Duque, J. M. (2000). Gadamer e a Teologia. In: Revista Portuguesa de Filosofia 56, 441-468.

July 8, 2017 | Autor: João Manuel Duque | Categoria: Theology, Hermeneutics, Gadamer
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V. GADAMER E A TEOLOGIA “Gadamer sublinha igualmente [como Bultmann] a distância histórica entre o texto e o seu intérprete. Retoma e desenvolve a teoria do círculo hermenêutico. As antecipações e as preconcepções que marcam a nossa compreensão provêm da tradição que as sustenta. Esta consiste num conjunto de dados históricos e culturais, que constituem o nosso contexto vital, o nosso horizonte de compreensão. O intérprete tem o dever de entrar em diálogo com a realidade de que se fala no texto. A compreensão realiza-se na fusão dos horizontes diferentes do texto e do seu leitor («Horizontverschmelzung») e só é possível se existe uma pertença («Zugehörigkeit»), ou seja, uma afinidade fundamental entre o intérprete e o seu objecto. A hermenêutica é um processo dialéctico: a compreensão de um texto é sempre uma mais ampla compreensão de si mesmo”1.

Este texto do magistério católico revela o incontornável papel que a filosofia hermenêutica, em geral, e Gadamer, em particular, assumiram para a teologia actual2. Tal facto, se mais não fosse, exige uma leitura minimamente detalhada da relação entre a filosofia gadameriana e a teologia. Relação essa que, em realidade, não se confina às temáticas abordadas pelo documento citado, mas que assume uma bem mais vasta envergadura. Relação que não se limita, por outro lado, a uma recepção unilateral da filosofia de Gadamer por parte da teologia, senão que se dá também no sentido inverso. De facto, sendo o centenário filósofo de Heidelberg um praticante da hermenêutica – e não mero teórico seu – a sua filosofia está impreterivelmente marcada pela tradição ocidental que a constitui, a qual não deixa de ser, em grande parte, teológica. Para organizar a abordagem da complexa relação entre Gadamer e a teologia, proponho um percurso o mais simples e claro possível, com recurso a alguns dos conceitos básicos da sua própria filosofia. Em primeiro lugar, serão referidos alguns dos pressupostos ou algumas da referências teológicas da filosofia gadameriana – os seus «pre-conceitos» (Vor-urteile) teológicos, se quisermos. Em segundo lugar, será esboçada uma «história dos efeitos» (Wirkungsgeschichte) da sua filosofia, em contexto especificamente teológico. Por último, partindo da metáfora do «horizonte», que lhe é tão cara, tentar-se-á uma abertura da sua filosofia e da respectiva recepção teológica, para 1

PONTIFÍCIA COMISSÃO BÍBLICA, A interpretação da Bíblia na Igreja, II.A.1, Secretariado Geral do Episcopado, Lisboa 1994, 87. 2 Não deixa de ser, mesmo, algo irónico e quase inédito que um protestante como Gadamer seja explícita e positivamente nomeado num documento católico-romano, a par de um teólogo, também ele protestante.

além da estrita questão hermenêutica e mesmo para além de qualquer teologia «confessional». Esta última parte explorará algumas reflexões «tardias» do filósofo, pouco estudadas, e que permitirão uma relativização de alguns dos elementos anteriores da sua filosofia, os quais parecem conduzir a aporias internas.

1. «Pre-conceitos» Gadamer é, como se sabe, um leitor assíduo e qualificado dos gregos – sobretudo de Platão e Aristóteles. Seria de esperar, portanto, que os seus pressupostos filosóficos fossem os conceitos marcantes da cultura clássica da Antiguidade e não propriamente os da tradição cristã ou especificamente teológica. No entanto, e mesmo que não se possa negar de todo o anterior, não é de descurar a influência que sobre a sua filosofia exerceram alguns conceitos teológicos tradicionais e algumas problemáticas mais propriamente actuais, assim como a leitura e estudo dos correspondentes criadores. Essa influência deve-se, por um lado, ao interesse intelectual por determinados temas e, por outro, à circunstância histórica da convivência com alguns teólogos e com determinadas discussões teológicas. Assim, para começar por este último aspecto, é importante não esquecer o papel que desempenhou a passagem de Gadamer por Marburg, na elaboração da sua filosofia.

1.1. Applicatio Não é fácil esclarecer a influência do ambiente filosófico-teológico de Marburg sobre

o percurso de Gadamer. Se é certo e claro que ela existe, os âmbitos e as formas em que se deu são de tal modo variados e complexos que não permitem uma catalogação precisa3. E isso deve-se, antes de mais, à animação intelectual do próprio contexto, pelos anos vinte. Animação que conjugava, em si, uma forte escola do neokantianismo (sobretudo Nicolai Hartmann e Paul Natorp), uma presença marcante da fenomenologia da religião e da cultura clássica (Rudolf Otto e Rudolf Bultmann), um nascente movimento de teologia dialéctica e existencial (Rudolf Bultmann), assim como um questionamento de orientação fenomenológica e hermenêutica (Martin Heidegger). De um modo geral, podemos dizer que o ambiente marburguês que marcou Heidegger – que o marcou e que foi por ele marcado – é o ambiente em que respiram os primeiros passos do percurso de Gadamer. E esse ambiente estava imbuído de questões simultaneamente filosóficas e teológicas, na sua mútua influência. 3

Cf.: G. MORETTO, La dimensione religiosa in Gadamer, Brescia 1997, esp. 69-90 (este constitui, a meu ver, um dos mais documentados e exaustivos estudos sobre a relação entre Gadamer e a teologia, alargada ao conceito de religião).

Para ser sintético – mesmo que algo lacónico – reduzo essas questões à seguinte constelação: no fundo, trata-se de tentativas de superação do pretenso domínio científico (Verfügbarkeit)4 da realidade, tal como era procurado pelo neokantianismo e, em certa medida, pela teologia liberal, esta mais aplicada, sobretudo, à tradição cristã e aos seus textos básicos. O primeiro âmbito, especificamente filosófico, é superado pela fenomenologia e pela referência à «experiência da vida» (Lebenserfahrung) assim como ao «mundo da vida» (Lebenswelt)5, contra a pretensão exclusivista e dominadora da metodologia científica. O segundo, mais propriamente teológico, é superado pela explícita tematização do discurso sobre Deus e daquilo que ele pressupõe, contra um pensamento que pretendia objectivar o próprio Deus e a experiência de fé. Ora, a superação deste âmbito teológico deu-se, numa primeira fase, pela categoria da “Selbstverständnis” (auto-compreensão) 6 , desenvolvida essencialmente por Bultmann. Esta, por seu turno, assim como a própria fenomenologia de Husserl, deixaram de ser suficientes para Heidegger, o qual se orientou para o tema da linguagem, como «casa do ser», que o revela e o esconde (alberga) simultaneamente. Nesse sentido, o percurso de Marburg deu-se até à fenomenologia e teologia dialéctica existencialista e, destas, até à hermenêutica da palavra – quer na filosofia, quer na teologia. Se Heidegger fez esse percurso avançando directamente para a questão do ser e da linguagem, Gadamer defende a possibilidade de fazer o mesmo percurso, de modo não tão directo, mas através de mediações hermenêuticas. “Contudo, poder-se-ia, a partir da experiência do entender (Verstehen)7 e da historicidade do auto-entendimento, avançar também na mesma direcção, e os meus próprios contributos para a hermenêutica filosófica inseriram-se aqui”8. Em 1961, não muito depois da publicação de Verdade e método, Gadamer dedicou um texto à questão da «auto-compreensão», precisamente como contributo hermenêutico para

4 Cf.: H.-G. GADAMER, Die Marburger Theologie, in: «Gesammelte Werke», vol. 3 (=GW 3), 199. 5 Cf.: Ibidem, 198. 6 Cf.: Ibidem, 203. 7 Sobre a tradução de Verstehen por entender, Cf.: J. ENES, Noeticidade e ontologia, Lisboa 1999, esp. 23. 8 GW 3, 205. Gadamer enquadra, nesse percurso e nessa intenção básica, as três partes de Verdade e método que, na experência da arte (1ª parte) e da historicidade do entender (2ª parte), vê a manifestação da superação de um auto-entendimento construído a partir e em torno de si mesmo, rumo à mediação universal (não subjectiva nem objectiva) da linguagem, na sua dimensão ontológica – como «casa do ser», no sentido heideggeriano (3ª parte). Que essa leitura retrospectiva da própria obra se insira num artigo sobre a teologia de Marburg é, de si, um facto revelador de influências.

a problemática também bultmanniana da desmitologização9. Dele se pode deduzir, com bastante clareza, a proximidade de problemáticas entre a teologia de Bultmann e a hermenêutica de Gadamer, assim como as respectivas diferenças, que se devem precisamente à superação que o próprio Heidegger pretendia, em relação à posição bultmanniana. A questão básica, que Gadamer coloca de forma antecipadamente crítica, é de saber “se a compreensão do Novo Testamento pode ser entendida de forma satisfatória, a partir do conceito básico de auto-compreensão da fé, ou se um momento totalmente diferente aí se manifesta, o qual supera (überspielt) a auto-compreensão do indivíduo, ou até mesmo o seu ser-próprio (Selbstsein)” 10 . Ora, se o problema hermenêutico se dá apenas quando somos confrontados com uma Tradição, que de algum modo nos é estranha e que não nos absorve de forma inquestionada, então toda a hermenêutica pressupõe uma consciência histórica, que é a consciência da alteridade daquilo que nos é dado a entender, cuja distância em relação a nós deve ser superada pela própria actividade interpretativa. A auto-compreensão poderia, contudo, ser assim separada da sua relação à história. Mas, após o contributo de Heidegger, a historicidade da própria auto-compreensão foi colocada no centro, de tal forma que esta já não pode ser entendida como uma “autocerteza gnóstica” 11 , mas como encontro histórico com o anúncio. O esquema transcendental de constituição da auto-compreensão é assim historicizado – mas não deixa de ser um esquema transcendental. Heidegger não se ficou por essa transcendentalidade, já que para ele “ser não é o resultado da actividade objectivante da consciência” 12. Como se viu, o caminho da linguagem mostrou-se ser, para ele, o percurso indicado para fugir à aporia transcendental da auto-compreensão13. E Gadamer pretende, precisamente no seguimento do caminho aberto por Heidegger, desvelar todas as suas implicações hermenêuticas. “A relação entre entender e entendido possui o primado sobre o entender e o entendido, do mesmo modo que a relação entre falante e dito aponta para um processo de movimento

9 Cf.: H.-G. GADAMER, Zur Problematik des Selbstverständnisses. Ein hermeneutischer Beitrag zur Frage der «Entmythologisierung», GW 2, Tübingen 1986, 121-132. 10 Ibidem, 121. 11 Ibidem, 125. 12 Ibidem. 13 Gadamer vê esse caminho – que será o caminho da famosa Kehre – evocado já nos tempos de Marburg, quando Heidegger desafiou a teologia a “procurar a palavra capaz de chamar à fé e de manter na fé” (GW 3, 197). Com a superação da questão transcendental no sentido da auto-compreensão, Heidegger ter-se-á “só agora verdadeiramente aproximado da dimensão, na qual poderia cumprir-se o seu desafio à teologia, para encontrar a palavra que, não apenas chamasse à fé, mas também fosse capaz de manter na fé (im Glauben zu bewahren)” (GW 3, 205).

(Bewegungsvollzug), que não possui a sua base fixa, nem num nem no outro membro da relação” 14 . Aí se enraíza a concepção do entender como dinâmica que implica um desprendimento do sujeito (Selbst-losigkeit) e que se torna especialmente manifesta na realidade do jogo. Segundo este modelo – desenvolvido por Gadamer, de forma já clássica, em Verdade e Método – a actividade hermenêutica supera de longe a questão da constituição transcendental da auto-compreensão, conduzindo o evento de ser, enquanto evento de entender, para o âmbito ontológico da linguagem. Em primeiro lugar, é certo que o jogo do confronto com o kerygma, com a palavra prévia, com o mythos, é um jogo de constante applicatio. Parece claro que, se há algo que marcou Gadamer, foi a ideia, essencialmente bultmanniana, de que o texto escriturístico, sobretudo o Evangelho, possui um sentido kerigmático, isto é, que só é correctamente entendido, na medida em que é anunciado de forma viva, na medida em que é confrontado e reactualizado numa situação presente, mediante um processo hermenêutico de índole dialógica, que transpõe a distância temporal entre o texto e o seu receptor. Dessa característica kerigmática nasce a central categoria da applicatio, que pretende considerar imanente ao processo hermenêutico o processo de aplicação do texto – ou de outra obra – à situação e à pessoa do intérprete ou ouvinte, por mediação de uma tradição15. Mas também é certo, por outro lado, que o jogo do entender hermenêutico não se pode conceber a partir, nem meramente de um autor, nem meramente de um intérprete, nem sequer meramente de um texto, mas sim do próprio movimento ou dinamismo que os une. Esse é que constitui o jogo do entender, isto é, da hermenêutica, enquanto forma de ser do próprio ser humano. Por isso, “todo o entender é, no fundo, um entender-se, mas não no modo de uma auto-posse prévia ou finalmente atingida”16. É, sim, um entender-se no entender de algo ou de um «assunto» (Sache). Por essa mesma razão é que “o próprio (das Selbst) que nós somos, não se possui a si próprio (sich selbst)”17, mas é, na medida em que se entende frente a uma palavra, a qual se dá no jogo de um diálogo, enquanto acontecimento histórico. Esse é o modelo central de todo o acto hermenêutico. “Entender textos é um entender-se (Sichverständigen) numa espécie de diálogo” 18 . E a auto-compreensão daí resultante, porque implica uma 14

GW 2, 126. Cf.: H.-G. GADAMER, Wahrheit und Methode, GW 1, 5ª Ed., Tübingen 1986, 313: “Achamos, pelo contrário, que aplicação constitui um elemento tão integrante do processo hermenêutico como o entender e o interpretar”. 16 GW 2, 130 17 Ibidem. 18 Ibidem, 131. 15

conversão do próprio, frente à palavra vinda de fora, é sempre uma auto-compreensão paradoxal. Estamos, assim, praticamente no interior da famosa «Teologia Dialéctica», tal como foi desenvolvida sobretudo por Karl Barth e que, de certo modo, marcou a forma como Gadamer entende a experiência hermenêutica 19 . E estamos, também, no interior da chamada «Teologia da Palavra» ou «Nova Hermenêutica Teológica», que colocou no centro a questão da linguagem e que manteve, com a filosofia de Gadamer, uma ambígua relação de proximidade, por serem de origem e de intenções algo comuns, mas de mútuo quase-desconhecimento, pelo menos de contacto praticamente nulo20. Dela, falar-se-á mais adiante. De momento, interessa analisar outros pressopostos teológicos mais explícitos da filosofia gadameriana.

1.2. Representatio Retomando reflexões publicadas anteriormente21, Gadamer desenvolve em Verdade e

Método a distinção entre alegoria e símbolo, no intuito de acentuar o carácter «representativo» do símbolo 22 . Nesse preciso contexto, o filósofo recorre a dois privilegiados âmbitos da experiência, que elucidam de forma clara aquilo que pretende: o âmbito da arte e o âmbito do culto. “Tal referência plena da significado, através da qual o insensível se torna sensível, encontra-se tanto no campo da poesia e das artes plásticas, assim como no âmbito do sacramental-religioso”23. O campo religioso constitui mesmo, segundo Gadamer, o contexto de aplicação por excelência dos conceitos de alegoria e de símbolo. Por um lado, isso acontece em ligação com o conceito de analogia, porque permite o próprio conhecimento do divino, na medida em que assume uma “função anagógica” e torna claro que “não é possível conhecer o divino de outra forma, senão a partir do sensível”24. Aí se manifesta o substrato ou pressuposto metafísico da concepção de símbolo, já que assenta no facto de o mundo sensível constituir emanação e participação 19 Sobre a proximidade entre a filosofia de Gadamer e a teologia de Karl Barth, ver: G. MORETTO, op. cit., 91ss. 20 O facto de que Gadamer se lhe refira, não significa que tenha, verdadeiramente, estabelecido um contacto com essa hermenêutica (Cf.: H.-G. GADAMER, Hermeneutik und Historismus, GW 2, 408ss) 21 Cf.: H.-G. GADAMER, Symbol und Allegorie, in: «Archivio di Filosofia» (1958) 23-28. 22 Cf.: GW 1, 76ss. Em realidade, Gadamer pretende reabilitar a alegoria, após o moderno processo da sua desvalorização, enquanto redução à experiência estética subjectiva. Mas essa reabilitação dá-se, precisamente, pela aproximação do conceito de alegoria ao conceito de símbolo. 23 Ibidem, 78. 24 Ibidem, 79.

no verdadeiro mundo, o que fundamenta uma relação analógica entre ambos e constitui a dimensão ontológica de todo o aparecer25. Ora, por outro lado, é precisamente esta “inseparabilidade entre percepção visível e significado invisível” que se encontra na base de “todas as formas de culto religioso”26. Essa ligação estreita entre ser e aparecer é retomada, mais tarde, por Gadamer, para explicitar o seu conceito de símbolo e, desse modo, a forma como ele concebe a ligação entre ser e representação; ligação que se encontra na base da concepção gadameriana de ontologia hermenêutica, enquanto recondução de todo o conhecer e entender – no fundo, de todo o dar-se da realidade e da correspondente percepção – às suas imprenscindíveis mediações. A afirmação básica dessa concepção pode resumir-se numa afirmação chave: “O simbólico não se limita a apontar para significado, mas torna-o presente. Representa significado”27. Ora, o concreto pressuposto teológico dessa concepção refere-o Gadamer explicitamente: “Para mim – como protestante – sempre foi muito significativa a controvérsia sobre a Eucaristia (Abendmahlstreit) que marcou a Igreja protestante, sobretudo entre Zwinglio e Lutero”28. E assume, na controvérsia, a posição de Lutero – que correctamente considera idêntica à da Igreja Católica – segundo a qual, o pão e o vinho eucarísticos não se limitam a significar o corpo e o sangue de Cristo, mas realmente o são. Na mediação simbólica dá-se, portanto, uma presença de ser, não realizável de outro modo. E o ser, que assim se torna presente, realiza-se desse modo, não constituindo algo prévio e, por isso, separável dessa sua doação simbólica. No processo de representação simbólica – que Gadamer aborda, sobretudo, em relação à obra de arte – dá-se, portanto, um “aumento de ser” (Zuwachs an Sein)29. Do ponto de vista filosófico global, encontra-se, nessa visão, algo que se tornará central para a filosofia hermenêutica, e que é precisamente o enquadramento das mediações simbólicas no próprio movimento de ser, enquanto manifestar-se, evitando a separação idealista entre conceito e representação. “A essência do simbólico ou do simbolizante consiste, precisamente, no facto de não estar orientado para um fim significante a ser abrangido intelectualmente, mas de conter em si o seu significado”30. 25 Essa será precisamente, a essencial característica do conceito de «belo», de raiz essencialmente platónica e que Gadamer coloca no fecho de Verdade e Método, desenvolvendo-a noutros lugares, quer no contexto de uma filosofia da arte, quer na constante leitura que faz de Platão. 26 GW 1, 79. 27 H.-G. GADAMER, Die Aktualität des Schönen, GW 8, Tübingen 1993, 125. 28 Ibidem, 126. 29 Ibidem. 30 Ibidem, 128.

Na categoria de representação simbólica concentra-se, assim, o movimento fundamental da filosofia gadameriana, enquanto pretende superar o sistema hegeliano, movimento que consiste em mostrar que, “no carácter linguístico (Sprachlichkeit) de todo o pensar, mantém-se a exigência, para todo o pensamento, de uma direcção contrária (Gegenrichtung) [à de Hegel], que retransfigura o conceito na palavra que une. Quanto mais radicalmente o pensamento objectivante se pensa a si mesmo e desenvolve a experiência da dialéctica, mais claramente aponta para aquilo que ele não é. A dialéctica tem que se retirar (zurücknehmen) para a hermenêutica”31. A tradição teológica da concepção de sacramento – como transformação cristã (pelo menos em parte) da filosofia neo-platónica, no confronto com a tradição bíblica relativa à encarnação – constitui para Gadamer um importante ponto de referência para pensar e exprimir a sua visão hermenêutica da realidade, segundo a qual o ser é, na medida em que se representa (sich darstellt) e nunca pode ser pensado nem dito, sem essa mesma representação. Ora, a principal representação do ser é, sem dúvida, a linguagem. A mediação da linguagem torna-se, assim, o cerne da dimensão ontológica da hermenêutica gadameriana. Mas também essa concepção tem os seus pressupostos teológicos.

1.3. Verbum Na última parte de Verdade e Método, precisamente dedicada à linguagem como

“horizonte de uma ontologia hermenêutica” 32 , Gadamer desenvolve interessantes reflexões sobre o conceito de Verbum, tal como é abordado na tradição teológica cristã, distintamente da tradição grega, no contexto da teologia da Encarnação e da Trindade33. Nessas reflexões, o filósofo assume explicitamente a sua dívida em relação à teologia, no que concerne à própria concepção de linguagem que pretende desenvolver. Começa por admitir que existe “uma ideia, que não é uma ideia grega e que é mais adequada ao ser da linguagem, de tal modo que o esquecimento da linguagem no ocidente não se pode tornar completo. É a ideia cristã de Encarnação”34. Esta é abordada no contexto da palavra – do logos, para retomar os termos do prólogo do quarto Evangelho – e insere-se no cerne da própria doutrina da Trindade. Ora, aquilo que para Gadamer é central, é que a teologia trinitária, sobretudo a partir de Agostinho, se apoiou na “relação humana entre falar e pensar”35. 31 32 33 34 35

H.-G. GADAMER, Die Idee der Hegelschen Logik, GW 3, 65-86, 86. GW 1, 442ss. GW 1, 422ss. Ibidem, 422. Ibidem, 423.

O mais importante do recurso a essa analogia não é, neste caso, a pertinência do analogon utilizado, mas sim a respectiva concepção que na analogia se revela36. De facto, se a ideia de encarnação, aplicada à doutrina da Trindade, implica que o verbum (logos) se fez carne (sarx), então a relação entre pensamento e palavra é análoga à relação entre o verbo e a carne. “Se a palavra se faz carne e só nessa encarnação se realiza a realidade do espírito, então, desse modo, o logos é liberto da sua espiritualidade, que significa simultaneamente a sua potencialidade cósmica”37. A palavra assume, assim, toda a sua dimensão histórica, tornando-se puro acontecer, que a liberta da sua prisão na mera idealidade do sentido espiritual. O acontecer histórico da linguagem é assumido, portanto, como mediação do próprio ser, enquanto sentido, sem que seja possível estabelecer uma separação ou mesmo distinção entre esse sentido e a sua articulação linguística. A distinção – e correspondente ligação – entre palavra interior e palavra exterior vem confirmar essa visão. De facto, a palavra interior só o é, na medida em que acontece na exterior e esta só o é, como articulação da interior. No fundo, é a mesma palavra, na dinâmica histórica do seu seracontecer. A palavra torna-se, assim, uma palavra eficaz, produtora de ser, na medida em que é articulação de sentido ou de pensamento. Mas o papel da palavra exterior cedo foi sendo desvalorizado, centrando-se a abordagem da linguagem na palavra interior, a qual, como espelho do pensamento, se torna em imagem analógica da Trindade, que se articula sem sair de se mesma e sem deixar de ser o que é. “A palavra interior do espírito é de essência tão igual ao espírito, como o Filho ao Pai”38. Do ponto de vista filosófico, isso significa uma identidade entre razão e linguagem – ratio e verbum, como tradução dupla de logos. Se é certo que a desvalorização da palavra exterior não faz de todo justiça à própria linguagem, que é na medida em que acontece exteriormente, também é certo que abre o espaço de possível identificação entre pensamento e linguagem e, concomitantemente, o espaço do processo hermenêutico, no constante jogo entre o que se pretende dizer e o que, em realidade, se diz. Não sendo, nem uma nem outra dessas dimensões, determináveis de forma fixa e definitiva, abre-se assim o infindo processo de interpretação. E é precisamente nesse jogo sem fim que Gadamer situa a universalidade da hermenêutica: “O princípio supremo da hermenêutica filosófica, tal como eu a penso (e é por isso que ela é uma filosofia

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Gadamer empreende, por assim dizer, o caminho inverso da analogia teológica. Esta partia da linguagem, para pensar a Trindade e a Encarnação. Aquele parte desse pensamento, para recuperar a concepção de linguagem que lhe serviu de base. 37 GW 1, 423. 38 Ibidem, 425.

hermenêutica) é o facto de que nunca podemos dizer totalmente aquilo que gostaríamos de dizer”39. O hiato entre palavra interior, como articulação do pensamento, e palavra exterior (entre o dito e o não-dito, mas de algum modo presente), se bem que nunca é total, possibilita o intervalo de que brota a própria interpretação e marca, por isso mesmo, a dimensão hermenêutica de todo a relação com a realidade, que é assim uma dimensão dada no próprio acontecer da linguagem, entre palavra interior e palavra exterior. A teologia cristã do Verbo incarnado proporcionou, assim, as ferramentas para pensar a linguagem, quer na sua imprescindível exterioridade, que constitui articulação da sua interioridade, quer nessa interioridade enquanto tal, que constitui articulação do próprio pensamento. A linguagem não é, assim, entendida como mero instrumento de um pensamento prévio, ou do próprio ser que a precede, mas articulação de ambos. E pensamento ou ser, sem articulação, pura e simplesmente não são. Infinito e finito assumem, assim, um estatuto de pertença mútua, no interior da qual – e só assim – nos são acessíveis. “No cerne da penetração da teologia cristã pela ideia grega da lógica surge algo novo: o cerne da linguagem, na qual atinge toda a sua verdade a mediação do acontecimento incarnacional. A cristologia torna-se antecessora de uma nova antropologia, que concilia de forma nova o espírito humano, na sua finitude, com a infinitude divina. Aqui encontrará o seu verdadeiro fundamento aquilo a que chamámos experiência hermenêutica”40. Ora, é essa mediação especulativa entre infinitude do ser e do sentido e finitude da linguagem que constitui o cerne da transformação ontológica da hermenêutica tradicional e que marca o contributo de Gadamer para uma filosofia hermenêutica, com pretensão universal – e não apenas com pertinência para determinadas áreas do saber ou da experiência41. A linguagem, na sua dimensão especulativa, é assumida como condição de possibilidade de toda hermenêutica, enquanto condição de possibilidade de todo o entender e de todo o entender-se. Assim se deve ler a mais conhecida máxima gadameriana: “Ser que pode ser entendido é linguagem” (“Sein, das verstanden werden kann, ist Sprache”)42. Os limites da linguagem serão os limites da hermenêutica e viceversa43. 39

GW 10, 274. GW 1, 432. 41 É por isso que a hermenêutica gadameriana não pode, ao contrário do que por vezes tem acontecido, ser reduzida a uma estrita refundamentação das «ciências do espírito», eventualmente como «ciências hermenêuticas». 42 GW 1, 478. 43 Neste sentido, dá-se uma notável proximidade entre Gadamer e Wittgenstein: “Os limites da minha linguagem significam os limites do meu mundo” (“Die Grenzen meiner Sprache bedeuten die Grenzen meiner Welt”: L. WITTGENSTEIN, Tractatus Logico-Philosophicus, 40

Mas, se a hermenêutica é universal – como a razão que na linguagem se espelha – quais os limites de uma e de outra? Essa é a questão que fica em pé, no final de Verdade e Método, e que possibilitará ou exigirá mesmo um alargamento dos seus próprios horizontes, eventualmente em sentido teológico. Antes disso, contudo, é necessário abordar os efeitos que entretanto a filosofia gadameriana exerceu sobre algumas tendências da teologia contemporânea.

2. «História dos efeitos» Tal como dá a entender o texto citado no início, o relacionamento entre a filosofia de Gadamer e a teologia não se reduz às influências que esta possa ter tido sobre aquela, mas verifica-se sobretudo em sentido inverso. De facto, o efeito da filosofia hermenêutica gadameriana sobre a auto-concepção da teologia do séc. XX foi enorme e multifacetado, não tendo ainda esgotado todas as suas possibilidades. Se é certo que a principal dimensão desse efeito tem a ver com o problema hermenêutico, em sentido estrito, isso não significa que a ela deva ser reduzido. E se também é certo que o próprio Gadamer se inclinou explicitamente para essa concentração na questão do texto (escriturístico) e da sua interpretação, enquanto aplicação

5.6). A diferença residirá na respectiva concepção de linguagem, mais gritante em relação ao «primeiro» Wittgenstein, mas também pertinente em relação ao «segundo», já que, para Gadamer, o verbum mentis desempenha uma função fundamental, reconduzindo a sua filosofia ao seio da tradição metafísica e mesmo idealista (com todos os problemas que isso levanta e que constituem o cerne do «debate» com a «desconstrução» de Derrida. Cf.: PH. FORGET, Text und Interpretation, München 1984; D. P. MICHELFELDER / R. E. PALMER, Dialogue and Deconstruction: The Gadamer-Derrida-Encounter, New York / Albany 1989; H.-G. GADAMER, GW 2, 330-374; GW 10, 125-174).

kerigmática44, tal inclinação não deve iludir a sua unilateralidade, já que as possibilidades de uma recepção teológica da sua filosofia são bem mais vastas45. O que se segue apenas pretende fazer um levantamento das principais vertentes dessa recepção. Não pretende exaustividade nem aprofundamento crítico, mas apenas fornecer indicações de percursos possíveis46.

2.1. Palavra e Linguagem A estreita proximidade entre a filosofia hermenêutica de Gadamer e a chamada «nova

hermenêutica teológica», tal como foi desenvolvida sobretudo por Ernst Fuchs e Gerard Ebeling, resulta da relação que ambas têm com o pensamento heideggeriano sobre a linguagem. Como se viu, Gadamer assume essa proximidade de forma explícita. Mas nem precisaria de o referir, por tão evidente que é. O passo empreendido pela filosofia gadameriana, no contexto do problema hermenêutico, é mesmo considerado idêntico ao que foi empreendido por aqueles dois teólogos, sem ser possível determinar quem influenciou quem, ou mesmo se houve explícitas influências recíprocas47. Ora, esse passo consiste, precisamente, numa superação da visão subjectivista e instrumentalista da linguagem. No primeiro aspecto, quer os referidos teólogos quer a filosofia de Gadamer colocam o acento na linguagem enquanto tal, como realidade que 44 De forma mais evidente, numa conferência intitulada, precisamente, Herméneutique et théologie (in: H.-G. GADAMER, L’art de comprendre. Écrits II, 259-273). Se é certo que Gadamer admite, aí, que a “tarefa da hermenêutica não está limitada à tarefa de interpretação de textos”, não é menos certo que quase toda a conferência se centra na questão do texto e do discurso. É compreensível, pois, que alguns leitores teológicos de Gadamer acabem por reduzir toda a sua filosofia à questão da interpretação e dos seus meandros, como acertadamente critica o notável artigo de H.-G. STOBBE, Schädliche Einheit. Ein Beitrag zur Wiederbelebung der hermeneutischen Debatte, in: K. MÜLLER (ED.), Fundamentaltheologie, Regensburg 1998, 121-150. Menos compreensível é, no entanto, que um teólogo como Stobbe (cuja dissertação de doutoramento versou sobre Gadamer, Cf.: H.-G. STOBBE, Hermeneutik – ein ökumenisches Problem. Eine Kritik der katholischen Gadamer-Rezeption, Gütersloh 1981) desconheça importantes leituras teológicas da sua filosofia, quer em ambiente católico quer protestante, e reduza tudo a um debate restrito de interpretação da Escritura, a que chama de forma algo abusiva “debate hermenêutico” (salvam-se desta redução as interessantes considerações finais do referido artigo, relativas à auto-compreensão da razão). Ao longo do que se segue, haverá oportunidade de mostrar em que medida são redutoras – por vezes, mesmo radicalmente falsas – as suas observações. 45 Com isto, não quero minimizar a importância da referência aos textos, para toda a teologia cristã. Apenas pretendo acentuar que a problemática global da teologia não se reduz a essa referência, mesmo que ela possa ser central e imprescindível. 46 No fundo, trata-se apenas de uma espécie de «relatório» resumido, embora com alguma intenção sistemática. Para uma abordagem mais detalhada, aconselho a leitura de: G. COLOMBO, Ermeneutica e teologia. Verità e storia in Hans-Georg Gadamer, Milano 1995 (esp. a 1ª parte). 47 Cf.: P. FRUCHON, Ressources et limites d’une herméneutique philosophique, in: «Archives de Philosophie» 30 (1967) 419. Em realidade, a proximidade resulta da referência comum à intuição heideggeriana, mesmo que os referidos teólogos não a nomeiem de forma tão explícita como Gadamer.

precede cada sujeito e a sua auto-consciência. A identidade do sujeito resulta, precisamente, da confrontação com essa linguagem – com a Palavra de Deus, em contexto teológico – à qual responde, deixando-se abarcar por ela. É isso que pretende Gadamer, com o recurso ao modelo da arte e do jogo, os quais constituem caminhos de superação da moderna consciência estética e, no mesmo movimento, de abertura para o acontecer hermenêutico, enquanto tal. No segundo aspecto, a linguagem (ou a Palavra) que interpela o intérprete (ou o crente), não é concebida como mero instrumento de um ser ou realidade que lhe seja exterior e precedente. A linguagem é, pelo contrário, um acontecimento, no qual se realiza esse mesmo ser ou realidade. Teologicamente falando, o Deus que interpela o crente é um «acontecimento de linguagem» (Sprachereignis) e é nesse estatuto que interpela o crente – o qual, por seu turno, também é na linguagem da resposta (fé), ou seja, também se articula como acontecimento de linguagem. Filosoficamente, o ser ou o sentido que entendemos, no processo hermenêutico que somos e nos constitui, é linguagem e só nos atinge enquanto linguagem48. A proposta de Teologia Fundamental de Eugen Biser assume, neste contexto, especial importância, não só porque manifesta explicitamente a influência de Gadamer49, mas porque coloca no centro da suas reflexões as categorias do entender e da linguagem50, retomando alguns elementos da posição bultmanniana. Para ele e ao nível da questão central da Teologia Fundamental – precisamente a questão da fundamentação da fé – é necessário superar os esquemas modernos de abordagem, basicamente devedores da global tendência racionalista e extrinsecista, para assumir a inevitabilidade do círculo hermenêutico. Teologicamente, isso significa que a fé só pode fundamentar-se, “segundo a modalidade de um acto hermenêutico de entender, que a si mesmo se sustenta”51. Nesse caso, a interpretação crente da realidade fundamenta-se na própria fé – isto é, em si mesma, enquanto interpretação crente, como inevitável «pré-compreensão». Só tendo o seu próprio interior como pressuposto é que é possível interpretar tudo o resto. Esta «versão» de teologia hermenêutica acaba por receber, de Gadamer, aquilo que ele próprio recebeu da «Teologia Dialéctica» de Bultmann: o princípio da pré-compreensão 48 Sobre a estreita ligação entre todas estas posições, Cf.: GW 2, 408ss. Fuchs e Ebeling, contudo, não colocam a sua teologia explicitamente na linha da filosofia hermenêutica de Gadamer. 49 Cf.: E. BISER, Glaubensverständnis: Grundriss einer hermeneutischen Fundamentaltheologie, Freiburg i. Br. 1975, 54, onde refere a dívida da sua Teologia Fundamental em relação à “...hermenêutica filosófica, desenvolvida sobretudo por Hans-Georg Gadamer (na continuação de posições de Bultmann e de Heidegger)”. 50 Cf.: E. BISER, Theologische Sprachtheorie und Hermeneutik, München 1970. 51 E. BISER, Glaubensverständnis, 55.

crente como pressuposto de toda a interpretação teológica e o princípio da precedência de uma Palavra, que funda essa pré-compreensão e, em última instância, essa interpretação. Se é certo que, neste mesmo contexto, a linguagem assume um papel central, assume-o de forma demasiado específica, isto é, apenas como Palavra de Deus, na qual o próprio Deus se nos revela, possibilitando assim todo o discurso crente e teológico. Toda a abordagem fenomenológica da linguagem, assim como a dimensão universal que lhe está subjacente e que permitiria uma mediação «não-dialéctica» entre Palavra de Deus e linguagem humana – no fundo, entre Deus e o ser humano – acaba por ser absorvida nesse esquema prévio de oposição entre a visão crente e a visão humana da realidade. Trata-se, pois, de uma recepção parcial da filosofia de Gadamer, que assume alguns dos seus elementos centrais, mas que não realiza todo o seu percurso, sobretudo em direcção à universalidade da hermenêutica, com base na universalidade da linguagem.

2.2. A tradição e a crítica A mais saliente dimensão do efeito da filosofia de Gadamer sobre a teologia, para além

do âmbito da estrita hermenêutica escriturística, foi sem dúvida a que gira em torno da categoria de tradição. Se é certo que a própria leitura filosófica do seu opus magnum se centrou na segunda parte da obra, precisamente a que aborda a história da hermenêutica e a proposta de Gadamer, relativa à forma como no relacionamos com a história e o seu sentido, seria de esperar que a sua recepção, por parte da teologia, também se centrasse nessa parte. Alguns

teólogos

ficaram-se

mesmo

pela

recolha

de

alguns

“«chavões»

52

hermenêuticos” , entres os quais se salientam, precisamente, os conceitos de «história dos efeitos» (Wirkungsgeschichte), de «tradição» (Überlieferung), de «preconceito» (Vorurteil), de «pertença» (Zugehörigkeit) e de «autoridade». Desse modo, certas teologias limitaram-se a assumir, de forma praticamente acrítica, esses conceitos da filosofia gadameriana, para confirmar filosoficamente algo que já previamente defendiam53. 52 B. J. HILBERATH, Theologie zwischen Tradition und Kritik. Die philosophische Hermeneutik Hans-Georg Gadamers als Herausforderung des theologischen Selbstverständnisses, Düsseldorf 1978, 311. 53 Em relação a esse tipo de recepção, tem toda a razão G. STOBBE, Schädliche Einheit, 122, quando afirma que o debate teológico com Gadamer se encontra marcado por uma “recepção admiravelmente (erstaunlich) acrítica da hermenêutica filosófica...”. Faltaria, contudo, reconhecer que só se trata de um aspecto do debate teológico, mesmo em contexto católico, e que, por isso, não se poderá definir a recepção teológca de Gadamer apenas segundo esse modelo, como pretende a crítica de Stobbe, que por isso permanece cativa de uma esquema não menos «admiravelmente» redutor dessa recepção, que não supera o problema hermenêutico

Ora, essas categorias não são propriamente indiscutíveis e, de facto, deram origem a debates filosóficos, dos quais o mais conhecido é o que se desenrolou entre Gadamer e Habermas, representando este último a «crítica das ideologias», contra uma hermenêutica pretensamente cativa no conceito acrítico de tradição54. Recepções teológicas mais sérias não se puderam esquivar, portanto, ao confronto com o debate especificamente filosófico e a, desse modo, abordar a própria filosofia hermenêutica de forma crítica. De entre os teólogos que percorreram esse caminho, destaca-se Bernd Jochen Hilberath, que dedicou a sua dissertação doutoral precisamente à filosofia de Gadamer, como desafio para a teologia, mas assumindo-a no cerne do debate entre tradição e crítica55. Embora assuma a posição de Gadamer de forma mais positiva, Hilberath situa-se sensivelmente na linha do conhecido teólogo de Nimega, Edward Schillebeeckx, que anos antes se tinha ocupado com uma leitura teológica da hermenêutica de Gadamer e com o seu alargamento ou mesmo com uma superação da mesma. De facto, na sua posição fundamental, Schillebeeckx não se fixa no círculo hermenêutico da teologia dialéctica, mas lança-se numa abertura da própria posição de Gadamer, rumo a uma universalidade imprescindível à teologia. Para isso e por um lado, recorre, muito à semelhança de Ricoeur, ao estruturalismo como passagem no processo hermenêutico, para o depurar do perigo de acriticidade56. Por outro lado e noutra vertente – talvez a mais significativa para a sua posição teológica global – recorre à «teoria crítica», como prolongamento e transformação da hermenêutica gadameriana, na linha de uma expansão crítica da hermenêutica, inspirada directamente por Habermas57. Independentemente do facto de reduzir a própria hermenêutica gadameriana, quando a confronta de forma praticamente alternativa com a dimensão crítica, a posição de Schillebeeckx manifesta-se especialmente redutora, enquanto recepção da filosofia

segundo a respectiva enunciação bultmanniana. Sensivelmente na mesma linha, embora mais explicitamente em contexto de teologia sistemática, situa-se a leitura feita por W. KASPER, Die Methoden der Dogmatik. Einheit und Vielheit, München 1967; ID., Systematisch-theologische Neuansätze, in: «Theologische Quartalschrift» 156 (1976) 55-61; ID., Theologie und Kirche, Mainz 1987, esp. cap. I. 3. 54 Sobre esse debate, que aqui não nos ocupa, veja-se: J. M. AGUIRRE ORAA, Raison critique ou raison herménéutique? Une analyse de la controverse entre Habermas et Gadamer, Paris / Vitoria 1998; ver, também, os perspicazes e acertados comentários críticos de G. STOBBE, Schädliche Einheit, esp. 145. Embora noutros termos e partindo de outros pressupostos filosóficos (precisamente, os do racionalismo crítico), mas também relacionada com a questão crítica, seria importante referir a leitura radical que H. ALBERT, Traktat über kritische Vernunft, Tübingen 1968, esp. 135ss, faz da hermenêutica, que considera literalmente uma continuação filosófica da teologia, por isso mesmo dogmatista e isenta de qualquer valor científico ou crítico. 55 B. J. HILBERATH, op. cit.. 56 Cf.: E. SCHILLEBEECKX, Interpretación de la fe. Aportaciones a una teología hermenéutica y crítica, Salamanca 1973, (orig. 1972) 34-35. 57 Cf.: Ibidem, 159ss.

hermenêutica de Gadamer, quando pretende atingir a verdadeira universalidade do sentido, ao tematizar a dimensão ontológica da linguagem, a qual abarca a própria dimensão crítica e, por isso, é fundamental para toda a teologia. De facto, é estranho e, simultaneamente, sintomático que não fale de Gadamer, ao referir essa dimensão ontológica da linguagem, como horizonte universal, para o qual terá que se orientar toda a hermenêutica, superando a estrita referência directa a uma tradição, mas também as aporias da própria posição crítica58. Se é certo que é importante essa passagem das várias dimensões da linguagem à sua dimensão ontológica – que Schillebeeckx empreende em diálogo com Heidegger, Fuchs e Ebeling – não é menos certo que é precisamente esse o percurso da filosofia hermenêutica gadameriana, confirmado na terceira parte de Verdade e Método. Haveria, pois e no sentido do próprio Schillebeeckx, que estabelecer a ligação da problemática hermenêutico-linguística com a referida problemática da representatio e do verbum, tão importantes para o nosso filósofo. Só aí, de facto, é que a linguagem – e a hermenêutica como a entende Gadamer – assume o seu verdadeiro estatuto universal. Hilberath vai mais longe que Schillebeeckx, na medida em que propõe, precisamente como superação da dicotomia ou alternativa entre tradição e crítica59, a referência ao acontecimento escatológico de Jesus Cristo, o qual se nos dá numa tradição, assumindo contudo uma dimensão crítica, mesmo em relação a essa tradição. E a mediação concreta desse acontecimento é constituída, precisamente, a partir do seu carácter linguístico (Sprachlichkeit) e da historicidade que o marca. A recondução, empreendida por Hilberath, dessas duas dimensões ao âmbito da filosofia e teologia práticas acaba por dificultar, contudo, a tematização da sua universalidade num contexto necessariamente metafísico, como se verá.

58

Cf.: Ibidem, 53ss. Alternativa que, de certo modo, se mantém insuperada na posição de G. STOBBE, Schädliche Einheit, 144, quando afirma que a “razão de validade” (Geltungsgrund) para um «preconceito» transmitido pela tradição, ou se encontra na “própria tradição, ou não”. Mas será possível determinar, de forma tão clara e alternativa, o que é a tradição e o que não é? Será a qestão da verdade – e, portanto, também dos critérios de validade – redutível a essa alternativa? Ou será a respectiva relação entre tradição e seu «exterior» muito mais dialéctica do que se apresenta nesta concepção? Que algumas visões tradicionalistas (também católicas, mas não só!) e outras visões relativistas assentem nessa dicotomia de base, não significa que a questão seja redutível a esses termos – muito menos no contexto da filosofia gadameriana. Se é certo, para citar uma das últimas frases de Verdade e Método, que estamos sempre “inseridos num acontecer de verdade e chegamos sempre demasiado tarde, quando queremos saber o que devemos crer” (GW 1, 494), isso não significa que todas a figurações concretas da tradição tenham que ser, enquanto tais, verdadeiras. O acontecer da verdade, no qual nos inserimos, é também um acontecer crítico em relação às próprias figurações dessa verdade. A crítica não contradiz, portanto, o facto de estarmos sempre já inseridos nesse acontecer. Aliás, só assim se torna possível – caso contrário, em nome de que verdade seria possível criticar algo? 59

2.3. O particular e o universal A universalidade fundamentalmente metafísica da hermenêutica é assumida, em

contexto teológico mas também já no interior do próprio debate filosófico, por Wolfhart Pannenberg, precisamente quando conduz a leitura que Gadamer faz da história à necessidade de uma tematização do seu carácter universal: só por referência a um sentido universal da história é que a hermenêutica se torna possível60. O teólogo de Munique situa-se, assim, no cerne da filosofia hermenêutica, já que – com ela – supera todas as hermenêuticas regionais e mesmo o restrito problema hermenêutico, enquanto tal, para tematizar a sua dimensão ontológica. Nisso, em nada se distingue da própria intenção de Gadamer; apenas a confirma e reforça61. No que se distingue, isso sim, é no lugar atribuído à linguagem e à história. Para Gadamer, de facto, é a linguagem que permite a universalização da hermenêutica e, por isso mesmo, da própria história. Para Pannenberg, será antes a universalidade da História e do correspondente sentido a fundar a universalidade da hermenêutica e, como consequência, da própria linguagem. E, em contexto especificamente teológico, essa universalidade é antecipada num acontecimento histórico concreto, que simultaneamente é uma acontecimento escatológico e, por isso mesmo, de significação universal: o acontecimento Jesus Cristo. Ou seja, a recepção levada a cabo por Pannenberg da filosofia gadameriana resulta de uma substituição da categoria da linguagem pela da história, mantendo-se contudo dentro do mesmo projecto filosófico, que consiste na mútua referência entre particular e universal, como condição prévia a qualquer compreensão de sentido – neste caso, do sentido teológico da história. Mas, a diferença entre Pannenberg e Gadamer marca, também, os limites da leitura que o primeiro empreende da filosofia gadameriana, já que não tem em consideração o papel que a estrutura especulativa da linguagem desempenha no processo de universalização da hermenêutica62. De qualquer modo, o confronto das duas posições revela, de forma bastante clara,63 em que medida é necessário reconduzir a história e a 60 Cf.: W. PANNENBERG, Hermeneutik und Universalgeschichte, in: ID., Grundfragen systematischer Theologie I, Göttingen 1967, 91-122. 61 Cf.: GW 2, 246ss. 62 No fundo, o facto de Pannenberg não aceitar a orientação da linguagem para a universalidade de sentido assenta na concepção que tem de linguagem, que considera mero instrumento. Contudo e tal como se viu mais acima, a leitura que Gadamer empreende da tradição teológica do Verbum supera essa concepção instrumentalista, orientando-se para uma concepção a que se poderia chamar perfeitamente ontológico-metafísica. 63 De forma ainda mais clara, na posterior obra de W. PANNENBERG, Wissenschaftstheorie und Theologie, Göttingen 1973, tal como refere H. KUHN, Die Theologie vor

linguagem – isto é, a hermenêutica, nas suas várias vertentes – à questão do ser, isto é, à sua dimensão propriamente metafísica. Só nessa dimensão – a que Gadamer não se esquiva e que Pannenberg assume explicitamente 64 – é que será possível pensar verdadeiramente a universalidade da história e da linguagem, sem delas fazer meros instrumentos de um absoluto idealista. Mas o percurso da hermenêutica para a metafísica, através das categorias da história e da linguagem, não implica apenas transformações na concepção de uma e de outra dessas categorias – assim como da própria hermenêutica – senão que conduz a transformações da própria metafísica, superando todas as versões dualistas ou idealistas da mesma. Atingimos, assim, o nível mais importante do debate, em torno à recepção da hermenêutica na teologia – que coincide, em grande parte, com o debate filosófico em torno à própria filosofia hermenêutica.

2.4. Hermenêutica e metafísica A questão da relação entre hermenêutica e metafísica poderá ser equacionada, para

simplificar, da seguinte forma: Poderá a hermenêutica ser considerada, como habitualmente se pensa e diz, a substituta filosófica de uma metafísica chegada ao seu termo, ou constituirá uma nova forma de abordar a dimensão metafísica da realidade? Esta questão ocupa os mais recentes debates filosóficos e teológicos, podendo ser assumida como uma ressonância da filosofia hermenêutica de Gadamer, sobretudo na sua dimensão ontológica. Em contexto americano, predominam as posições anti-metafísicas, que assumem a hermenêutica como forma de superação da tradicional pretensão metafísica de encontrar uma fundamentação última

65

. Do ponto de vista filosófico, o famoso «non-

foundationalism» pretende abdicar dessa pretensão metafísica e reduzir a filosofia a uma descrição, uma narrativa ou uma interpretação de um contexto cultural determinado,

dem Tribunal der Wissenschaftstheorie, in: «Philosophisches Jahrbuch» (1978) 264-277, 274: “Que o contacto com Gadamer foi orientador para o pensamento teológico de Pannenberg, já se manifestava nos seus escritos anteriores. Em que medida a ideia de Deus e a temática hermenêutica, para ele, se conjugam, torna-se agora plenamente claro. A totalidade... transfigurase em totalidade de sentido”. 64 De facto, em relação a Gadamer, poderemos encontrar aí uma espécie de distanciação de Heidegger, que persegue constantemente uma «destruição» (embora como Verwindung e não como Überwindung) da linguagem metafísica (Cf.: GW 10, 12.69). Em relação a Pannenberg, bastaria referir o interessante escrito Metaphysik und Gottesgedanke, Göttingen 1988. 65 Sobre o assunto, ver: J. DUQUE, Homo credens, Lisboa 2002, esp. 201 ss.

66

eliminando todas as pretensões universais e todas as referências absolutas . No intuito de 67

superar aquilo a que é chamado “ansiedade cartesiana” , isso é, o desejo de atingir um fundamento último e inabalável para a realidade e para o conhecimento, pretende-se, pois, eliminar toda a tentativa «fundamentalista» – termo que é aplicado, sem mais, à actividade de fundamentação – acusada de ilusória e de provocadora dos mais variados fundamentalismos. Para os «não-fundacionalistas», no campo da teologia, a procura de uma fundamentação da fé basear-se-á numa «falácia» epistemológica, precisamente a falácia fundacionalista: “O fundacionalismo pressupõe que determinadas verdades básicas possam ser descritas como auto-justificadas (isto é, não justificadas a partir de outra coisa) ou como irrefutáveis. Todas as outras verdades são, ou justificadas por estas verdades básicas fundacionais, ou são fundacionais, na medida em que se auto-justificam 68

ou são irrefutáveis e justificam outras” . Essas seriam as características comuns a todos os «fundacionalismos», quer sejam débeis ou fortes, quer empíricos ou racionalistas. Todos eles concebem, de facto, a fundamentação como justificação última, seja por autoreferência, seja por referência exterior. Ora, sobretudo no âmbito da teologia, essa tendência é assumida por correntes que se auto-intitulam hermenêuticas e propõem um trabalho teológico – especialmente no contexto da Teologia Fundamental – como “reconstrução hermenêutica”69, precisamente porque se dedica à reconstrução de uma tradição, partindo dela, embora assumindo uma atitude em certa medida crítica. A par desse trabalho de reconstrução, Francis SchüsslerFiorenza, um dos mais salientes representantes desta tendência teológica, propõe a elaboração de uma “legitimação retroductiva” (retroductive warrants) 70 , orientada também para as exigências da tradição, assim como a análise das “teorias de fundo” (background theories)71 ou “paradigmas” que determinam e legitimam transformações. 66

Para uma visão geral, Cf.: T. GUARINO, Revelation and Foundationalism: Towards Hermeneutical and Ontological Appropriateness, in: «Modern Theology» 6 (1990) 221-235; J. E. THIEL, Nonfoundationalism, Minneapolis 1994; R. RORTY, Contingency, Irony and Solidarity, Cambridge 1989, 68, afirma claramente o seu programa filosófico, exemplar neste contexto: “Gostaria de substituir a orientação religiosa e filosófica para um fundamento supra-histórico ou uma convergência de fim-da-história, por uma narrativa histórica sobre o papel das instituições e costumes liberais – as instituições e os costumes que se orientam para diminuir a crueldade, tornar possível o governo pelo consentimento dos governados e permitem que se dê, tanto quanto possível, comunicação livre de domínio”. 67 68



Cf.: R. J. BERNSTEIN, Beyond Objectivism and Relativism, Philadelphia 41991, 16ss.



F. SCHÜSSLER-FIORENZA, Foundational Theology, New York 1992 (orig. 1984), 285. Ibidem, 301ss. Ibidem, 306ss. Ibidem, 310ss

69 70 71

O cerne da proposta reside, contudo, no estatuto atribuído a todo esse trabalho teológico, já que não consiste na elaboração de um fundamento último e fixo, a atingir após um percurso fundamentador, mas precisamente na manutenção de um dinâmico “equilíbrio reflexo” (reflective equilibrium) 72 . David Tracy, outro grande nome da teologia hermenêutica norte-americana, prefere situar este trabalho reconstrutivo no seio específico da Teologia Dogmática73, atribuindo à Teologia Fundamental um papel mais apologético, em aliança com a filosofia e sem prescindir totalmente de uma referência metafísica, sobretudo devido à pretensão de verdade das afirmações teológicas74. Na Itália, assumindo a discussão internacional mas dando algum relevo à transformação «pós-moderna» da filosofia hermenêutica, operada sobretudo por Gianni Vattimo (e que torna ainda mais aguda a questão da ligação entre hermenêutica e metafísica ou superação da mesma), tem-se salientado os contributos da chamada «Escola de Milão»75, que pretende recuperar a dimensão metafísica, para além de uma redução da hermenêutica à sua superação. Explicitamente, assume-se que a linha dita «pós-moderna» da hermenêutica “não é a única possível. Pode-se e deve-se defender o fundamento de uma linha alternativa, cujas referências são a teoria hermenêutica de P. Ricoeur e de L. Pareyson”76. No interior deste escola, foi elaborado, recentemente, um dos mais completos e profundos estudos que conheço, sobre a ligação entre a hermenêutica e a teologia, à luz da forma como Gadamer pensa a relação entre verdade e história77. Partindo de uma leitura crítica da recepção da hermenêutica na teologia contemporânea78, o seu autor

72

Ibidem, 301ss.

73 Cf.: D. TRACY, The Analogical Imagination in Modern Theology, New York 1980. 74

Cf.: ID., Blessed Rage for Order. The New Pluralism in Theology, Chicago 1996 (orig.: New York 1975), esp. 52ss: “Para determinar o estatuto veritativo dos resultados da investigação própria sobre o significado, quer da comum experiência humana, quer dos textos teológicos, o teólogo deverá empregar um modo de reflexão explicitamente transcendental ou metafísico”. No capítulo 7 (pp. 146ss), intitulado precisamente A questão de Deus: metafísica revisitada, Tracy desenvolve a sua concepção de metafísica, que muito deve à hermenêutica, sobretudo na sua ligação à linguagem poética, metafórica e mítica. 75 Na qual sobressaem, sem dúvida, Giuseppe Colombo, Angelo Bertuletti e Pierangelo Sequeri. 76 A. BERTULETTI, La teologia tra la fondazione ermeneutica e la fondazione metafísica, in: «Teologia» (1988) 232-249, 234. Poder-se-ia referir, contrariamente a Bertuletti – que não chega a discutir a redutora leitura de Vattimo – a hermenêutica de Gadamer, na sua dimensão ontológica. 77 Cf.: P. COLOMBO, op. cit.. Estranha ou sintomaticamente, essa obra é praticamente ignorada na discussão empreendida noutros países, o que é de lamentar, dada a riqueza do seu contributo. 78 Cf.: Ibidem, 354: “A acentuação hermenêutica tende a absolutizar a historicidade, negando a pertinência do momento crítico ou transcendental: a adscrição da verdade à história conduz à auto-justificação hermenêutica (segundo modelos diferentes, Biser e Pannenberg) – ou então, pragmática (Theobald) – da instância teológica, do que resulta o risco de

procede a uma releitura, em profundidade, da filosofia gadameriana, considerada na sua globalidade – sobretudo na sua ligação à filosofia grega. Como superação das leituras parciais e insuficientes das teologias referidas, sugere uma referência mútua entre metafísica, enquanto transcendentalidade da verdade, e historicidade, enquanto acontecer da mesma, recorrendo para isso à ideia do «bem», herdada de Platão e central para a reflexão gadameriana79. Na Alemanha, tem-se desenrolado um debate em torno à obra de Hansjürgen Verweyen,

sobretudo

ao

seu

volumoso

«Curso

de

Teologia

Fundamental»,

sintomaticamente intitulado «Última Palavra de Deus» (Gottes letztes Wort)80. Nele, o teólogo de Freiburg adianta a proposta de uma necessária interpenetração entre função hermenêutica e função metafísica da Teologia Fundamental – funções essas que são assumidas e realizadas como filosofia. A primeira, extensivamente universal e resultante da universalidade do próprio cristianismo, tem por missão tornar o conteúdo da Revelação cristã presente e compreensível a cada horizonte histórico: “O significado universal da traditio pressupõe, pois, para cada encontro com o Cristo anunciado, no sentido da hermenêutica, uma possível «fusão de horizontes» (H.-G. Gadamer) da Palavra de Deus com a respectiva palavra humana”81. A segunda, intensivamente universal e resultante da pretensão absoluta da fé cristã, tem por finalidade manter sempre presente a referência a um último e absoluto fundamento de sentido: “A partir da fé numa Revelação que se deu «de uma vez por todas», resulta a exigência, dirigida à razão filosófica autónoma, de formular um irrefutável conceito de sentido com validade última”82.

não-fundamentabilidade, como subjectividade arbitrária, do assentimento de fé. O carácter absoluto do momento teológico corre o risco, por seu turno, de comprometer a diferença da história, enquanto propriamente humana (Jüngel) ou então, na tentativa de combater a distinção entre criticidade racional e revelação, tende-se a regressar à extrinsecidade entre historicidade da fé e formalidade da razão, o que em realidade se pretendia superar (Verweyen)”. 79 Cf.: Ibidem, 301ss. Em que medida a ideia do «belo», também de origem platónica, se proporcionaria mais a essa conjugação entre hermenêutica e metafísica, é o que dá a entender o próprio Gadamer, no final de Verdade e Método (Cf.: GW 1, 481ss), tal como é salientado por alguns dos seus intérpretes (Cf.: J. GRONDIN, Introduction à Hans-Georg Gadamer, Paris 1999, esp. 219ss: “O testemunho mais eloquente deste pensamento metafísico da finitude de toda a compreensão encontra-o Gadamer, o que será outra surpresa, no conceito do Belo, em Platão”). Da minha parte, sigo esta segunda via, embora de forma mais explicitamente ligada ao fenómeno artístico (Cf.: J. DUQUE, Die Kunst als Ort immanenter Transzendenz. Zu einer fundamentaltheologischer Rezeption de Kunstphilosophie Hans-Georg Gadamers, Frankfurt a. M., 1997). 80 Cf.: H.-J. VERWEYEN, Gottes letztes Wort. Grundriss der Fundamentaltheologie, Düsseldorf 1991. Sobre esta obra e outros escritos do mesmo teólogo, publicou-se já um volume de debate: G. LARCHER / K. MÜLLER / TH. PRÖPPER (EDS.), Hoffnung, die Gründe nennt. Zu Hansjürgen Verweyens Projekt einer erstphilosophischen Glaubensverantwortung, Regensburg 1996. 81 H.-J. VERWEYEN, op. cit., 81. 82 Ibidem, 86.

No nosso contexto, contudo, o mais interessante dessa proposta – e que a coloca na linha da filosofia hermenêutica de Gadamer, mesmo que o autor não o assuma explicitamente83 – é a imprescindível mútua referência dessas duas dimensões da teologia (fundamental), enquanto filosofia e da filosofia, por impulso da teologia. Do lado da hermenêutica, tal exigência torna-se clara, na medida em que o contrário implicaria a própria impossibilidade da hermenêutica: “Quando não é possível encontrar critérios incondicionalmente válidos para o sentido de que se trata no entender hermenêutico, então os que entendem ficam entregues à autoridade do que, no caso, vale, isto é, à «verdade» que se «impõe» (durchsetzt)”84. A comunicação, como pressuposto de toda a hermenêutica, torna-se então impossível. Mas essa mútua referência não afecta apenas a hermenêutica, senão que marca também a metafísica que lhe corresponde, a qual não se compreende como “empreendimento concorrente da abertura universal do entender, mas como reflexão sobre as suas condições de possibilidade”85. Sendo assim, a hermenêutica pressupõe a metafísica e esta pressupõe a hermenêutica. Do percurso explícito de universalização e ontologização da hermenêutica resulta, portanto, uma vertente metafísica da mesma, a qual, por seu turno, altera de forma marcante a metafísica tradicional. Neste sentido, será importante o recurso a alguns trabalhos recentes, elaborados em contexto especificamente filosófico, mas com enorme pertinência para a teologia. Refiro-me à clara proposta de Jean Greisch, no sentido de estabelecer a ligação entre hermenêutica e metafísica86. Na sua perspectiva, a reflexão fundamental especulativa, tal como tem sido empreendida pela metafísica até hoje, aproxima-se sempre da realidade através de conceitos interpretativos e de uma compreensão da mesma. Isso revela, só por si, a dimensão hermenêutica da própria metafísica, nas suas diversas formas, o que conduz Greisch a reformular a metafísica, precisamente como hermenêutica. De facto, se esta assenta num conceito central como o de «pertença», é essa mesma categoria que revela a sua própria dimensão metafísica, já que a pertença a um texto ou a uma tradição, a ser interpretados, culmina e pressupõe, necessariamente, uma pertença à

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Reduzindo, aliás, a posição de Gadamer a um contexto tendencialmente fideísta, o que é, no mínimo, discutível, quando se assume a sua filosofia na globalidade e não se reduz à questão hermenêutica de inspiração bultmanniana. Em realidade, Verweyen lê Gadamer com os olhos de Vattimo ou (o que talvez seja mais provável, dada a sua estadia nos Estados Unidos) com os de Richard Rorty (Cf.: H.-J. VERWEYEN, op. cit., 79-80.95). 84 Ibidem, 100. 85 Ibidem, 101. 86 Cf.: J. GREISCH, Hermeneutik und Metaphysik, München 1993

linguagem e, na dimensão especulativa da mesma, a pertença ao próprio ser87. Inspirandose em Ricoeur e em Levinas, Greisch adianta uma proposta de metafísica hermenêutica, com base nas categorias de alteridade e de passividade, que em si reúnem importantes intuições da filosofia hermenêutica gadameriana, embora as explicitem de forma algo distinta88. Mas, precisamente a partir da temática da alteridade e da passividade, levanta-se a questão básica dos limites da própria hermenêutica. De facto, se a sua universalidade assenta na dimensão especulativa (por isso mesmo, metafísica) da linguagem, a questão dos seus limites coincide com a dos limites dessa linguagem, como marcas da inabarcabilidade da alteridade da própria realidade a entender e a dizer. Tal como já tinha revelado a teologia do verbum, permanece a inultrapassável diferença entre dizer e dito89. Ora, se essa diferença possibilita a hermenêutica e a define na sua universalidade, não implicará também os limites da mesma?

3. «Horizontes» Se é certo que Gadamer compreende o processo hermenêutico como «fusão de horizontes», também é certo que esse processo nunca consegue apoderar-se cabalmente desses mesmos horizontes. Em realidade, o próprio acontecer hermenêutico está marcado por horizontes mais vastos, que o precedem e o marcam e que nenhum entender consegue, nunca, abarcar. Alguns desses horizontes habitam, mesmo, o cerne do filosofar gadameriano, como é o caso da arte e do tempo. Estes horizontes constituem, por isso, referências de superação da própria hermenêutica, as quais, por seu turno, podem fertilizar a auto-compreensão da teologia, sobretudo no contexto das mais recentes discussões em torno à questão metafísica. Proponho, por isso, uma leitura de Gadamer «contra» si mesmo, naquilo em que alguns elementos da sua filosofia possam ser fecundos para a teologia.

3.1. A arte como «ruptura» Se Gadamer, na sua auto-apresentação de 1975, ao referir o despertar da sua actividade

filosófica e as primeiras influências recebidas, admite claramente que não se podia fechar 87

Cf.: Ibidem, 25-28 (onde Greisch estabelece a explícita ligação da sua posição com a de Gadamer). Uma concepção semelhante, em que se salienta a pertença mútua de sentido e ser, pode encontrar-se em E. CORETH, Grundriss der Metaphysik, Innsbruck / Wien 1994; ID., Hermeneutik und Metaphysikm in: «Zeitschrift für katholische Theologie» 90 (1968) 422-450. 88 Cf.: K. WENZEL, Die Gegenwart des Verstehens. Hermeneutik im Schatten theologischer Rezeptionsdefizite, in: K. MÜLLER (ED. ), op. cit., 151-175, 158. 89 Para assumir os significativos termos de E. LEVINAS, Autrement qu’être et au-dela de l’essence, Nimega 1974, também pensador por excelência da alteridade e da passividade.

ao facto de que “a experiência da arte tinha que ver com a filosofia..., que a arte era o verdadeiro organon da filosofia...”90, não é difícil calcular o lugar de destaque que a arte ocupou, em todo o seu filosofar. Por um lado, como é frequentemente considerado, a arte serve de modelo para a construção da filosofia hermenêutica. Mas, para além disso, a experiência da arte, que continua a marcar as reflexões de Gadamer, talvez mais nos últimos anos que antes, acaba por levantar questões à própria hermenêutica91. No contexto de Verdade e Método, o jogo da arte apenas funciona como uma modelo privilegiado de experiência hermenêutica. O jogo da linguagem assume, contudo, uma importância mais vasta, já que é assumida na sua dimensão especulativa. No interior desse jogo, como se viu, a hermenêutica atinge a sua verdadeira dimensão ontológica, isto é, a característica de universalidade, precisamente com base na mediação universal da linguagem. A vantagem dessa condução da hermenêutica ao seio da linguagem é, sem dúvida, o facto de manifestar a inevitável vocação metafísica da hermenêutica, que à partida parecia não a habitar. Mas, por outro lado, esse passo decisivo levanta uma pretensão ontológica universal que não pode ser mantida pela própria hermenêutica, a não ser à custa de internas aporias. É sabido que a filosofia hermenêutica de Gadamer se baseia, essencialmente, em duas intenções omnipresentes: a superação da filosofia transcendental da consciência, típica da modernidade (anti-subjectivismo) e a recondução da filosofia à finitude do ser humano, com a correspondente renúncia a um saber absoluto (anti-idealismo). Ora, a pretensão universal-ontológica da hermenêutica, na qual desagua todo o percurso da sua filosofia, implica, por seu turno, uma tripla universalidade: do entender, da linguagem e da razão. Contudo, tal pretensão só poderá ser válida, em duas circunstâncias basicamente opostas: ou se entendem essas três realidades de forma idealístico-absoluta, renunciando à segunda intenção básica da hermenêutica, ou seja, ao 90

GW 2, 481. Pouco se tem estudado a filosofia da arte gadameriana, enquanto tal e na sua globalidade. Entre nós, exceptua-se dessa regra geral o interessante estudo de M. L. PORTOCARRERO SILVA, O significado hermenêutico da experiência da obra de arte em H.-G. Gadamer, in: J. A. PINTO RIBEIRO (Coord.), O Homem e o tempo. Liber amicorum para Miguel Baptista Pereira, Porto 1999, 497-515. A autora permanece, contudo, muito cativa da estrita perspectiva hermenêutica, a ponto de se permitir afirmações algo ambíguas, tais como: “A verdade da obra apenas acontece na sua compreensão... Isto significa que a verdade da obra da arte é um acontecer de sentido, que se cumpre na sua recepção por parte do espectador ou intérprete” (p. 515). Mas, não significaria esse «cumprimento» precisamente o fim do processo hermenêutico? E não implica essa visão uma redução do próprio fenómeno artístico à sua recepção, mesmo que diversa e processual – redução bastante contrária à perspectiva de Gadamer, e muito mais à de Heidegger, na linha do qual a autora coloca (e muito bem) o contributo do primeiro? Por outro lado, haveria que discutir – mesmo a partir do próprio Gadamer e até de Heidegger – o pressuposto global de se encontrar “esgotado o paradigma metafísico da verdade” (p. 514) (Cf.: J. DUQUE, Die Kunst als Ort, esp. a 1ª parte). 91

reconhecimento da finitude humana como inultrapassável contexto de todo o pensar e dizer (e então já não se trata de universalidade da hermenêutica, mas sim de uma reedição do idealismo, sem recurso à razão divina, por isso mesmo até como radicalização do próprio Hegel); ou essas três realidades são entendidas humanamente, isto é, na sua condição finita (como pretende Gadamer, pelo menos no cerne daquilo que visa com a sua filosofia), contudo sob renúncia à primeira grande intenção da hermenêutica, isto é, à superação do subjectivismo moderno. De facto, esta renúncia implicaria, em última instância, ou o regresso a uma filosofia subjectivista da consciência, ou a renúncia à pretensão universal da própria hermenêutica. Para além disso, tanto uma compreensão totalitária do entender, da linguagem e da razão, como uma correspondente concepção que se fundamente na consciência subjectiva contradizem as realidades do mundo, do outro e mesmo da arte, realidades que são orientadoras para toda a filosofia gadameriana. O seja, uma hermenêutica com pretensão universal através da universalidade especulativa da linguagem e da razão, acaba por se enredar numa aporia de que não encontra saída: ou deixa de ser hermenêutica, ou deixa de ser universal. Como solução dessa aporia, poder-se-ia sugerir – perfeitamente no sentido do próprio Gadamer – a manutenção de uma tensão dialógico-dialéctica 92 entre articulação particular (diferença) e sentido universal (identidade). A essa tensão, enquanto tal, poderse-ia chamar meta-física, no sentido de uma transcendência tensional da dimensão histórico-temporal, mas sempre realizada no interior do tempo e da história (enquanto superação e enquanto reconhecimento de alteridade), ou seja, enquanto transcendência sempre realizada temporal e historicamente. Neste preciso contexto, penso ser extremamente fértil o recurso ao fenómeno da arte, tal como é abordado pelo próprio Gadamer. Ou seja, a sua filosofia da arte pode servir de instância superadora da sua própria hermenêutica, dadas as aporias a que esta conduz. O modelo da arte, levado às suas últimas consequências, permitiria superar o perigo redutor inerente à hermenêutica, isto é, o perigo de não respeitar a alteridade do outro diferente. Perigo que reconheceu o próprio Gadamer, quando resume o problema central da hermenêutica filosófica: “Não será que, na hermenêutica, apesar de toda a preocupação por reconhecer a alteridade como alteridade, o outro como outro, a arte como um impacto

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O conceito de tensão dialógico-dialéctica, inspirado nas leituras platónicas de Gadamer, aproxima-se muito do de fertilidade das aporias, que Paul Ricoeur costuma sugerir, como superação de todas as tendências idealistas.

(Stoss), a ruptura como ruptura, o incompreensível como incompreensível, se concede demasiado à compreensão (Verständigung) e ao entendimento (Einverständnis)?”93 A assunção da arte como ruptura da continuidade do tempo, no interior do tempo, levanta a possibilidade de uma ruptura da própria continuidade do processo hermenêutico, sem com isso se abandonar o âmbito finito do acontecer histórico. Nesse sentido, o fenómeno artístico abre-nos a possibilidade de pensar e articular a irrupção da eternidade no tempo, a instauração do tempo pleno no interior da cronologia de um tempo vazio.

3.2. Tempo pleno

Não se encontrando explicitamente em Verdade e Método, as reflexões gadamerianas sobre o conceito de tempo têm sido praticamente ignoradas pelos seus leitores filosóficos e teológicos94. Contudo e na sequência do ficou dito, talvez aí se possam encontrar os elementos de maior pertinência para uma recepção teológica da filosofia gadameriana, considerada na sua globalidade. Gadamer expõe a sua concepção de tempo essencialmente num artigo, cujo título praticamente resume tudo o que pretende: «Sobre o tempo vazio e o tempo pleno» (Über leere und erfüllte Zeit) 95. A par desse texto e de uma importante reflexão sobre a concepção de tempo do ocidente96, é básica a sua abordagem do fenómeno da festa, elaborada no contexto da reflexão sobre a arte97. Na tradição da Antiguidade grega e de Agostinho – mas também de Kant, Husserl e Heidegger – Gadamer assume a questão do tempo como o mais “profundo enigma,

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GW 10, 142. Para um mais detalhado desenvolvimento das ideias aqui resumidas, Cf.: J. DUQUE, Die Kunst als Ort. A referência à arte não poderá pautar-se, portanto, por considerar todo o tipo de texto – sobretudo o escriturístico – como uma obra de arte em sentido estrito, mas sim por considerar que todo o processo de entender, na sua globalidade universal, está marcado pelo modelo de entender uma obra de arte. Não compreendo, por isso, a que pretende referir-se G. STOBBE, Schädliche Einheit, 130, quando afirma que praticamente nenhuma recepção teológica de Gadamer tem tido em conta o papel que o filósofo “atribuiu ao paradigma da arte” e, mais adiante, claramente afirma que não se pode seguir o modelo da arte para a interpretação dos textos escriturísticos, já que os “autores bíblicos estavam longe de pretender criar obras de arte literárias” (p. 135). Independentemente do facto de ser objectivamente incorrecta a primeira afirmação, a tomada de posição de Stobbe revela alguma incompreensão – ou, pelo menos, esquecimento – do que significa o recurso gadameriano ao modelo da arte, cujo significado é de pertinência ontológico-universal e não meramente técnico-hermenêutica. 94 Entre as mais destacadas excepções, seja referido G. MORETTO, op. cit., esp. 151ss. 95 Agora em: GW 4, 137-153. 96 Die Zeitanschauung des Abendlandes, in: GW 4, 119-136. 97 Sobretudo em Die Aktualität des Schönen, GW 8, esp. 130ss; Cf.: J. DUQUE, Teologia da festa ou a festa da Teo-logia, in: «Theologica» 31 (1996) 223-244; ID., Die Kunst als Ort, esp. 99-104.

perante o qual se encontra a humanidade”98, dada precisamente a disjunção entre a experiência da limitação de tudo e a experiência do ilimitado da nossa imaginação. O problema central dessa disjunção é, precisamente, o problema da finitude, marcado pela passagem do tempo, que devora o ser e o conduz ao nada, à morte. E é esse problema que provoca, constantemente, a pergunta sem resposta: «o que é o tempo?» Pergunta que, enquanto questão do ser do tempo, marca toda a tradição do pensamento ocidental, desde os gregos99. Na tentativa de uma abordagem desse fenómeno e do seu próprio enigma, Gadamer defronta-se com, pelo menos, duas formas de tempo ou, se quisermos, de o pensar e viver: precisamente o tempo vazio e o tempo pleno. O primeiro, em última instância, não é propriamente experimentado como tempo, mas como algo “in abstracto”100 ou informe, destinado apenas a ser preenchido (com muito, ou com nada, o que é igual), utilizado e medido – e que, na medida em que o é, torna passado aquilo que o preenche, ou seja, aniquila o seu próprio conteúdo101. Só no tempo pleno experimentamos o tempo como tal – que passa a ser um tempo significativo para a própria experiência humana. Do ponto de vista existencial, essa forma de tempo funda-se “na unidade orgânica do ser vivo”102. Mas essa experiência é diferente da mera experiência do devir; é, pelo contrário, a experiência do permanecer (Verweilen, enquanto forma oposta à vivência do tempo vazio, que seria uma Langeweile = tédio) no tempo, enquanto duração (não como indefinida Dauer, mas como qualificada Weile) do próprio tempo, num momento (Augenblick) qualificado do devir cronológico. É o tempo festivo, como tempo pleno e eterno: “O tempo da festa, aconteça quando acontecer e quantas vezes acontecer... é um tempo diferente do tempo da consciência activa que se estende para o futuro e para o passado”103. Essa forma de tempo, cujo acontecimento paradigmático é precisamente o fenómeno da arte, ensina-nos a permanecer no tempo, sem por ele sermos devorados, o que possibilita a experiência de uma simultaneidade

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GW 4, 119. Cf.: Ibidem, 125. 100 GW 4, 130. 101 Gadamer considera ter sido esta visão do tempo a que mais marcou o ocidente, sobretudo na sua orientação técnico-científica, exemplarmente pre-anunciada no mito de Prometeu, como símbolo da própria tragédia da cultura ocidental – a qual encontra uma outra face na figura de Pandora, como símbolo da “experiência do outro e da radical alteridade da morte”, que rompe os estreitos limites da auto-consciência do próprio Prometeu (Cf.: GW 4, 133.136; GW 9, 150ss). 102 GW 4, 131. Gadamer refere-se, aqui, às análises heideggerianas em Sein und Zeit. 103 GW 4, 136. 99

entre passado, presente e futuro. “Essa é, talvez, a correspondência finita que nos cabe, em relação ao que se chama eternidade”104. Ora, a experiência do tempo pleno, pensada desse modo, permite-nos estabelecer uma estreita relação com a concepção escatológica do tempo, que marca o cerne de toda a teologia 105 . Escatologia, enquanto qualificação do tempo, não significa, aqui, um momento final, após todo o desenrolar cronológico do tempo do mundo ou do ser humano, nem um acontecimento para além desse tempo, mas precisamente uma qualificação do tempo, diferente da cronologia106. Essa qualificação, não eliminando o tempo cronológico, confere-lhe sentido, precisamente na medida em que o qualifica. Qualificação essa que assume determinados momentos cronológicos no seu permanecer de sentido e, por isso, na sua dimensão de eternidade. O tempo escatológico, enquanto tempo pleno de todo o acontecer escatológico na história, é o tempo da arte, o tempo da festa, sendo também o tempo do acontecimento central da fé cristã: o acontecimento Jesus Cristo. É pois, o tempo de um acontecimento que, por ser escatológico, se nos dá na linguagem, superando a linguagem; que se nos dá numa tradição, superando criticamente essa mesma tradição; que se nos dá no particular de uma história concreta, universalizando a sua particularidade; que se nos dá num processo de entendimento e de interpretação, superando todo o entendimento e toda a interpretação. Por isso, é o «tempo favorável» para a conjugação entre a hermenêutica e a metafísica, numa tensão que marca todos os momentos da nossa cronologia, em constante abertura ao kairós de um «momento» definitivo107, que marca já cada instante do nosso tempo, a ser vivido em plenitude, como pretendia Nietzsche – outro pensador de inestimável importância para a reelaboração do discurso sobre Deus em constexto de «pós-modernidade»108.

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GW 8, 136. O conceito de «escatologia» aplica-se, aqui, no seu sentido mais vasto, e não como qualificação de um pequeno tratado do edifício teológico académico. Nesse seu sentido mais vasto, a escatologia, enquanto dimensão específica, marca toda a teologia, que deixaria de o ser se descurasse essa dimensão (Cf.: G. SAUTER, Einführung in die Eschatologie, Darmstadt 1995). 106 Nesse sentido, não há uma necessária identificação entre tempo escatológico e tempo linear ou histórico, como pretende determinada leitura redutora da escatologia, e que marca a concepção de escatologia assumida pelo próprio Gadamer (que, por isso, não chega a identificar explicitamente «tempo pleno» com «tempo escatológico»: Cf.: GW 4, 122ss; sobre o tempo escatológico, Cf.: J.-L. LEUBA [Dir.], Temps et eschatologie, Paris 1994). 107 Cf.: J. DUQUE, Apocalíptica e teologia na pós-modernidade, in: «Cenáculo» 150 (1999) 404-425. 108 Ver, para além do capítulo seguinte, J. DUQUE, Eterno retorno e escatologia. Contributo para uma leitura teológica de Nietzsche, in: A. MONTEIRO (Org.), Reencontro com Nietzsche. No 1º Centenário da sua morte, Porto: Granito, 2001, 129-146. 105

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