Duas traduções de Faulkner para o português com uma pequena introdução

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Wash William Faulkner (tradução de Paulo Moreira)

Sutpen estava em pé ao lado do catre onde mãe e criança estavam deitadas. Pelas frestas entre as tábuas empenadas da parede de madeira passava a luz do primeiro sol da manhã, que entrava em longos traços de lápis riscando as pernas abertas e o chicote de montaria na mão de Sutpen e atravessava o vulto estático da mãe, que, deitada, olhava para o alto, para ele, com os olhos fixos, inescrutáveis, sombrios, a criança ao seu lado embrulhada num pedaço de pano desmilingüido mas limpo. Atrás dos três estava uma preta velha agachada ao lado da tosca lareira onde um fogo tênue ardia latente. – Bem, Milly – Sutpen disse – uma pena você não ser uma égua. Senão eu podia até te arrumar um lugar decente numa baia do estábulo. Ainda assim a garota deitada no catre não se moveu. Continuou meramente olhando para cima, para ele, sem expressão alguma em seu rosto jovem, sombrio, inescrutável, ainda empalidecido pelo trabalho de parto recente. Sutpen moveu-se, trazendo para o seu rosto de um homem de sessenta anos os traços luminosos estilhaçados da luz do sol. Calmo, ele disse em voz baixa para a negra agachada: “A Griselda deu cria essa manhã.” – Macho ou fêmea? Perguntou a negra. – Macho. Um potro danado de bonito... E esse aí o que é? Ele apontou para o catre com a mão que segurava o chicote. – Esse aí é égua, eu acho. – Hah, disse Sutpen. Um potro danado de bonito. Vai ficar igualzinho ao pai, cuspido e escarrado, quando levei Rob Roy comigo para o Norte em 61. Você se lembra? – Sim, Sinhô. – Ah. Ele olhou de relance mais uma vez o catre. Ninguém saberia dizer se a garota ainda o observava ou não. De novo a mão do chicote apontou para catre. “Faça por eles o que tiver que ser feito com o que nós tivermos à disposição.” Ele saiu, atravessando a vão da porta todo torto e pisando o viço das ervas daninhas (lá estava, ainda encostada tomando ferrugem na mesma quina da varanda, a foice que Wash lhe pedira emprestado há três meses para cortá-las) onde seu cavalo o esperava, onde estava Wash, de pé, segurando-lhe as rédeas.

... Quando o Coronel Sutpen saiu em seu cavalo para lutar com os Ianques, Wash não foi. “Estou cuidando das terras e dos crioulos do Cornel”, era o que ele respondia a todos que lhe perguntavam e a alguns outros que nem isso – um homem macilento, infestado pela malária, com um olhar pálido e inquisitivo, que parecia ter trinta e cinco anos embora todos soubessem que ele tinha não apenas uma filha mas uma neta de oito anos de idade também. Era mentira o que ele dizia, como sabiam quase todos eles – os poucos homens remanescentes entre dezoito e cinqüenta anos – para quem ele dizia aquilo, embora houvesse aqueles que achassem que ele realmente acreditava naquela história, ainda que mesmo estes achassem que ele não seria tolo a ponto de pô-la à prova com a Senhora Sutpen ou os escravos de Sutpen. Não era tolo ou era simplesmente preguiçoso e inepto demais para sequer tentar, eles diziam, sabendo que a sua única ligação com a Fazenda Sutpen era o fato de que fazia quatro anos agora que o Coronel Sutpen tinha permitido que ele ocupasse um barracão todo torto em um brejo na margem baixa do rio que Sutpen tinha construído como chalé de pescaria na sua época de solteiro e que tinha desde aquela época se dilapidado completamente pelo desuso, tanto que agora parecia uma besta selvagem idosa ou enferma que se arrastara tetricamente até ali para beber água em seu último momento de vida. Os próprios escravos de Sutpen escutaram essa sua versão. Eles riram. Não era a primeira vez que eles riam dele, chamando-o de branco pé-de-chinelo pelas suas costas. Eles mesmos começaram a perguntar, em grupos, quando o encontravam na trilha quase apagada que ligava o brejo ao antigo acampamento de pesca: “Que qu’ocê num tá na guerra, branquelo?” Fazendo uma pausa, ele olhava em volta para o círculo de rostos negros e olhos e dentes brancos por trás dos quais o escárnio jazia à espreita. “Porque eu tenho uma filha e uma família para sustentar,” ele dizia, “sai da minha trilha, seus crioulos.” “Crioulos?” eles repetiam; “Crioulos?” Agora rindo. “Quem que ele pensa, chamando a gente de crioulo?” “É”, ele disse; “eu não tenho crioulo nenhum pra cuidar da minha gente se eu vou embora.” “Nem nada além daquele barraco velho que o Coroné não punha nem nós vivendo nele.” Agora ele os xingava; às vezes arremetia contra eles, pegando um galho do chão enquanto eles se espalhavam à sua frente, ainda parecendo cercá-lo com aquele risada negra,

derrisória, evasiva, inescapável, deixando-o ofegante, impotente, enraivecido. Uma vez aconteceu no quintal mesmo da própria casa-grande. Isso fora depois das notícias ruins terem chegado das montanhas do Tennessee e de Vicksburg e de Sherman ter passado pela fazenda e a maioria dos negros da fazenda terem ido embora atrás dele. Quase tudo o mais tinha ido embora com as tropas dos Federais e a Senhora Sutpen tinha mandado avisar a Wash que ele podia apanhar as muscadinas1 amadurecendo no carramanchão do quintal. Dessa vez fôra uma criada da casa, um dos poucos negros que permaneceram; dessa vez a negra teve que recuar até os degraus da cozinha, de onde ela virou-se e disse: “Pára aí mesmo, branquelo. Pára aí mesmo ond’cê tá. Você nunca atravessou esses degrau quando o Coroné tava aqui e num vai sê agora qu’ocê vai.” Era verdade. Mas havia também essa espécie de orgulho: ele nunca tentara entrar na casagrande, mesmo que acreditasse que se ele o fizesse, Sutpen o teria recebido, dado-lhe a sua permissão. “Mas eu num vou dar a crioulo preto nenhum a chance de me dizer que eu num posso ir a lugar nenhum”, ele dizia para si mesmo. “Eu nem vou dar ao Cornel a chance de ter que xingar um crioulo desse por minha conta.” Isso, apesar dele e Sutpen terem passado mais de uma tarde juntos num daqueles raros domingos em que não havia visitas na casa-grande. Talvez mentalmente ele soubesse que era porque Sutpen não tinha mais nada para fazer, sendo ele um homem que não suportava ficar sem companhia. Ainda assim havia o fato de que os dois passaram tardes inteiras juntos no carramanchão das muscadinas, Sutpen na sua rede e Wash agachado encostado num poste, um balde cheio de água da cisterna entre os dois, bebendo gole a gole do mesmo garrafão. Ao mesmo tempo nos dias de semana ele via aquela figura tão fina de homem – eles tinham a mesma idade nascidos quase no mesmo dia, embora nenhum dos dois (talvez por Wash ter tido uma neta enquanto o filho de Sutpen era ainda um rapazola na escola) 1

"A uva pertence à espécie Vitis rotundifolia que engloba 60 variedades. A uva é de maturação tardia, muito cultivada no Sul do Estados Unidos, onde é comercializada em grãos, como se vende na região da Serra os morangos em bandejas. Suas bagas amadurecem de maneira desuniforme, por isso, são colhidos os grãos e não os cachos. Suas bagas se desprendem como o que acontece com as jaboticabas. A espécie é apropriada para consumo in natura e na fabricação de sucos e geléias. Muito resistente, é indicada para produção com adubação orgânica. A videira é uma planta pertencente à família Vitaceae, cujas principais cultivares comerciais estão no gênero Vitis, em especial nas espécies Vitis vinifera e Vitis labrusca. As espécies Vitis rupestris, Vitis berlandiere e Vitis rotundifolia, entre outras, têm sido utilizadas em cruzamentos para a obtenção de porta-enxertos. A videira adaptou-se e foi difundida por diversas regiões do país. Atualmente as áreas cultivadas com uva concentram-se nas regiões Sul e Sudeste, onde Rio Grande do Sul, São Paulo, Santa Catarina e Paraná são os principais Estados produtores. Outro importante pólo vitícola está surgindo no Vale do Rio São Francisco, onde produz-se uvas finas de mesa." http://www.esteditora.com.br/correio/4932/right.htm

tenha jamais pensado em si mesmo dessa maneira – naquela figura tão fina de um garanhão negro, galopando pela fazenda. Pois naquele momento seu coração ficava tranqüilo e cheio de orgulho. Parecia a ele que aquele mundo no qual os negros, que a Bíblia dizia terem sido criados e amaldiçoados por Deus para serem brutos e submetidos a todos os homens de pele branca, se encontravam melhor e tinham casas e mesmo roupas melhores que as suas; aquele mundo no qual ele sempre pressentia à sua volta os ecos zombeteiros dos risos negros era apenas um sonho e uma ilusão, e que o mundo verdadeiro era aquele pelo qual sua própria apoteose solitária parecia galopar em um sangue-puro negro, pensando em como o Santo Livro também dizia que todos os homens eram criados à imagem de Deus e portanto todos os homens eram a mesma imagem pelo menos aos olhos de Deus; de tal modo que ele podia dizer, como se falando consigo mesmo, “Uma beleza de homem orgulhoso. Se Deus em pessoa baixasse aqui e fosse cavalgar por essa nossa terra carnal, era assim que Ele haveria de parecer.” Sutpen voltou em 1865, montado no garanhão negro. Ele parecia ter envelhecido dez anos. Seu filho havia sido morto em batalha no mesmo inverno em que sua esposa morrera. Ele voltou condecorado por bravura pelas mãos do General Lee para uma fazenda arruinada, onde agora por um ano sua filha subsistira em parte da parca generosidade de um homem que quinze anos atrás recebera dele permissão para viver naquele acampamento de pesca dilapidado de cuja mera existência ele nem se lembrava mais. Wash estava lá para recebê-lo, inalterado: ainda macilento, ainda sem idade aparente definida, com seu olhar pasmo pálido e inquisitivo, seu ar tímido, um pouco servil, um pouco confiado. “Bom, Cornel,” disse Wash, “eles mataram a gente mas inda num lascaram a gente de vez, não é mesmo?” Aquele foi o teor da conversa dos dois pelos próximos cincos anos. Era um uísque de pior qualidade o que eles bebiam juntos agora de um jarro de barro, e não era no carramanchão das muscadinas. Era no fundo da lojinha que Sutpen tinha arrumado para si na beira da rodovia: um cômodo cheio de prateleiras onde, com Wash na função de atendente e carregador, ele vendia querosene e gêneros alimentícios de primeira necessidade e balas e doces velhos de cores berrantes e contas e fitas baratas para negros e brancos pobres como o próprio Wash, que chegavam a pé ou montados em mulas macilentas e pechinchavam tediosamente por níqueis e tostões com aquele homem que antes costumava galopar (o garanhão negro ainda estava vivo; o estábulo em que sua cria zelosa vivia estava em melhor estado que a casa onde seu próprio dono vivia) por dez milhas atravessando terras férteis de sua propriedade e que havia comandado suas

tropas com bravura no campo de batalha; até que Sutpen tomado de fúria esvaziava a loja, fechava e trancava as portas por dentro. Então ele e Wash retiravam-se aos fundos e ao jarro. Mas a conversa não era tranqüila agora, como na época em que Sutpen deitava-se em sua rede, proferindo seu monólogo arrogante enquanto Wash gargalhava recostado em seu poste. Ambos sentavam-se agora, embora Sutpen usasse a única cadeira disponível enquanto Wash se virava com qualquer caixa ou engradado à mão, e isso mesmo assim só por pouco tempo, porque logo Sutpen atingiria aquele estado de não-derrota furiosa e impotente no qual ele se erguia, balançando e caindo, e declarava de novo que tomaria sua pistola e o garanhão negro e cavalgaria sozinho até Washington e mataria Lincoln, já morto a essa altura, e Sherman, agora um cidadão civil. “Matar os dois!” ele gritava. “Abater os dois à bala feito um cachorro, que é o que eles são.” “Tá certo, Cornel; tá certo”, dizia Wash, amparando Sutpen na sua queda. Então ele pararia à força a primeira carroça que passasse ou, na falta dessa, andaria uma milha até o vizinho mais próximo e pediria uma emprestada e voltaria e carregaria Sutpen para casa. Ele entrava na casa agora. Já o fazia há algum tempo, levando Sutpen para casa na carroça emprestada que fosse, fazendo-o mover-se com murmúrios de incentivo como se ele fosse um cavalo, um garanhão mesmo. A filha os atendia na porta e abria a porta sem dizer uma palavra. Wash carregava o seu fardo pelo que um dia fora a entrada de visitas pintada de branco, coroada com um candelabro importado peça a peça da Europa, agora com uma tábua pregada no lugar dum vidro quebrado, atravessando um tapete de veludo cuja pelagem já tinha desaparecido toda, subindo pela escada principal, agora um reduzida a um fantasma de tábuas nuas entre duas tiras de tinta apagada, e entrando no quarto de dormir. Estaria escurecendo agora, e Wash deixaria seu fardo estirar-se por sobre a cama e o despiria e então se sentaria em silêncio numa cadeira ao lado. Um tempo depois a filha apareceria na porta. “Já estamos todos bem agora”, ele diria a ela, “Não precisa se preocupar nada, Dona Judith.” E então escureceria, e depois de um certo tempo ele se deitaria no chão ao lado da cama, embora não fosse dormir, porque depois de um tempo – às vezes antes da meia-noite – o homem na cama se mexeria e soltaria um gemido e então diria, “Wash?” “Eu ’tou aqui, Cornel. Cê pode voltar pra dormir. Nós ainda num ’tamos lascados, não é mesmo? Eu mais o senhor ainda damos conta.”

Já nessa época ele tinha notado o laço de fita em volta da cintura da sua neta. Ela tinha agora quinze anos, já madura, do jeito precoce das meninas do seu tipo. Ele sabia de onde vinha o laço de fita; ele o tinha visto e os outros laços do mesmo tipo diariamente há três anos, mesmo que ela tivesse mentido sobre onde a tinha conseguido, coisa que ela não fez, de uma só vez audaciosa, soturna e medrosa. “Tá certo então”, ele dizia. “Se o Cornel quer dar ela procê, espero qu’ocê tenha se lembrado de agradecer.” Seu coração estava tranqüilo, mesmo quando ele viu o vestido, observando sua expressão reservada, desafiadora, amedrontada quando ela anunciou que Dona Judith, a filha, a tinha ajudado a fazê-lo. Mas Wash tinha um ar grave quando abordou Sutpen depois dos dois fecharem a loja à tarde, seguinte de trás para frente. “Pega o garrafão”, ordenou Sutpen. “Espera um minuto só”, respondeu Wash. Nem Sutpen tampouco negou o vestido. “E o que é que tem?” ele disse. Mas Wash encarou o seu olhar fixo arrogante; falou calmamente. “Eu conheço o Cornel por aí de vinte anos. E eu nunca neguei nada que o Cornel me mandou fazer. E eu sou um homem já quase com cinqüenta. E ela é só uma menina de quinze anos.” “Quer dizer que eu faria mal à menina? Eu, um homem tão velho como você?” “Se fosse outro homem, eu num deixava ela ficar nem com o vestido nem com nada que viesse da sua mão. Mas o Cornel é diferente.” “Diferente como?” Mas Wash meramente fixou nele seus olhos pálidos, inquisitivos, sóbrios. “Então é por isso que você está com medo de mim?” E agora o olhar fixo de Wash já não inquiria. Era um olhar tranqüilo, sereno. “Eu num ’tou com medo. Porque o Cornel é um bravo. Num é que fosse um homem bravo num dado minuto ou dia da vida e tem agora um papel do General Lee pra provar. Mas o Cornel é um bravo igual que agora, aqui, vivo respirando. E é aí que ’tá a diferença. Num carece de bilhete de ninguém pra me dizer isso. E eu sei que tudo o que for que o Cornel mexe a mão ou enconsta, um regimento de soldado ou só um perdigueiro pulguento, o Cornel sempre faz as coisas dar certo.” Agora era Sutpen que virava o rosto e evitava o olhar de Wash, virando-se subitamente, bruscamente. “Pega o jarro”, ele disse ríspido. “Tá certo, Cornel”, respondeu Wash.

... Portanto naquele amanhecer de domingo dois anos depois, assistindo a parteira negra que ele andara três milhas para buscar atravessar a porta toda torta para onde sua neta jazia gritando de dor, seu coração ainda estava tranqüilo embora preocupado. Ele sabia o que andavam falando – os negros nos barracos espalhados pela propriedade, os brancos que vadiavam o dia todo na porta da loja, observando em silêncio os três: Sutpen, ele mesmo, sua neta com seu olhar de desafio impudente e retraído à medida em que seu estado ficava a cada dia mais óbvio, como três atores que iam e vinham do palco. “Eu sei o que eles dizem uns pros outros”, ele pensava. “Eu posso até escutar eles dizendo: Wash Jones pegou o velho Sutpen de jeito afinal. Levou vinte anos, mas ele deu um jeito afinal.” O dia amanheceria daqui a pouco, mas ainda não. Da casa, onde o lampião brilhava tenuemente através do marco empenado, a voz de sua neta vinha constante, como se guiada por um relógio, enquanto o pensamento se desenvolvia devagar e fantasticamente, tateando, envolvido de certa forma com um som de cascos em galope, até que irrompia de repente em pleno galope a bela figura orgulhosa do homem montado no belo garanhão orgulhoso, galopando; e então aquilo que o pensamento tateava, irrompia livre também e com toda a clareza, não no sentido de justificar ou mesmo explicar, mas como a apoteose, solitária, explicável, além de qualquer conspurcação pelo contato humano: “Ele é maior que aqueles Ianques todos que mataram o filho dele e a mulher dele e levaram os crioulos dele embora e estragaram a terra dele, maior que essa porcaria de terra pela qual ele lutou e que o relegou a tomar conta de uma vendazinha de beira de estrada; maior que negação que essa terra alçou aos seus lábios feito a taça de fel da Bíblia. E como é que eu poderia viver tão perto assim dele por vinte anos sem ter sido tocado e transformado por ele? Talvez eu não seja tão grande como ele e talvez eu não galopei nada. Mas pelo menos eu fui mesmo arrastado junto com ele. Eu mais ele damos jeito nisso, se então ele me mostrar o que é que ele me tenciona fazer”. Então chegou o amanhecer do dia. De repente ele podia ver a casa, e a preta velha na porta olhando para ele. Então ele percebeu que a voz da sua neta havia parado. “É menina”, a negra disse. “Você pode ir lá contar para ele se quiser”. Ela entrou na casa de novo. “Menina”, ele repetia; “menina”; perplexo, ouvindo o galope dos cascos, vendo emergir outra vez a figura orgulhosa a galope. Ele parecia vê-la passar, galopando por entre os símbolos encarnados que marcavam o acúmulo dos anos, do tempo, até o clímax onde ela galopava sob

um sabre brandido e uma bandeira rasgada pelos tiros descendo pelos céus em cor feito súlfur estrondoso, pensando pela primeira vez em toda a sua vida que Sutpen era um velho como ele mesmo. “Tendo uma menina”, ele pensou naquela perplexidade; então ele pensou com a surpresa satisfeita de uma criança: “Sim, senhor. Deus me dane se eu não vivi pra ser bisavô no fim das contas”. Ele entrou na casa. Movia-se desajeitado, na ponta dos pés, como se ele não mais vivesse ali, como se o recém-nascido que acabara de começar a respirar e berrar para a luz do dia tivesse tomado posse da casa dele, ainda que fosse sangue do seu sangue. Mas mesmo debruçado ao lado do catre ele pouco via além de um borrão com o rosto exaurido da sua neta. Então a negra agachada perto da lareira falou, “s’ocê vai então é mió cê ir lá logo contar pro home. Já é dia agora”. Mas não era necessário. Mal ele voltou-se para o canto da varanda onde a foice que ele pedira emprestado há três meses para capinar o mato por onde ele andava para chegar a casa e Sutpen apareceu montado no seu velho garanhão. Ele sequer perguntou-se como Sutpen tinha sido avisado. Ele pressupôs que era por isso que o outro tinha saído tão cedo de manhã num domingo e ele parou em pé enquanto o outro desmontava, e tomou as rédeas das mãos de Sutpen, com uma expressão quase imbecil no seu rosto macilento cheia de um tipo de cansaço triunfante, dizendo, “É menina, Cornel. Deus me dane se o Cornel num é tão veio quanto eu –” até que Sutpen passou por ele e entrou na casa. Ele ficou ali de pé com as rédeas na mão e escutou Sutpen atravessar a sala até o catre. Ele ouviu o que Sutpen disse, e algo parecia morrer nele antes de continuar em frente. O sol estava a pino agora, o sol ligeiro das latitudes do Mississippi, e lhe parecia que ele estava em pé sob um céu estranho, numa cena estranha, familiar só na medida em que as coisas parecem familiares nos sonhos, como quando os que nunca subiram aos céus sonham que estão caindo. “Eu num posso ter escutado o que eu escutei”, ele pensou calmamente. “Num é possível”. E ainda a voz, a voz familiar que havia dito aquelas coisas ainda falando, falando agora com a negra sobre um potro parido naquela manhã. “Foi por isso que ele acordou tão cedo”. Ele pensou. “Foi isso então. Não foi nem eu nem os meus. Não foi nem mesmo a filha dele que tirou o homem da cama”. Sutpen emergiu. Ele desceu até o mato, movendo-se com aquela deliberação pesada que era pressa quando ele era mais jovem. Ele ainda não tinha olhado de frente para Wash. Ele disse,

“A Dilsey vai ficar e cuidar dela. Melhor você –” Então ele pareceu perceber que Wash o encarava e fez uma pausa. “O que foi?” Ele disse. “Você disse –” Aos seus próprios ouvidos a voz de Wash soava um tom abaixo e feito um pato, feito a voz de um homem surdo. “Você disse que se ela fosse uma égua, você dava pra ela um bom lugar no estábulo”. “E daí?” disse Sutpen. Os olhos dele abriam-se e se estreitavam quase feito os punhos de um homem destendendo-se e fechando, quando Wash começou a avançar em sua direção, um pouco curvado. Foi pura perplexidade o que manteve Sutpen imóvel naquele momento, assistindo àquele homem que nos vinte anos em que o conhecera não havia mexido uma palha se não recebesse uma ordem como o cavalo que ele montava. Outra vez seus olhos abriram-se e se estreitaram; sem mover-se ele parecia dar marcha a ré de repente emperdigado. “Pra trás”, ele disse brusca e subitamente. “Não se atreva a me tocar”. “Eu vou tocar, sim, Cornel”, disse Wash com a voz um tom abaixo, calma, quase suave, avançando. Sutpen ergueu a mão que segurava o chicote; a negra velha espiava pela porta toda torta com sua cara preta de gárgula dum gnomo distorcido. “Para trás, Wash”, disse Sutpen. Então ele o atingiu. A velha negra sumiu no mato com a agilidade de um bode e fugiu. Sutpen cortou mais uma vez com o seu chicote o rosto de Wash, golpeando-o até deixá-lo de joelhos. Quando Wash levantou e avançou mais uma vez ele segurava nas mãos a foice que havia pedido emprestado a Sutpen havia três meses, a foice que Sutpen nunca precisaria outra vez. Quando ele reentrou a casa sua neta mexeu-se no catre e chamou seu nome inquieta. “Que é que foi aquilo?” ela disse. “Aquilo o quê, meu anjo?” “Essa bagunça aí fora.” “Foi nada não”, ele disse gentilmente. Ele ajoelhou-se e tocou desajeitado a testa quente da neta. “Cê quer alguma coisa?” “Quero um golo d’água” ela disse em tom de queixa. “Eu tou deitada aqui faz tempo querendo um golo d’água, mas não tem ninguém que ligue pra prestar atenção em mim.” “Tá bom agora”, ele disse acalmando-a. Ele levantou-se rijamente e buscou a cabaça e levantou a cabeça da neta para que ela pudesse beber e colocou-a de novo deitada na cama e a viu voltar-se para o bebê com uma cara absolutamente pétrea. Mas no momento seguinte ele

percebeu que ela estava chorando em silêncio. “Não, não”, ele disse, “Não pode chorar assim. A velha Dilsey me disse que é uma minina bonitinha. Tá tudo bem agora. Já passou tudo. Não tem precisão de chorar agora.” Mas ela continuou a chorar em silêncio, quase soturna, e ele ergueu-se outra vez e pôs-se de pé sobre o catre por um tempo, pensando como pensara quando a sua própria esposa deitou-se assim na cama e depois sua filha: “Mulher. É um mistério pra mim. Parece que elas querem um minino e quando ele vem elas choram. É um mistério pra mim. Pra qualquer homem.” Então ele afastou-se e puxou uma cadeira até a janela e sentou-se. Por toda aquela longa, clara e ensolarada manhã ele sentou-se à janela, esperando. De tempos em tempos ele se erguia e caminhava na ponta dos pés até o catre. Mas a sua neta agora dormia, seu rosto calmo, soturno e cansado, a criança aninhada na dobra do braço. Então ele voltava à cadeira e sentava-se outra vez, esperando, perguntando-se porque eles estavam demorando tanto, até que ele lembrou-se que era domingo. Ele estava sentado lá no meio da tarde quando um meninote branco deu com o corpo quando passava pela quina da casa e deu um grito sufocado e olhou para a frente e olhou espantado por um instante hipnotizado para a cara de Wash na janela antes de virar-se e fugir. Então Wash levantou-se e mais uma vez caminhou na ponta dos pés até o catre. A neta estava desperta agora, acordada talvez pelo grito do meninote sem chegar a escuta-lo. “Milly”, ele disse, “cê está com fome?” Ela não respondeu, virando a cara para o outro lado. Ele alimentou o fogo na lareira e cozinhou a comida que havia trazido no dia anterior: era torresmo e broa de milho fria; ele encheu de água a caneca com café passado e esquentou-a. Mas ela não queria comer, então ele comeu sozinho, em silêncio, só, e deixou os pratos onde estavam e voltou para a janela. Agora ele parecia pressentir, sentir, os homens que estariam agora reunindo-se com cavalos e armas e cães – os curiosos e os vingativos: homens da mesma estirpe de Sutpen, que sentavam-se à sua mesa na época em que o próprio Wash mal podia aproximar-se da casa além do caramanchão de Muscadina – homens que também haviam mostrado aos inferiores como portar-se no campo de batalha, que talvez também possuíssem papéis assinados por generais dizendo que eles estavam entre os mais bravos; que também galopavam nos velhos tempos de arrogância em seus cavalos de raça por suas fazendas de primeira categoria – símbolos também de admiração e esperança; igualmente instrumentos de desespero e sofrimento.

Eram aqueles de quem esperariam que ele corresse. Parecia-lhe que ele não tinha que correr deles mais do que correr na direção deles. Se ele corresse dali, estaria meramente escapando de um bando de sombras falastronas e maldosas para encontrar um outro bando igual, já que eles eram de uma estirpe que se espalhava por toda a terra até onde ele a conhecia, e ele estava velho, velho demais para escapar mesmo que fosse mesmo para ele escapar. Ele nunca escaparia deles, não importa o quanto ou o quão longe ele pudesse ir: um homem beirando os sessenta não poderia correr tão longe assim. Parecia-lhe que agora ele entendia pela primeira vez em cinco anos como os Ianques ou qualquer outro exército desse mundo tinha conseguido dar cabo deles: eles, os galantes, os orgulhosos, os bravos; os reconhecidos e escolhidos entre os melhores de todos eles para carregar a coragem e a honra e o orgulho. Talvez se ele tivesse ido à guerra com eles, teria descoberto antes. Mas se descobrisse antes, o que ele teria feito da sua vida desde então? Como é que poderia ter suportado lembrar por cinco anos inteiros o que tinha sido a sua vida até então? Agora chegava a hora o pôr do sol. O bebê tinha chorado; quando ele foi até o catre viu a neta amamentando, seu rosto ainda preocupado, soturna, inescrutável. “Cê já tá com fome já?” “Num quero nada, não.” “Cê devia comer.” Desta vez ela não respondeu nada, olhando para o bebê. Ele voltou à sua cadeira e viu que o sol já havia se posto. “Não vai demorar mais muito mais”, ele pensou. Ele podia senti-los bem perto agora, os curiosos e os vingativos. Ele parecia poder até quase ouvir o que eles estavam dizendo sobre ele, as correntes subterrâneas de crença além da fúria imediata: O Velho Wash Jones finalmente caiu do cavalo. Ele pensou que tinha feito Sutpen mas foi Sutpen que passou a perna nele. Ele achou que tinha o Cornel na mão, no ponto em que ou ele casava com a menina ou pagava pelo que fez. E o Cornel se recusou. “Mas eu nunca esperei nada disso, Cornel!” ele gritou em voz alta, surpreendendo-se ao som da própria voz, voltando rápido os olhos para a neta para vê-la observando-o. “Com quem qu’ocê ta falando agora?” ele disse. “Foi nada não. Só estava pensando e acabei falando antes de dar conta.” O rosto da menina começava a tornar-se indistinto, de novo um borrão soturno no luscofusco. “Sei disso. Acho também que cê vai ter que gritar bem mais alto que isso pr’ele ouvir, lá

encima na casa-grande. E acho que vai precisar mais do que grito pr’ele descer cá embaixo outra vez.” “Tá certo”, ele disse. “Cê não se preocupe com nada não, viu?” mas já o pensar corria livre e solto: “O senhor sabe eu nunca. O senhor sabe eu nunca esperei nem pedi nada de homem vivente nenhum que não fosse o que eu esperei do senhor. E eu nunca pedi isso. Eu dizia, eu num preciso. Que precisão tem um sujeito feito Wash Jones de questionar ou duvidar do homem que o próprio General Lee de próprio punho escreveu num papel que era um bravo? Bravo”, ele pensou. “Melhor se nem um deles tivesse voltado pra casa em 65”, pensando Melhor se esse povo dele e o meu nunca tivesse respirado o mesmo ar dessa terra. Melhor que todos que restaram de nós fossem varridos da face da terra do que outro Wash Jones ver sua vida inteira arrancada em trapos e retorcida feito vagem seca jogada no fogo. Ele parou, ficou quieto. Ouviu os cavalos, de repente e com perfeita clareza; agora ele via a lanterna e o movimento dos homens, o brilho dos tambores das armas, na sua luz movente. Ainda assim ele não moveu um músculo. Já estava bem escuro agora e ele ouvia as vozes e os barulhos no mato rasteiro à medida em que eles cercavam a casa. A própria lanterna aproximouse; sua luz caiu sobre o corpo inerte no mato e parou, os cavalos altos e sombrios. Um homem desceu e abaixou-se sob a luz da lanterna, sobre o corpo. Ele segurava uma pistola; levantou-se e olhou para a casa. “Jones”, ele disse. “Tou aqui”, Wash disse calmamente da janela. “É o senhor, Major?” “Vem para fora.” “Tá certo”, ele disse calmamente. “Só quero ver minha neta”. “Nós vamos cuidar dela. Vem logo para fora.” “Tá certo, Major. Só um momento.” “Mostre uma luz. Acenda o seu lampião.” “Tá certo. Num momentinho”. Eles podiam ouvir sua voz recuando para dentro da casa, embora não fosse possível vê-lo quando ele foi rapidamente até um rachado na chaminé onde ele guardava sua faca de açougueiro: a única coisa em sua vida e casa desleixadas de que ele tinha orgulho, já que a mantinha sempre bem afiada. Ele aproximou-se do catre, a voz de sua neta: “Quem é? Acende o Lampião, Vô”. “Num vai ser preciso luz, não, querida. Num vai levar mais que um minuto”, ele disse, de joelhos, tateando na direção da sua voz, sussurrando agora. “Que é de você?”

“Bem aqui”, ela disse preocupada. “Onde é que eu ia estar? O que é...” A mão dele tocou o seu rosto. “Que é que... Vô! V...”. “Jones!” disse o xerife. “Sai já daí!” “Num minutinho, Major”, ele disse. Agora ele ergueu-se e movia-se com destreza. Ele sabia, mesmo no escuro, onde estava a lata de querosene, assim como sabia que ela estava cheia, já que ele a havia enchido não fazia dois dias e tinha carregado a lata na mão até conseguir carona para casa com ela, já que os cinco galões eram pesados. Ainda havia brasas na lareira; além disso aquela construção toda torta era como se fosse feita de hulha: as brasas, a lareira, as paredes explodindo em um único clarão azul. Contra o clarão, os homens que esperavam lá fora o viram num feroz instante, arremetendo contra eles com a foice erguida antes que os cavalos dessem pinote e saíssem em disparada. Eles controlaram os cavalos e voltaram-nos para o clarão, ainda imóvel num relevo selvagem a figura esquálida correndo na direção deles com a foice erguida. “Jones!” gritou o xerife; “pára, pára ou eu vou atirar. Jones! Jones!” E ainda assim a furiosa e esquálida figura surgiu do clarão e do ronco das chamas. Com a foice levantada, a figura atirou-se contra eles, contra o olhos de pavor dos cavalos e o brilho movente dos tambores das armas, sem nem um grito, nem um som.

Celeiro em Chamas William Faulkner (tradução de Paulo Moreira)

– Eu já disse. O porco veio comer na minha plantação de milho. Eu peguei o bicho e mandei de volta para ele. Ele parece que não tinha cerca que parasse o bicho. Eu disse a ele, eu avisei. A próxima vez eu boto esse porco no meu cercado. Quando ele veio buscar o bicho, eu dei

A venda onde se reunia em sessão a corte do Juiz de Paz cheirava a queijo.1 O menino, agachado num barril nos fundos da sala lotada de gente, sabia que era queijo o que ele cheirava, e mais: de onde ele se sentava podia ver as prateleiras cheias com os volumes sólidos, atarracados, vivos, de latas cujos rótulos seu estômago podia ler, não pelas letras que não tinham qualquer significado para a sua mente, mas pelos diabos escarlates2 e pela curva prateada dos peixes – tudo isso, os queijos que ele sabia estar cheirando e a carne hermética que suas entranhas acreditavam estar cheirando, chegando em intermitentes lufadas, momentâneas, breves, por entre o outro cheiro, constante, o cheiro e o senso, de medo um pouco apenas, porque mais que nada de desespero e tristeza, o velho, ímpeto atroz do sangue. Ele não conseguia ver a mesa onde sentava-se o Juiz e ante a qual estavam seu pai e o inimigo de seu pai (nosso inimigo ele pensava naquele desespero; de nós dois! Meu e dele! Ele é meu pai!), mas ele podia ouvi-los, a bem dizer ouvir dois deles porque seu pai não dissera uma palavra sequer até agora: – Mas que prova tem o senhor, Senhor Harris?

para ele arame bastante para ele remendar o cercado dele inteiro. Quando aconteceu de novo eu botei o porco no meu chiqueiro e fiquei com ele lá. Eu peguei o meu cavalo e fui até a casa dele e vi o arame que eu tinha dado para ele ainda enrolado no tambor lá no quintal dele. Eu disse a ele que ele podia reaver o porco dele quando me pagasse um dólar pela engorda do bicho. Aquele dia à noite um crioulo veio com o dinheiro e pegou o porco. Não era um crioulo daqui. Ele falou para mim, ‘ele me pediu pra dizer pro sinhô que madeira e feno pega fogo.’ E eu disse para ele, ‘Quê?’ ‘Foi que ele me pediu pra dizer isso pro sinhô’, o crioulo disse. ‘Madeira e feno pega fogo’. Naquela noite meu celeiro pegou fogo. Eu ainda consegui tirar a criação de lá de dentro mas o celeiro eu perdi”. – Onde está o crioulo? Você pegou o crioulo? – Não era um crioulo daqui, eu já disse. Eu não sei o que foi feito dele. – Mas isso não é prova suficiente. Você não vê que não é prova suficiente? – Traz aquele menino aqui na frente. Ele sabe. Por um instante o menino também pensou que Harris queria o seu irmão mais velho até que ele disse, “esse não. O pequeno. O menino.” E ele, agachado,

1

A falta de uma casa de justiça [courthouse] indica o tamanho pequeno e a pouca importância do lugarejo. 2 Desde o final do século XIX o paté de presunto enlatado da empresa Underwood tem até hoje a figura de um diabinho vermelho no rótulo.

pequeno para a sua idade, pequeno, enxuto e forte como o seu pai, com jeans desbotados e remendados como os do seu pai apertados já até

1

mesmo para ele, com o cabelo castanho escorrido e despenteado e os

“Não!” Harris disse violenta, explosivamente. “Diabo! Manda

olhos cinzentos e turbulentos como escuma de tempestade, viu o mar de

esse menino embora daqui!” Agora o tempo, o mundo fluido, corria por

homens que se postavam entre ele próprio e a mesa abrir-se num

baixo dos seus pés outra vez, as vozes chegando de novo, atravessando

corredor de olhares severos ao fim do qual ele via o Juiz, um homem

o cheiro de queijo e carne selada, o medo e o desespero e a velha mágoa

desgastado, de óculos, grisalho, vestido em mangas de camisa, olhando

do sangue:

para ele. Sentiu como se o chão lhe fugisse dos pés descalços; ele

“O caso está encerrado. Eu não posso provar nada contra você,

parecia caminhar sob o peso palpável dos rostos severos que se

Snopes, mas posso lhe dar um conselho. Vá embora daqui dessa região e

voltavam para ele. Seu pai, duro na sua casaca preta de domingo,

não volte mais para cá”.

vestido assim não por causa do julgamento mas pela mudança, sequer

Seu pai falou pela primeira vez, a voz fria e áspera, monótona,

olhou para ele. Ele quer que eu minta, ele pensou, de novo com aquela

sem ênfase: É o que eu quero. Eu não pretendo mesmo ficar morando

tristeza e desespero frenéticos. E eu vou ter que.

num lugar onde a gente ... e completou com algo impublicável e vil,

– Qual é o seu nome, menino? o Juiz perguntou.

endereçado a ninguém em particular.

– Coronel Sartoris Snopes, ele sussurrou. – Oi? disse o Juiz. “Fala mais alto. Coronel Sartoris? Eu

– Já é o bastante, disse o Juiz. Pega a sua carroça e saia daqui antes que escureça. Caso encerrado.

suponho que alguém com o nome de Coronel Sartoris nessa região nem

Seu pai virou-se e o menino seguiu a casaca preta, dura, a figura

pode falar nada que não seja a verdade, não é mesmo?” O menino não

enxuta e forte, um pouco cambeta por causa de uma bala de mosquete

disse nada. Inimigo! Inimigo! Ele pensava; por um instante ele não

de um preboste do exército confederado que o atingira no calcanhar

podia sequer enxergar, não podia ver que o Juiz tinha uma expressão

quando estava montado na sela de um cavalo roubado há trinta anos

amável no rosto nem discernir a ansiedade na voz do Juiz quando se

atrás;3 seguia as costas de dois agora, já que o irmão mais velho tinha

dirigiu ao homem chamado Harris: “Você quer que eu interrogue este

surgido do nada na multidão, não mais alto que seu pai mas mais forte,

menino?” Mas ele podia ouvir, e durante aqueles longos segundos

mascando tabaco constantemente entre as duas fileiras de homens com

subseqüentes, quando não havia som na salinha lotada de gente salvo a

olhares severos até sair da venda, atravessar a velha varanda e descer os

respiração silenciosa e atenta das pessoas, era como se ele estivesse se

degraus envergados por entre cães e meninotes na suave poeira de maio,

balançando da ponta de um vinhedo sobre uma ravina e no ponto mais

onde, à medida em que passavam, alguém rosnou entre os dentes:

alto do balanço fosse pego em um prolongado instante de gravidade em suspenso, desprovido de peso no tempo.

– Incendiário! 3

Indicação mais precisa de que a história se passa em 1895.

2

De novo ele não conseguia enxergar dentro de um turbilhão;

“Volta pra carroça”, disse o seu pai, e subiu também pulando o

havia um rosto imerso numa névoa vermelha, parecendo uma lua, maior

taipal da traseira. Seu pai então aboletou-se no assento dianteiro onde o

que uma lua cheia, cujo proprietário era fez e meia o seu tamanho, ele

irmão mais velho já se encontrava e açoitou duas vezes com violência,

atirando-se na névoa vermelha na direção do rosto, sem sentir os golpes,

embora sem fúria, as mulas esquálidas com uma vara nua de salgueiro.

sem sentir o baque da sua cabeça no chão, levantando-se de qualquer

Não se tratava sequer de sadismo; era a mesma qualidade que anos

jeito e atirando-se de novo, de novo sem sentir os golpes e sem sentir o

depois faria seus descendentes fundirem o motor antes de porem o carro

gosto de sangue, levantando-se de qualquer jeito mais uma vez para ver

em movimento, açoitando e puxando as rédeas em um mesmo gesto. A

agora o outro menino em plena fuga e ele mesmo já saltando para

carroça seguiu caminho, deixando para trás a venda e sua multidão

persegui-lo quando a mão do seu pai puxou-o para trás, a voz áspera e

silenciosa de homens que observavam severos; uma curva na estrada

fria soando por sobre seu corpo: “vai, sobe na carroça”.

escondeu-os. Para sempre ele pensou. Quem sabe ele agora não está

A carroça estava atrás de uma moita de alfarrobeiras4 e

satisfeito, agora que ele já... interrompendo a si mesmo, para não dizê-

amoreiras do outro lado da rua. Suas duas irmãs, paquidérmicas em seus

lo em voz alta nem para si mesmo. A mãe de sua mãe tocou-lhe o

vestidos de domingo, e sua mãe e a irmã dela, com seu vestidos de chita

ombro.

e toucas de sol, já estavam lá dentro, sentadas em cima e entre os

– Tá doendo? ela disse.

míseros restos de mais de uma dúzia de mudanças de que o menino se

– Ná, ele disse. Dói não. Me deixa.

lembrava – o fogão alquebrado, camas e cadeiras arrebentadas, o relógio

– Porque qu’ocê num limpa um pouco desse sangue antes que

incrustado de madrepérola parado exatamente quatorze minutos depois

seque?

das duas horas de um dia e tempo mortos e enterrados e que havia sido o

– Vou lavar hoje à noite, ele disse. Me deixa, já disse.

dote de sua mãe. Ela chorava, mas quando o viu enxugou o rosto com a

A carroça seguiu seu caminho. Ele não sabia para onde estavam

manga da camisa e fez menção de descer da carroça.

indo. Nenhum deles jamais perguntou, porque havia sempre um lugar,

– Volta, disse o pai.

sempre uma espécie de casa esperando por eles depois de um dia ou

– Ele está machucado. Eu tenho que pegar água para lavar a...

dois dias ou mesmo três dias de viagem. Provavelmente seu pai já havia acertado trabalhar de meeiro em uma outra fazenda antes de... De novo

4

No original Locust. Essa árvore encontrada na América do Norte recebeu esse nome em referência a árvore bíblica que prove São João Batista do “mel silvestre” com o qual o profeta se alimenta durante sua peregrinação (Mateus 3:4, Marcos 1:6). A árvore bíblica é a Ceratonia siliqua que possui uma fava adocicada.

ele interrompeu a si mesmo. Ele (o pai) sempre o fez. Havia algo sobre a sua independência ferrenha como a de um lobo e mesmo sua coragem quando a vantagem era pelo menos neutra que impressionava os

3

estranhos, como se eles derivassem de sua ferocidade demente não tanto

Mas não eram essas as coisas que ele pensava agora e ele tinha

um senso de confiabilidade mas a impressão de que sua convicção feroz

visto aquelas mesmas fogueirinhas mesquinhas toda a sua vida. Ele

no acerto de suas próprias ações seria vantajosa para qualquer um cujo

simplesmente comeu a janta ao lado do fogo e já estava quase dormindo

interesse se alinhasse com o seu.

sobre o seu prato de metal quando seu pai o chamou, e uma vez mais ele

Aquela noite eles acamparam em um bosque entre carvalhos e

seguiu as costas rígidas, o passo manco rígido e insensível, subindo o

faias onde corria uma fonte. As noites ainda estavam frias e contra ela

morro e prosseguindo pela estrada iluminada pelas estrelas onde,

eles fizeram um fogo de um varão arrancado de uma cerca próxima e

voltando-se, ele podia ver seu pai contra as estrelas mas sem rosto ou

cortado no comprimento – um foguinho, asseado, quase mesquinho, um

profundidade – uma vulto negro, achatado, inanimado como se fora

fogo sagaz; fogueiras assim eram hábito e costume do seu pai, mesmo

cortado de uma chapa de lata nas dobras do casaco que não havia sido

no tempo gelado. Fosse mais velho, o menino teria se apercebido disso e

feito para ele, a voz áspera como lata e sem calor como lata:

se perguntado porque não um fogueira grande; porque é que um homem

– Cê ia falar pra eles. Ce teria falado pra ele. Ele não respondeu.

que não apenas havia testemunhado o desperdício e extravagância dos

Seu pai bateu nele com a palma da mão, com força mas sem emoção,

tempos de guerra como tinha em seu próprio sangue uma prodigalidade

exatamente como ele havia açoitado as duas mulas na saída da venda,

voraz com tudo o que não lhe pertencia não queimava simplesmente

exatamente como ele golpearia qualquer uma delas com um porrete para

tudo o que visse pela frente? Então ele talvez desse mais um passo

matar uma mosca varejeira, sua voz ainda desprovida de emoção ou

adiante em seu raciocínio e pensasse este era o motivo: que aquela

raiva: cê já tá virando homem. Tem que aprender. Cê tem que ficar do

chama mesquinha era o fruto vivo de noites passadas durante aqueles

lado do sangue do seu sangue senão cê acaba sem ninguém do seu

quatro anos fugindo de todos os homens, em uniforme cinza ou azul,

sangue pra ficar do seu lado. Cê pensa que algum deles, qualquer um

com seus cavalos em fileira (cavalos capturados, ele os chamava). E se

daquele povo lá hoje ficava do seu lado? Cê não sabe que o que eles

mais velho ainda, ele talvez adivinhasse a verdadeira razão: que o

queriam era uma chance de me pegar porque eles sabiam que eu tinha

elemento fogo falava a algum veio profundo do seu pai como um ser,

pego eles de jeito? Hein? Mais tarde, vinte anos mais tarde, ele iria dizer

como o elemento aço ou pólvora falam a outros homens, como a sua

para si mesmo, “se eu dissesse que eles só queriam a verdade, justiça,

arma para a preservação da sua integridade, sem a qual a vida não valia

ele teria me batido de novo”. Mas agora ele não disse nada. Ele não

ser vivida, e portanto algo que devia ser visto com respeito e usado com

estava chorando. Ele só ficou ali, em pé.

prudência.

– Me responde, seu pai disse. – Sim, ele respondeu num sussurro. Seu pai voltou-se.

4

– Vai pra cama. Nós vamos chegar lá amanhã. No dia seguinte eles chegaram. No começo da tarde a carroça parou em frente a uma casa de dois cômodos sem pintura, quase idêntica

– Abner, sua mãe falou. Seu pai parou e olhou para trás – o olhar fixo áspero inabalável por baixo das sobrancelhas peludas, grisalhas, irascíveis.

a uma dúzia de outras casas anteriores nos dez anos de vida do menino,5

– Acho que eu vou ter uma palavra com o homem que quer a

e outra vez, como em uma dúzia de ocasiões, sua mãe e sua tia desceram

partir de amanhã ser proprietário meu de corpo e alma pelos próximos

e começaram a descarregar a carroça, ainda que suas duas irmãs e seu

oito meses.6

pai e seu irmão não movessem um dedo. – Capaz de não servir nem prum porco, uma de suas irmãs disse.

Eles retomaram a estrada. Há uma semana – ou seja, antes da noite anterior – o menino perguntaria ao pai onde estavam indo, mas agora não. Seu pai tinha lhe batido outras vezes antes da noite anterior,

– Mesmo assim é ela que vai servir e cê vai engordar nela e

mas ele nunca havia explicado depois o porquê; era como se o golpe e o

gostar dela, seu pai respondeu. Tira essas cadeiras aí e ajuda sua mãe a

tom de voz posterior, calmo, ultrajado, ainda soassem, repercutissem,

descarregar.

divulgando nada além da terrível desvantagem que era ser jovem, o peso

As duas irmãs desceram, grandes, bovinas, num farfalhar de

leve dos seus anos, pesado o bastante na medida apenas para preveni-lo

laço de fita barata; uma delas puxou da carroça em desordem uma

de levantar vôo e livrar-se do mundo como lhe parecia ordenado mas

lanterna arrebentada e a outra uma vassoura gasta. Seu pai deu as rédeas

não pesado o suficiente para mantê-lo solidamente assentado no mundo

ao irmão mais velho e começou a descer com movimentos rijos pela

para resistir-lhe e tentar mudar o curso dos eventos.

roda da carroça.

Agora ele podia ver o bosque de carvalhos e cedros e outras

– Quando elas acabarem de descarregar, cê leva as mulas pro

árvores e arbustos floridos onde estava a casa, embora não a casa ainda.

celeiro e dá de comer. Então o pai disse, e inicialmente o menino achou

Caminharam ao lado da cerca carregada de madressilvas e rosas

que ele ainda se dirigia ao seu irmão: Você vem comigo.

Cherokee7 até chegar ao portão aberto entre dois pilares de alvenaria, e

– Eu? ele disse. – É, disse o seu pai. Você.

5

A casa de dois cômodos [“dog-trot cabin”] é típica do Mississippi rural e uma família de meeiros como a dos Snopes mudava-se com bastante frequência, quse todo o ano, em busca de trabalho em melhores condições.

6

Um meeiro como Abner pagava o aluguel pela terra em que trabalhava com parte da colheita. O sistema surgiu após a Guerra Civil com o fim da escravidão e o endividamento dos meeiros, que compravam suplementos, ferramentas, mantimentos etc. com crédito em uma venda controlada pelos proprietários, reduzia-os, principalmente em anos de má colheita, a um estado de quase escravidão. 7 Ambas espécies, Lonicera japonica e Rosa Laevigata não são nativas da região. Foram trazidas da Ásia pelos colonizadores espanhóis que disputaram a região com os franceses e depois com os estadounidenses.

5

agora, além de uma curva do caminho, ele via a casa pela primeira vez e

porque, ainda que ele não pudesse ter pensado em palavras tudo isso

naquele instante esqueceu seu pai e tanto o terror quanto o desespero, e

também, caminhando sob o encanto da casa, que ele podia até mesmo

mesmo quando lembrou-se de novo de seu pai (que não havia parado) o

desejar mas sem inveja, sem lástima, certamente sem ter sequer aquela

terror e o desespero não voltaram. Porque, apesar de todas as doze

cólera enlouquecida e ciumenta que ele desconhecia e que caminhava ali

mudanças, eles só haviam residido em lugares pobres, terra de

diante dele naquele casaco negro como ferro: talvez ele sinta também.

proprietários e campos e casas pequenos, e ele nunca havia visto uma

Talvez ele até mude de agora em diante e deixe de ser aquilo que talvez

casa como aquela antes. É grande feito uma corte de justiça ele pensou

ele não pudesse deixar de ser.

em silêncio, num surto de paz e alegria cuja razão ele não poderia

Eles atravessaram o pórtico. Agora ele podia ouvir o pé cambeta

elaborar em palavras, sendo ele novo demais para isso: eles não correm

de seu pai bater com a constância de um relógio nas tábuas, um som

perigo com ele. Pessoas cujas vidas fazem parte dessa paz e dignidade

desproporcional em relação ao corpo que o produzia e que não era

estão além do seu alcance, ele para eles não é mais que uma vespa

diminuído nem pela porta branca a frente, como se tivesse adquirido

zumbindo: capaz de ferroar por um instante e só isso; o encanto dessa

uma espécie de mínimo voraz e cruel que não poderia ser diminuído por

paz e dignidade fazendo com que mesmo os celeiros e estábulos e

nada – o chapéu negro, de largas abas planas, a jaqueta formal de tecido

chiqueiros que pertencem a ele sejam intocáveis pelas chamas débeis

fino que um dia havia sido preto e tinha agora o tom esverdeado

que ele é capaz de tramar ... isso, a paz e a alegria, num refluxo de um

brilhante do corpo daquelas moscas varejeiras grandes, a manga

instante enquanto ele olhava mais uma vez para as costas negras e

arregaçada comprida demais, a mão erguida feito uma garra enrolada. A

rígidas do seu pai, a andadura rígida e implacável da figura que não era

porta abriu tão prontamente que o menino percebeu que o negro já os

diminuída pela casa, pela simples razão de que nunca parecia grande em

observava pela janela desde o começo, um velho com o cabelo eriçado

qualquer lugar e que agora, em contraste com o fundo de colunas, tinha

bem arrumado, vestido numa casaca de linho, que postou-se de pé

mais

barrando a entrada com seu corpo, dizendo, “limpa os pés, branquelo,

que

nunca

a

qualidade impenetrável

de algo cortado

grosseiramente de uma chapa de latão, sem profundidade, como se, ao

mó de entrar aqui. De todo jeito o Major num tá em casa agora.”

lado do sol, ela não projetasse sombras. Observando-o, o menino

– Sai da minha frente, crioulo, disse seu pai, de novo sem

reparou o curso absolutamente invariável que seu pai mantivera até ali e

exaltação, empurrando com violência a porta e o negro também e

viu o pé cambeta pisar em cheio em um monte fresco de esterco onde

entrando, seu chapéu ainda posto na cabeça. E agora o menino viu as

estivera parado um cavalo na estrada, que seu pai poderia ter evitado

marca do pé cambeta no umbral da porta e as viu aparecer no tapete

com uma simples troca de passo. Mas cresceu só por um momento

claro logo após o pé deliberadamente maquinal que parecia carregar (ou

6

transmitir) duas vezes o peso que o corpo abarcava. O negro gritava 8

sequer uma vez ele olhou para o tapete. O negro segurou a porta. Esta

“Dona Lula! Dona Lula!” atrás dos dois, então o menino, submerso

fechou-se atrás dos dois, deixando para trás o som de uma lamúria

como se por uma onda cálida pela volta elegante da escada acarpetada e

feminina histérica, indistingüível. Seu pai parou no topo da escadaria e

o brilho pendente dos candelabros e a centelha muda das molduras

limpou as botas na beirada do degrau. No portão ele parou outra vez.

douradas, ouviu os passos apressados e viu a mulher também, uma dama

Ficou ali parado por um instante firmemente plantado no seu pé

– talvez ele nunca tivesse visto alguém assim antes – num vestido cinza

cambeta, os olhos voltados para a casa. “Bonita e branquinha, né

liso com um laço de fita na garganta e um avental amarrado na cintura e

mesmo?” ele disse. “Aquilo é feito de suor. Suor de crioulo. Vai ver que

as mangas arregaçadas, limpando a massa de bolo ou pão das suas mãos

ainda não está branco o suficiente para ele. Vai ver que ele ainda quer

com uma toalha enquanto aparecia pelo hall, olhando não para seu pai,

misturar um pouco de suor de branco nela.”

de maneira alguma, mas para as marcas no tapete claro com uma expressão de consternação incrédula.

Duas horas depois o menino estava rachando lenha atrás da casa onde sua mãe, sua tia e suas duas irmãs (a mãe e a tia, não as duas

– Eu tentei, disse o negro. Eu disse pra ele...

meninas, ele sabia; mesmo ali, distantes e amortecidas pelas paredes, as

– Você poderia por favor retirar-se? ela disse com a voz

vozes altas e desafinadas das duas meninas emanavam uma incorrigível

trêmula. O Major de Spain não se encontra em casa. Você poderia por

e indolente inércia) estavam preparando o fogão para fazer a comida,

favor retirar-se?

quando ele ouviu os cascos e viu o homem vestido de linho montado em

Seu pai não abrira mais a boca. E não abriu a boca de novo. Ele

uma linda égua cor-de-canela, que ele reconheceu antes mesmo de ver o

nem sequer olhou para ela. Apenas plantou-se rígido bem no centro do

tapete enrolado na frente do jovem negro que o seguia em um cavalo

tapete, com seu chapéu na cabeça, as sobrancelhas cinza-ferro

baio gordo, de puxar carroça – um rosto encoberto raivoso

desgrenhadas contraindo-se ligeiramente sobre os olhos cor de seixo

desaparecendo, ainda em pleno galope, além do canto da casa em que

rolado enquanto ele parecia examinar a casa com deliberação breve.

seu pai e seu irmão estavam sentados em duas cadeiras tombadas; e no

Então ainda com a mesma deliberação ele deu a volta; o menino o viu

instante seguinte, quase antes que ele pudesse colocar o machado no

girar na perna boa e viu o pé capenga girar em arco deixando um último

chão, ele ouviu os cascos de novo e assistiu a égua cor-de-canela sair do

borrão sobre o tapete. Seu pai nunca sequer olhou para o borrão, nem

terreiro, já galopando outra vez. Então seu pai começou a gritar o nome de suas duas irmãs, que neste momento emergiam pela porta da cozinha,

8

No original “Miss Lula,” o tratamento Miss com o primeiro nome da pessoa é típico apenas do sul dos Estados Unidos e indica respeito por questões de idade ou, neste caso, raça e classe social.

uma arrastando o tapete enrolado pelo chão enquanto a outra o seguia.

7

– Já que cê não vai carregar, vai lá e arruma a bacia, disse a primeira. – Ô, Sarty! gritou a segunda, vai lá arrumar a bacia! Seu pai apareceu na porta, emoldurado por aquele desvelo do mesmo jeito como

voltar-se para ele, e ele tornou ao machado e viu pelo canto dos olhos seu pai erguer do chão um pedaço meio chato de pedra do campo e examiná-lo e voltar para a bacia e dessa vez sua mãe de fato falou: Abner. Abner, por favor não. Por favor, Abner.

quando estava no meio daquela suave perfeição da casa-grande,

Aí ele terminou o seu serviço também. Estava escurecendo; os

insensível a qualquer um dos dois, o rosto preocupado da mãe

curiangos já tinham começado a aparecer. Ele sentia o cheiro de café do

aparecendo por trás do seu ombro.

cômodo onde eles agora comiam a comida fria que sobrara da refeição

– Vai, disse o pai, pega a bacia. As duas irmãs pararam, anchas,

do meio da tarde, ainda que quando ele entrasse na casa, ele percebesse

letárgicas; abaixando-se elas exibiam uma quantidade formidável de

que eles estavam tomando café de novo provavelmente porque o fogo

pano claro e um farfalhar de fitas espalhafatosas.

estava aceso na lareira, na frente do qual estava o tapete pendurado no

– Se eu ligasse tanto assim pra um tapete que fosse trazer ele lá

espaldar de duas cadeiras. As marcas dos pés do seu pai tinham

da França eu não largava ele onde o povo fosse patear nele, disse a

desaparecido. No lugar delas havia agora escoriações compridas como

primeira. Elas ergueram o tapete.

manchas d’água que pareciam o caminhar esporádico de um

– Abner, disse sua mãe. Me deixa fazer o serviço. – Cê volta lá pra dentro e trata de arrumar a janta, seu pai respondeu. Eu vou tomar conta disso aqui.

homemzinho lilipudiano com seu ínfimo cortador de grama. O tapete ainda estava pendurado ali enquanto eles comiam a comida fria e depois quando foram dormir, espalhados de forma

Da pilha de lenha por todo o resto da tarde o menino observou

desordenada e sem sentido pelos dois quartos, sua mãe em um quarto,

as duas, o tapete estirado na poeira ao lado da bacia, as duas irmãs

onde seu pai depois iria se deitar, o irmão mais velho no outro, ele

debruçadas sobre o tapete com aquela relutância profunda e letárgica,

mesmo, a tia e as duas irmãs em catres no chão. Mas seu pai ainda não

enquanto o pai ficava ali em cima das duas, implacável e austero,

estava na cama. A última coisa de que o menino se lembrava era a

mandando-lhes trabalhar mas nunca levantando o tom de voz outra vez.

silhueta dura e sem profundidade do chapéu e do casaco debruçado

Ele podia sentir o cheiro áspero de lixívia9 feita em casa que elas

sobre o tapete e parecia para o menino que ele não tinha sequer fechado

usavam; ele viu a mãe chegar até a porta e olhar para eles agora com

os olhos quando a silhueta apareceu em pé acima dele, o fogo quase se

uma expressão, não de preocupação, mas de desespero; viu seu pai

apagando atrás dela, o pé cambeta cutucando o menino para acordá-lo. – Pega a mula, seu pai disse.

9

No original, “lye”, aqui uma receita caseira, feita de cinzas e água, de solução alcalina altamente corrosiva para a lavagem de roupas

8

Quando ele voltou com a mula seu pai estava em pé na porta escura, o tapete enrolado nas costas.

– Podemos ir os dois montados agora. A luz dentro da casa alterando-se agora, tremeluziu e apagou-se. Ele está descendo os

– O senhor não vai montar? ele perguntou.

degraus agora, ele pensou. Ele já tinha levado até a mula até o toco;

– Não. Me dá o seu pé.

neste momento seu pai estava montado por trás dele e o menino dobrou

Ele dobrou seu joelho dentro da mão do seu pai, a força enxuta

as rédeas na mão e chicoteou o pescoço da mula, mas antes que o

e forte, surpreendente, fluindo com suavidade, subindo, ele subindo com

animal começasse a trotar o braço magro e duro passou por ele e a mão

ela, no lombo nu da mula (eles já tinham tido uma sela; o menino podia

nodosa puxou o cabresto e pôs a mula de volta na andadura normal.

lembrar-se ainda que não soubesse quando ou onde) e com a mesma

Aos primeiros raios avermelhados do sol eles estavam no

facilidade seu pai alçou o tapete à sua frente. Agora a luz das estrelas

terreno, colocando o arado nas mulas. Dessa vez a égua baia chegou ao

retraçava o caminho da tarde, pela estrada poeirenta repleta de

terreno antes mesmo que eles a escutassem, o cavaleiro em manga de

madressilvas, através do portão pelo túnel negro da estrada que levava

camisa e com a cabeça descoberta, tremendo, falando com uma voz

até a casa toda apagada, onde, sentado no lombo da mula, ele sentiu o

trêmula como a da mulher na casa, seu pai meramente olhando uma vez

repelão brusco do tapete arranhando suas coxas até desaparecer.

para cima antes de debruçar-se de novo sobre o timão que ele prendia ao

– O senhor quer que eu ajude? ele sussurrou. Seu pai não

animal, de maneira que o homem falava para as suas costas curvadas:

respondeu e agora ele escutava de novo aquele pé cambeta golpeando

– Você deve estar ciente de que estragou completamente aquele

madeira oca do pórtico com aquela deliberação mecânica e surda, aquele

tapete. Não havia ninguém aqui, alguma das mulheres da família... ele

exorbitante exageração do peso que de fato carregava. O tapete,

parou, tremendo, o menino olhando-o, o irmão mais velho apoiado

empurrado, não arremessado (o menino sabia, mesmo na escuridão) dos

agora na porta do estábulo, mascando, piscando devagar e

ombros de seu pai, bateu no canto entre a parede e o chão com um som

constantemente aparentemente para o nada. Custou cem dólares. Mas

incrivelmente alto, estrondoso, e então o pé de novo, sem presa, enorme;

você nunca na vida teve cem dólares. Nem nunca vai ter. Então eu vou

uma luz se acendeu na casa e o menino esperando sentado, tenso,

lhe cobrar vinte fardos de grão da sua colheita. Vou adicionar isso ao

respirando pausada e silenciosamente e só um pouco rápido, embora o

seu contrato e quando você vier ao comissário10 você pode assiná-lo.

pé em si não acelerasse suas batidas em absoluto agora que descia os

Não que isso vá acalmar a Senhora de Spain mas quem sabe não lhe

degraus; agora o menino podia vê-lo.

ensina a limpar os pés antes entrar na casa dela de novo.

– O senhor quer ir montado agora?, ele perguntou num sussuro. 10

“Comissary” neste caso é a venda de secos e molhados que fica dentro da propriedade do Major e é freqüentada por seus meeiros.

9

Então o homem sumiu na estrada. O menino olhou para o seu pai, que ainda não tinha falado nada ou mesmo levantado os olhos outra

pai não estando presente, tendo saído montado em uma das mulas, ele foi ao campo.

vez, que estava agora ajustando a chavelha ao timão.

Eles estavam passando a charrua agora, seu irmão segurando o

– Pai, ele disse. Seu pai olhou para ele – o rosto inescrutável, as

arado em linha reta enquanto seu pai manejava as rédeas, e andando ao

sobrancelhas amarfanhadas por baixo das quais os olhos acinzentados

lado da mula que se esfalfava, o solo negro rico ceifando cálido e úmido

exibiam um brilho frio. De repente o menino caminhou em sua direção,

contra seus tornozelos nus, ele pensou quem sabe não vai ficar nisso

apressado, parando tão abruptamente quanto tinha começado.

mesmo. Quem sabe os vinte fardos que parecem demais para pagar por

– O senhor fez o melhor que podia! ele gritou. Se ele queria

um tapete não ficam baratos se ele parar para sempre e sempre de ser

outra coisa por que é que não ficou aqui e explicou como é que ele

como ele costumava ser; pensando, sonhando agora, de forma que seu

queria. Ele não vai ficar com trinta fardos! Não vai ficar nem com

irmão teve que chamar-lhe a atenção para que ele prestasse atenção na

nenhum! A gente pega o fardo e esconde! Eu posso vigiar...

mula: quem sabe ele nem vai cobrar os vinte fardos. Quem sabe não vai

– Você já pôs a relha de volta na aiveca igual eu falei?

tudo ser somado e descontado e desaparecer – grão, tapete, fogo; o

– Não senhor, ele respondeu.

terror e o pesar, esse sentir-se puxado para dois lados como se estivesse

– Pois então vai lá fazer o que eu mandei.

entre duas parelhas de cavalos – acabou, foi-se de uma vez para todo o

Isso foi na quarta-feira. Durante o resto da semana ele trabalhou

sempre e sempre.

firme, naquilo que era sua obrigação e além dela, com uma diligência que não precisava ser mando nem comando duas vezes; ele tinha

Então chegou o sábado; ele olhou para cima e por baixo da mula em que estava pondo o arreio viu seu pai no casaco e chapéu pretos.

puxado isso de sua mãe, com a diferença que pelo menos alguma coisa

– Esse arreio não, disse o seu pai. O da carroça.

do que ele fazia ele gostava de fazer, por exemplo cortar lenha com a

E então, duas horas depois, sentado no leito da carroça atrás do

11

machada que sua mãe e sua tia tinham ganho com trabalho, ou com

assento onde estavam seu pai e seu irmão, a carroça completou uma

dinheiro economizado sabe-se lá como, para dar-lhe de presente no

última curva e ele viu uma venda envelhecida sem traço de pintura com

Natal. Na companhia das duas mulheres mais velhas (e numa tarde, até

cartazes esfrangalhados de anúncios de tabaco e remédio milagrosos12 e

mesmo uma das irmãs), ele construiu cercados para o leitão e a vaca que

as carroças arriadas e animais selados logo abaixo da varanda. Ele subiu

eram parte do contrato de seu pai com o proprietário, e uma tarde, seu 12 11

Machado de pequeno porte, do tamanho adequado para crianças menores cortarem lenha.

No original “patent-medicine”, remédios pretensamente milagrosos, vendidos agressivamente com a ajuda da então nascente publicidade em anúncios e cartazes.

10

os degraus carcomidos atrás de seu pai e irmão, e de novo lá estava a multidão de rostos quietos, observando, formando uma fileira pela qual

– Mas você não levou o tapete de volta a ele no mesmo estado em que ele estava quando você fez as marcas nele.

os três tinham que passar. Ele viu o homem de óculos sentado na mesa

Seu pai não respondeu, e agora talvez por meio minuto não

feita com uma prancha de madeira e ninguém precisava dizer-lhe que

havia qualquer ruído exceto a respiração tênue, constante de um escutar

aquele era o Juiz de Paz; e o menino tinha no rosto agora um olhar fixo

absoluto e atento.

de desafio feroz, exultante, aguerrido, dirigido ao homem de colarinho e

– O senhor se recusa a responder a pergunta, Senhor Snopes?

gravata que ele vira apenas duas vezes antes em sua vida, e mesmo

De novo seu pai não respondeu. Eu vou julgar contra o senhor, Senhor

assim montado em um cavalo a galope, que agora trazia em seu rosto

Snopes.

uma expressão não de raiva mas de espanto incrédulo que o menino não

– Vou julgá-lo culpado pelo dano feito ao tapete do Major de

teria como saber dizia respeito a inacreditável circunstância de ele estar

Spain e considerá-lo legalmente responsável por esse dano. Mas vinte

ali sendo processado por um de seus próprios meeiros, e o menino veio

fardos de grão me parecem uma quantidade um pouco elevada para um

e postou-se à frente de seu pai e gritou ao Juiz:

homem nas suas condições pagar. Major de Spain alega que o tapete

– Não foi ele! Ele num queimou...

custa cem dólares. O grão em outubro deve estar em torno de 50

– Volta pra carroça, disse o seu pai.

centavos. Suponho que se o Major de Spain pode arcar com o prejuízo

– Queimou? perguntou o Juiz. Será que entendi que o tapete foi

de 95 dólares com algo que ele pagou em dinheiro, o senhor pode arcar

também queimado? – E alguém aqui diz que foi? seu pai respondeu. Volta pra carroça.

com um prejuízo de cinco dólares que ainda não ganhou. Eu o considero a partir de agora em débito para com o Major de Spain na quantia de dez sacas de grão além do contrato que o senhor assinou com ele, a serem

Mas ele não obedeceu, ele apenas recolheu-se ao fundo da sala,

pagos com parte da sua safra na época da colheita. Corte suspensa.

cheia de gente como a outra também havia estado, mas não para sentar-

Aquilo tudo não tomou quase tempo algum, a manhã ainda mal

se como da outra vez, mas para ficar em pé apertando os outros corpos

tinha começado. Ele achava que eles voltariam para casa e talvez

inertes, ouvindo às vozes:

retornassem ao campo, já que estavam atrasados, bem atrás dos outros

– E você alega que vinte fardos é demasiado para o dano feito ao tapete? – Ele me trouxe o tapete e disse que queria que eu lavasse as marcas dele. Eu lavei as marcas e levei o tapete de volta para ele.

lavradores. Mas ao invés disso seu pai passou por trás da carroça, meramente indicando com a mão que o irmão mais velho seguisse com ela, e cruzou a estrada em direção ao ferreiro do outro lado da rua, o menino correndo apressado atrás de seu pai, alcançando-o, falando,

11

sussurrando as palavras para o rosto duro, calmo embaixo do chapéu

onde ele parou perante um pôster esfrangalhado do circo que passara há

envelhecido:

um ano, olhando embasbacado e quieto os cavalos escarlates, as

– Ele não vai botar a mão nem nas dez sacas. Ele não vai botar a mão em nada. A gente vai... – até que seu pai olhou brevemente para ele, o rosto absolutamente calmo, as sobrancelhas grisalhas embaraçadas acima dos olhos frios, a voz quase agradável, quase gentil: – Você acha mesmo? Bom, vamos esperar até outubro de qualquer jeito.

inacreditáveis poses e convoluções de tule e coxas e esgares maliciosos dos comediantes, e disse, “está na hora de comer”. Mas não em casa. De cócoras ao lado do seu irmão encostados na parede da frente, ele viu seu pai emergir da venda e tirar de um saco de papel um pedaço de queijo e dividi-lo cuidadosa e deliberadamente em três com seu canivete e tirar do mesmo saco biscoitos. Os três

O problema com a carroça – arrumar um ou dois da roda e

puseram-se de cócoras na galeria e comeram, devagar, sem falar; depois,

apertar o pneu – não tomou muito tempo também, o assunto dos pneus

na venda de novo, beberam de uma caneca de latão a água tépida

resolvido quando levaram a carroça até o córrego no fundo da oficina e

recendendo ao cedro do balde e das faias vivas. E ainda então não

deixaram-na lá, as mulas fuçando a água de tempos em tempos e o

voltaram para casa. Dessa vez foram até um curral de cavalos, uma

menino no assento do motorista segurando as rédeas frouxas, olhando

cerca alta de varão, ao longo da qual um a um os cavalos eram levados,

para o morro pelo túnel cheio fuligem do barracão onde o martelo, lento,

para serem testados na andadura e no trote e depois meio-galope para

soava e onde seu pai estava sentado numa tranca de cedro virada de

frente e para trás pela estrada enquanto o lento movimento de troca e

cabeça para baixo, à vontade, conversando ou só escutando a conversa,

venda prosseguia e o sol começava a curvar-se para o oeste, eles – os

ainda sentado ali quando o menino trouxe a carroça pingando água do

três – observando e ouvindo, o irmão mais velho com seus olhos cor de

córrego e parou-a na frente da porta.

lama e seu mascar de tabaco regular e inevitável, o pai comentando de

– Leva elas pra sombra e amarra a carroça lá, disse o pai. Ele fez o que lhe mandaram e voltou. Seu pai e o ferreiro e um terceiro

vez em quanto sobre alguns dos animais para nenhum ouvinte em particular.

homem sentado de cócoras nos calcanhares dentro da oficina estavam

Chegaram em casa depois do pôr do sol. Comeram então a janta

conversando, sobre colheitas e animais; o menino, de cócoras também

à luz do lampião, sentados nos degraus da entrada, o menino observando

na poeira com cheiro de amoníaco e retalhos de cascos e crostas de

a noite completar-se em sua plenitude, escutando os curiangos e os

ferrugem, escutou seu pai contar sem pressa uma longa história de antes

sapos, quando ouviu a voz de sua mãe:

do nascimento do seu irmão quando ele vivia do comércio com cavalos.

– Abner! Não! Não! Ai, meus Deus. Ai, meu Deus, Abner! e ele

E então seu pai aproximou-se de onde ele estava no outro lado da venda

levantou-se, deu uma volta e viu a luz alterada pela porta onde um toco

12

de vela queimava enfiada no gargalo de uma garrafa sobre a mesa e seu

da lata13 enquanto ele corria de volta para casa e entrava, na direção do

pai, ainda com chapéu e casaco, ao mesmo tempo formal e burlesco

som do choro de sua mãe no quarto ao lado, até entregar a lata nas mãos

como se estivesse vestido cuidadosamente para algum cerimonial de

de seu pai.

violência esculhambado, esvaziando o tanque do lampião de volta num latão de cinco galões de querosene de onde ele havia saído enquanto a

– Senhor não vai pelo menos mandar um crioulo? ele chorava. Da outra vez pelo menos o senhor mandou um crioulo!

mãe puxava-o pelo braço, até que ele trocou o lampião para a outra mão

Dessa vez seu pai não bateu nele. A mão veio ainda mais rápido

e atirou-a, não selvagem ou cruelmente, apenas com força, contra a

que o golpe, a mesma mão que havia colocado a lata em cima da mesa

parede, as mãos dela atiradas contra a parede em busca de equilíbrio, a

com cuidado quase excruciante saiu num raio da lata em sua direção,

boca dela aberta e no seu rosto o mesmo desespero desesperançado

mais rápido do que ele poderia acompanhar, segurando-o pelas costas da

presente em sua voz. Então seu pai o viu em pé na porta.

sua camisa até deixá-lo na ponta dos pés antes que ele se apercebesse

– Vai no celeiro e pega aquela lata de óleo que a gente tava

que a mão havia largado o latão, o rosto abaixando-se até ele numa

usando pra lubrificar a carroça, ele disse. O menino não se mexeu e

ferocidade sem fôlego e congelada, a velha voz morta por cima dele

então conseguiu falar:

dirigindo-se ao irmão mais velho que se encostava na mesa, mascando

– O que é... ele chorava. O que é que você vai...

com aquele movimento lateral curioso e constante das vacas:

– Vai pegar o óleo, disse seu pai. Vai.

– Esvazia o lata toda no latão grande e vai. Eu te alcanço.

Então ele se mexeu, correndo, fora da casa, na direção ao

– É melhor amarar ele no pé da cama, disse o irmão.

estábulo: era o velho hábito, o velho sangue que ele não teve a

– Faz o que eu te mandei, o pai respondeu. Então o menino

permissão de escolher para si, que ele tinha herdado quer queira quer

começou a se mexer, sua camisa amarfanhada e a mão nodosa entre suas

não e que tinha por tanto tempo corrido (e que ele sabia onde,

clavículas, os dedos do pé mal tocando o chão, atravessando o quarto e

alimentando-se de que senão ultraje e selvageria e desejo) antes de

entrando no outro cômodo, passando pelas irmãs sentadas com as coxas

chegar a ele. Eu podia seguir em frente, ele pensava. Eu podia começar

grossas esparramadas nas duas cadeiras perto da lareira apagada até

a correr e correr e correr e nunca mais olhar para trás, nunca mais

onde estavam sua mãe e sua tia sentadas lado a lado na cama, os braços

precisar olhar para a cara dele outra vez. Só que eu não posso. Não

da tia em volta dos ombros da mãe.

posso, agora a lata enferrujada em sua mão, o barulho do líquido dentro 13

No original F. usa o neologismo “splosh”, verbo onomatopéico que parece misturar splash e slosh.

13

– Segura ele, o pai mandou. A tia fez um movimento assustado.

impressionante vastidão de formas jovens de mulher alheia a qualquer

Você não, disse o pai. Lennie, segura ele. Quero ver você segurar ele.

surpresa, vestindo apenas uma vaga expressão de interesse bovino.

Sua mãe tomou-lhe pelos pulsos. Você vai segurar com mais força. Se

Então ele saiu do quarto, saiu da casa, na poeira branda da estrada

ele se soltar, você não sabe o que ele vai fazer? Ele vai acabar parando

iluminada pelas estrelas e o predomínio pesado das madressilvas, a

lá. Ele torceu a cabeça na direção da estrada. Melhor eu mesmo amarrar

estrada uma fita clara desenrolando-se com maravilhosa lentidão por

ele.

baixo dos seus pés, alcançando finalmente o portão e entrando, – Eu seguro ele, sua mãe sussurrou.

correndo, coração e pulmões latejando, seguindo pela estrada em

– Vamos ver então. Então seu pai foi embora, o barulho do pé

direção à casa iluminada, a porta iluminada. Ele não bateu à porta, ele

cambeta pesado e meticuloso batendo contra as tábuas, até sumir afinal.

entrou de supetão, soluçando em busca de ar, incapaz por um instante de

Então ele começou a lutar. Sua mãe pegou-o com os dois

falar; ele viu o rosto espantado do negro de casaca de linho sem dar-se

braços, ele jogando-se e contorcendo-se contra eles. Ele era mais forte

conta dele quando o negro surgiu.

no fim das contas, ele sabia. Mas ele não tinha tempo para esperar. “Me solta” ele gritou. “Eu não quero ter que bater na senhora!” – Larga o menino! A tia disse. Se ele não for, por Deus, vou eu

– De Spain! Ele gritou, bufou. Onde é que... então ele viu o homem branco emergindo da porta branca pelo hall. O celeiro! ele gritava. O celeiro!

mesma lá na casa do homem!

– O quê? O homem branco disse. O celeiro?

– Você não vê que eu não posso? sua mãe gritou. Sarty! Sarty!

– Isso, o menino gritou. O celeiro!

Não! Não! Me ajuda, Lizzie!

“Pega ele!” O homem branco gritou.

E então ele se livrou. Sua tia ainda tentou agarrá-lo, mas era

Mas de novo era tarde demais. O negro agarrou a sua camisa,

tarde demais. Ele girou, correndo, sua mãe tropeçando até ficar de

mas a manga inteira, apodrecida depois de inúmeras lavações, soltou-se,

joelhos atrás dele, gritando para a irmã dele mais próxima: “Pega ele,

e ele saiu por aquela mesma porta e pela entrada de novo, e de fato não

Net! Pega ele!” Mas era tarde demais também, a irmã (as irmãs eram

havia parado de correr mesmo enquanto gritava na cara do homem

gêmeas, nascidas ao mesmo tempo, e mesmo assim nenhuma das duas

branco.

parecia com a outra agora, superando em volume e peso de carne

Por trás dele o homem branco gritava:

qualquer outro membro da família) nem havia começado a se levantar

– Meu cavalo! Peguem meu cavalo! e ele pensou por um

da cadeira, a cabeça dela, o rosto, apenas ligeiramente torcido,

instante em cortar caminho pelo parque e pular pela cerca até a estrada,

apresentando-se para ele no flash de um momento fugaz como uma

ele não conhecia o parque nem quão alta podia ser a cerca coberta de

14

trepadeiras e não ousava arriscar. Então ele correu pela entrada, sangue

apontado para a mata escura onde ele entraria quando recuperasse o

e fôlego rugindo; no presente ele estava de novo na estrada embora ele

fôlego, pequeno, tremendo com regularidade no frio da escuridão,

não pudesse vê-la. Ele não podia escutar tampouco: o galope da égua

abraçando-se com os braços metidos dentro do que sobrara da sua

estava quase atrás dele antes que pudesse ouvi-la e mesmo assim ele

camisa puída, a tristeza e o desespero agora não mais terror e medo mas

manteve seu curso, como se a urgência mesma de seu pesar e

apenas tristeza e desespero. Pai. Meu pai, ele pensava.

necessidade enlouquecidos devessem em mais um momento dotá-lo de

– Ele foi um bravo! O menino falou em voz alta de repente, em

asas e fazê-lo levantar vôo, esperando até o último instante para então

voz alta mas não alto, não mais que um sussurro: Ele foi! Ele esteve na

atirar-se para um lado e cair na vala da beira da estrada completamente

guerra! Ele esteve na cavalharia do Cornel Sartoris! sem saber que seu

coberta de mato enquanto o cavalo passava como um trovão em frente,

pai tinha ido para aquela guerra como um soldado raso no velho sentido

por um instante uma silhueta furiosa contra as estrelas, o tranqüilo céu

europeu da expressão, sem vestir um uniforme, aceitando a autoridade e

noturno do início do verão que, antes mesmo da passagem do cavalo e

concedendo fidelidade a homem algum, exército ou bandeira alguma,

cavaleiro, manchou-se abrupta e violentamente em direção às estrelas:

indo para a guerra como fez Malbrouck14: pelo saque – não significando

um longo rugido em turbilhão incrível e desprovido de som, borrando as

nada e menos que nada se a presa de guerra era do seu próprio exército

estrelas e o menino saltando de volta para a estrada, correndo outra vez,

ou do inimigo.

sabendo que já era tarde demais e ainda assim correndo mesmo depois

As lentas constelações seguiam o seu curso. Em pouco chegaria

de ouvir o disparo e, no instante seguinte, dois disparos, parando agora

a madrugada e o nascer do sol e ele teria fome. Mas então seria amanhã

sem saber que havia cessado de correr, gritando “Pai! Pai!”, e então

e agora o que ele tinha apenas frio, e caminhar era uma solução para

correndo outra vez antes que percebesse que havia recomeçado a correr,

isso. Seu fôlego já mais tranqüilo agora, decidiu levantar e seguir em

pisando em falso, tropeçando em alguma coisa e pondo-se de novo em

frente, e então percebeu que tinha estado dormindo porque sabia que era

pé sem parar de correr, olhando para trás por cima dos ombros para o

quase alvorada e a noite estava quase no seu fim. Ele sabia por causa

clarão enquanto punha-se em pé, continuando a correr por entre as árvores invisíveis, bufando, chorando aos soluços, “Meu pai! Meu pai!” À meia-noite ele estava sentado na crista de um morro. Ele não sabia que era meia-noite e não sabia o quanto havia caminhado. Mas já não havia clarão atrás e ele estava sentado, com as costas para o que ele chamara de qualquer maneira lar ainda que por quatro dias, seu rosto

14

Malbrouck é a grafia francesa de Marlborough, o duque inglês John Churchill, famoso no século XVIII pela canção “Malbrouck s'en va-t'en guerre”, versão jocosa dos franceses para a famosa canção inglesa “For He’s a Jolly Good Fellow” [conhecida por nós como “Ele é um bom companheiro”], comentando a participação de Churchill em diversas guerras por motivo de interesse financeiro particular. Jonathan Swift fez ataques virulentos a ambição e ganância desmedidas do duque na Guerra da Sucessão Espanhola [17011714). A atuação de Abner Snopes como ladrão de cavalos durante a Guerra civil é parte importante do romance The Unvanquished de 1938.

15

dos curiangos. Estavam por toda a parte agora, entre as árvores escuras lá embaixo, constantes, inflexíveis e incessantes, de tal forma que, à medida em que o instante em que eles teriam que dar lugar aos pássaros do dia aproximava-se cada vez mais, já não havia intervalo algum entre o vôo de um e de outro. Ele levantou-se. Estava um pouco duro, mas caminhar seria solução para isso também como seria para o frio, e logo chegaria o sol. Ele desceu o morro, na direção da mata escura na qual as líquidas vozes prateadas dos pássaros chamavam incessantes – o ritmo rápido e urgente do urgente coração cantante da noite do final da primavera. Ele não olhou para trás.

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