Duque, J. M. (2013). A Ópera «S. FRANCISCO DE ASSIS» de OLIVIER MESSIAEN - Breves considerações teológicas. In: Communio 30, 451-461.

July 7, 2017 | Autor: João Manuel Duque | Categoria: Music, Aesthetics, Theology, Contemporary Art
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A ÓPERA «S. FRANCISCO DE ASSIS» DE OLIVIER MESSIAEN Breves considerações teológicas JOÃO DUQUE – UCP BRAGA1

1. Contextualização 1. Olivier Messiaen, organista francês nascido em 1908 e falecido em 1992, foi sem dúvida um dos compositores mais emblemáticos do séc. XX. De certo modo, representa pessoalmente uma forma própria de ser que determina toda a produção musical desse século: um percurso muito personalizado, sem grandes enquadramentos de escola, nem de mestres nem de discípulos; uma linguagem musical nova e original, dificilmente comparável; a exploração de mundos inéditos em música; uma ligação estreita entre a produção musical e a elaboração conceptual, filosófica e estética. A par de todas estas caraterísticas, há uma que o “isola” ainda mais, no panorama da música desse século tão fértil em experiências: a ligação explícita entre a sua música e a conceptualização teológica da tradição católica. Poderá, pois, ser assumido como o músico-teólogo por excelência, e não simplesmente relativamente ao seu tempo. Podemos constatar tal facto já a partir de uma abordagem simples do catálogo das suas obras. Desde a sua primeira obra mais conhecida, “Le Banquet céleste” (1928), para órgão, passando pelo emblemático “Quator pour la fin du temps” (1940/41) e por obras organísticas tão representativas como “Ascension” (1933), “ La Nativité du Seigneur” (1935), “Les corps glorieux” (1939), “Messe de la Pentecôte” (1949/50), até uma das últimas produções de vulto, “Le livre du Saint Sacrement” (1984), a obra de Messiaen é formada por títulos preponderantemente «teológicos». Não se trata, contudo, de simples metáforas ou de recursos estratégicos para colorir obras que pouco tivessem a ver com o assunto. A elaboração é explicitamente 1

É doutorado em Teologia Fundamental (Phil.-Theologische Hochschule Sankt Georgen, Frankfurt, Alemanha), com uma tese sobre a recepção teológica da filosofia da arte de Gadamer. É Professor Catedrático da Faculdade de Teologia da UCP (Braga, Porto e Lisboa), e docente convidado na Faculdade de Filosofia (Braga), na Escola das Artes (Porto) da Universidade Católica Portuguesa, e no Instituto Teológico Compostelano, agregado da Universidade Pontifícia de Salamanca. Desde 2007 e Diretor do Núcleo de Braga da Faculdade de Teologia. Desde 2011 é Presidente do Centro Regional de Braga da Universidade Católica Portuguesa. Para além da tese de doutoramento (Die Kunst als Ort immanenter Transzendenz, Frankfurt: Knecht, 1997), publicou Homo credens: para uma Teologia da Fé (UCEditora, 2002, 2ª Ed. 2004), Dizer Deus na pós-modernidade (Ed. Alcalá, 2003), Cultura contemporânea e cristianismo (UCEditora, 2004), O excesso do dom: sobre a identidade do cristianismo (Ed. Alcalá, 2004), Educar para a diferença (Ed. Alcalá, 2005), A transparência do conceito: estudos para uma metafísica teológica (Lisboa: Didaskalia, 2010), Fronteiras: leituras filosófico-teológicas, (UCEditora-Porto, 2011). É casado e pai de três filhos.

assumida pelo compositor como claramente teológica, dando à arte dos sons uma dimensão e um lugar na relação ao mistério da salvação, tal como compreendido pelo cristianismo, que até então não tinha assumido na história da música. Mesmo que muita da produção musical do ocidente se debruce sobre temas teológicos, sobretudo no contexto da liturgia, nunca a elaboração musical do conteúdo teológico foi tão explicitamente assumida por um compositor. Para exprimir essa dimensão, Messiaen desenvolveu recursos técnicos originais2, tais como os modos rítmicos – denominados modos não invertíveis (non retrogradables) criados por influência da rítmica grega e hindu – aglomerados sonoros – que originam uma harmonia modal muito própria (os modos de transposição limitada), em estreito paralelismo com a experiência da cor, não enquadrável nem na tonalidade tradicional nem na atonalidade moderna – a transcrição do canto das aves – um dos recursos que mais marcou a suas últimas obras – a frequente utilização de valores de longa duração, etc.3 De um modo geral, a sua música é muitas vezes transcrição de um conteúdo muito preciso, através de formas melódicas muito próprias, ou intervalos determinados. O que não significa que seja uma música simplesmente racionalizada, sem resultado sonoro correspondente. Pelo contrário, os recursos técnicos muito precisos e evidentes contribuem para um ambiente sonoro responsável em grade parte pela mensagem teológica subjacente – o caso mais evidente é o do ambiente etéreo como evocação de um mundo transcendente, pelo recursos a valores extraordinariamente prolongados. O efeito da anulação do tempo não é apenas artificial, por uma espécie de eternidade da duração das notas, mas tem efeito sonoro explícito. “Messiaen intuiu, com o seu olhar obstinado dirigido à ‘liturgia celeste’, a possibilidade e a necessidade de integrar esta desarticulação dos parâmetros tradicionais com a neutralização do tempo e do espeço da finitude, para deixar emergir nela o cenário feliz de uma ‘vida transfigurada’, êxtase de um tempo sem fim e reflexo de um espaço privado de limites”4. O que não significa, precisamente, a anulação da música na anulação do tempo e do espaço, mas sim a articulação dessa superação de forma musical, ou seja, segundo a economia simbólica da experiência. “A abertura da experiência musical à transcendência, longe

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Que ele mesmo analisa em pormenor em O. MESSIAEN, Technique de mon langage musical, Paris 1944. 3 Cf. especialmente, S. BRUHN, Messiaens Summa Theologica, esp. 194ss. 4 P. SEQUERI, L’Estro di Dio, 327.

de estar submersa numa genérica mística do inefável, é aqui abertamente identificada com a vontade de fazer emergir o eterno e a forma explicitamente cristã, a partir da sua configuração simbólica”5. Ou seja, é o próprio som, numa modalidade específica do seu tratamento, que torna realmente presente a dimensão, em si inefável, do transcendente em relação a esse presente temporal e espacial. É nesse dinamismo simbólico que Messiaen entende a relação da música com a verdade, partindo do pensamento de Tomás de Aquino: “A música pode levar-nos a Deus por símbolo, por imagem, portanto por defeito de verdade; mas ao mesmo tempo Deus é como o sol, não se pode olhar diretamente, o cume da contemplação, é um êxtase, por isso um excesso de verdade”6. Trata-se, a seu modo, de uma espécie de música descritiva, embora num sentido bastante distinto do utilizado no romantismo. A música é colocada, é certo, ao serviço de uma «mensagem» exterior a si mesma, mas num desenvolvimento estritamente musical e numa simbologia interna que não se reduz nem se concentra numa espécie de «imitação» da natureza ou do mundo, transcrito em sons, senão num dinamismo simbólico estritamente musical. Em certo modo, sendo completamente descritiva, a música de Messiaen poderia também ser assumida como «música pura». O seu mundo é plenamente teológico e plenamente musical, ao mesmo tempo. Não existem, pois, servilismos de parte a parte, mas uma perfeita conjugação dessas duas dimensões. 2. A ópera “Saint François d’Assise” representa um elemento sui generis no conjunto da produção deste compositor. Em primeiro lugar, logo porque Messiaen considerava não ter competência para escrever uma ópera, dada a necessária conjugação do teatro com a música. Nesse sentido, quando Rolf Liebermann, intendente da ópera de Paris, o desafiou a essa tarefa, não acreditava muito no êxito do desafio7. Mas Messiaen aceitou-o. Talvez porque considerava importante, para um músico cristão, escrever uma Paixão (género que recorre habitualmente à representação dramática), algo que ele, por outro lado, considerava impossível; depois porque teria encontrado, na tradição do teatro litúrgico medieval, em que se representavam os mistérios, uma possibilidade de elaborar a sua versão do que 5

Ibidem, 323. B. MASSIN, Une poétique du merveileux, 191 (palavras de Messiaen, em comentário ao texto da ópera que diz, pela boca do Anjo: “Dieu nous éblouit para excès de vérité; la musique nous porte à Dieu par défaut de vérité”). 7 Cf. S. Bruhn, 173. 6

poderia ser considerado uma ópera. Viu, então, a possibilidade de uma ópera diferente, sem os ingredientes amorosos e as tensões passionais habituais, mas que se referisse à Paixão de Jesus e, ao mesmo tempo, se aproximasse do seu universo teológico-musical. A escolha recaiu, então, sobre a apresentação transformada da vida de S. Francisco de Assis. “Algo em conformidade com tudo o que amo. O que significa que deveria ser religioso, mas também maravilhoso, e deveria permitir a presença dos pássaros. Não demorei muito a compreender que S. Francisco apresentava todos estes aspetos. S. Francisco é também uma imagem de Cristo, morreu aos trinta e três anos, foi casto, pobre, humilde; levava inscritos na sua carne os estigmas da paixão. Sempre pensei que não seria possível colocar em cena a Paixão de Cristo, mas S. Francisco poderia, pelo menos, aproximar-se-lhe. E depois, eu também possuía ternura para com aquele que considero um confrade, pois fala aos pássaros. Enfim, o universo de S. Francisco reflete um mundo muito sensorial, cheio de ideias poéticas, adequado para uma dramaturgia”8. Por todas estas razões, Messiaen dedicou-se a um dos trabalhos mais árduos e longos da sua vida: seis meses a elaborar o livreto; três anos a compor a música; três anos a fazer a orquestração, a que se acrescentaram dois anos para o trabalho de copista. Entre 1975 e 1981, foi a sua única ocupação. Numa carta a Liebermann expõe a situação: “Duas cenas já estão prontas, mas ainda faltam seis e, infelizmente são as mais longas. Ou seja, ainda tenho que trabalhar cerca de 2500 páginas de partitura. Cada página exige cerca de três horas para a correta organização e para a correta combinação de cor e sonoridade, depois três horas para os esboços e mais três horas para passar a limpo. Portanto, cerca de nove horas para uma página de partitura média. Páginas especialmente difíceis podem exigir até três dias”9. Em 1983, Saint François d’Assise foi apresentada pela primeira vez, na ópera de Paris, com uma duração de cerca de cinco horas. Os textos do livreto baseiam-se no Canto do irmão Sol ou Louvor das criaturas, na Laudes e nas Fioretti de San Francesco (ca. 1390), com recursos livres à Escritura e a teólogos, sobretudo a Tomás de Aquino. A música utiliza todos os recursos da técnica musical de Messiaen, constituindo uma espécie de Summa do seu percurso de compositor. Relativamente ao uso da transcrição do canto de pássaros, Messiaen considera que nela incluiu todas as

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B. MASSIN, 189 (Palavras de Messiaen). R. LIEBERMANN, En passant par Paris: opéras, Paris: Gallimard, 1980, 410.

notações que tinha feito durante a sua vida. O aparato é imenso: 119 instrumentos, 150 coralistas, divididos em dez grupos de quinze cada, e sete solistas. Entre os instrumentos há muitos considerados «exóticos»: xilofone, xilorimba, marimba, glockenspiel, vibrafone e três ondas martenot. Do ponto de vista visual, não se trata de uma ópera habitual, pelo que não possui os habituais recursos de cenário. Trata-se antes de uma espécie de oratória, mais adequada a concerto. Mas o ambiente de cor e a simbologia visual é muito importante para Messiaen. Em muitos dos quadros pretende-se mesmo a evocação de certas pinturas emblemáticas na iconografia franciscana. 3. Mas não corresponderá todo este aparato de som e cor precisamente ao contrário da pobreza de S. Francisco? A própria colocação desta questão conduz-nos ao cerne daquilo que Messiaen pretende com a obra: “Quis fazer uma música para um espetáculo que trata da evolução interior de um ser, em realidade da evolução da Graça na alma de S. Francisco. Eliminei tudo o que fosse demasiado exterior a este dado...”10. Ou seja, não se trata propriamente da narração de uma história humana, por mais interessante que seja. Trata-se, antes, de cantar – lauda – a glória da ação divina, que se torna visível e eficaz na atuação de um humano. E, para a expressão dessa ação divina – que é sempre uma ação salvífica e, por isso mesmo, sempre já escatológica – Messiaen considera essencial a utilização de todos os recursos musicais e visuais disponíveis, sempre na consciência de que mesmo assim ficam aquém do que pretendem exprimir. “Ele era pobre, mas era rico de tudo o que existia à sua volta. Se empreguei um efetivo orquestral tão grande, se procurei tantos timbres novos, foi para tentar exprimir todas as cores, todas as luzes que estão incluídas na ‘alegria perfeita’, tal como a define S. Francisco”11.

2. Estrutura A ópera é constituída por oito quadros ou «cenas franciscanas». O primeiro quadro, intitulado a Cruz, apresenta Francisco e o irmão Leone, a caminho. Lançada a questão sobre o medo, ao longo do caminho, tudo se concentra na questão da verdadeira alegria, apresentada por Francisco como aceitação do sofrimento, para remissão dos pecados próprios e alheios.

10 11

B. MASSIN, op. cit., 190. Ibidem 192.

O segundo quadro, intitulado as Laudes, passa-se durante a oração da manhã do convento, com Francisco a cantar três estrofes do canto ao irmão sol e os irmãos a cantar o Sanctus. Reflete a vida conventual, na sua simplicidade mas também na grandeza da sua vida laudatória. O terceiro quadro, o beijo ao leproso, passa-se numa leprosaria, sendo um leproso curado pelo beijo de Francisco, que converte o leproso à verdadeira vida e transforma Francisco num santo, dando uma nova dimensão à sua existência. O quarto quadro, o anjo viajante, marca a primeira intervenção do anjo, no convento, questionando dois irmãos sobre a predestinação. É neste quadro que se situa o diálogo sobre o nome do anjo, o maravilhoso. O quinto quadro, intitulado o anjo músico, começa com mais algumas estrofes do canto do irmão sol. O anjo aparece a Francisco e coloca-o perante a força da música celeste, incarnada no toque da viola e na evocação da música de pássaros. O sexto quadro, a prece aos pássaros, passa-se entre Francisco e o irmão Masseo. Francisco fala de pássaros, conhecidos e exóticos, e diz-se em condições de compreender o seu canto, pregando-lhes e enviando-os em missão pela terra. O sétimo quadro intitula-se os estigmas, em que Francisco pede e recebe, no seu corpo, as marcas da Paixão de Cristo. Por fim, o oitavo quadro refere-se à morte e à nova vida, partindo de mais estrofes do canto do irmão sol e relatando a morte de Francisco, como início de uma nova vida, cantada pelos irmãos e pelos pássaros. Siglind Bruhn, uma das analistas mais minuciosas da obra de Messiaen, sugere uma organização desta estrutura num esquema de paralelismos, considerando a ópera como a correspondência de três pares de quadros, com um prólogo e um centro. A confirmar este esquema estará o recurso ao canto do irmãos sol nos quadros 2, 5 e 8. O prólogo é uma espécie de monólogo sobre a questão central: qual a perfeita alegria. O resto da ópera será a explicitação da resposta a esta questão central. O quadro 2 e o quadro 8 correspondem-se na forma e no conteúdo, alternando-se o canto ao irmão sol, da parte de Francisco, com as intervenções laudatórias dos irmãos. No segundo par, que reúne os quadros 3 e 7, Francisco suplica pela verdade, que se lhe manifesta na relação ao sofrimento dos irmãos, através do sofrimento próprio (o leproso e os estigmas). O terceiro par, na correspondência entre os quadros 4 e 6, relaciona o correto comportamento, ligado à salvação dada por Deus, com a sua presença na natureza, sobretudo nos pássaros.

O quadro central, que marca o encontro das personagens principais (Francisco e o Anjo) apresenta o núcleo do pensamento e da música de Messiaen: a relação entre mundo celeste, música e verdade. Estabelece-se, assim, uma estreita relação entre a pergunta pela alegria perfeita, a sua resposta na inclusão do sofrimento ou dádiva da vida e a articulação dessa verdade em música, como revelação do verdadeiro caminho de salvação. “Desse modo, Messiaen regressa, no quadro central do ‘corpo’ da ópera em sete partes, à questão colocada e insatisfatoriamente deixada em aberto no prólogo da ‘cabeça’ da ópera: o que é, precisamente, a ‘alegria perfeita’? – para além da disponibilidade, louvada por Francisco, a suportar alegremente e sem resistência, todo o tipo de rebaixamento, e para além de uma interpretação da imitatio Christi que reconhece o sofrimento”12. Os «refrães» da ópera podem encontrar-se, ainda segundo Siglind Bruhn, nas três vezes que Francisco suplica a graça de Deus, na três vezes que o anjo intervêm e nas três vezes que é utilizado o canto ao irmão sol, nas suas diversas estrofes. O esquema enquadra, assim, as vicissitudes da vida, incluindo sobretudo o sofrimento, no caminho para um liturgia celeste, antecipada nos cantos humanos e nos cantos dos pássaros, manifesta por isso, em símbolo, o inacessível na música que nos é acessível. A verdade de tudo reside nessa final liturgia celeste, que no caminho se manifesta apenas por defeito. Musicalmente, a obra é o exemplo dessas tensões entre possibilidade e impossibilidade, entre antecipação da vida celestial e manifestação dos problemas que o caminho prepara. Para colocar em palco todas essas tensões, Messiaen utiliza abundantemente todos os seus recursos de composição, seja no que respeita à sua linguagem muito própria, seja também no que respeita ao colorido orquestral que optou por utilizar13.

3. Alguns tópicos teológicos Este sintético percurso pelo corpo da ópera de Messiaen permite-nos algumas conclusões especificamente teológicas, que resultam da estrutura da obra e dos recursos textuais e musicais utilizados, mas também das palavras explícitas do

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S. BRUHN, op. cit., 236. Dada a impossibilidade e mesmo inconveniência da exposição, aqui, desses recursos, permito-me enviar para a análise detalhada e competente de S. BRUHN, op. cit, esp. 194-232. 13

compositor sobre a mesma. Os tópicos escolhidos, não o sendo aleatoriamente, não pretendem esgotar as possibilidades de reflexão abertas pela obra em análise. 1. Partindo do pressuposto de que, estruturalmente e musicalmente, a questão central da ópera pode ser resumida na pergunta sobre o que é a alegria plena ou verdadeira, pode dizer-se também que nessa questão se concentra toda a leitura teológica do cristianismo, por parte de Messiaen. Em grande parte das suas obras, tenta colocar em música – simbolicamente – aquilo que acredita ser (a partir da tradição cristã) a alegria celeste, como vida no seio da Trindade, especialmente experimentada já na celebração litúrgica. A comparação da sua música à luminosidade dos vitrais medievais dever-se-á, não tanto à dimensão narrativa desses vitrais, mas precisamente à alegria luminosa e colorida, como experiência da luz, presente nessas criações tão emblemáticas. Ao mesmo tempo, a alegria simples e inocente, que transparece de modo único no canto dos pássaros, poderá ser também considerada uma das primordiais incarnações da eterna alegria plena. Messiaen é pois um compositor da alegria, enquanto alegria da presença de Deus e da presença do ser humano em Deus. A dimensão perfeita dessa alegria apenas a podemos esperar e imaginar. Mas ela é o que anima a dimensão do maravilhoso, presente em qualquer compasso da música deste compositor único – correspondendo ao “nome maravilhoso” do Anjo viajante. 2. Mas, se este tópico da expressão musical da alegria celeste – como efeito da ação de Deus nos sujeitos – está em perfeita continuidade, mesmo estilística, com toda a obra de Messiaen, S. Francisco, já no primeiro quadro (que é programático) é peremptório quando afirma, depois de ter descrito várias experiências de sofrimento extremo: “Se suportarmos estas coisas, pacientemente, com alegria, pensando no sofrimento de Cristo bendito: eis a alegria, a alegria perfeita”. Com isso, introduz-se algo que o próprio Messiaen admite ser novo na sua obra e, ao mesmo tempo, ser para ele muito problemático: a articulação da experiência do sofrimento em música. Se é certo que Messiaen passou, em várias fases da vida, por experiências fortes de sofrimento (pense-se na sua passagem pelo campo de concentração), sempre pretendeu que a música fosse já superação dessas experiências e, por isso, nunca considerou indicado colocá-las diretamente em música (veja-se o exemplo do quator pour la fin du temps, escrito precisamente no meio de sofrimento extremo, mas como luz de esperança para além desse sofrimento, a ponto de parecer completamente alheio ao que se passava à sua volta).

É o próprio Messiaen que assume a diferença: “Há uma grande alteração entre S. Francisco e as minhas obras precedentes, o aparecimento de um novo componente: o sofrimento... Não é uma tendência natural da minha música e isso exige-me um esforço particular. Em S. Francisco há uma imbricação estreita entre dor e alegria. Mas lá onde está presente a dor, lá onde é maior, coloquei sempre um canto de pássaro”14. Mantendo, embora, esta tendência “natural” para certo optimismo salvífico, não deixa de ser teologicamente importante o tratamento desta dimensão, que assim entra (e de modo tão significativo) na obra de Messiaen. De facto, vista a sua leitura do cristianismo – a sua teologia – simplesmente a partir de outras obras, pode pairar sobre ele a suspeita de idealismo triunfalista, até mesmo de certo gnosticismo, por alheamento à realidade da condição humana. É sintomático, de facto, que se considere incapaz de colocar em música a Paixão de Cristo. Porque considera que a música é para outra dimensão; e mais, considera que essa outra dimensão é que corresponde à verdade do ser humano. Mas a ópera vem equilibrar esta visão com realismo e, ao mesmo tempo, com um elemento nuclear da verdade cristã: que a glória ou alegria perfeita só pode dar-se na cruz e através da cruz. É claro que se trata, não da exaltação do sofrimento, enquanto tal, ou de uma abordagem nihilista, que se fica pelo absurdo da condição humana, mas da compreensão de uma caminho de salvação – de um caminho para a alegria – perfeitamente em simbiose com o sofrimento, quando esse sofrimento for manifestação do amor, enquanto sofrimento com o sofrimento dos outros – como o sofrimento de Cristo e o sofrimento de S. Francisco. Assim, a ópera S. Francisco de Assis significa, na obra de Messiaen, a compreensão de que uma teologia da glória só faz sentido enquanto teologia da cruz. 3. No quadro número cinco, quadro central na estrutura apresentada, o anjo – revelação e mediador da vida celeste – assume o estatuto de anjo músico. Entre S. Francisco e Deus estabelece-se uma espécie de diálogo musical – “Tu falas a Deus em música, ele vai responder-te em música” – no qual é revelada a música celeste, como metáfora da verdade divina, a S. Francisco. O anjo toca viola para ele, como expressão da música divina, ao encontro dos humanos. O âmbito de Deus, por mediação do anjo (às vezes também incarnado pelo coro), encontra-se com o âmbito humano, por mediação de Francisco, na própria obra musical, em que desempenha 14

B. MASSIN, op. cit., 193.

especial destaque a transcrição humana – música “artificial” – do canto dos pássaros – música “natural” (que ocupa cerca de um terço da partitura). O tema da música – ou da poesia – como símbolo da verdade (divina e humana) é, sem dúvida, o tema preferido de Messiaen, o seu programa de vida. Na famosa frase, como citação transformada de Tomás de Aquino e colocada aqui na boca do anjo, Messiaen exprime a adequação e, ao mesmo tempo, a desadequação da música a Deus. Se é certo que a desadequação do símbolo – o “defeito em verdade” – nos recorda a semper maior verdade de Deus, não é menos significativo que, aos humanos, seja possível conhecer e amar essa verdade, precisamente no símbolo que a torna presente. Contrariamente ao radicalismo de todas as visões gnósticas e iconoclastas, a possibilidade da incarnação da verdade em obras humanas – de que aqui se destaca a obra musical, em sintonia com a natureza – é condição para que os humanos possam experimentar, ainda que limitadamente, essa verdade. A ópera Saint François d’Assise, de Olivier Messiaen, é sem dúvida um dos maiores exemplos dessa estrutura simbólica do humano, na sua abertura para o divino, que se dá fazendo-se carne, através dos sentidos, em sons e cores que realizam, metaforicamente, o excesso do corpo em relação ao corpo, o excesso do que somos, naquilo que somos.

Bibliografia HALBREICH, Harry, Olivier Messiaen, Paris: Fayard, 1980. SAMUEL, Claude, Musique et couleur. Entretiens avec Olivier Messiaen, Belfond 1986. MASSIN, Brigitte, Olivier Messiaen. Une poétique du merveilleux, Aix-enProvence: Ed. Alinéa, 1989. SEQUERI, Pierangelo, L’estro di Dio. Saggi di estetica, Milano: Glossa 2000. PIQUÉ COLLADO, Jorge, Teología y música: una contribución dialécticoyrascendental sobre la sacramentalidad de la percepción estética del Misterio (Agustín, Balthasar, Sequeri; Victoria, Schoenberg, Messiaen), Roma: Ed. Pont. Univ. Gregoriana 2006. BRUHN, Siglind, Messiaens Summa Theologica. Musikalische Spurensuche mit Thomas von Aquin in La Transfiguration, Meditations und Saint François d’Assise, Waldkirch: Ed. Gorz, 2008.

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