucinação, ele não a contempla: ele a realiza” (SARTRE, 1940, p. 199). É o próprio sujeito, pela sua atividade criadora, que decide crer no seu imaginário – ele organiza sua vida a partir das suas alucinações, mesmo sabendo que elas não são reais. Afinal, “[...] sem dúvida, antes de tudo, o doente se adapta às suas visões, mas as aparições e as vozes se deixam penetrar e, dessa acomodação recíproca, resulta sem dúvida um comportamento geral do doente que poderíamos chamar a conduta alucinatória” (SARTRE, 1940, p. 205). Vale dizer que Sartre não está sozinho nessa interpretação da alucinação. Maurice Merleau-Ponty compreendeu profundamente esse ponto da teoria sartreana e corrobora a posição de Sartre na Fenomenologia da percepção (1945): na alucinação o sujeito sabe, de algum modo, que ela não é da mesma ordem que o real. “O fato capital é que a maior parte do tempo os doentes distinguem suas alucinações de suas percepções” (MERLEAU-PONTY, 1967, p. 385) – o alucinado teria uma espécie de saber de sua crença, sendo capaz de diferenciar sua alucinação de uma percepção real. Esta tese é polêmica, uma vez que, normalmente, se considera a alucinação como uma interrupção total da relação do sujeito com o mundo, fazendo com que a falha dessa relação seja responsável pela alucinação. Assim como Sartre, Merleau-Ponty pensa que, mesmo na alucinação, o sujeito não interrompe completamente aquela relação – há ainda uma crença no mundo, mesmo que ela se dê de um modo projetivo. Sabendo que se trata de uma alucinação, isso nos mostra que “[...] o mundo mórbido está ciente de que lhe falta algo para ser uma ‘realidade’” (MERLEAUPONTY, 1967, p. 385-386). Dito de outro modo, quem alucina não crê do mesmo modo 63

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na alucinação como crê na percepção. Há uma diferença: a alucinação não é real, ela é quase-real – há algo que escapa da alucinação para que ela seja real. Mas isto não impede o sujeito de crer em sua realidade – é como se a alucinação a usurpasse. Por que então crer em algo que se sabe que não corresponde com a realidade? O que se pode dizer é que, por algum motivo que está provavelmente relacionado à estória do sujeito, ele cria um mundo que parece valer mais do que a realidade. Uma criação que não se dá ao acaso. O sujeito, de algum modo, evoca uma pseudo-presença do que vivenciou para “[...] fabricar com os restos desse mundo um meio factício conforme a intenção total de seu ser” (MERLEAU-PONTY, 1967, p. 393). Um mundo, é verdade, criado por seus fantasmas que ele não pode partilhar ou mesmo tocar. Sendo assim, embora possamos associar o sonho à alucinação, Sartre não pode admitir que o sujeito cartesiano possa realmente duvidar se está sonhando ou não. Ele pode até crer em seus sonhos (como um doente crê em sua alucinação), mas não pode colocar em questão se está ou não sonhando como propõe Descartes. É impossível que o sujeito diga “eu sonho” ou “eu estou sonhando”; todavia, é possível que ele diga “eu alucino”.

5. Devaneios versus sonhos

Vinte anos após a publicação de O imaginário de Sartre, Gaston Bachelard propõe uma leitura que, guardadas as divergências, também converge na refutação do argumento dos sonhos da dúvida cartesiana. Bachelard escreve a Poética do devaneio em 1960 buscando compreender o que se passa na consciência diante de uma imagem poética. Esse não é o primeiro livro de Bachelard sobre as imagens poéticas, mas é nessa obra que ele se volta à questão do sonho em Descartes. O filósofo diz seguir o método fenomenológico e tem como objetivo trazer à luz a consciência de um sujeito maravilhado pelas imagens poéticas. Quer dizer, um método que tentaria se voltar à consciência diante dessas imagens, o que nos leva a “[...] tentar a comunicação com a consciência criante do poeta” (BACHELARD, 1988, p. 1). Não estamos, portanto, num primeiro momento, tão distantes do pensamento sartreano. Também Bachelard está investigando a consciência imaginante que seria, a seu ver, uma consciência de maravilhamento (que está envolta num reino de valores), diferentemente 64

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da consciência de racionalidade que teria como objetivo o encadeamento de verdades (sem sonhos, sem devaneios). Segundo Bachelard, a exigência fenomenológica em relação às imagens poética “resume-se em acentuar-lhes a virtude de origem, em apreender o próprio ser de sua originalidade e em beneficiar-se, assim, da insigne produtividade psíquica que é a da imaginação” (BACHELARD, 1988, p. 2-3). É como se cada imagem oferecesse uma possibilidade de nova descoberta do psíquico. À primeira vista, o trabalho de Bachelard se coadunaria melhor com a psicanálise. Mas não é o caso:

[...] a imagem poética ilumina com tal luz a consciência, que é vão procurar-lhe antecedentes inconscientes. Pelo menos, a fenomenologia tem boas razões para tomar a imagem poética em seu próprio ser, em ruptura com um ser antecedente, como uma conquista positiva da palavra (BACHELARD, 1988, p. 3).

Ou seja, estamos, de fato, numa pesquisa sobre a consciência. Entretanto, a proposta de Bachelard parece estranha à fenomenologia: ele quer pensar a poética do devaneio – uma espécie de fenomenologia do devaneio. Bem, se se está em devaneio, estaríamos no reino da fenomenologia? Essa é uma especificidade da proposta de Bachelard: voltar-se à intencionalidade descrita pela fenomenologia, mas a uma intencionalidade bem específica: do imaginário poético que tem uma função de irrealidade – um mundo que cremos, porque nós mesmos o criamos (o devaneio poético). E ele acrescenta: “[...] para nós, toda tomada de consciência é um crescimento de consciência, um aumento de luz, um reforço da coerência psíquica” (BACHELARD, 1988, p. 5). Tendo o imaginário poético como tema, Bachelard propõe especificar o devir psíquico do ato de criação, de leitura, de devaneios com as palavras. Mas ele não deixa de dizer que se trata de um “mundo particular” – o “mundo” daquele que devaneia, o que nos deixa bem próximos da fenomenologia husserliana: posso muito bem imaginar isso ou aquilo, sem ter a pretensão que essas imagens tenham qualquer valor objetivo (elas têm somente valor imaginário). Bachelard começa distinguindo o sonho do devaneio. Trata-se, a seu ver, de mundos distintos. Por um lado, a vida noturna; por outro, a vida diurna. O que nos interessa nesse texto é o que Bachelard tem a nos dizer sobre o sonho e não sobre o devaneio, apesar de ele mesmo declarar que não gosta muito do tema:

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Duas refutações do cogito “noturno” de Descartes [...] muitas vezes, confesso, o contador de sonhos me aborrece. Seu sonho talvez pudesse interessar-me se fosse francamente fabricado. Mas ouvir uma narração gloriosa de sua insanidade! Ainda não consegui elucidar psicanaliticamente esse aborrecimento durante a narração dos sonhos dos outros. Pode ser que eu tenha conservado rigores de racionalista. Não sigo docilmente a narração de uma incoerência reivindicada. Suspeito sempre que parte das tolices relatadas sejam tolices inventadas (BACHELARD, 1988, p. 11).

Mesmo tendo certo desdém em relação ao sonho, Bachelard nos dá uma precisa contribuição da interpretação de Descartes associando, já nessa confissão, o sonho com a insanidade. A primeira coisa que ele nota é como uma pessoa parece surpresa ao nos contar seus sonhos. Ele parece narrar uma estória que não é sua, como se o sonho tivesse sido vivido por outra pessoa. Isso indica uma ruptura: não há uma identidade entre o sujeito que conta a estória e o sujeito que a sonhou. Há uma ruptura entre a consciência desperta e a consciência não-desperta. Bachelard faz inclusive uma outra distinção: por um lado temos o eu; por outro, um não-eu. Entretanto, um não-eu meu: esse é o mundo noturno do sonhador. Nessa concepção, a dúvida de Descartes sobre o sonho perde sentido para Bachelard. Não há como confundir se se está sonhando ou não por uma razão aparentemente “simples”: não há cogito no sonho. Eis suas palavras:

[...] nos meus quarenta anos de vida filosófica, tenho ouvido dizer que a filosofia conheceu um novo ponto de partida com o cogito ergo sum de Descartes. Eu mesmo tive de enunciar esta lição inicial. Na ordem dos pensamentos, é uma divisa tão clara! Mas não estaríamos perturbando o dogmatismo se perguntássemos ao sonhador se ele está bem certo de ser o ser que sonha o seu sonho? Semelhante questão quase não perturba um Descartes. Para ele, pensar, querer, amar, sonhar são sempre certo de que era ele, muito ele, somente ele, o único a ter paixões e sabedoria. Um sonhador, porém, um verdadeiro sonhador, que atravessa as loucuras da noite, estará tão seguro de ser ele mesmo? De nossa parte, duvidamos disso. Sempre recuamos ante a análise dos sonhos da noite. E assim chegamos a esta distinção algo sumária e que, no entanto, deveria esclarecer as nossas investigações. O sonhador noturno é incapaz de enunciar um cogito. O sonho noturno é um sonho sem sonhador. Ao contrário, o sonhador de devaneios tem consciência bastante para dizer: ‘Sou eu que sonho o devaneio, sou eu que estou feliz por sonhar o meu devaneio, sou eu que estou feliz por graça deste lazer em que já não sou obrigado a pensar’ (BACHELARD, 1988, p. 22).

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No IV capítulo dessa obra em que ele trata diretamente dos sonhos (O cogito do sonhador), Bachelard busca mostrar que a noite não nos pertence – ao menos ao eu consciente. Nos sonhos, vivemos numa espécie de estado pré-subjetivo. Daí ele começar esse capítulo com essas palavras: “o sonho da noite não nos pertence. Não é um bem nosso. É, em relação a nós, um raptor, o mais desconcertante dos raptores: rapta o nosso ser” (BACHELARD, 1988, p. 139). É como se entrássemos na escuridão do nosso ser. A questão para Bachelard é, portanto, ontológica ao tratar do sonho e não mais fenomenológica (como se dá no devaneio): “o sonho noturno, nas suas profundezas, é um mistério de ontologia” (BACHELARD, 1988, p. 143). Sendo mais extenso:

[...] na vida noturna há profundezas nas quais nos sepultamos, nas quais não temos mais vontade de viver. Nessas profundezas, intimamente, roçamos o nada, o nosso nada. Haverá outros nadas além do nada do nosso ser? Todas as aniquilações da noite convergem para esse nada do ser. No limite extremo, os sonhos absolutos nos mergulham no universo do Nada (BACHELARD, 1988, p. 140).

O contato com o nada que trabalha no fundo do nosso sonho não pode ser de um cogito: “esses sonhos noturnos, esses sonhos de extrema noite, não podem ser experiências onde se formula um cogito. O sujeito perde neles o seu ser – são sonhos sem sujeito” (BACHELARD, 1988, p. 141). A narrativa do sonho, que se dá exclusivamente por um sujeito desperto, é de uma experiência que ele não se reconhece – é a narrativa de um ser que foge de seu ser. Bachelard insiste na inexistência de um cogito no sonho:

[...] é então que um filósofo do sonho se pergunta: posso verdadeiramente passar do sonho noturno à existência do sujeito sonhante, como o filósofo lúcido passa do pensamento – de um pensamento qualquer – à existência do seu ser pensante? Noutras palavras, para seguir os hábitos da linguagem filosófica, não nos parece que se possa falar de um cogito válido para um sonhador de sonho noturno. É certamente difícil traçar a fronteira que separa os domínios da Psique noturna e da Psique diurna, todavia essa fronteira existe. Há dois centros de ser em nós, porém o centro noturno é um centro de concentração vaporoso. Não é um ‘sujeito’ (BACHELARD, 1988, p. 142).

Bachelard propõe inclusive uma nova forma de pensar o cogito: “sonho, logo sou substância que sonha” (BACHELARD, 1988, p. 143) – não um eu, mas uma substância. No sonho o eu se dissolve. Portanto, não há como colocar em dúvida se

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estamos sonhando ou não – não há como formular o cogito no sonho tal como “eu sonho”. Por outro lado, podemos duvidar se estamos em devaneio ou não, porque, a seu ver, há um cogito do devaneio:

[...] tal é, para nós, a diferença radical entre sonho noturno e devaneio, diferença essa que pertence ao âmbito da fenomenologia: ao passo que o sonhador do sonho noturno é uma sombra que perdeu seu próprio eu, o sonhador de devaneio, se for um pouco filósofo, pode, no centro do seu eu sonhador, formular um cogito. Noutras palavras, o devaneio é uma atividade onírica na qual subsiste uma clareza de consciência. O sonhador de devaneio está presente no seu devaneio (BACHELARD, 1988, p. 144).

Do devaneio ao sonho há uma fronteira: um eu. Assim, diferentemente de Sartre, a interpretação de Bachelard não diz da impossibilidade do cogito do sonhador devido à consciência noturna ser irrefletida. A impossibilidade do cogito do sonhador vem da questão de nosso ser ser “raptado” à noite (em que o eu se dissolve). Mais importante do que defender a posição sartriana ou bachelardiana, nossa intenção, ao mostrar duas interpretações de um pequeno trecho das Meditações, foi apontar a riqueza legada pela obra de Descartes. Talvez toda esta reflexão só teve uma pretensão: mostrar como uma “ideia extravagante”, como a possibilidade de cogitar se se está sonhando, pode ser refutada de formas tão diferentes convergindo a uma mesma conclusão: à impossibilidade de dizer “eu sonho”.

Referências BACHELARD, G. A poética do devaneio. Tradução de Antonio de Pádua Danesi. São Paulo: Martins Fontes, 1988. DERRIDA, J. L’écriture et la différence. Paris: Seuil, 1967. DESCARTES, R. Meditações Metafísicas. In:______. Descartes (Os pensadores). Tradução de Enrico Corvisieri. São Paulo: Nova Cultural, 1999. HUSSERL, E. Ideias para uma fenomenologia pura e para uma filosofia fenomenológica. Tradução de Márcio Suzuki. Aparecida: Ideias & Letras, 2006. LEOPOLDO E SILVA, F. Descartes – a Metafísica da modernidade. São Paulo: Moderna, 1993. MATOS, O. Filosofia a polifonia da razão: Filosofia e Educação. São Paulo: Scipione, 1997. MERLEAU-PONTY, M. Phénoménologie de la Perception. Paris: Gallimard, 1967. MOURA, C. A. R.. Crítica da Razão Fenomenológica. São Paulo: Nova Stella/USP, 1989.

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SARTRE, J. A Imaginação. Tradução de Luiz Roberto Salinas Fortes. Rio de Janeiro, 1989. ______. L’Imaginaire – Psychologie Phénoménologique de l’Imagination. Paris: Gallimard, 1940.

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