Dumas e Garibaldi: a Dupla autoriza (Ação)

September 29, 2017 | Autor: Rosemary Brum | Categoria: History, Cultural History, Biography
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1 Dumas e Garibaldi: a dupla autoriza (ação) Rosemary Fritsch Brum 1 NPH/LHO/UFRGS Resumo O texto procede uma análise textual das obras Memórias de Garibaldi, de Alexandre Dumas, tradução Caruccio- Caparole, e Alejandro Dumas: el quinto mosqueteiro, de Henry Troyat. Pretende dialogar com a prática biográfica, recorrendo principalmente ao lingüista russo Mikhail Bakhtin. Palavras-chave: Garibaldi-Dumas-biografia A provocação é uma forma prazerosa de “fazer andar” os textos.E inicia com uma “confissão”: como muitos de nós, conheci Giuseppe Garibaldi pela literatura. Mais precisamente pela “pluma” de Alexander Dumas, na sua obra Memórias de Garibaldi.2 A proposta aqui é uma abordagem que se aproxima da literária, por vezes. E é apenas indicativa ao tratar das faces possíveis de Giuseppe Garibaldi, a projetiva e a construída. Essas faces, embora assemelhadas, não é idêntica uma vez que o instrumental analítico e o “horizonte de expectativas do leitor” são diversos pela intervenção de certas camadas de interpretação. A projeção da face de Giuseppe Garibaldi se refere aos estudos históricos existentes que ressaltam os “rastros”- no bom sentido sugerido pelo filósofo francês Paul Ricoeur - para o entendimento da materialidade possível em História, dessa personagem investida de distintos papéis simbólicos de alta apreciação social no séc.XXI. Em procedimentos de acento comemorativo como o seu Bicentenário (comemorado em 2008), a face positivada da ação transcontinental de Garibaldi prevalece na narrativa predominante. Ainda assim, a “régua” entre o mito e a realidade sobre a ação desse italiano se tenta e dificilmente se obtém as condições de estabelecer para o pesquisador local, fontes documentais menos ‘comemorativas”, uma vez que são poucos os materiais disponíveis no Rio Grande do Sul. Bom seria se ter em mãos documentos como recomenda o prof. Salvatore Candido, o Memorie di...em uma das redações definitivas

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Doutora em História pela PUCRS, Socióloga do NPH/LHO/UFRGS. DUMAS, Alexandre. Memórias de Garibaldi. Tradução de Antonio Caruccio-Caporale Porto Alegre, L&PM, 198. 264 p. 2

2 de 1872, sob responsabilidade da Reale Commissione Nazionale per l´edizione degli scritti di G.G., t.1. BOLOGNA, Apppelli, 1932 . Restaria ao pesquisador ainda a oralidade, não fosse um trabalho de geração perdido nos tempos. Restam os “rastros” e, dentre eles, brilhando nesses emaranhado de versões, biografia e mais biografia de autores intervindo nos distintos momentos de sua longeva vida, no séc. XIX ou os demais, que , como nós, se conformam com as fontes secundárias. A estratégia estabelecida, pois, foi tratar esse Garibaldi não pelas vertentes historiográficas, mas “embaralhar” com jogos de interpretação uma biografia consagrada e que deixou para trás sua oralidade original .Será? É tentador fantasiar, no caso, o que o lingüista suíço Paul Zumthor, leitor de Mikhail Bakhtin, teria a dizer sobre a vocalidade, a performance da voz e do corpo de Garibaldi ao intervirem na textualidade ditada e resignificada por seus biógrafos. Na verdade é tarefa do leitor exercitar sua imaginação e sensibilidade na recepção do texto biográfico, pois esse tem por objetivo nos “iludir” ao trazer o sujeito através dos espelhos da interpretação.3 Dentre as biografias existentes, optou-se por prestar muita atenção a mais divulgada, para o público brasileiro, a Memórias de Garibaldi, do escritor francês Alexande Dumas. A recepção da cultura italiana e sua circulação devem muito a essa tradução. E o imaginário construído em torno de Dumas terá certamente deslocado da literatura alguns atributos sobre o Garibaldi, sujeito da história. Nenhuma leitura é inocente. O primeiro destaque nessa biografia é como não deixar de imaginar (novamente) a cena de Garibaldi ao narrar por alguns dias, sua vida a Dumas. Quantas e quais distintos “gestos” de interpretação (Orlandi, 1996), estaria acionando ao expressar a sua relação entre o seu “real” e o real da história. Nessa linha de interpretação semântica e lingüística, entre o real da língua e o real da história ocorreu a produção de um texto que deve ser entendido em sua inteireza, isto é, como portador de gestos ou atos no domínio simbólico. Essa inscrição no texto vai denotar sempre as posições do sujeito (Garibaldi) que o produziu. Para o biógrafo Dumas, compreender o texto foi tarefa de explicitação da dimensão material do símbolo Garibaldi diante de si.mas não apenas, como se verá mais adiante.

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BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1992.421p.; ZUMTHOR, Paul. Oralidade em tempo e espaço. Colóquio Paul Zumthor,.São Paulo: EDUC, 1999.250p.

3 A partir apenas dessa fonte secundária e ficcional que é uma biografia, é difícil não ser redundante e tentar acrescentar à reconstrução do personagem nos movimentos internacionais. No caso local, os episódios espetaculares (ou não, conforme a perspectiva historiográfica) da sua participação na Revolução Farroupilha no nosso estado, quando aqui esteve no Rio Grande do Sul em 1838 e seguida da sua ação nos episódios das lutas do Rio da Prata e seu retorno à Itália em 1848. Certas dissonâncias – que são sempre instigantes pistas da história do tempo social- declaradas uma centena de anos após, por historiadores locais demonstram que não avaliavam pela mesma lente a construção do mito garibaldino. Sua brevíssima presença nos acontecimentos que, em última análise, já se encaminhavam para a derrota farroupilha, argumentam, apontava para a desmedida atenção para com Garibaldi na memória dos feitos farroupilhas (além da sua estrangeiridade). Tais dissonâncias são sempre instigantes frestas da história do tempo social vivido pela historiografia local e um convite ao pesquisador. O fato é que se sobrepôs a mitologização. Em artigo anterior4 foi possível destacar a personagem Garibaldi, o modo de figuração no imaginário construído sobre a celebração da “italianidade” por ocasião dos Comemorativos do Centenário dessa revolução, em 1935, por parte da colônia de imigração italiana local. Fusão de mitos, iconização de Garibaldi “herói de dois mundos”, portador dos símbolos dos vencedores no plano moral, o das causas justas. Ungido como digno representante dos milhares que vinham para “fazer a América”, quem sabe voltar, vitoriosos, na sua lenda privada.5 Italianidade e pertencimentos por adoção (o Brasil, o Rio Grande do Sul) fundidos na auto-representação étnica. Novos capítulos das noções construídas ideologicamente para consumo e conveniências das elites italianas nas colônias e na Itália. Estranhamente um herói que ao mesmo tempo em que lutou pelos farroupilhas contra o Governo Imperial do Brasil, lutaria pela unidade da Itália, ainda que sob a monarquia...O próprio Garibaldi esclareceria: lutava pela liberdade dos povos. Problemas para as historiografias e para

3. BRUM, Rosemary Fritsch. A densidade social do mito: Garibaldi no centenário da Revolução Farroupilha.pp. 109-124.In: OMAR L. de Barros; SEELING, Ricardo Vaz; BOJUNGA, Sylvia.(Orgs.) Os caminhos de Garibaldi na América. Porto Alegre: Laser Press Comunicação, 2007.191p.(Coleção Sujeito&Perspectiva Vol. 3). 5

BRUM, Rosemary Fritsch. Uma cidade que se conta.Imigrantes e narrativas no espaço social da cidade de Porto Alegre (1920-1937). Porto Alegre: PUCRS, Tese, 2003. 477 p.

4 os analistas políticos dos continentes por onde Garibaldi transitou, polemizou, galvanizou as massas. Agora, em tempos de retorno do gênero- é válido lembrar que as biografias laudatórias toldaram a construção historiográfica até serem demonizadas pela Escola do Anales, caindo em desgraça com o estruturalismo dos anos 1960 “apontando a morte do Autor”. Biografado e biógrafos apenas foram reconhecidos quando se reacendeu a questão da subjetividade na História, aliás jamais abandonada por historiadores apoiados em Ricoeur. Talvez com intensidade desmedida nos fins do século XX para o XXI, em parte por conta do restabelecimento das democracias e a luta pela abertura dos arquivos como salienta a crítica literária argentina Beatriz Sarlo, no que denomina “guinada subjetiva" sucedendo “o giro lingüístico”. Fique estabelecido que não se pretender adentrar em tal desafio ideológico.6 Agora atentemos para a textualidade da biografia em questão.Examinando-se certos aspectos da obra Memórias de Garibaldi, deslocada para o campo estético, ela ressoa como uma verdadeira aula sobre interpretação, similar a que o pintor espanhol Velaquez efetua no quadro As meninas. Para quem o olhar é dirigido no quadro, o dos reis refletidos no espelho? Para quem a autobiografia é dirigida? Quem é o autor dessa Memórias de Garibaldi? É um livro de aventuras, de história ou ambos? É um livro de memórias? Como intercambiam os papéis entre o herói e o autor (quem é o autor?) Bakhtin7 poderia ser interposto: (...) como me represento a mim mesmo? Pergunta esta que se distinguirá desta outra: quem sou?, no que particulariza o autor em sua relação com o herói.(...). O modo tranqüilo em que se efetua a evocação de meu passado remoto é de natureza estética e a evocação se aproxima formalmente da narrativa (as recordações aclaradas pelo futuro do sentido são recordações penitentes.).A memória do passado é submetida a um processo estético, a memória do futuro é sempre de ordem moral. Esse outro que exerce domínio sobre mim não entra em conflito com meu eu-para-mim, uma vez que, no plano dos valores,

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SARLO, Beatriz. Tempo passado. Cultura da memória e guinada subjetiva. São Paulo: Companhia das Letras; Belo Horizonte: UFMG, 2007.129 p. 7 BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1992.pp.165-167.

5 continuo a ser solidário com o mundo dos outros( ...).A posição do outro tem autoridade sobre mim, ele pode conduzir a narrativa da minha própria vida; (...) a contemplação da minha própria vida não é mais que a antecipação da recordação que essa vida deixará na memória dos outros (...). Dito isso, propõe-se um jogo das camadas de interpretação, onde a “autoridade” do biógrafo vai ser exercida pelo texto com o que efetivamente concentrou grande atenção analítica: a imagem de Garibaldi através da biografia do seu biógrafo, isto é o Dumas biografado pelo russo Henry Troyat, novelista e biógrafo, membro da Academia Francesa na obra Alejandro Dumas: el quinto mosqueteiro, de 2006, editado por El Ateneo, Argentina e traduzido do original francês da Grasset&Fasquele de 2005. 8 O propósito é pensar para futuras explorações, um campo de leituras labirínticas entre/e nos textos. Para a tarefa inicial, se considerou o Dumas biógrafo ou copyrider, termo, acho que inventado por mim (que significa cavalgador ou cavaleiro de cópia(s), (muito entre parênteses), de Garibaldi, e o Dumas biografado pelo russo Henry Troyat como outro copyrider, Troyat “duplo cavalgador” de Dumas e de Garibaldi. Poderíamos seguir e estabelecer mais e futuras possibilidades polifônicas, onde se observa as “camadas de vozes” mais evidentes. Qual seja, há a “voz” de Garibaldi por “ele mesmo”, com referência aos originais citados ou outras pesquisas e biografias, que poderiam fazer um contraponto ao texto de Dumas. Nessa camada seria possível estabelecer a relação de Garibaldi com seu biógrafo, se aprovou a obra publicada9 ou sobre a atuação política e jornalística de Dumas em prol de sua causa e assim por diante. Como há o Dumas por “ele mesmo” (sua biografia,a Mis memórias) que aqui não será explorada diretamente, apenas através da inserção e interpretação, como se verá mais adiante, na biografia de Troyat ao buscar explicar a relação DumasGaribaldi.Essa camada encaminha para a camada mais interessante, o Dumas para Troyat. E coloca em perspectiva a relação entre biógrafos: incessantemente Troyat acentua seu desejo de reabilitar Dumas como escritor marginalizado no sistema artístico erudito francês, apesar da sua popularidade.Por quê? O que na vida e obra do escritor francês que mobiliza tanto o russo? 8

TROYAT, Henri. Alejandro Dumas. El quinto mosqueteiro. Buenos Aires: El Ateneo, 2006.464p. Russo, nascido em 1911, vive na França, sendo novelista e biógrafo com premiações como o Prêmio Concourt. Escreveu as biografias de Catarina, a Grande, Alexandre II, Pedro, o Grande; Ivan, o Terrível, Las Zarinas, Rasputin, Marina Tsvetaeva, entre outro títulos. 9 Dumas interpõe relatos de garibaldinos nas incursões durante a luta na Itália, mas não se considera importante no momento essa camada para efeito do trabalho “labiríntico”.

6 Psicanálise à parte, o que se quer é sugerir uma abordagem pelo perspectivismo como Gisnsburg10 talvez realizasse diante do método biográfico. As possibilidades de interpretação poderiam seguir a proposta labiríntica e polifônica a partir da principal instância de interpretação, a do próprio pesquisador e o jogo poderia recomeçar, agora, no sentido inverso ou transverso.Temos um exercício historiográfico de outra ordem e só possível em um contexto de futuras pesquisas. Para a leitura labiríntica, a narrativa por camadas de interpretação, cercada de suportes documentais e não meramente narrativos, deixa de se confundir com mera elucubração, para, na realidade expressar um certo desconforto com o boon biográfico que toma as

prateleiras nas livrarias e as feiras literárias, como a referendar a

severidade da crítica de Beatriz Sarlo. E tudo indica que Garibaldi é pop, uma vez que não cessa de serem editados livros sobre sua figura em pelo séc. XXI. E serão dignos de leitura, todos eles? Uma possibilidade de pesquisa como aqui sugerida poderia ser continuada pelos jovens pesquisadores, por que não? Em épocas de desconstrução derridiana é muito pertinente e necessário, se quisermos que as ciências humanas se afastem do dogmatismo das verdades para sempre estabelecidas.

As grades estrutrurantes da polissemia em Dumas e Troyat

A construção das faces a partir de biografias múltiplas ficou claro quando se descobriu, ao modo do historiador italiano e Ginzburg, e seu método indiciário, ver detetivesco, um intertexto entre essas duas biografias, a de Dumas e a de Troyat. È necessário apresentar as duas obras. O livro de Dumas, com todos sabem, percorre os eventos da narrativa autobiográfica de Garibaldi. Principia com uma parte introdutória onde Dumas situa o leitor sobre o delicado tecido histórico italiano entre 1820 e 1834 e o quadro com que se defronta Giuseppe Garibaldi, aos seus vinte e seis anos. As partes iniciais são escritas por Garibaldi ou reescritas por Dumas. Narra sua infância Nizza, (futuramente Nice e parte do território francês), a juventude, o envolvimento político com Mazzini, a juventude, a fuga de Gênova para fugir da ordem 10

Ginsburg nunca escondeu a predileção pelo procedimento literário na sua escrita, embora sua proximidade com o método do escritor inglês Edgar Allan Poe e a possibilidade investigativa da abdução estivesse em primeiro plano para os historiadores e para uma ‘quase’ epistemologia conforme Umberto Eco

7 de prisão que pesava sobre sua participação na disputa interna da Itália, em 1834, mais um interregno em Marselha, e sobre as navegações no Mediterrâneo e no Mar Negro. No texto então se transporta para os eventos entre 1836-1848, desde sua chegada ao Rio de Janeiro, até sua vinda para o Rio Grande do Sul, quando narra sua ação na Revolução Farroupilha, a ida a Laguna, o encontro com Anita. Em seguida relata sua partida para o Uruguai, seu envolvimento com os episódios das lutas do Rio da Prata. Enfim, o retorno à Itália e sua participação inicialmente com Mazzini e depois como líder “das camisas vermelhas”, as brigadas garibaldinas ao lado de Mazzini e outros, nas lutas de Unificação da Itália até o cerco de Roma (1849). A “voz” de Garibaldi em várias partes na biografia, quando Dumas insere relatos de garibaldinos, na ausência da escrita de Garibaldi. Apenas retorna no relato da Batalha pela República de Roma, sob o título muito significativo:“Os meus, sigam-me!”quando diz:“ Ao anoitecer, saímos pelo caminho de Tivoli. Meu coração era tristeza e luto.(...).Estamos em 1848. Nesse ponto surge a “voz” de Dumas:”Aqui se vêem interrompidas as Memórias de Garibaldi. Um dia, dele obterei a segunda parte de sua vida, como obtive a primeira. Duas palavras, então, lhe servirão de epílogo: exílio e glórias.”11 Já a obra de Henry Troyat é mais abrangente ao trazer a vida e a obra de Alexandre Dumas. No que é pertinente aqui, o escritor Dumas “cruza” com o líder Garibaldi apenas na parte final dessa biografia., mais precisamente no capítulo Temporada em Itália12. Após, não volta a mencionar Garibaldi. A partir daí Troyat se detém sobre o último período de Dumas na França, até sua morte no interior, na residência campestre de Alexandre Dumas filho (normalmente confundido com o pai, sendo o filho o verdadeiro autor do Dama das camélias), em cinco de dezembro de 1870. A leitura de Dumas, sobre Garibaldi, nos chega pelo foco do seu biógrafo Troyat. Nessa camada se concentra o interesse da análise. Ao fundir o biógrafo de Garibaldi com a causa de Garibaldi, a quem se dirigem todos esses dois textos de biografia/memórias, a não ser um leitor totalizante, na ausência das arestas e das subjetividades; o que seria esperado nessa relação, nesse contrato de escrita? a finalidade parece ter colocado em cena apenas um biógrafo desprovido de alma e seu “ídolo-herói-biografado”. 11 12

DUMAS, op.cit.p.254. TROYAT, op. cit. pp.417-431.

8 Afora melhor juízo, Troyat cai na própria armadilha: Garibaldi torna-se a causa da vida heróica de Dumas. Um “General das causas justas”, como o pai. A leitura de Troyat torna-se heróica. Não poderia ser ele mesmo, projetado na reabilitação de Dumas, apresentando-o como autor-herói na missão de memória dos feitos de Garibaldi? Um biografia plena de causas nobres, libertárias, uma persistente história redentora da própria origem de Dumas, na avó, uma escrava de San Domingo? Troyat cita insistentemente expressões e frases no Mis memorias de Dumas e outro trechos de outros biógrafos de Dumas, como o famoso “lutar com a Pluma” . È o que acontece concretamente, da ficção para a “realidade “quando Dumas vive com e apenas com Garibaldi, capítulos reais da história da Unificação Italiana, uma glória destinada e postergada para o fim de sua própria vida. Essa é a conclusão a que se chega, através de seu biógrafo russo. A plena realização do Dumas biógrafo ou copyrider, o cavalgador ou cavaleiro de cópia(s), muito entre parênteses, também de Troyat sobre Dumas, copyrider de Garibaldi. Dumas conseguiu tornar sua própria ficção, realidade. Motivo da paixão do biógrafo russo, ao ponto de querer reabilitá-lo. É preciso convencer o público por que o Dumas de Troyat é o quinto mosqueteiro dessa novela de tremendo sucesso até hoje. O que está em Dumas que o impele para Garibaldi? O que está em Troyat, que o impele para Dumas? Afinal, por que mais uma biografia sobre Dumas? Pergunta-se. No “Prefácio” de sua obra explica querer: “analisar os matizes das literaturas de Balzac e de Dumas, “condenados até o fim de sua vidas a contar histórias aos seus leitores subjugados”. Percorre documentos e trabalhos de biógrafos e críticos. Seu interesses pelos desconsiderados Balzac e Dumas, recaí sobre Dumas ” esse personagem adorado por uns e difamado por outros” Justifica-se, sendo escritor, como ser indiferente a alguém (Dumas) que consagrou toda sua vida aos misteriosos combates da escrita?”. Á época, Balzac e Dumas rivalizaram na recepção do público. Balzac venceu as restrições a sua poética, que a crítica francesa, principalmente, opunha a ambos. Essas literaturas eram consideradas por demais inverossímeis e demasiado prolixas. Mas Dumas, não, não vence a crítica. Considerado de estilo pesado, mero entretenimento e incluído na classificação quase desdenhosa, dos escritores de “suspense em série”. De fato, o sistema literário praticado na França dava margem a isso. Reunindo colaboradores em torno de um grande escritor, fazendo pesquisas, sugerindo cenas, etc.,

9 permitia-se a volumosa produção anual dos autores como a de Dumas. A autoria por vezes é discutida nesse processo produtivo. E essa discussão contribuiu para restringir o acesso de Dumas à Comédie Française e a aceitação da crítica. Mas seu sucesso de público terá colaborado para Garibaldi delegar seus manuscritos ao genial escritor. Garibaldi confiaria no estilo do texto de Dumas. Para Troyat, o combate mais importante da vida de Dumas é o que combate não como escritor, mas como jornalista, editor de jornal e figura de ação nos acontecimentos da Unificação italiana. Irretocáveis, Dumas e Garibaldi são soldados como heróisautores pelo biógrafo. Vale relembrar Bakhtin, quanto ao que se passa numa situação assim, que pode ser entendido quando indica muito cuidado nos já citados trechos, por que “a memória do passado é submetida a um processo estético, a memória do futuro é sempre de ordem moral” . Por outro via, quando ele aponta para a “posição de autoridade do outro sobre mim”, abre para as possibilidades de direção da narrativa da vida, da auto narrativa.. Ponhamo-nos na posição de Garibaldi, ao delegar a estilização de seus manuscritos: consciência do possível narrador (Dumas) e o contexto de valores desse narrador, caso houvesse esse intervalo de reflexão, Dumas é o consagrado autor do Conde de Monte Cristo, tido como dos mais populares escritores, a par de poderosa imaginação e gosto pela aventura. Funciona quase como um alter-ego. Uma organização dos atos, dos pensamento e dos sentimentos de Garibaldi e que foram alinhados, episódio por episódio, formando um todo coerente. Uma biografia de memórias, autenticada pelo valor do biografado, somado ao valor do biógrafoescritor. Ao qual é consentida a possibilidade de estilo, de estetizar, borrando levemente a ficção com a realidade. Ao assumir o empreendimento Dumas poria em ação simultânea o princípio ético e estético.“Orgulhoso por essa tarefa de confiança, Alexandre se inclinou ante o ilustre guerreiro e lhe prometeu serví-lo com a pluma como gostaria haveria gostado fazê-lo com a espada.”13 Lida na distância dos tempos, é , ainda assim, uma obra desde o início, estilizada com destino à posteridade. E que merece pelo seu valor, ser introjetada os pelos leitores que transcriarão os acontecimentos como testemunhas de época ou de avalistas de uma verdade já colada ao consenso de toda memória que se torna social. Descendentes darão o testemunho de verdade.

13

Op. cit. p.421.

10 O I Ato: a legenda familiar A infância de Dumas havia estado impregnada pela legenda de seu pai, que havia vivido de aventura em aventura sob o duplo signo do heroísmo e da vontade”. História familiar que se inicia, conforme Troyat, com o

avô paterno, o marquês

Alexandre Antoine Davy ( de La Pailleterie) que vai a San Domingo para ser plantador de açúcar. Senhor de escravos, com a escrava e concubina Marie Cessette, tem quatro filhos, dentre eles, Thomas.O sobrenome advém do uso Marie de La finca, La Marie du mas, então Marie Dumas. Vendido como escravo pelo pai quando o marquês retorna falido e viúvo, para a França, Thomas foi recomprado pelo pai em 1777 e iniciou uma triunfante carreira como militar do exército, quando passa a assinar-se Dumas, por conta de um desentendimento entre ambos. Está em curso, no entanto, a escalada de Napoleão, um jovem general em 1796. Do comando do exército dos Pirineus Ocidentais, que lhe advém o apelido “diablo negro”, Bonaparte o chama a Itália, para governar a Província de Trevise”. No entanto a segunda exclusão do sistema de méritos e posição social que configurou a biografia desse pai de Dumas, o General Thomas, virá sob o próprio Napoleão. O General ”herói dos Pirineus Ocidentais”, em missão por Napoleão, no Cairo, Egito, se revela um crítico da ambição de Napoleão. Preso na Calábria, no retorno de Cairo forçado por tempestade

-recomeçara a guerra entre a França e

Nápoles- depois de dois anos de sofrimentos, em função do armistício de 1801 é trocado pelo General Mack. Bonaparte é o Primeiro Cônsul. Na volta à França, aos 40 anos, o alquebrado General Thomas vê nascer Alexandre Dumas a 24 de julho de 1801, em Villers Cotterêt. O II Ato: o caminho da glória artístico-literária A vida de Dumas será marcada pela marginalização do pai, a morte prematura (45anos), a viuvez da mãe e o abandono dos antigos camaradas sob Napoleão, que em 1804 é o Imperador da França. Em tais condições a educação de Dumas é peculiar: nas matas, com empregados da mãe aqui e ali, professores contratados pela mãe. Nega-se a receber uma bolsa em seminário católico, é um autodidata moderno. E se cerra o pano. E se abre o pano para o Dumas aos 18 anos, após assistir a uma montagem de Hamlet, (que desconhecia!) e descobre sua vocação, resolve ser autor teatral. Funda uma companhia na sua cidade Villers Cotterêts, dirige, atua. Cria com Adolphe de Leuven vários vodevilhes em verso.

11 O intercâmbio herói-autor está mesmo na biografia de Troyat, na triangulação que se cumpre com Garibaldi e Dumas, mais adiante. Antes, quando jovem ao descobrir o teatro, a literatura, “pensava que seu futuro também estaria permanentemente sacudido por efeitos teatrais”. Seus valores eram antes a valentia que a habilidade, a sorte antes da lógica, “no cego azar mais que na intervenção de um Deus onisciente. Sua compleição robusta e sua fértil imaginação lhe davam a ilusão de ser uma força da natureza”.14Um senso teatral, dramático da vida, não teria vindo dessa sombra -o fantasma de Dumas? Talvez resida aí o esboço das aventuras consideradas “inverossímeis” da escrita de Dumas. Em 1823 está em Paris, inicia uma trajetória de sucessos, e participando do movimento romântico. Escreve as conhecidas e memoráveis novelas e peças como O Conde de Monte Cristo, O homem da máscara de Ferro, Os três mosqueteiros (1844), A Rainha Margot(1845), Antony, A Dama de Monserau (1846), Os irmãos corso, Gabriel Lambert, Ange Pitou (1851), Joseph Balsamo (1849), a Condessa de Charany (1853)etc. O III Ato: A glória com Giuseppe Garibaldi A deposição do rei Luís Filipe e a Presidência de Napoleão III (1851) afastarão Dumas de Paris. No período posterior a 1951 viaja entre Bruxelas e Rússia, divulgando sua obra. Segundo Troyat,15o período que antecede seu encontro com Garibaldi está em curso o desaparecimento da ambição literária de Dumas, principalmente em Paris. As negociações com o sistema literário, a cessão de direitos, etc., sobre sua produção literária de menor expressão são estabelecidas a partir de sua frágil condição financeira, exacerbada por compromissos familiares. Dumas enaltece acima de tudo, sua vocação pelas viagens e preferencialmente, as marítimas, construindo o iate MonteCristo.Tudo muito distante do que desenhara para si. As Memórias de Garibaldi são escritas nesses cenários de 1860.A fusão heróiautor completa-se no descenso da vida literária de Dumas no empenho da causa da unificação italiana. Essa esperança se encarnava em um só homem: Giuseppe Garibaldi.”16 Após

vários encontros pelas cidades italianas , em Milão recebe os

manuscritos de Garibaldi em 1860. “Orgulhoso por essa tarefa de confiança, Alexandre 14

Op.cit.p 59. As referências são imprecisas; se coloca em torno de 1860 os encontros de Dumas com Garibaldi. 16 Op.cit.p.421. 15

12 se inclinou ante o ilustre guerreiro e lhe prometeu serví-lo com a pluma como gostaria haveria gostado fazê-lo com a espada.” Na “vida real” Dumas se comprometeu a participar de operações como a compra na França e no envio de equipamentos para Garibaldi; e ainda conciliar sua função de editor-jornalista do periódico Monte Cristo, para publicizar as batalhas do general. Está implícita, segundo Troyat, nisso tudo, o espírito de desforra moral, quando o escritor investido de seu papel de herói, rende homenagem ao pai, ao desembarcar em Palermo em 10 de junho, hóspede de Garibaldi vitorioso em Nápoles. É recebido pela multidão como “o aliado Francês”. Conta Troyat: “Frente a ele (Dumas), fizeram rodar sobre o pavimento a enorme cabeça de uma estátua decapitada: a do rei Fernando II de Bourbon, que havia feito sofrer tanto o General Dumas nas prisões calabresas.”17 Outro momento heróico estava reservado a Dumas. Trata-se do episódio no qual quando de desembarque de Garibaldi em Reggio Calábria, fora confundido como um emissário do general italiano. Recebendo a bordo, (a 23 de agosto) o ministro do interior Liborio Romano de Francisco. II, segundo Troyat:“pela primeira vez em sua vida, Alexandre se sentia em contato direto com a História.(...) a decomposição da Itália lhe oferecia a oportunidade única de desempenhar o papel de reformador”.Ao atuar desse modo, não estaria defendendo a liberdade de sua pátria, senão a de todos os homens submetidos por regimes injustos”.18 Desse período em diante atuará como diretor nomeado dos museus e das escavações arqueológicas na região de Nápoles(14 de dezembro).Um lugar para ficar e o palácio Chiatamone para trabalhar. “Ele, que só ambicionara entrar na história da literatura, estava entrando na História do mundo.”19 Seu projeto político será a partir daí alimentar a epopéia de Garibaldi na imprensa, através do jornal l`Independente, onde “(...)sem dúvida, ao escrever seu diário consagrado a gloria de Garibaldi, de certo modo tinha a impressão de ser um Quixote moderno, que lutava contra moinhos de vento”.20 No período seguinte busca imprimir um livro histórico que escrevera sobre Nápoles e sua província, na Impressão nacional. Iniciou-se, porém, o arrefecimento das lutas na Itália e o Rei Victor Emanuel II busca apoio na França, alarmado com as idéias de Garibaldi. Logra que Napoleão III

17

Op.cit.p.424. Op.cit. p.428. 19 Op.cit. p.429. 20 Op.cit. p.423. 18

13 envie seu exército a Itália e ocupam os Estados Pontifícios, declarando-se em condições de estabelecer a ordem na península. Um plebiscito também ratificava a anexação da Itália ao sul do Reino de Piemonte. Garibaldi retira-se da cena política: depõe as armas, aceita a paz monárquica, ao receber em Nápoles o Rei Victor Emanuel II, a sete de novembro de 1860, três dias antes de partir no na embarcação Washington para seu refúgio na ilha de Caprera ( e aonde viria a falecer, décadas após). Ainda por um período Dumas tenta permanecer em Nápoles. Cercado por hostilidades, principalmente pela Camorra, persiste na defesa da unidade italiana. Cedeu os direitos do Le Monte-Cristo a Calvet, proprietário de outro periódico, e levou a publicação de artigos sobre a situação napolitana e resenhas da epopéia garibaldina dos Mil, com o título Uma odisséia de 1860. Em junho de 1862 Garibaldi ressurge: invade o Trentino Alto Adige e fracassando, desembarca na Calábria, sendo detido pelas tropas de Vitor Emanuel II. Garibaldi foi ferido e cercado em Aspromonte.“ A única satisfação que obteve desse retorno a ofereceu Dumas nas crônicas do L`Independente e no Monte-Cristo”.21 Mas aparentemente a campanha difamatória da elite napolitana e da Camorra enfraquecera os laços de Garibaldi com Dumas.a Itália se fecha para Dumas. Desiludido com a política italiana, se aventura em outras e mal sucedidas causas da libertação dos povos, no caso, da Albânia e da Grécia, contra os turcos, quando é ludibriado por falsos emissários. A seis de março encerra seu sonho napolitano, retorna a Paris em 1864. E “para morrer na casa do filho”, como disse ao chegar, o que aconteceu em cinco de dezembro de 1870. Desconhece-se qualquer comunicação entre Dumas e Garibaldi nesse intervalo de tempo. Para concluir A biografia de Troyat sobre Dumas e sua interpretação, nos pontos de intersecção de sua trajetória com a de Garibaldi, revela consistência e coerência. Onde faltam os dados, existem as declarações dramáticas. O leitor acompanha a interpretação das distintas camadas, na narratividade semelhante a uma espécie de hipnose argumentativa.

21

Op.cit.p.435.

14 Os dons literários de Troyat contaminam a construção da personagem Dumas, copyrider de Garibaldi.E o que salta aos olhos, é o Troyat copyrider de Dumas. Fica a pergunta: terá Troyat reabilitado Dumas, nessa biografia? É esse o estatuto das biografias? Para quem olham os biografados, quando visam à posteridade?Uma reabilitação ético-moral, talvez, que ao pesquisador cumpre tomar como a tentativa de interpretação totalizante das auto-biografias. Nesse sentido, toda biografia tem um caráter ficcional, de onde se parte como “presença” de uma ou várias camadas importantes de interpretação de algo que jamais se revela: o ser humano no sujeito histórico.

Bibliografia BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1992.421p. BRUM, Rosemary Fritsch. A densidade social do mito: Garibaldi no centenário da Revolução Farroupilha. In: OMAR L. de Barros; SEELING, Ricardo Vaz; BOJUNGA, Sylvia.(Orgs.) Os caminhos de Garibaldi na América. Porto Alegre: Laser Press Comunicação, 2007.191p.(Coleção Sujeito&Perspectiva Vol. 3). pp.109-124. BRUM, Rosemary Fritsch. Uma cidade que se conta: imigrantes italianos e narrativas no espaço social da cidade de Porto Alegre (1920-1937). Porto Alegre: PUCRS,(Tese), 2003. 477 p. CANDIDO, Salvatore. Giuseppe Garibaldi: corsário rio-grandense. (1837-1838). Porto Alegre: EDIPUCRS, 1992. 160p. DUMAS, Alexandre. Memórias de Garibaldi. Tradução de Antonio CaruccioCaporale Porto Alegre, L&PM, 198. 264 p. GINSBURG. Carlo. Olhos de madeira: nove reflexões sobre a distância. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. 311p. RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Campinas:UNICAMP, 2007. 535p. SARLO, Beatriz. Tempo passado. Cultura da memória e guinada subjetiva. São Paulo: Companhia das Letras; Belo Horizonte: UFMG, 2007.129 p. TROYAT, Henri. Alejandro Dumas. El quinto mosqueteiro. Buenos Aires: El Ateneo, 2006.464 p. ZUMTHOR, Paul. Oralidade em tempo e espaço. Colóquio Paul Zumthor.São Paulo: EDUC, 1999.250p.

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