Duque, J. M. (2001). Eterno Retorno e Escatologia - Leitura de F. Nietzsche. In: Monteiro, A. (Org.). Reencontro com Nietzsche. No 1º Centenário da sua morte. Porto: Granito, 129-146

July 7, 2017 | Autor: João Manuel Duque | Categoria: Philosophy, Theology, Nietzsche, Eschatology
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ETERNO  RETORNO  E  ESCATOLOGIA   Leitura de F. Nietzsche A doutrina nietzschiana da superação da temporalidade do tempo, em direcção à eternidade do eterno retorno do mesmo, não é, por isso, nem uma simples fuga para fora do tempo, nem o elogio do efémero. O anúncio desta «nova eternidade» – nova em relação à antiga a-temporalidade – torna-se na sua doutrina mais própria, constituindo por isso o Zarathustra a sua obra-prima, o seu «testamento»1.

Esta afirmação inequívoca de Karl Löwith, no seu clássico estudo sobre a doutrina nietzschiana do eterno retorno, lembra-nos que estamos perante a questão da temporalidade como uma das questões centrais de toda a filosofia de Nietzsche. É certo que há quem considere que a questão do tempo não tem importância em Nietzsche, mas apenas a da vontade.2 Mas também há quem defenda claramente, como por exemplo Nuno Nabais, que “as obras posteriores a 1881 estão orientadas pela tese de que é na própria experiência universal da temporalidade que se descobre a origem da revolta da vontade contra si mesma e, portanto, a condição de possibilidade da moral”. 3 O passado e a sua irrevogabilidade constituem, precisamente, essa origem. E a transmutação dos valores depende da superação da visão demasiado humana do tempo, enquanto superação dessa irrevogabilidade do passado – não será por acaso que, em Ecce Homo, ao referir-se à génese de Zarathustra e à respectiva concepção de base, precisamente a ideia do eterno retorno, Nietzsche afirma

1  K.  LÖWITH,  Nietzsche:  philosophie  de  l’éternel  retour  du  même,  Calmann-­‐Lévy  1991  (orig.:  

1935),  15.   2  M.  L.  GARCÍA  GARCÍA,  Eterno  retorno  en  la  mentalidad  arcaica  y  eterno  retorno  en   Nietzsche,  in:  «Naturaleza  y  Gracia»,  37  (1990)  393-­‐410,  405,  diz  claramente  que  “em  Nietzsche   não  tem  nenhuma  importância...  qualquer  enfoque  a  partir  do  tempo,  tema  que,  sem  dúvida,   constitui  a  base  do  retorno  arcaico...”  Centra-­‐se,  assim,  na  “conexão  da  vontade  de  poder-­‐criação   com  o  mais  original  do  retorno  nietzschiano”.  Na  visão  de  Löwith,  a  questão  da  vontade   equivaleria  ao  equacionamento  antropológico  da  doutrina  do  eterno  retorno,  ao  passo  que  a   questão  do  tempo  se  poderia  ligar  ao  seu  equacionamento  cosmológico,  como  se  verá  mais   adiante.  Esse  duplo  equacionamento  abre,  portanto,  perspectivas  que  vão  além  da  visão   reducionista  de  Garcia  Garcia,  que  aliás  não  chega  a  ser  por  ela  demonstrada.   3  N.  NABAIS,  Nuno,  Metafísica  do  trágico.  Estudos  sobre  Nietzsche,  Lisboa:  Relógio  d’Água,   1997,  192.  Teríamos,  pois,  que  distinguir  bem  –  para  além  das  equações  diferentes  da  doutrina   do  eterno  retorno  –  entre  as  fases  da  obra  nietzschiana.  A  última  dessas  fases  terá,  de  facto,   deixado  de  parte  a  ideia  do  eterno  retorno  e,  por  isso,  da  temporalidade,  concentrando-­‐se  na   questão  da  moral  e  da  vontade.  O  que  não  significa  que  a  problemática  da  temporalidade  não   possa  constituir,  também  aí,  um  elemento  imprescindível  para  possibilitar  o  próprio   empreendimento  nietzschiano  de  transmutação  dos  valores.  

simbolicamente: “6000 Fuss jenseits von Mensch und Zeit” [6000 pés para além do ser humano e do tempo] (EH, Also sprach Zarathustra, 1)4. Ou seja, em realidade, a questão da vontade, da moral, da transmutação dos valores, da superação da metafísica, etc. todas elas estão de algum modo ligadas à questão da temporalidade, para além do tempo e do ser humano, mesmo que Nietzsche se tenha concentrado mais, na sua última fase, na problemática ainda demasiado humana da transmutação dos valores e, por isso mesmo, da «vontade de poder». Ora, a questão da temporalidade, em Nietzsche, não pode ser colocada sem referência à sua enigmática doutrina do eterno retorno 5 . De facto, o cerne da concepção nietzschiana do tempo conduz, sempre, ao cerne da sua doutrina do eterno retorno, mesmo que esta tenha sido apenas esboçada. A questão central é, em realidade, a questão da afirmação do tempo, no tempo, com valor de eternidade – isto é, trata-se da possibilidade de uma afirmação simultaneamente temporal e absoluta do próprio tempo, enquanto afirmação absoluta do ser: do ser do/no tempo e do tempo do/no ser. Por isso e apesar da constante ambiguidade dos textos nietzschianos, com a correspondente diversidade de interpretações, penso ser perfeitamente possível e legítimo relacionar a questão do eterno retorno com a questão mais vasta da temporalidade e tornar fértil essa relação (mesmo que, porventura, desempenhe um papel relativamente secundário no opus nietzschiano), no nosso caso, recorrendo a tópicos centrais da escatologia cristã. Esta, por seu turno, também não deixará de sofrer algumas alterações ou desvios, após o confronto com Nietzsche. Mas não se tratará propriamente de «deturpações» da escatologia cristã, senão possivelmente de um maior aprofundamento do seu verdadeiro sentido. Que me perdoe Nietzsche se, com isto, me desvio algo das suas intenções mais explícitas – o que, aliás, não deixa de ser permitido pela ambiguidade dos seus textos. 4  As  obras  de  Nietzsche  foram  consultadas  a  partir  da  Kritische  Gesamtausgabe  (KGA),   editada  por  C.  Colli  e  M.  Montinari,  Berlim  1967ss.  As  referências  serão  feitas  segundo  as   seguintes  abreviaturas  e  sem  indicação  de  página,  mas  sim  de  número  e/ou  capítulo,  para   facilitar  a  consulta  noutras  edições:  Also  sprach  Zarathustra  (AsZ);  Die  fröhliche  Wissenschaft   (FW);  Menschliches,  Allzumenschliches  (MA);  Der  Antichrist  (AC);  Dionysos-­‐Dithyramben  (DD);   Ecce  Homo  (EH).   5  P.  COLOMBO,  Nietzsche  e  il  Cristianesimo,  in:  «Teologia»  21  (1996)  141-­‐176,  142,   considera  que  a  “doutrina  do  eterno  retorno  representa  a  modalidade  antropologicamente  mais   correcta  de  viver  a  temporalidade”.  Mesmo  que,  como  se  verá,  não  se  possa  reduzir  a  doutrina  do   eterno  retorno  à  sua  dimensão  antropológica,  não  deixa  de  ser  interessante  esta  estreita  ligação   entre  a  questão  da  temporalidade  e  a  questão  da  antropologia  (enquanto  questão  da  vontade).  

Parece-me, contudo, que não me desviarei muito do cerne de algumas das dimensões do seu pensamento, que poderá contribuir, de forma paradoxal, para trazer à luz elementos centrais do próprio cristianismo, nem sempre levados em conta pela respectiva teologia – nem pelo próprio Nietzsche – sobretudo no que se refere à complexa problemática da escatologia. Ou seja, a doutrina nietzschiana do eterno retorno e a escatologia cristã podem ser lidas na sua função de recíproca correcção, mas também de recíproco esclarecimento6. Mas vejamos, por partes, como pensa Nietzsche a temporalidade, para depois ser possível estabelecer um paralelo com a escatologia. Proponho, para isso uma abordagem tripla da concepção nietzschiana de tempo, com base em três expressõeschave: o «tempo certo», o «eterno retorno» propriamente dito e o «meio-dia».

1. «Tempo certo» A concepção nietzschiana de tempo pressupõe, antes de mais, uma superação da sua redução ao tempo físico e mensurável, ao movimento perpétuo e sem qualidade do krónos, numa cronologia em que todos os momentos são iguais a todos, isto é, sem tempo próprio, porque sem qualidade significativa própria. Essa superação da cronologia, ou do tempo enquanto mera medida do movimento, leva Nietzsche a falar do «tempo certo», der “rechten Zeit”,7 que é o tempo próprio da história, da arte e mesmo da acção. 8 Relativamente à história, o seu tempo não se mede por uma sucessão ininterrupta de acontecimentos iguais, mas pelo significado dos acontecimentos que, por serem particulares e únicos, conferem significado à própria globalidade dessa mesma história. O tempo da história é, assim, um tempo qualificado pelo significado de cada um dos seus momentos. O mundo, enquanto história, adquire significado, na medida em que está qualificado pelo «tempo certo» de cada um dos seus momentos, enquanto acontecimentos únicos9.

6  As  considerações  que  se  seguem  serão,  por  isso,  uma  forma  de  levar  a  sério,   teologicamente,  a  provocação  nietzschiana.  Mas  também  pretendem  provocar  –  o  próprio   Nietzsche  e  algumas  das  leituras  (quiçá  demasiado  apressadas)  que  dele  se  fazem.   7  ASZ    I,  Vom  freien  Tod:  “Stirb  zur  rechten  Zeit”.   8  Para  o  que  se  segue,  ver:  W.  STEGMAIER,  Zeit  der  Vorstellung.  Nietzsches  Vorstellung  der   Zeit,  in:  «Zeitschrift  für  philosophische  Forschung»  41  (1987)  202-­‐228,  esp.  204-­‐212.   9  Poder-­‐se-­‐ia  ler  esta  concepção  da  história  como  uma  certa  inversão  da  hegeliana  e,   mesmo,  da  concepção  de  determinada  hermenêutica,  que  concebe  o  significado  da  parte  ou  do   particular,  a  partir  do  horizonte  universal,  total  ou  final.  

Na arte, manifesta-se de forma excelente a dimensão qualitativa do tempo, quer em cada obra de arte, que possui o seu tempo próprio, quer em cada elemento ou momento dessa mesma obra, cujo tempo se articula em relação ao tempo da obra, constituindo-o simultaneamente. O caso mais evidente, para Nietzsche, é sem dúvida a música, cujo ritmo constitui a organização significativa do tempo por excelência, sendo por isso uma das mais claras manifestações do tempo qualitativo da história, concentrado numa obra, mesmo num único compasso, numa superação compacta da linearidade cronológica. Na forma de uma determinada obra, o «tempo certo» é figurado em unidades complexas, de tal modo que a arte se torna medida do seu próprio tempo e, desse modo, instauração da significação do tempo, do tempo qualitativo, para além do quantitativo, nas unidades de significado que a obra realiza10. Na acção, por seu turno, o «tempo certo» aproxima-se do conceito grego de kairós. O tempo, enquanto kairós da acção, significa, num momento do agir, a conjugação da acção com as suas próprias condições de possibilidade, de tal modo que essas mesmas condições se tornam presentes na acção, tornando a acção uma manifestação da plenitude do ser, num momento da cronologia, mas para além de toda a cronologia. Porque a cronologia, enquanto tempo do habitual viver segundo um tempo meramente medido, de uma origem para uma meta, não possui tempo que possa acolher em si a plenitude do ser, já que apenas o pode pensar em oposição ao devir. Como diz o próprio Nietzsche, no final do Zarathustra: “Tudo isto demora muito tempo, ou pouco tempo: porque, para falar verdade, para tais coisas não há tempo sobre a terra” (AsZ, IV, Das Zeichen). O «tempo certo» do agir – die rechte Zeit des Handelns – reside, precisamente, nessa conjugação, independentemente do momento cronológico desse mesmo agir. A acção, nesta perspectiva, assume o carácter de uma interrupção da cronologia, num salto qualitativo para outra dimensão do tempo – a dimensão da eternidade, vivida no instante do «tempo certo». E é esse instante do «tempo certo», sempre igual e sempre diferente, que regressa eternamente. Regresso que constitui o cerne da doutrina do eterno retorno,

10  Por  isso  a  arte  pode  ser  assumida,  pelo  menos  no  sentido  do  jovem  Nietzsche,  como  

modelo  da  vida.  Em  que  medida,  o  seu  pensamento  posterior  inverte  os  termos  e  pensa  a  vida,   com  toda  a  afirmação  que  lhe  está  ligada,  como  modelo  da  arte,  seria  uma  questão  a  explorar   (Não  encontrará  o  seu  problema  com  Wagner,  assim  como  a  sua  correspondente  ligação  à  música   do  «sul»,  raízes  nesta  precedência  da  própria  vida,  que  uma  determinada  música  pode   idealisticamente  anular?).  

isto é, um regresso do mesmo, sendo sempre uma repetição da diferença; porque a eternidade é sempre eterna, mas a sua repetição no instante é sempre outra, na diferença do ser-devir.

2. «Eterno retorno» A possibilidade de ser e a correspondente afirmação da realidade, que constituem a marca distintiva do «super-homem», para além do ser humano demasiado humano e do tempo de morte que o marca, encontram a sua mais premente metaforização na ideia do eterno retorno, que Zarathustra apenas antevê e esboça, de forma muito lacónica, pois o tempo nem aí parece ainda maduro para a sua mais profunda verdade. De facto, “o pensamento do eterno retorno consiste na contracção do carácter estático do tempo: precisa de dissolver o domínio do futuro... e do passado... sobre o presente”11. É sabido, no entanto, que a doutrina nietzschiana do eterno retorno pode ser lida, pelo menos, em dois sentidos básicos – sentidos, aliás, que o próprio Nietzsche parece distinguir bastante claramente. Alguns, como Karl Löwith, chamam-lhe equação antropológica e equação cosmológica da doutrina; outros, como por exemplo Gilles Deleuze, falam de aspecto selectivo e de aspecto físico; outros, como Raul Proença, distinguem entre doutrina moral e doutrina cosmológica; outros ainda, como Nuno Nabais, chamam-lhe perspectiva tipológica e perspectiva antropológica.12 Não interessa agora discutir a nomenclatura. No seu conteúdo essencial, todos pretendem afirmar o mesmo: que a doutrina do eterno retorno tem uma dimensão antropológicomoral e uma dimensão cosmológico-ontológica.13 Na primeira dimensão, está em jogo a vontade humana, que no acolhimento da doutrina do eterno retorno se torna capaz de afirmar a realidade, tal como é, afirmando-se a si mesma. Na segunda dimensão está em jogo o que poderíamos considerar, um pouco à revelia de Nietzsche, o fundamento dessa afirmação, isto é, a 11  P.  COLOMBO,  op.  cit.,  144.   12  É  interessante  verificar  que  a  perspectiva  antropológica,  segundo  Nabais,  coincide   basicamente  com  a  cosmológica,  segundo  Löwith.   13  R.  PROENÇA,  O  eterno  retorno,  vol.  II,  Lisboa:  Imprensa  Nacional  Casa  da  Moeda,  1994,   266ss,  chama-­‐lhe  mesmo  dimensão  metafísica.  Esta  dimensão  ontológico-­‐metafísica  vai  além  da   fundamentação  meramente  científica  ou  física,  que  o  próprio  Nietzsche  lhe  pretendia  dar.  O  que   não  deixa  de  ser  vantajoso,  dado  que  esta  última  fundamentação  parece  cada  vez  mais   desmentida  pelo  princípio  físico  da  entropia,  segundo  a  termodinâmica  (e  não  segundo  o   mecanicismo  da  física  newtoniana),  o  qual  já  não  pensa  o  universo  em  termos  de  conservação  de   energia.  

constituição do ser e do tempo – ou do tempo do ser – que permita o sim absoluto à realidade – e não apenas a vontade do sim, ou até mesmo o sim da vontade, que ainda seria demasiado humano. Se quisermos utilizar as próprias metáforas nietzschianas, a primeira dimensão situa-se na fase do leão, da vontade de transmutação de todos os valores, para superar o homem e dar lugar ao super-homem. A segunda dimensão situa-se na fase da criança, que aceita o jogo infindável do ser, inocentemente, no seu devir eterno, sem nada querer, pois o querer identifica-se com o que é. O problema destas duas dimensões é que parecem ser contraditórias. Um dos leitores que mais salienta essas contradições é, precisamente, Raul Proença que, no seu conhecido e monumental estudo sobre o eterno retorno, praticamente reduz toda a filosofia de Nietzsche ao emaranhado das suas contradições. No concreto aspecto do eterno retorno, o filósofo português encontra uma irreconciliável oposição, uma aporia insolúvel, entre liberdade e vontade humanas, próprias do homem criador que assume o eterno retorno, e a necessidade determinista que marca o constante regresso do mesmo. Será o tipo do homem que é marcado pela vontade de poder que conseguirá superar-se a si mesmo, atingindo a identificação entre o seu querer e o ser do que é? Mas se o que é, o é independentemente da vontade de poder, como pode o ser humano criar ele mesmo a identidade entre querer e ser, sem subjugar o ser ao querer e, desse modo, em vez de dar lugar ao super-homem, regressar sempre ao pobre homem e à sua vontade, que apenas a si mesma se quer? Não levará essa perspectiva a problemas insolúveis ou a soluções monstruosas, sobretudo quando se lhe junta a dimensão selectiva do eterno retorno? De facto, aí já não será a realidade que faz uma selecção, numa eventual superação progressiva e evolutiva do negativo ou do mal, mas os próprios seres humanos que, tornando-se pretensos senhores da história e do ser, seleccionam, eliminando os desventurados, para dar lugar aos fortes e abençoados da história – o que não coincide com a mais profunda intenção de Nietzsche, apesar de toda a ambiguidade dos seus textos. E não será, no outro reverso da medalha, a dimensão cosmológicoantropológica uma forma de determinismo da necessidade absoluta do ser, que não permite qualquer vontade livre, senão aquela que quer o que é? Mas, nesse caso, já não poderia livremente querer o que quer, uma vez que não poderia querer outra coisa, senão o que necessariamente sempre foi e sempre será.

Ou seja, para resumir de forma algo simplista, a visão moral parece anular a ontológica, pois permanece encerrada nos limites do humano, demasiado humano; por seu turno, a visão ontológica parece anular a moral e antropológica, pois elimina a própria vontade livre, sem a qual não há moral nem humanidade. Como superar o impasse? Nietzsche parece ter preferido, na sua última fase, deixar de certo modo no esquecimento a doutrina do eterno retorno e dedicar-se à tarefa da transmutação de todos os valores, como primeiro passo, num caminho para atingir a infância da inocência do devir14. Mas a questão não pode ser ignorada. Mesmo que se defenda a não-finalidade de tudo, não se pode empreender uma transmutação dos valores, se não se tiver presente um horizonte, para onde deverá conduzir essa transmutação. E esse horizonte pode ser, julgo eu, a dimensão ontológica da doutrina do eterno retorno: a condição de possibilidade de afirmação da realidade, naquilo que é e não apenas naquilo que deveria ser ou naquilo que desejaríamos que fosse. Ora, essa afirmação coincide com o momento qualitativo do «tempo certo» da realidade, enquanto «tempo certo» de cada um dos seus instantes. Ou seja, a dimensão ontológica da doutrina do eterno retorno coincide com os elementos básicos da concepção nietzschiana de tempo, orientada pelo kairós e não pelo krónos. O eterno retorno tem a ver com a afirmação de cada instante, enquanto condensação qualitativa de toda a realidade. Por isso esse instante, eterno e total, repete-se sempre, sem nunca ser idêntico a si mesmo, mas enquanto repetição da diferença de cada momento, na diferença de sentido de cada tempo15. E, entre os momentos temporais do acontecer, há um momento saliente, que constitui o ponto de referência para o eterno retorno, pois o instante absoluto que sempre regressa, a presença da eternidade no tempo, é esse momento excelso. Trata-se do momento – ou do qualificativo do tempo – a que Nietzsche aplica a metáfora do «meio-dia».

3. «Meio-dia» Chegado o «meio-dia», a sede de Zarathustra provocou-lhe o desejo de comer uma uva, mas depressa esse desejo foi superado por um mais forte desejo de dormir. A sede que anima a vontade criadora e que a impele a ser saciada é superada por algo 14  Cf.:  N.  NABAIS,  op.  cit.,  184ss.   15  P.  VALADIER,  Nietzsche  y  la  critica  del  cristianismo,  Madrid  (orig.  Paris:  Cerf  1974),  1982,  

544,  resume,  com  precisão,  essa  dimensão  do  eterno  retorno:  “Regresso,  sempre  novo,  da   afirmação  à  realidade,  sempre  diferente”.  

mais alto, na ordem do ser. No momento central do dia, que não é antes nem depois, em que não há sombras do passado nem sombras do futuro, Zarathustra esquece a sede e adormece. E é no absoluto silêncio desse sono, em que nem as flautas de Pan se ouvem, que o mundo atinge a perfeição. Esta é descrita de forma variada, em expressões profundamente significativas: felicidade, riso, fidelidade à terra, fonte da eternidade [Brunnen der Ewigkeit] ( Cf.: AsZ IV, Mittags). Já em Der Wanderer und sein Schatten [O viandante e a sua sombra] Nietzsche tinha falado desse silêncio abissal do «meio-dia»: “O grande Pan dormindo; todas as coisas da Natureza adormeceram com ele, com uma expressão de eternidade no rosto” (MA II, Der Wanderer und sein Schatten, 308). O «meio-dia» pode ser, portanto, lido como metáfora da plenitude do tempo, no tempo e para além do tempo, enquanto plenitude da realidade, na inocente factualidade do seu ser-devir, para além de todo o desejo ou vontade de poder – a metáfora da eternidade no centro do tempo. Essa plenitude é conseguida por uma determinada configuração de energias (quanta), que dão origem ao absoluto do instante, o qual nunca é igual a outro instante mas, na sua diferença absoluta, constitui sempre uma repetição da mesma plenitude. É, portanto, a manifestação máxima do tempo-kairós, na suspensão momentânea – o sono breve de Zarathustra – do tempo-krónos, que permite uma afirmação da realidade superadora da voracidade da cronologia16. O tempo, vivido a partir desse kairós instantâneo, não é sequer movido por uma plenitude teleológica, que viria a consumar e a terminar a história, mas que ainda estaria sujeita ao movimento cronológico. Mas também não é movido por um impulso protológico, qual causa primeira que lhe traçasse antecipadamente o trajecto. Ou seja, a plenitude, enquanto «meio-dia» do tempo, ou enquanto tempo do «meio-dia», supera toda a concepção de finalidade, para além do momento pleno. É o centro da história, e não o seu fim ou o seu início, que constitui a sua plenitude. O instante dessa plenitude torna-se, pois, absoluto, sem deixar de ser temporal. É a vertigem do absoluto, tornada história, apenas num instante: o instante em que, simultaneamente,

16  Podem  adivinhar-­‐se,  aqui,  ressonâncias  do  eterno  retorno  mitológico,  enquanto  

repetição  da  origem  e  sentido  da  realidade,  no  instante  festivo  da  celebração  do  mito.  De  facto,  a   intenção  básica  do  eterno  retorno  arcaico  seria  manter  presente  a  origem  de  tudo,  mesmo  do   tempo.  Não  é  um  eterno  retorno  de  tudo,  em  que  tudo  seja  igual  a  tudo.  É  a  superação  da   cronologia.  Daí  surge  o  sentido  do  tempo  –  salvo  do  tempo  sem  sentido.  Salvo  pela  unidade  do   tempo.  O  ser  é,  assim,  em  si  mesmo,  para  além  do  devir.  A  redenção  do  ser  (enquanto  doação  de   sentido)  dá-­‐se,  no  mito  do  eterno  retorno,  pela  redenção  do  tempo,  superando  –  ou  pretendendo   superar  –  assim  o  drama  da  irrevogabilidade  do  passado  e  da  incerteza  do  futuro.  

parece contemplar-se em toda a sua profundidade, assumir-se e superar-se o famoso «largo abismo» (der breite Graben) de Lessing. Mas trata-se de um abismo superado na vertigem de outro abismo: o “heiterer schauerlicher Mittags-Abgrund” [claro e terrível abismo do meio-dia]. E Nietzsche pergunta ao abismo do instante: “Quando voltas a engolir em ti a minha alma?” (AsZ IV, Mittags). Mas as questões continuam: como será possível afirmar o instante, todos os instantes? 17 Será só porque a minha vontade, após longa caminhada ascética, o consegue, ou porque o instante é ontologicamente afirmável? E como é isso possível, para os instantes experimentados como negatividade – precisamente os instantes da derrota? Não significaria isso uma repetição subtil do idealismo hegeliano, que consegue transformar o negativo em positivo, dentro do sistema global da ideia? Teríamos, assim, no eterno retorno, uma ideia de realidade que afirma toda a realidade, mesmo aquela que é, em si mesma, negação18. Nietzsche atingiria, assim, o contrário daquilo que pretendia – como parecem ter feito, aliás, muitos dos seus leitores «hedonistas»19. Mas que é feito da pessoa humana histórica e concreta, neste esquema do eterno retorno? Que é feito mesmo do ser humano, enquanto tal? Salva-se, permanecendo o que é, ou é eternamente condenado a deixar de ser ele mesmo? Não se trata de uma nova forma de idealismo – ou, paradoxalmente, realismo – metafísico que supera a própria liberdade do ser humano – e a correspondente responsabilidade, já que tudo parece ser necessário e inocente? E, mesmo que aceite o meu sofrimento, poderá o sofrimento do outro inocente ser também eternamente afirmado? Mas com que direito? É certo que a afirmação da realidade, precisamente no sentido de Nietzsche, não pode idealizar essa realidade, quer por vias de um sistema filosófico quer por vias de uma qualquer vontade criadora. Mas como é isso possível, sendo a realidade o que é? E até mesmo a realidade de nós próprios: como poderemos suportar-nos, querer17  Cf.:  R.  PROENÇA,  op.  cit.,  242ss:  “Seja!  Ainda  que  não  compreenda  bem  por  que  é  que  o   mais  belo  instante  da  minha  vida  me  obriga  a  aceitar,  a  justificar  a  morte  de  Sócrates,  de  Jesus,  de   Giordano  Bruno;  por  que  é  que  o  triunfo  do  meu  ideal  me  obriga  a  aprovar,  a  justificar  a  derrota   dos  meus  irmãos  nos  passados  combates”.   18  Nesse  sentido,  o  processo  dialéctico  do  sistema  não  seria,  como  o  hegeliano,  uma   negação  da  negação,  mas  uma  afirmação  da  negação.  Só  que,  em  realidade,  resta  saber  se  a   afirmação  da  negação  não  será  o  mesmo  que  a  sua  negação,  já  que,  uma  vez  afirmada,  nega  a  sua   negatividade.   19  Assim  pode  ser  considerada  –  pelo  menos  em  parte,  segundo  penso  –  uma  visão  que   assume  a  positividade  do  nihilismo,  como  é  o  caso  da  interpretação  de  Gianni  Vattimo.  

nos a nós mesmos, querer a imortalidade de nós mesmos, sendo aquilo que somos? Não poderá ser, deixando de ser o que somos, pois já não se trataria de nós, mas de uma essência idealizada de nós mesmos. Mas também não poderá ser na afirmação, pura e simples e total, daquilo que somos20. A minha proposta é que, recorrendo ao conceito cristão de escatologia e à correspondente concepção de tempo, será possível uma profunda afirmação da realidade presente, sem a idealizar, quer por esquecimento do negativo, quer por ilusória e forçada transformação desse negativo em positivo, mergulhando tudo no nada21.

4. Escatologia A doutrina do eterno retorno conduziu-nos, no seu cerne, a uma complexa ligação entre temporalidade e salvação – salvação do ser humano, mas também de toda a realidade: poderíamos mesmo dizer, salvação do ser, enquanto afirmação da constante passagem do nada ao ser, como devir de ser. Ora, já Heidegger, leitor atento de Nietzsche e incansável filósofo do ser, afirmava peremptoriamente e em tom aparentemente anti-nietzscheano, na sua famosa entrevista ao semanário «Der Spiegel»: “Só um Deus nos pode salvar”. Mas não um Deus qualquer, nem qualquer conceito de Deus, dos que abundam na história da filosofia, das religiões e mesmo do cristianismo. Só um Deus autenticamente divino, isto é, um Deus escatológico, cujo tempo é o tempo do eschaton pleno, é que pode verdadeiramente salvar o ser e os humanos – mas salvá-los sem os aniquilar, como faria ainda a ambígua figura do Übermensch [trans-homem/super-homem]. O conceito de eschaton refere-se, precisamente, a um “acontecimento último, descontínuo em relação a tudo o que o precede e o prepara, infinitamente distante e, contudo, interior a cada momento historicamente situado, efectivamente real, mas

20  Poderíamos  ver,  escondida  nesta  questão  nietzschiana,  a  ancestral  problemática,   radicalizada  por  certo  pietismo  protestante,  da  condenação  do  ser  humano.  Ou  então,  numa   perspectiva  menos  moral,  a  própria  questão  da  morte  e  da  respectiva  aceitação.  Se  o  ser  humano   é  um  ser-­‐para-­‐a-­‐morte  (Sein  zum  Tode),  no  sentido  heideggeriano  da  expressão,  a  sua   autenticidade  é  a  aceitação  disso  mesmo.  Mas  como  aceitar  a  morte,  enquanto  aniquilação  de  ser?   A  própria  doutrina  do  eterno  retorno,  sobretudo  na  sua  dimensão  cosmológica,  pode  ser  lida   como  tentativa  de  superar  a  própria  morte.  Ou  seja,  a  afirmação  da  nossa  realidade  não  será  aí   total,  pois  não  se  afirma  a  nossa  mortalidade.   21  O  que  nos  poderia  levar  a  uma  fundamental  distinção  entre  cristianismo  e  budismo.   Mas  isso  teria  que  ser  desenvolvido  noutro  lugar.  

para além de toda a fenomenalidade”22. Acontecimento último que, como parusia, como apocalipse, isto é, como revelação ou manifestação plena da verdade da realidade, não se faz esperar para um momento cronologicamente para além da história, mas instaura a sua revelação, o seu aparecer ou dar-se no coração da história – e, se quisermos utilizar as afirmações do próprio Nietzsche, na história de cada coração. De facto, diz o filósofo no seu Anticristo, interpretando de modo bastante correcto e preciso o sentido da escatologia cristã (se mitigássemos certo pendor subjectivista e interiorista, compreensível no seu contexto confessional): “O «Reino de Deus» não é algo que se espere; não possui qualquer ontem ou qualquer depois de amanhã, não vem dentro de «mil anos» – trata-se de uma experiência num coração; está em todo o lado, não está em lado nenhum...”23 E parece-me poder escutar, ainda, a ressonância da frase escatológica de Zarathustra (aí já menos subjectivista): “Mas, para todos eles chega agora o dia, a transfiguração, a espada da justiça, o grande meio-dia: então muito se revelará”24. O «grande meio-dia» vivido no interior da história, na fidelidade à terra e ao tempo – é esse o cerne da escatologia nietzschiana do eterno retorno e é esse o cerne da concepção nietzschiana do tempo. E é esse, também, o cerne da escatologia cristã e da respectiva concepção de tempo, que supera todos os messianismos meramente lineares e se concentra numa acção histórica – precisamente o Mistério Pascal de Jesus Cristo25 – como presença do eschaton26. O fim como plenitude não se identifica com a finalidade. O fim como

22  J.  LADRIÈRE,  La  perspective  eschatologique  en  philosophie,  in:  J.-­‐L.  LEUBA  (Ed.),  Temps  et  

eschatologie,  Paris:  Cerf,  1994,  175-­‐191,  188.   23  AC  34:  “Das  «Reich  Gottes»  ist  nichts,  das  man  erwartet;  es  hat  kein  Gestern  und  kein   übermorgen,  es  kommt  nicht  in  «tausend  Jahren»  –  es  ist  eine  Erfahrung  an  einem  Herzen;  es  ist   überall  da,  es  ist  nirgends  da...”  (Cf.:  nº  40)   24  AsZ  III,  Von  den  drei  Bösen:  “Aber  denen  allen  kommt  nun  der  Tag,  die  Wandlung,  das   Richtschwert,  der  grosse  Mittag:  da  soll  Vieles  offenbar  werden!”   25  Note-­‐se  que  não  se  deve  entender  esse  Mistério  Pascal  como  sacrifício  expiatório  ou   resgate  de  uma  culpa,  cujo  peso  (quer  da  culpa,  quer  do  resgate)  continua  a  sobrecarregar  o  ser   humano.  Mais  se  aproximará  esse  mistério  escatológico  da  livre  aceitação  da  entrega  de  si   mesmo,  até  à  morte,  por  parte  de  um  Deus  que  não  conhece  culpa  nem  ressentimento  –  o   mistério  pascal  visto  na  linha  da  simbologia  nietzschiana  da  criança,  que  podemos  considerar   profundamente  evangélica  (Cf.:  AC  40:  “...  das  Vorbildliche  in  dieser  Art  zu  sterben,  die  Freiheit,   die  Überlegenheit  über  jedes  Gefühl  von  ressentiment...”  [o  exemplar  nesse  modo  de  morrer,  a   liberdade,  a  superioridade  acima  de  qualquer  sentimento  de  ressentimento]).   26  Presença  não  meramente  presente,  mas  simultaneamente  ausente,  precisamente  por   se  tratar  da  plenitude  da  realidade,  que  engloba  o  passado,  o  presente  e  o  futuro,  englobando  por   isso  também  a  presença/ausência  própria  do  possível,  para  além  do  real.  Nesta  concepção  de   escatologia,  distancio-­‐me  algo  da  forma  como  J.  MOLTMANN,  Das  Kommen  Gottes,  Gütersloh,  1995,   concebe  o  tempo  escatológico,  demasiado  marcado  pelo  futuro,  por  isso  ainda  algo  prisioneiro  da   linearidade  cronológica  da  história  (o  que,  aliás,  se  compreende,  dada  a  sua  inspiração  no   messianismo  judaico  de  G.  Scholem  e  de  W.  Benjamin,  assim  como  na  filosofia  da  história  de  Karl  

plenitude pode ser o centro cronológico: o eterno presente ou o presente eterno; o tempo do não-tempo. Os momentos dados “de uma vez por todas” (eph’hapax) constituem presença dessa plenitude, não redutível à igualdade de todos os momentos, enquanto pontos do mesmo devir cronológico. “Ora, esses momentos não são considerados na sua individualidade estrita, para serem todos colocados sobre o mesmo plano. Alguns assumem a figura de momentos chave, indo ao ponto de estruturar e organizar uma tipologia”27. Por isso, o apocalipse não é um acontecimento da cronologia, situado no final da história, como se fosse precisamente o fim e a finalidade da mesma. O apocalipse, como revelação do ser, é um acontecimento de sempre, que em si condensa o passado, o presente e o futuro – e condensa-o, precisamente, no instante da revelação, no constante vir do «grande meio-dia»: “Siehe, er kommt, er ist nahe, der grosse Mittag!” [Vê, ele vem, ele está perto, o grande meio-dia] (AsZ III, Von den drei Bösen). Nietzsche não diz que ele virá, mas que vem. “Herauf nun, herauf, du grosser Mittag!” [Aparece agora, aparece, ó grande meio dia!].28 A plenitude do ser, revelado no instante escatológico do seu vir, reside precisamente nesse vir constante do ser. O ser é, assim, de-vir puro – não o devir do que já foi nem o devir do que está para vir a ser, mas o acontecer do ser, no presente do devir (do que está-a-vir). O devir é, assim, a verdade do mundo. Nele conflui a origem imemorial e o fim sem finalidade, já que não é fruto de uma evolução. O eterno retorno desse devir é, pois, activo e não repetitivo; por isso, é movido pela força do possível, pelo jogo, como motor do real. Assim se realiza, em cada momento do acontecer, uma constante passagem, sempre igual e sempre diferente, do nada ao ser, por mero dom de ser29. Ora é o dom de ser, tornado presente em cada instante do real através do acontecer qualitativo do tempo pleno de cada kairós, que permite um sim incondicional, inocente, originário e livre à realidade – como a criança que brinca com o ser e o aceita, pura e simplesmente porque é, ou seja, porque lhe é dado ser, porque o ser se dá. Dom de ser que constitui, precisamente, o cerne primordial de toda Löwith).  Mais  próxima  da  perspectiva  que  aqui  defendo  encontra-­‐se  a  visão  de  G.  SAUTER,   Einführung  in  die  Eschatlogie,  Darmstadt,  1995,  esp.  117s.   27  P.  GISEL,  Temporalité  et  création,  in:  J.-­‐L.  LEUBA  (Ed.),  Temps  et  eschatologie,  193-­‐214,   196.   28  AsZ  IV,  Das  Zeichen.  Cf.:  W.  STEGMAIER,  op.  cit.,  209.   29  J.  DERRIDA,  D’un  ton  apocalyptique  adopté  naguère  en  philosophie,  Paris  1983  (ver,   adiante,  o  capítulo  sobre  a  apocalíptica)  

a teologia, também da teologia cristã da salvação, já que esta não é propriamente entendida como resgate de uma situação moral de pecado ou de perdição eterna, mas como dom originário de vida e do correspondente amor à vida e à realidade. O dom de ser, que marca a visão cristã da realidade e que atingiu a sua plenitude no momento escatológico da Páscoa, é assim a condição de possibilidade de toda a afirmação do ser, de toda a salvação. Só assim se poderá pensar uma autêntica “repetição da diferença”30, que não seja a recondução de tudo à mesmidade do ser humano, nem à identidade de um destino necessário. Os riscos contrários – de radical antropocentrismo e de puro determinismo – que a doutrina nietzschiana do eterno retorno parece ainda evocar – contra, talvez, a mais profunda intenção de Nietzsche – poderão talvez ser evitados pelo pensamento escatológico, que instaura no tempo a diferença de cada instante, como irrupção de uma duração própria, a que poderíamos chamar eternidade – a eterna diferença do diferente, assumida na sua positividade de ser real, contra todas as reduções nihilistas, mesmo as do próprio Nietzsche. Compreendida a escatologia cristã nesse sentido, a história passa a ser lida a partir do seu centro e não a partir do princípio ou do fim31. Supera-se, assim, uma visão habitual mas pouco correcta de escatologia, que pressupõe uma falsa alternativa na concepção do tempo: a alternativa entre o tempo linear e o tempo circular. A visão mítica da realidade coloca a plenitude no início da história, antes do tempo, a ser repetida ciclicamente, a fim de conferir sentido ao desenrolar da história. A visão evolucionista da história coloca a plenitude no final do tempo, como confluência da realidade na sua verdade global. Algo erradamente, identificou-se esta visão com a concepção bíblica da história e da temporalidade, contribuindo para uma leitura pretensamente cristã da realidade em termos de finalidade e de eternidade, para além da história. Mas a visão bíblica do tempo não corta abruptamente com a visão mítica, antes mantém uma viva 30  G.  DELEUZE,  Nietzsche  et  la  philosophie,  Paris:  PUF,  1962,  52,  considera  ser   precisamente  essa  a  intenção  central  da  doutrina  nietzschina  do  eterno  retorno.  Dessa  ideia  de   «repetição  da  diferença»,  enquanto  afirmação  do  mesmo,  poder-­‐se-­‐ia  derivar  uma  «ética  da   diferença»,  contra  a  ideia  vulgarmente  espalhada,  de  que  Nietzsche  em  nada  pode  contribuir  para   repensar  a  próprio  ética.   31  P.  COLOMBO,  op.  cit.,  permanece  ainda  cativo  desta  contraposição,  a  ponto  de  considerar   a  visão  cristã  da  escatologia  irreconciliável  com  a  visão  nietzschiana  do  eterno  retorno  (Cf.:  esp   147s).  Ora,  se  é  certo  que  a  escatologia  cristã  supera  algumas  reduções  da  concepção   nietzschiana  do  tempo  (por  exemplo,  a  exagerada  concentração  no  querer,  superada  no   cristianismo  pelo  ser-­‐querido),  também  é  certo  que  não  é  a  contraposição  entre  presente  e  futuro   que  marca  aí  a  distinção.  

referência às origens da realidade; e também não vive a realidade do tempo de forma meramente linear, mas conjuga essa linearidade com a circularidade, quer na liturgia, quer na vivência normal do ciclo anual. Só uma aliança demasiado estreita com a visão hegeliana da história é que terá levado à referida alternativa. Ora, a escatologia cristã, que concebe a história e o tempo a partir da sua referência a um instante central, escatológico, qual «meio-dia» da história, que em si torna presente a origem e o fim da realidade, e que vive o tempo na constante actualização histórica desse momento escatológico, não permite uma redução, nem à mera circularidade deterministicamente repetitiva, nem à lineridade marcada por uma finalidade última, a relizar-se no final da história, para além do tempo. Como tal, a temporalidade própria da escatologia cristã situa-se para além da alternativa entre linearidade e circularidade32, mas também para além da alternativa entre tempo antropológico e tempo cosmológico 33 . Propõe-se, assim, uma visão escatológica do tempo, na qual se poderão superar as reduções finalísticas, determinísticas, antropológicas e cosmológicas, assim como as suas recíprocas contradições. De facto, as referidas alternativas implicam que cada uma anule a outra do respectivo par, reconduzindo as concepções do tempo a uma aporia34. Ou tudo é reduzido à medida do ser humano, tornando-se demasiado humano; ou o ser humano é superado pelo próprio tempo cósmico, deixando de ser humano. Talvez o tempo escatológico permita ao tempo humano ser autenticamente humano, sem que seja demasiado humano – e possa, por isso, acolher em si mesmo, sem se auto-destruir, a dimensão cósmica ou ontológica do tempo. Por seu turno, uma correcta concepção da escatologia cristã deve, pois, superar as falsas alternativas entre eternidade e tempo, infinito e finito, absoluto e ser real, espiritual e corporal. O tempo, na sua finitude e mesmo na sua corporeidade, é ai assumido como lugar de acontecimento do absoluto, do eterno. O excesso de ser, em 32  Cf.:  P.  GISEL,  op.  cit.,  197:  “O  Evangelho  dá-­‐se  sempre  num  presente  (um  kairos),  porque   ligado  a  uma  realidade  presente  (fazendo-­‐se  presente  e,  por  isso,  exigido  acolhimento);  mas  é-­‐o,   reenviando  a  uma  duração  (aiôn)  e  a  um  amadurecimento.  Ele  é  experiência  no  interior  do   tempo,  cuja  linearidade  supõe  e  requer,  mas  uma  experiência  que,  precisamente  por  isso,  não  se   identifica  com  essa  linearidade:  a  experiência  evangélica  é  dita  enquanto  retoma,  recolhimento  e   gesto  de  recapitulação  (uma  retoma  em  totalidade  interna);  nesse  sentido,  realiza-­‐se  uma   «superação»  do  tempo  que  passa,  no  tempo,  certamente,  e  mesmo  enquanto  tempo”.   33  Alternativa  de  que  ainda  sofre,  como  se  viu,  a  equação  explícita  da  doutrina  do  eterno   retorno  de  Nietzsche.     34     Na  alternativa  entre  tempo  antropológico  e  tempo  cosmológico  se  têm   construído  todas  as  aporias  na  tentativa  de  pensar  a  própria  realidade  do  tempo,  desde   Aristóteles  e  Agostinho,  até  aos  nossos  dias  (Cf.:  Ricoeur,  1983:  esp.  21-­‐103).  

relação ao ser que somos e que é tudo o que experimentamos, não é um excesso de negação, mas um excesso de afirmação, porque é um excesso de doação. Não se trata, pois, de uma superação do Homem e do mundo, rumo a um outro mundo, para além do Homem, que determinasse a finalidade deste mundo, mas da revelação plena do próprio ser do Homem e do mundo, que são um só, ontem, hoje e sempre35. Nem se trata de uma interrupção da cronologia, através de um fim que marca tudo pela orientação para ele (quer como termo, quer como horizonte de finalidade), mas de uma superação por um salto qualitativo, que insere no instante cronológico o sentido momentâneo do ser e do tempo. Ora, essa revelação plena implica, precisamente, a aceitação de alguma forma de superação. Em realidade, não se trata de uma mera confirmação de nós mesmos, por nós mesmos – nem sequer da realidade factual, pela simples necessidade absoluta de ser o que é. A máxima nietzschiana do amor fati é válida36, mas apenas aceitável se se tratar, na factualidade do ser e existir, de fatum amoris, não de todo e qualquer facto. Caso contrário, mais do que amor, seria mera resignação ou perfeita ilusão. E só a acção do amor permite, também, que a plenificação da realidade não seja realizada via negationis, mas via subversionis, enquanto superação interna e afirmativa da mesma realidade. Diz-nos Pierre Gisel, já citado teólogo calvinista suíço, leitor atento de Nietzsche e pensador preocupado com a questão do tempo: “O momento – literalmente extático – onde se joga temporalmente a minha identidade – não conhecida como tal – não tem que ser superado, mas que ser confirmado”37. E não é dessa confirmação que, no fundo, pretende falar Nietzsche, na sua doutrina do eterno retorno? E quando, nos Ditirambos Dionisíacos, diz: “Eterna afirmação do ser, eternamente eu sou a tua afirmação: porque te amo, ó eternidade!” 38 , revela a necessidade de que a própria afirmação do ser seja suportada, originada pela 35  Essa  poderia  constituir,  como  se  verá  ao  longo  do  que  segue,  uma  fundamentação   válida  para  um  «humanismo»  que  não  fosse  «demasiado  humano».  Fundamentação  que,  estando   para  além  daquilo  que  Nietzsche  explicitamente  disse,  poderá  colocar-­‐se  na  continuidade  do  seu   pensamento.  E  fundamentação  que  permitiria  superar  a  aporia  de  todo  o  humanismo  que,  pura  e   simplesmente,  se  postula  a  si  mesmo.   36  Cf.:  EH,  Warum  ich  so  klug  bin,  10:  “Meine  Formel  für  die  Grösse  am  Menschen  ist   amor  fati:  dass  man  nichts  anders  haben  will,  vorwärts  nicht,  rückwärts  nicht,  in  alle  Ewigkeit   nicht”  [A  minha  fórmula  para  a  grandeza  no  Homem  é  amor  fati:  que  não  se  queira  ter  outra   coisa,  nem  para  trás,  nem  para  diante,  nem  em  toda  a  eternidade]  (Cf.:  FW  276)   37  P:  GISEL,  op.  cit.,  212.   38  DD,  Ruhm  und  Ewigkeit:  “Ewiges  Ja  des  Seins,  /  ewig  bin  ich  dein  Ja:  /  denn  ich  liebe   dich,  o  Ewigkeit!”  (Cf.:  G.  DELEUZE,  op.  cit.,  217).  

afirmação da afirmação, a qual só pode vir de um «tu» que precede o ser e a afirmação. O eterno retorno será, então, o anel nupcial do amor que permite a afirmação do ser da realidade. Amor que implica uma alteridade originante – a alteridade do/da amante, do outro ser diferente, a partir do/da qual eu sou; ou ainda mais, a alteridade originante e radical do totalmente Outro, a partir do qual tudo é, foi e será – até o próprio ser, enquanto afirmação. Assim e bem na linha de uma possibilidade nietzschiana – talvez a possibilidade que melhor lhe corresponda – o eterno retorno, enquanto vontade e afirmação de eternidade, será interpretado como amor e gratidão39 pelo dom de ser, no seu próprio excesso constante, que marca o seu inocente devir. Assim se supera uma visão do eterno retorno como realidade que se basta a si mesma. De facto, essa visão deixaria no ar questões incontornáveis: De que realidade se trata? Como dizer sim à nossa realidade, sem que ela seja, na sua própria origem, afirmável? Só a partir do sim da origem, presente no presente do meio-dia, é que é possível o nosso sim à realidade. Porque o sim acolhe a realidade, não a cria. Quer-se eternamente, porque se é eternamente querido – em cada momento, em cada instante, em cada hora. Ser amado é, assim, o fundamento do amor – isto é, o fundamento do ser. É a verdade do ser, que é sempre aquilo que é e deve ser. É a plenitude do ser, a sua parusia. É a escatologia, na sua mais profunda dimensão e manifestação – no Ecce Homo escatológico que, no meio-dia da História, reconduziu o todo, o passado e o futuro, ao presente do instante, dizendo o sim primordial e definitivo a toda a realidade, no seu devir. É esse sim que nos torna possível querer que cada instante regresse eternamente – que nos torna possível participar, pela representação, naquilo que, no “Typus des Erlösers” [tipo do redentor], se tornou real40. Representação do que não pode ser representado – representação, sobretudo, do próprio fracasso de toda a representação: mesmo da representação da «insuportável» ideia do eterno retorno.

39  Cf.:  FW  370:  “Der  Wille  zum  verewigen  bedarf  gleichfalls  einer  zweifachen  

Interpretation.  Er  kann  einmal  aus  Dankbarkeit  und  Liebe  kommen”.   40  W.  STEGMAIER,  op.  cit.,  225.  

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