Duas terracotas femininas romanas do Palácio dos Condes de Penafiel (Lisboa)

July 23, 2017 | Autor: R. Banha da Silva | Categoria: Ceramica Romana, Roman Archaeology, Terracota figurines
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DUAS TERRACOTAS FEMININAS ROMANAS DO PALÁCIO DOS CONDES DE PENAFIEL (LISBOA) Rodrigo Banha da Silva

Estudos e relatórios de Arqueologia Tagana, 5

LISBOA 2015

DUAS TERRACOTAS FEMININAS ROMANAS DO PALÁCIO DOS CONDES DE PENAFIEL (LISBOA)

Rodrigo Banha da Silva (CAL-CML; CHAM-FCSH/UNL e UAç) [email protected]

1. Introdução. As duas terracotas que agora se apresentam foram recolhidas em contextos de cronologia romana imperial durante os trabalhos arqueológicos efectuados em 1992 e 1993 no jardim do Palácio dos Condes de Penafiel, em Lisboa. Como referimos no número anterior desta publicação (2005b), desta importante intervenção se vêm publicando elementos esparsos, como algumas moedas romanas (Diogo, 1994), um capitel jónico (Fernandes, 2009), as “marcas de oleiro” e a composição geral da terra sigillata alto-imperial (Silva, 2012), um almofariz centroitálico com “marca de oleiro” (Silva, 2015b), uma inscrição da Antiguidade Tardia (Diogo e Trindade, 1997), as cerâmicas associadas contextualmente a esta última (De Man e Silva, no prelo) e o conjunto das porcelanas (Henriques, 2012). O essencial dos dados permanece todavia inédito e por trabalhar, a despeito das variadas apresentações públicas (Diogo et al., 1992 e 1993), da inclusão de peças recolhidas em exposições («A Galáxia das Línguas no Universo da Expansão», Biblioteca Naconal de Lisboa, 1992; «Reabilitação Urbana em Lisboa», Sociedade Nacional de Belas Artes-Lisboa, 1993; «Lisboa Subterrânea», Museu Nacional de Arqueologia-Lisboa, 1994), e da escavação ter tido sido frequentemente noticiada pela comunicação social à época. Entre o vasto espólio alvo de tratamento (lavagem, acondicionamento e marcação), que ronda os 60000 artefactos, contam-se as duas terracotas de personagens femininos que agora se apresentam, justificando-se a sua apresentação aqui na sequência do estudo do togatus que publicámos antes de Lisboa, da Rua Augusta (Silva, 2015a). 2. Descrição do “enquadramento contextual” das terracotas. Alguns elementos sobre o processo de escavação e dados esparsos acerca da sequência estratigráfica romana patenteada durante a escavação do jardim do Palácio dos Condes de Penafiel, como acerca do seu possível significado urbanístico, foram já dados a conhecer (Silva, 2012 e 2015b). Ainda assim, optou-se por aduzir agora aos elementos citados um outro dado entretanto recuperado, referente ao elemento contextual de data mais recuada ali detectado: tratando-se de uma escavação que seguiu os princípios metodológicos de escavação arqueológica preconizados por Wheeler-Kenyon, com adaptações, a “camada” estratigraficamente mais

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antiga da “Quadrícula 3”, assente directamente sobre o substrato argiloso, foi rompida por uma sepultura infantil que utilizou uma secção do corpo de uma ânfora do tipo Dressel 20, em fabrico do Guadalquivir. Sem “mobiliário funerário” conhecido associado, a unidade violada pela execução da cavidade para a deposição fúnebre revelou a presença exclusiva de fragmentos em terra sigillata itálica e sud-gálica, o que aponta para formações ocasionadas não antes de Tibério à luz das leituras mais recentes acerca da dinâmica da imporação deste tipo de vasos oriundos do Sul da Gália para o Vale do Tejo (Silva, 2012). As “camadas” que se sobrepunham aos depósitos sucessivos gerados ao longo do período que medeia, genericamente, a segunda metade do séc.I d.C. e o séc.III-IV d.C., revelaram materiais consentâneos com cronologias Baixo Imperiais e da Antiguidade Tardia, designadamente ânforas de origem norte-africana (Classe 35), oriental (LR1) e lusitana (Almagro 51a-b e 51c), terra sigillata africana clara C e D, sigillata foceense e “cinzenta paleocristã” e numismas, cobrindo globalmente o largo espectro do século IV ao VI d.C. Na ausência de outros dados descritivos ou gráficos relativos aos contextos exumados, as únicas referências subsistentes para os dois objectos em estudo são constituídas pelas indicações manuscritas das recolhas: ainda assim, apenas o exemplar PPJ/92/27523 facultou elementos, reportando-se à «Quadrícula 15/ camada 20/ 31/08/1992», não se conservando quaisquer registos no Museu da Cidade para MC.ARQ.93/250. Consultado o acervo de elementos colectados com a mesma indicação, foi possível repertoriar um colecção de terra sigillata clara africana A e C e lucernas atribuíveis às formas Dressel-Lamboglia 30 A e B. Para além das indicações cronológicas proporcionadas por estes restantes “artefactos datantes”, muito homogéneas e centradas no século III d.C., algumas das etiquetas conservavam igualmente a menção a “fossa”, sugerindo a existência de um contexto original equivalente a uma estrutura detrítica preenchida com a mencionada “camada 20”. Com as fragilidades inerentes ao tipo de leituras contextuais permitidas pelos exiguos registos disponíveis para o sítio, será possível atribuir à terceira centúria da Era uma das terracotas do Palácio dos Condes de Penafiel, autorizando entrever-se uma data similar para o outro elemento, cumulativamente sugerida pelo tipo de penteado patente.

3. Descrição das terracotas. PPJ/92/27523- Fragmento de figura feminina em terracota, conservando a parte posterior da cabeça e pescoço. A parte remanescente mostra um penteado feminino com o cabelo apanhado em carrapito, representado de maneira sumária, com uma incisão longitudinal evocadora de arranjo ou de elemento de preensão (por exemplo um acus crinalis). A fractura da cabeça ocorreu pelo ponto de junção obtido pelo emprego de duas valvas que serviram para o fabrico do objecto, mostrando a parte inferior do pescoço uma fractura distinta, nítida.

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A pasta é de coloração avermelhada clara, com um fino cerne acinzentado claro, dura, homogénea, de textura esponjosa, contendo e.n.p.s de pequena dimensão sendo visíveis particulas negras em forma de palheta, elementos quartzosos e/ou quartezíticos, elementos calcíticos branco amarelados, muito pequenas micas prateadas e rara cerâmica moída, sendo observáveis também alguns alvéolos. As superfícies apresentam-se polidas, sendo levemente discerníveis os movimentos do espatulamento, mostrando um aspecto baço e manchado de bege, cinzento claro e laranjaavermelhado. Dimensões: altura conservada= 65 mm; largura= 44 mm. PPJ/93/250- Fragmento de figura feminina em terracota conservando a parte posterior da cabeça, pescoço, ombro esquerdo e dorso. A parte remanescente mostra um penteado feminino com o cabelo apanhado no topo, de baixo para cima e da frente para trás, sob a forma de trança longitudinal que percorreria da testa à nuca, detalhadamente modelada pelo artesão, terminada na nuca em carrapito, representado de forma estilizada pelo oleiro, com seis incisões em estrela evocadoras do arranjo da preensão. A fractura da cabeça, pescoço, ombro esquerdo e costas ocorreu pelo ponto de junção das duas metades resultantes das duas valvas que serviram para o fabrico do objecto, mostrando a parte inferior do ombro e costas uma fractura distinta, nítida. A zona de junção está, aliás, externamente bem marcada por espatulado de alisamento que obliterou as rebarbas, como também obliterou a cuidada modelação do penteado. A pasta e tratamento de superfície processa-se como no exemplar anterior, dele se distinguindo somente pela ausência do cerne e manchas acinzentadas. A pasta e superfícies são idênticas às do exemplar anterior. Dimensões: altura conservada= 65 mm; largura= 44 mm.

Figura 1- Localização da I.A.U. PPJ/9293 (a azul) na leitura hipotética do urbanismo do pomerium de Olisipo (base Silva, 2012).

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PPJ/92/27523

PPJ/93/250 0

Esc. 1:1

Figura 2- As duas terracotas femininas da I.A.U. PPJ/92-93.

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5 cm

4. Algumas observações acerca das duas terracotas femininas do Palácio dos Condes de Penafiel (Lisboa). O uso de estatuetas em terracota representando uma multiplicidade de temas antropomórficos, zoomóficos e arquitectónicos, disseminou-se na Antiguidade a partir do período helenístico, sobretudo, muito embora para o âmbito da arqueologia provincial do ocidente peninsular constitua, no momento, um aspecto essencialmente marginal. A razão desta circunstância prende-se, no essencial, com a raridade da ocorrência deste tipo de objectos, utilizados essencialmente no âmbito privado, devocional e mágico-religioso. Será, por consequência, esta escassez de dados oriundos da Lusitânia ocidental sugestiva de uma manifesta pouca apetência individual por este tipo de artefactos, e fora de Lisboa, para a região do Vale do Tejo mais não conseguimos repertoriar no momento que os exemplares das uillae do Alto da Cidreira (Encarnação et al., 1982) e Santo André de Almoçageme (Caetano, 1989). Este panorama não deverá divergir substancialmente do patente noutras áreas lusitanas, mesmo do de Mérida, onde o mercado era seguramente mais vasto e culturalmente apto ao consumo, e onde, inclusivé, se repertoriou uma na cidade uma olaria que fabricou terracotas a par de outra utensilagem cerâmica “fina” (Martín, 1996; vide igualmente referências bibliográficas aos achados em contexto funerário da capital provincial em Jérez Linde, 2003, ou contextos de descarte em Bustamante Álvarez, 2010), observação extensível ao aro rural daquela região (Jeréz Linde, 2003). Em qualquer dos casos, as terracotas romanas do Palácio dos Condes de Penafiel são, pelas características macroscópicas observáveis nas pastas cerâmicas, produções regionais do Vale do Tejo, como o eram as já conhecidas de Lisboa, da rua Augusta (Silva, 2015a) e Rua dos Remédios (Silva, no prelo). O primeiro caso apresentado do jardim do Palácio Penafiel datará, pelos materiais associados, do séc. III d.C. A forma sumária da modelação, porém, mais não permite do que perceber um tipo de penteado em voga na longa duração, e que para o período imperial encontramos em retratos oficiais de Lívia, Agripina, Livila, etc. Bem distinto é o caso de PPJ/93/250: aí, o elaborado penteado apresenta-se com detalhe mais do que suficiente, e mostra uma moda que conheceu especial esplendor com a Imperatriz Salonina, mulher de Cláudio II (falecido e divinizado em 270 d.C.), especialmente utilizada nos retratos oficiais escultóricos como também, e sobretudo, iconograficamente divulgado amplamente através da retratística numismática. Não querendo arriscar aqui uma identificação desta última terracota com um personagem central da casa imperial, para mais estando o elemento tão lacunarmente preservado, esta hipótese se não pode descartar para o(s) caso(s) lisboeta(s) agora divulgado(s): bastará para tal recordar que ao longo dos séculos II e III d.C. são relativamente numerosos os casos de representações de personagens imperiais sob esta forma, incluindo os elementos femininos.

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Bibliografia BUSTAMANTE ÁLVAREZ, Macarena (2010)- Terra Sigillata Hispánica en Augusta Emerita (Mérida, Badajoz). Valoración tipocronológica a partir de los vertederos del suburbio Norte (tesis de doutoramiento en Arqueología or. Darío Bernal Casasola e M.I. Fernández García). Cádis: Universidad de Cádiz (policopiada). CAETANO, M.T. (1989)- “Villa romana de Santo André de Almoçageme”, in Actas do Seminário «O espaço rural na Lusitânia: Tomar e o seu território» (S.Ponte; A.J.Ventura; J.Miranda, Eds.). Tomar: Instituto Politécnico de Tomar, p. 93-102. DIOGO, A.D.; TRINDADE, L.; SILVA, R.B. (1992)- “Elementos do urbanismo romano de Lisboa”, comunicação oral extra-programa ao I Congresso Peninsular de Arqueologia (Porto, Faculdade de Letras). DIOGO, A.D.; TRINDADE, L.; SILVA, R.B. (1993)- “O urbanismo pré-pombalino do Palácio dos Condes de Penafiel (Madalena, Lisboa)”, comunicação oral ao I Encontro de Lisboa e a Dinâmica urbana (Lisboa, Padrão dos Descobrimentos). DIOGO, António M. Dias (1994b)- “N.º 237- Moedas Romanas”, in Lisboa Subterrânea. Lisboa: Electa, Museu Nacional de Arqueologia, Lisboa´94, p. 214 - 216. DIOGO, António M. Dias; TRINDADE, Laura (1999)- “n.º 261: Inscrição paleocristã do Palácio dos Condes de Penafiel”, in Ficheiro Epigráfico, Suplemento da revista Conímbriga, n.º 56. Coimbra: Instituto de Arqueologia. ENCARNAÇÃO, J.; CARDOSO, G.; NOLEN, J.U.S. (1982)- “A Villa romana do Alto da Cidreira em Cascais”, in Arquivo de Cascais-Boletim Cultural do Município. Cascais: Câmara Municipal de Cascais, p. 9-27. FERNANDES, L. (2009)- “Capitel das Thermae Cassiorum de Olisipo (Rua das Pedras Negras, Lisboa)”, in Rervista Portuguesa de Arqueologia, vol. 12, n.º 2. Lisboa: Instituto Português de Arqueologia, p. 191207. HENRIQUES, J.P.V. (2012)- “Do Oriente para Ocidente: contributo para o conhecimento da porcelana chinesa nos quotidianos de Época Moderna. Estudo de três contextos arqueológicos lisboetas”, in Velhos e Novos Mundos. Estudos de Arqueologia Moderna (A:Teixeira; A.J.Bettencourt, Coord.), vol.2. Lisboa: CHAM-FCSH/UNL e Uaç, col. Arqueoarte, n.º 1, p. 919-932. JÉREZ LINDE, J.M. (2003)- “Terracotas romanas de la cuenca media del Guadiana”, in Actas de los V Encuentros de Historia en Montijo. Badajoz: Diputación Provincial de Badajoz, Ayuntamiento de Monijo, p. 11-17. MARTÍN, F.G. (1996)- Materiales de un alfar emeritense: paredes finas, lucernas, sigillata y terracota. Mérida: Museu Nacional de Arte Romano, col. Cuadernos Emeritenses, n.º 11. SILVA, R.B. (2012)- As «marcas de oleiro» na terra sigillata e a circulação dos vasos na Península de Lisboa (Dissertação de doutoramento em História, especialidade em Arqueologia). Lisboa: Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa (policopiado) [disponível em versão digital no repositório RUN-UNL e www.academia.edu]. SILVA, R.B. (2015a)- “Nota sobre uma terracota romana de um togatus recolhida na Rua Augusta (Lisboa), in Estudos e Relatórios de Arqueologia Tagana, n.º 3. Lisboa: autor [disponível em www.academia.edu] SILVA, R.B. (2015b)- “Sobre um almofariz itálico com “marca de oleiro” de M.Cominius Saturninus, de Lisboa”, in Estudos e Relatórios de Arqueologia Tagana, n.º 4. Lisboa: autor [disponível em www.academia.edu] SILVA, R.B. (no prelo)- “O contexto da Rua dos Remédios: interpretação funcional e composição do conjunto cerâmico”, in Arqueologia e História. Lisboa: Associação dos Arqueólogos Portugueses.

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