Dúvidas, fantasias e delírio: smart cities, uma aproximação crítica

June 6, 2017 | Autor: Artur Rozestraten | Categoria: Smart Cities, IMAGINARIOS URBANOS, Architectural Representation, Imaginaire
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2 C. Spinillo, P. Farias & R. Tori




Data do pronunciamento da conferência traduzida e publicada em inglês como 'Building Dwelling Thinking' em 1971.
A tectônica é compreendida aqui como um campo qualificado da técnica e/ou arte de construir com intenções artísticas. A tectônica é o que, nas ações técnico-construtivas, confere qualidade arqui-tectônica a um edifício ou lugar na cidade. Na ausência da tectônica a técnica construtiva simplesmente constrói.
Townsend (2013) considera mais especificamente dados municipais abertos, além de interfaces públicas de acesso a dados.
[acesso 12 janeiro 2016]. Disponível em:
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IT é a sigla para Information Technology.
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Dúvidas, fantasias e delírio: smart cities, uma aproximação crítica
Rozestraten, FAUUSP, Brasil

Imaginário, tecnologia, smart cities, poéticas urbanas

Este texto investiga o modelo urbanístico smart city tomando como ponto de partida as dúvidas de Le Corbusier sobre Chandigarh e as perspectivas críticas elaboradas sobre o modelo urbanístico da Ville Radieuse e da Carta de Atenas. Dessa dúvida fundamental e de seus desdobramentos, o texto propõe o reconhecimento do potencial técnico que sustenta tanto o modelo smart city quanto poéticas divergentes e alternativas críticas a ele contrapostas. Isso posto são delineadas duas fases das smart cities, reconhecendo transformações históricas e adaptações estratégicas no modelo ao longo dos últimos anos. O texto apresenta então casos que se contrapõe ao modelo smart city e sugere a exploração de aberturas especulativas para além dos limites da excelência técnica, em um campo propriamente tecnológico. Para concluir, o texto propõe seis mitos fundamentais a respeito das smart cities e defende um realinhamento ético das pesquisas e aproximações experimentais no âmbito do construir e do habitar no mundo contemporâneo mais coerentes com os propósitos da tecnologia.
Dúvidas
Tudo o que eu acreditava saber sobre a cidade foi aqui posto em questão […]
pois, à noite, as pessoas põem suas camas nos ombros
e vão dormir ao relento.

Le Corbusier sobre Chandigarh (Tradução do autor)

Enunciada por Corbusier, a reflexão sobre as especificidades do modo indiano de construir e habitar adquire uma relevância especial. É um indício do questionamento da suposta validade universal de um modelo urbanístico moderno, do qual ele próprio fora o principal arauto.
Quando Le Corbusier voltou de sua primeira viagem ao futuro local de Chandigarh (1951), fui espera-lo no aeroporto. Sua primeira afirmação foi: 'Lá, Wogenscky, nós vamos fazer um urbanismo totalmente diferente'. Fiquei desapontado – já via a Ville Radieuse aos pés do Himalaia. (Wogensky, 2007, p.63.)
Se a dúvida estava semeada em Corbusier, logo se alastraria entre os demais urbanistas. Talvez a Ville Radieuse não valesse para as particularidades da planície onde seria erguida a nova capital do Punjabe, o que exigiria abandonar modelos a priori e repensar tudo. Indagações semelhantes viriam a constituir uma das principais vias de crítica ao urbanismo moderno formuladas na segunda metade do século XX: o questionamento de modelos universais ante o reconhecimento das especificidades locais.
Em que medida a Ville Radieuse persistiu em Chandigarh? Em que medida o urbanismo corbusiano foi capaz de reinventar-se ou se foi mais propriamente sua arquitetura que se transformou? São questões que merecem análises mais detidas, para além do escopo desse texto.
Fato é que, entre o que foi planejado para Chandigarh, o que foi construído e o que hoje existe interveio o 'imprevisível nada que muda tudo' bergsoniano, como relata a pesquisadora Cláudia Estrela Porto:
Foi-se o tempo em que os pátios e terraços na cobertura eram usados como dormitórios ao ar livre nas noites quentes de verão e se podia dormir sob as estrelas no gramado em frente às residências. Alegando 'segurança', os usuários preferem o espaço interior, 'mais interessante' com a televisão e os ventiladores ou aparelhos de ar-condicionado. Na época da construção de Chandigarh, esses aparelhos eram raros ou não existiam. Hoje em dia, geladeira, televisão, aparelhos eletrodomésticos em geral são objetos corriqueiros mesmo nas famílias mais simples. Eles bloqueiam os belos jallis das fachadas de Jeanneret, impedindo a livre circulação do ar. As varandas são ocupadas com acréscimo irregular de cômodos ou com coberturas improvisadas para proteção dos carros. (Porto, 2008, p.93)
Assim como os hábitos culturais e de vida urbana dos indianos perturbaram referenciais e desestabilizaram os axiomas de Corbusier e de boa parte dos arquitetos-urbanistas modernos da segunda metade do século XX em diante, seus planos e suas proposições urbanísticas – como Chandigarh e Brasília, por exemplo – também foram transformados por perspectivas críticas e ações dos próprios habitantes do lugar. Nessas deformações descoordenadas promovidas pelos habitantes sobre 'Planos Piloto' evidenciava-se o fundamento relacional, fenomenológico, existencial e imaginário do construir e do habitar.
A dúvida corbusiana encontra ainda ressonância em revisões críticas várias, não coordenadas entre si, como as promovidas por Martin Heidegger (1951), Gaston Bachelard (1957), Jane Jacobs (1961), Aldo Rossi (1966) e Christian Norberg-Schulz (1971) que hoje ainda ecoam revistas, por exemplo, na obra de Juhani Pallasmaa (2013) e que também pautaram entendimentos e proposições alternativas expressas em vertentes significativas do urbanismo contemporâneo.
Sobre uma tectônica centralizada e governamental passam a agir outras tectônicas difusas, centrífugas, coordenadas ou não, coletivas ou individuais, movidas pela urgência, pela necessidade ou pelo desejo, que redesenham continuamente as cidades como gestaltung (Argan, 1992, p.75), campo de construção política da pluralidade, qualidade expressa, aliás, na própria origem e essência da polis.
Na duração temporal de tais transformações há várias sobreposições de técnicas heterogêneas.
Coexistem na 'longa duração' (Braudel, 2009, p.41) manifesta na cidade de São Paulo, técnicas arcaicas, técnicas do século XIX, XX e do século XXI. A longa duração contempla no presente um entrelaçamento de tempos simultâneos com velocidades distintas. Há um longo tempo imóvel, acrônico; assim como há tempos lentos; tempos mais ou menos velozes; e tempos curtíssimos, hipervelozes. Todos persistindo no hoje, ainda que modo distinto, mais ou menos estáveis, com maior ou menor grau de variância, coesos ou deformados.
Há uma cidade já presente – e não do futuro – com internet em banda larga, wifi, smartphones, aplicativos, sensores, câmeras digitais, nuvens de dados que não se distingue da cidade dos carrinhos dos catadores de papelão, do esgoto a céu aberto, da dengue, das enchentes e alagamentos crônicos, da cracolândia, etc.
Assim como há uma multiplicidade de tempos técnicos coexistindo há também uma multiplicidade de cidades coexistindo na experiência urbana cotidiana, tanto nas apreensões pessoais subjetivas quanto nas apreensões coletivas. A cidade percebida, a cidade sonhada, a cidade rememorada, a cidade desenhada, a cidade negada, a cidade que já não há, todas, se entrelaçam na experiência cotidiana de quem as habita. Ninguém vive em uma única cidade. Essa também é uma condição característica da multiplicidade da polis.
Não se trata aqui de uma contraposição simplista entre cidade real e cidade ideal, mas uma sobreposição indissociável entre cidades sensíveis e cidade desejadas em uma interação cotidiana no âmbito do imaginário que pode ser dita 'poética', pois do 'não ser' nossa imaginação e nossas ações técnicas promovem um infinito brotamento e deslocamentos de umas às outras.
Os vários tempos e técnicas não são equivalentes ou igualmente presentificados. Nas palavras de Milton Santos (2008, p.29), há:
[...] temporalidades hegemônicas e temporalidades não-hegemônicas [sendo que] as primeiras são o vetor da ação dos agentes hegemônicos da economia, da política e da cultura, da sociedade enfim. Os outros agentes sociais, hegemonizados pelos primeiros devem contentar-se com tempos mais lentos.
Tais temporalidades distintas e conflitantes podem corresponder a ações técnicas e, consequentemente, a tecnologias também diversas, mas, no âmbito da cibercultura, parecem lidar de modo distinto com os mesmos fundamentos técnicos promovendo tecnologias dessemelhantes.

Potencial
No caso do tema aqui em pauta, diferentes proposições, modelos e ações tecnológicas consideram o mesmo potencial técnico constituído ao menos por 4 fundamentos:
conexões à internet em banda larga;
dispositivos móveis pessoais de baixo custo;
extensos bancos de dados;
sistema robusto de computação em nuvem.

Tanto a cultura hacker quanto o modelo urbanístico smart city apropriam-se desse mesmo potencial com intenções políticas, apropriações tecnológicas e consequências práticas não apenas distintas, mas divergentes e contrárias. Entre extremos de apropriações técnicas hegemônicas – top down – e outras dissonantes ou insubordinadas – bottom up –, há uma multiplicidade de posições intermediárias com especificidades na articulação do binômio técnica/tecnologia.
É fato que esse potencial tem crescido expressivamente nos últimos anos, o que não significa que tenha crescido igualmente para todos.
No final de 2009 havia 10,2 milhões de assinaturas residenciais de banda larga no Brasil. Em 2015 eram 25 milhões. Em 2010 havia 10 milhões de smartphones no Brasil em 2015 eram 93 milhões, a quinta maior base mundial desses dispositivos.
Considerando tal ampliação, por si só, sem a necessidade de nenhuma articulação ao modelo urbanístico smart cities, já não teriam se constituído smarter cities no Brasil?
Quanto às condições de apropriação de tal potencial por práticas não-hegemônicas, talvez sim. Sendo esse o caso, seria uma tautologia promover smart cities sobre tais cidades.
Quanto às práticas hegemônicas talvez não e justamente para constituir o modelo pretendido iniciativas como o Centro de Operações da Prefeitura do Rio de Janeiro (COR) têm sido empreendidas.
Na medida em que investiga a técnica nas suas mais variadas expressões atuais, históricas e propositivas, cabe à tecnologia dedicar-se a reflexões sobre os sistemas ditos inteligentes e suas convergências ao modelo urbanístico aqui em foco.
A tecnologia no mundo contemporâneo, tanto como fundamentação científica das técnicas quanto como reflexão filosófica sobre os desdobramentos práticos e teóricos de tais técnicas, não pode se restringir às aplicações devendo realizar, essencialmente, a crítica desse campo de ações e atuar em um sentido epistemológico, metodológico e propositivo/projetual.
Interessa aqui tecer algumas considerações sobre o imaginário desse modelo urbanístico cibernético; nos termos de Gaston Bachelard, sobre a 'extensão de sua auréola imaginária' (2001, p.1) a partir de uma perspectiva tecnológica sobre os ambientes urbanos suas dinâmicas e os modelos propostos. Pretende-se assim uma aproximação àquilo que Bachelard caracterizou como a 'imaginação imaginante que concebe imagens imaginadas' (1948, p.4). Neste campo das representações e do imaginário é que se colocam as imagens que antecipam, prenunciam, sugerem, desdobram e ecoam a cidade dita inteligente.


Fantasias
Estaremos de volta ao 'mundo mágico', onde o fantasioso, o fantástico, o fantasmagórico prometem tomar o lugar do que é lógico e o engano pode apresentar-se como o verdadeiro? (Santos, 2008, p.20)

Em Against the Smart City, o urbanista Adam Greenfield (2013) desenvolve uma crítica que tem como ponto de partida a aferição e a exigência de rigor conceitual sobre as imprecisas definições do modelo urbanístico smart city nos discursos das principais corporações que o conceberam e o promovem: IBM, Cisco e Siemens.
Greenfield confronta os discursos corporativos disponíveis nos websites dessas empresas com questões elementares: O que é uma smart city? Quando? Onde? Para quem? E por quê?
A abordagem crítica de Greenfield procura evidenciar na proposição da smart city a 'sobrevivência' de aspectos problemáticos derivados do modelo de cidade universal funcionalista propagado pela Carta de Atenas (Le Corbusier, 1993) e extensamente criticado ao longo das últimas décadas.
Ao invés da pretensa inovação, as smart cities promoveriam um retrocesso em termos conceituais na medida em que atualizariam com sistemas ditos inteligentes o urbanismo racionalista-funcionalista preconizado nos anos 1930 e reiterariam abordagens abstratas, analíticas e fragmentárias sobre o fenômeno urbano (Scherer, 1993), no mundo contemporâneo, com base em alguns pressupostos:
a existência de um vasto espaço homogêneo e isotrópico, hoje abundantemente servido por internet e sistemas de informação e comunicação;
a possibilidade de conformação de um modelo urbanístico genérico e universal capaz de se sobrepor a toda e qualquer especificidade local;
a ênfase no edifício, ao invés do espaço público, como elemento urbanístico primordial, em outras palavras, a smart city é o resultado da somatória de smart buildings;
a ênfase em funções urbanísticas elementares, especialmente circular, trabalhar, ter acesso a informação, conveniência e entretenimento;
o discurso afirmativo de que os problemas urbanos já foram identificados, estão sendo devidamente equacionados com recursos computacionais e, para todos já há ou haverá em breve uma solução smart;

Como modelo exemplar ou paradigma, a smart city deve possuir uma estrutura urbana com limites evidentes, contrastando com seu entorno, sem ambiguidades sobre onde começa nem onde termina a cidade. Não há indícios de que essa estrutura tenha flexibilidade para se transformar nem que esteja aberta a futuras alterações promovida por interferências de seus habitantes. Além de organizar espacialmente as várias funções urbanas, uma smart city deve funcionar com eficiência e ter metas – espelhando o modelo empresarial que a origina –, claras e precisas.
Clareza essa que contrasta com o caráter vago da resposta à questão de quando irão ocorrer. A princípio em um futuro próximo, dentro de algum tempo, não exatamente agora. Mas já há algumas em obras, como Masdar em Abu Dhabi nos Emirados Árabes Unidos.


Primeira Fase
Com apenas 6 km2 de área construída Masdar se autodenomina cidade, mas é muito mais propriamente uma planta ou site corporativo ampliado, com forte presença da Siemens, e características condominiais – como a cidade-empresa financeira Santander em Madrid, Espanha com seus 2,5 km2 – que, no mais, se propõe a incluir habitações e algum lazer em seu interior. Por iniciativa da companhia de desenvolvimento Mubadala, presidida pelo Sheikh Mohammed bin Zayed Al Nayan, o projeto da Foster + partners teve início em 2006, as obras ainda estão em andamento com previsão de conclusão em 2025 a um custo estimado de 19 bilhões de dólares.
Quanto à localização espacial, a smart city deve se instalar, preferencialmente, como 'cidade nova' em terrenos ainda não ocupados, mas não necessariamente distante de outros centros urbanos maiores já que não tem autonomia e depende de outras estruturas urbanas complementares: aeroportos, universidades, estações de trem, escolas, mercados e centros comerciais, etc.
Songdo IBD (International Business District) na Coréia do Sul também se apresenta como uma smart (e logicamente sustainable) city, mas é mais propriamente um condomínio vertical de alto padrão com apenas 6 km2, sendo construído em parceria com a Cisco em Songdo-Dong no distrito de Yeonsu na região metropolitana de Incheon, na costa ocidental coreana. O projeto teve início em 2001 e o investimento previsto é de 35 bilhões de dólares. A apresentação do empreendimento enfatiza o fato de estar localizada a 21 km do aeroporto internacional de Incheon, a 56 km da capital Seoul e a duas horas de vôo de Tókio.
Sete anos depois de anunciada a smart city PlanIT Valley – idealizada por Steve Lewis da empresa Living PlanIT – prevista para ser implantada em nos arredores de Paredes a leste da cidade do Porto no norte de Portugal ainda não saiu das telas dos computadores e é hoje um punhado de renderizações e mapas esquemáticos. O projeto envolveu a criação de um centro de competências 'Polaris Future Cities' com a participação de pesquisadores da Escola Politécnica da Universidade do Porto e subestimou investimentos em torno de meio bilhão de dólares.
Todos os três exemplos são empreendimentos privados de alto custo, fechados e controlados por seus investidores para serem estáveis e homogêneos. A estrutura e as dinâmicas empresarias pretendem ser os parâmetros para o pseudo-modelo urbanístico. Evidentemente não há diversidade social, nem produção de bens de consumo, nem espaços públicos, muito menos sedes dos poderes judiciários ou legislativos em tais empreendimentos. Não há espaços de representação política democrática nessas smart cities. Se no âmbito do marketing tais iniciativas de incorporação imobiliária pretendem ser smart, definitivamente não são cities. São mais propriamente anti-cidades.
Cabe ainda investigar, para seguir com a abordagem crítica proposta por Greenfield: smart cities para quem? E por quê?
Certamente as smart cities são de grande interesse comercial para as empresas de Tecnologia da Informação (TI) como Siemens AG, IBM, Cisco, Microsoft, GeoLink, Intel, etc. A tal ponto que seria mais apropriado renomeá-las como ITcondominia.
Muito embora tais smart cities ainda em obras – ou em projeto – sejam desastrosas como proposta urbanística as representações a seu respeito proliferaram em uma constelação de matérias jornalísticas, textos e imagens estimulando a construção de um imaginário delirante.
A primeira fase de experiências com smart cities, desenvolvida grosso modo na primeira década do século XXI, entre 2001 e 2012, recebeu críticas bastante incisivas, dentre as quais as de Greenfield (2013), Townsend (2013), e outras menos incisivas como a de Richard Sennet (2012) com sua reflexão 'The stupefying smart cities'.

Segunda Fase
Considerando o cenário crítico e os altos custos que drenaram milhões em investimentos privados sem resultados expressivos, teve início então uma segunda fase de experiências, hoje vigente, que considerou mudanças estratégicas para tornar ainda mais smart o modelo:
Ao invés de construir cidades novas como smart cities a nova ordem é transformar cidades – preferencialmente as mais inteligentes, isto é, as que já possuem inegável qualidade urbanística e, portanto, demandam menores investimentos – em smart cities;
Estimular a competição entre cidades, valendo-se do imaginário em torno do modelo, para que busquem se posicionar no cenário de um mundo globalizado que disputa turistas e investimentos privados como uma das top smart cities;
Intensificar o caráter participativo, colaborativo e aberto desses projetos com a intenção de 'humanizar' o modelo especialmente em metrópoles capitais. Os esforços para humanizar o modelo 'Smart City' consideram, paradoxalmente, a humanização apenas em um sentido positivo excluindo justamente as 'deformações' que podem advir da interação com o sistema. A humanização preconizada considera uma participação humana positiva ou 'smart', isto é, sem ambiguidades, devaneios, dúvidas, equívocos.
Financiar projetos, preferencialmente, com parcerias público-privadas lucrativas para os investidores privados e as empresas de TI;
O cenário dessa segunda fase é delineado pelo relatório da empresa de consultoria de investimentos Frost & Sullivan 'Strategic Opportunity Analysis of the Global Smart City Market' publicado em 2013 indicando que o mercado em torno de smart cities deveria movimentar cerca de 1,5 trilhões de dólares até 2020.
A rentabilidade dos negócios passa a depender fundamentalmente de parcerias entre o interesse dos 'gestores urbanos', das municipalidades e das federações em se qualificarem como smart cities e de sua capacidade de investimento na contratação de empresas de TI. Não raro as universidades também se integram a essas parcerias.
Proliferaram assim os rankings de smart cities. Um dos primeiros propôs ainda em 2012 uma revisão da designação como resilient cities e apresentou seu top 10 tendo à frente Viena e depois, em sequência: Toronto, Paris, Nova Iorque, Londres, Tóquio, Berlim, Copenhague, Hong Kong e Barcelona.
Como o modelo smart city segue sendo pouco claro, tampouco são claros os critérios e, como são diferentes entidades que promovem tais concursos, os resultados são os mais variados.
A ICF, Intelligent Community Forum, baseada em Nova Iorque, por exemplo, publicou em 2015 um surpreendente ranking de 7 intelligent communities (outra variação do termo).
Arlington County, Virginia, EUA;
Columbus, Ohio, EUA;
Ipswich, Queensland, Australia;
Mitchell, South Dakota, EUA;
New Taipei City, Taiwan;
Rio de Janeiro, Brasil;
Surrey, British Columbia, Canadá;


Pouco mais de um mês depois o mesmo caderno Tech da revista eletrônica Forbes publicou outro ranking de smart cities também surpreendente. Não em razão da indicação de cidades obscuras, mas sim como estratégia de associação do conceito smart city a cidades com reconhecida e inquestionável qualidade urbanística. Em primeiro lugar temos Barcelona como a mais smart de todas as cities. Nova Iorque está em segundo lugar. Londres em terceiro. Nice em quarto e Singapura em quinto.
Não é de hoje que Barcelona é considerada uma cidade inteligente por seus habitantes, pelos turistas e pelos urbanistas. Associar o título de smart city à Barcelona pouco acrescenta à inquestionável qualidade urbanística dessa cidade, mas incrementa e valoriza muito o modelo urbanístico smart city e a difusão de seu imaginário.
No caso do Rio de Janeiro, sua escolha como sede dos Jogos Olímpicos de 2016, anunciada em 02/10/2009, demandou que a Prefeitura levasse adiante o projeto do Centro de Operações (COR) inaugurado em 31/12/2010, condição sine qua non imposta pelo Comitê Olímpico Internacional para a realização do evento. Como caso concreto, instalado e em funcionamento, o COR é tido como referencial no âmbito da segunda fase das smart cities.
Afinal, '[...] o carioca agora sabe que o Rio se tornou uma cidade melhor, uma cidade inteligente'. Nas palavras do prefeito Eduardo Paes:
O Centro de Operações permite que tenha gente olhando para todos os cantos da cidade, 24 horas por dia, sete dias da semana. Que era o que não acontecia. Então isso aqui para mim é um sonho realizado, desde o dia em que eu entrei na prefeitura eu sonhava em ter esse espaço para a cidade do Rio de Janeiro para as pessoas – principalmente isso – as pessoas saberem que elas estão sendo cuidadas.
No interior de um edifício opaco, revestido por vidro escuro reflexivo, um grupo de 400 técnicos detêm a super-visão e o suposto controle da 'rotina operacional do município' a partir de uma tela de 80 metros quadrados. Enxerga-se ali o que se quer enxergar. A tela justapões imagens ao vivo de 560 câmeras posicionadas na cidade. As situações problemáticas a serem monitorados são escolhidos: ocorrências policiais, tráfego e eventos meteorológicos, prioritariamente. As soluções advindas desse monitoramento são pontuais, paliativas. Outros fenômenos, como os problemas sociais e ambientais, por exemplo, são mantidos invisíveis. O COR possui ainda uma sala de crise para a interação dos responsáveis técnicos com o prefeito e a estratégica tomada de decisões. A esse grupo cabe a parte ativa das operações necessárias ao 'funcionamento normal' da cidade. Dos cidadãos complacentes espera-se colaboração cívica, além do reconhecimento de que, finalmente, há quem olhe por eles além do Cristo redentor.
Sennet entende que o modelo implantado no Rio de Janeiro é uma alternativa mais inteligente para o modelo smart city pois não pretende ser prescritivo, mas sim monitorar e integrar informações até então dispersas, integrando-se a uma cidade já existente e interagindo com suas dinâmicas locais.
Mas cabe formular algumas questões sobre essa alternativa.
Houve alguma instância democrática para a definição do que se desejava ou não monitorar? Quais são os limites desse monitoramento quanto ao direito à privacidade dos cidadãos? Há alguma regulamentação a esse respeito? E quanto aos dados acumulados sobre tais fenômenos e espaços públicos, estão disponíveis gratuitamente para o público? Quem tem acesso a esses dados? O que se permite e o que não se permite fazer com tais informações? Quem irá definir tais regras?
De que modo a supervisão realizada pelo COR sobre a dinâmica de certos fenômenos problemáticos crônicos do Rio de Janeiro tem processos participativos para a elaboração de projetos e obras na cidade? O caráter liberal da ideologia smart conjuga ou substitui a noção de planejamento regional e intra-urbano por monitoramento e eventuais intervenções a posteriori?
O monitoramento resultou em um incremento de qualidade espacial no Rio ou, ao contrário, atua como uma conveniente e econômica alternativa 'não-intervencionista' que não promove novas configurações arquitetônicas nos espaços públicos da cidade?
Se há, qual é a tectônica dessa smart city e onde ela pode ser percebida nas intervenções no Rio pós-COR?
Quais são os problemas que acionam o uso da Sala de Crises do COR? Seu uso também é diário e ininterrupto, considerando a natureza crônica da favelização crescente e da ocupação de áreas de risco e áreas de preservação ambiental; da precariedade ou ausência de saneamento básico; da poluição das águas; da precariedade da saúde pública?
As considerações críticas sobre a fundamentação ideológica do urbanismo moderno formuladas por Rebeca Scherer (1993) a partir da Carta de Atenas corbusiana poderiam também se aplicar à segunda fase das smart cities:
Significa, antes, a explicitação da nova etapa do capitalismo, que acentua o caráter interventor do Estado (hoje Estado-Corporação) e submete a sociedade civil às suas determinações, legitimando-as pela necessidade de coordenação e pela competência científica e tecnológica amplamente ideologizadas.
Delírio
E se, além disso, a perspectiva do progresso fosse uma perspectiva artificial e interessada, uma falsa consciência, uma ideologia? Ou seja, se não fosse uma direção que a humanidade devesse necessariamente seguir, como se não tivesse outra forma de ser-no-tempo, mas que lhe fosse imposta por quem, de boa ou má fé, pretendesse dirigi-la? Que mais pode prometer quem, na sociedade, arroga para si a autoridade? Progresso rumo à paz, à liberdade, à felicidade, rumo a tudo o que não está no presente da vida, que é luta e incerteza, significa sacrifício de um bem atual por um bem maior no futuro; como não ver no conceito (ou na miragem) do progresso o argumento fundamental do poder? (Argan, 1992, p. 34)

No descomeço era o verbo.
Só depois é que veio o delírio do verbo.
[…] Então se a criança muda a função de um verbo, ele
delira.
Em poesia que é voz de fazer nascimentos -
O verbo tem que pegar delírio.
(Barros, 2015, p.83)

Em 09/04/2014 o jornal carioca Extra lançou a campanha 'Rio de Chorar' convocando seus leitores a enviarem fotografias 'satirizando algum problema da cidade' via WhatsApp, Twitter e Facebook, tomando como referência os ensaios realizados no projeto Potholes por Davide Luciano e Claudia Ficca.
Valendo-se das câmeras de seus smartphones, de inteligência e bom humor, os leitores cariocas produziram uma coleção de imagens que se contrapõem àquelas do telão do COR. São imagens que expõem a invisibilidade de certos lugares e fenômenos ao sistema de monitoramento urbano. Não são imagens feitas à distância, a partir de posições suspensas, com 'olhar de sobrevôo'. Ao contrário, são imagens feitas do chão, com tamanho conhecimento de causa, que se faz possível satirizar o problema pelo excesso de familiaridade. Tais imagens reafirmam, por outro lado, que tanto na tela do COR quanto na tela dos smartphones dos cidadãos há uma mesma natureza imagética, imaginária, igualmente aberta, evasiva e deformadora.
Expostos na mídia impressa para um público de mais de 3 milhões de leitores, além daqueles que acessam a versão on line, muitos dos problemas fotografados foram rapidamente resolvidos pela administração pública em resposta à indignação dos leitores.
Antes das cidades, inteligentes são os cidadãos.
Considerando o enfoque proposto por Lewis Munford e desenvolvido por Giulio Carlo Argan (1992) as cidades podem ser entendidas como a grande obra de arte e de técnica e o lugar por excelência da produção poética ou das ações transformadoras no âmbito da arte, da ciência e da tecnologia.
As cidades são, portanto, a materialização máxima de nossas inteligências como civilização, cultura, coletividade. Apresentam – nas melhores e nas piores expressões – nossas capacidades e incapacidades, nossa penúria e nossos recursos, nossos conflitos e acordos sociais, nossos valores e anseios coletivos em sua mais pertinente ou impertinente, complexa e completa forma sensível.
Tal característica é inerente às cidades desde suas origens: de Çatal Huyuk à Jericó, de Atenas à Roma, de Barcelona ao Rio de Janeiro, de Lyon à São Paulo.
Se aceitarmos o animismo ou a transferência do potencial biopsicológico dos cidadãos para as cidades devemos concluir que toda cidade deveria ser considerada inteligente em sua singularidade – ainda mais conforme o parâmetro de inteligências múltiplas proposto por Howard Gardner (2012) –, isso independentemente de suas qualidades urbanísticas.
Por menos inteligente que seja uma cidade, quando vista em comparação a outras, em suas características urbanísticas particulares, cada cidade continuará sendo a máxima expressão material da inteligência dos cidadãos e culturas que concebem continuamente seus sistemas de objetos e sistemas de ações (Santos, 2008, p.78).
Baseados em Madri, Espanha, o coletivo PKMN [Pacman] ARCHITECTURES desenvolve desde 2012 a frente experimental 'Analogical Smart Cities' que propõe reaproximações ao caráter coletivo das inteligências urbanas:
[...] reinterpretações analógicas, em escala real, de ferramentas digitais habitualmente usadas para visualizar informações relacionadas ao projeto e gestão de espaços públicos nas cidades. Tais reinterpretações consistem em desenhar as informações e dados sobre os elementos referidos. As ações são realizadas pelos cidadãos. Analogical Smart Cities pretende gerar expertise familiarizando os cidadãos com linguagens técnicas geralmente usadas para representar dados complexos, desenvolvendo também habilidades críticas e propositivas para estimular a participação ativa dos cidadãos na avaliação e nos processos decisórios referentes a espaços públicos em suas cidades.
As várias experiências conduzidas pelo PKMN dentro do projeto 'Analogical Smart Cities' em Madri, Caracas e São Paulo promovem intervenções em espaços públicos como 'rugosidades hostis ao galope de modelos hegemônicos' (Santos, 2008, p.27). Ao explorar de modo participativo e crítico o mesmo potencial técnico que suporta o modelo smart city, o projeto estimula uma compreensão do papel das representações – analógicas e digitais, textuais, bi ou tridimensionais – como recursos tecnológicos indispensáveis à compreensão, constituição e proposição de configurações novas configurações urbanas.
No âmbito do Núcleo de Apoio à Pesquisa em Ambientes Colaborativos na Web (NaWeb) que reúne pesquisadores, professores e alunos, da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, do Instituto de Matemática e Estatística, da Escola de Comunicação e Artes e da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, há dois projetos que se posicionam também de maneira crítica sobre o potencial cibernético do mundo contemporâneo e exploram experimentalmente possibilidades colaborativas de ressignificação dos ambientes urbanos estimulando o encontro e a troca de experiências diretas entre as pessoas nas cidades.
O primeiro desses projetos é o Arquigrafia (2009), que se constitui em um ambiente colaborativo de imagens de arquiteturas e de espaços urbanos, pretendendo compor coletivamente, com a ativa participação dos usuários – estudantes de arquitetura, arquitetos, fotógrafos, leigos interessados no tema – uma constelação warburguiana de imagens que amplie, estimule e ampare a construção de conhecimento crítico sobre os edifícios e as cidades brasileiras, em um primeiro momento, e sobre o mundo lusófono, em um segundo momento.
Os vários olhares, as múltiplas e divergentes perspectivas não constituem uma única imagem coesa e definitiva do fenômeno arquitetônico e urbanístico em foco, mas sim apresentam sua variabilidade, suas ambiguidades e as relações entre subjetividades e objetividades na interação dos indivíduos e de distintos grupos sociais com os ambientes construídos.
O segundo projeto – Smart Audio City Guide (2011) – propõe a configuração de uma rede social web em áudio para a troca de experiências não-visuais do ambiente urbano, aproximando e promovendo a interação entre pessoas cegas, com baixa visão e videntes, que compartilhem o mesmo propósito de descoberta e redescoberta da cidade a partir de sons, descrições e narrativas georeferenciadas. A ideia é promover o encontro de imaginários urbanos baseados em registros de voz, em falas, que estimulem a imaginação e a movimentação de imagens como intercâmbio entre todos os participantes. Tal como fizeram Gigito Efraim e o cego Estrelinho e também como fez, Estrelinho com Infelizmina, no conto de Mia Couto (2012). A reunião de todas estas informações acessíveis por smartphones constitui – coletivamente e de modo colaborativo –, um acervo de impressões não-visuais sobre a paisagem de cidades invisíveis: odores, sons, texturas de paredes e pisos, barreiras e outras elementos sensíveis são mapeados pelo conjunto de usuários e, progressivamente, tecem uma malha de impressões, particularmente significativas para este grupo especial de usuários. Na interação com a rede, os usuários são estimulados a assumirem uma posição ativa e "aprenderem uns com os outros", ampliando e resignificando as experiências individuais à medida que essas se articulam a uma esfera coletiva dinâmica e crítica. Não sendo de uso restrito ou exclusivo de deficientes visuais, o sistema oferece a todos a oportunidade de renovar sua relação com a cidade registrando suas impressões, ouvindo outras experiências, descobrindo trechos de cidade novos e aproximando-se, enfim, da subjetividade de outras pessoas que habitam a mesma cidade.
Deleite
O técnico que domina a excelência de seu ofício é denominado um expert (expertus), aquele que esteve atento à experiência e que se formou empiricamente. Por isso, é um perito (peritus) que possui uma expertise. Cabe registrar que a etimologia de esperto e experto é a mesma. Já smart tem outra etimologia e os registros do animismo smart 'algo que se comporta como que guidado por uma inteligência' tem datação bastante recente, coincidente com a cibernética, a partir de fins dos anos 1960. Esse é o domínio da técnica.
Já o mestre, experto, perito que conduz a técnica além dos limites de sua excelência é aclamado pelos demais técnicos e por todos como um artista. Esse é o âmbito imaginário das poéticas e da arte. A partir daqui o potencial técnico das cidades inteligentes pode pretender ser a cidade do deleite.
Mas como denominar aquele habitante interessado que em seu exercício diário como técnico, como amador, como curioso ou inventor aumenta consideravelmente seu desconhecimento do mundo e é capaz de enriquecer a natureza com essa sua incompletude (De Barros, 2015)?
Esse é o âmbito imaginário do 'adorado infinito desconhecido'.
[...] Que venhas do céu ou do inferno, que importa,
Ô Beleza! monstro enorme, assustador, ingênuo!
Se teu olho, teu sorriso, teu pé, me abrem a porta
De um Infinito que amo e jamais conheci? [...] Charles Baudelaire, Hino à Beleza (Tradução do autor)
Baudelaire nos lembra que a monstruosidade não pode se restringir a uma manifestação do mal. Sua complexidade reside em ser uma manifestação ambígua de excesso de potências não apenas negativas, como o mal ou os vícios, mas também positivas como as virtudes, por exemplo. Nesse sentido são monstruosas as manifestações das divindades. Em outra perspectiva, o masculino seria a monstruosidade do feminino e vice-versa.
O monstro é perturbador, inquietante, extremo e sublime, na medida em que, ao transgredir parâmetros de uma suposta normalidade referenciada na natureza ou no ser humano - nosso métron -, evidencia potências comuns, inerentes e excessivamente triviais a todos.
Tais potências podem ser indesejadas e virem a se manifestar imprevisíveis e inevitavelmente (destino), ou podem ser desejadas, ambicionadas e mostrarem-se penosamente inatingíveis (projeto).
Tanto no infra quanto no ultra-humano, o monstro é uma representação extrema das inúmeras paixões que nos movem, perturbam e nos conduzem ao sofrimento e/ou ao deleite. Por meio de uma poética da desumanização o monstro desestabiliza e promove reposicionamentos do que entendemos por humano.
O verbo que delira - o discurso delirante sobre a técnica ou a tecnologia delirante - é capaz de desejar da técnica mais do que a sua expertise, mais do que a sua excelência, mais do que suas manifestações artísticas atuais, isto é, sua potência imprevisível, sua fonte poética bruta lançando-se no imprevisível. O logos que delira também exige mais da tecnologia.
Conforme a tecnologia se entrelaçou à ciência passamos a sonhar um mundo moderno com entusiasmo redobrado. Na modernidade os devaneios ganharam um vigor adicional e novas possibilidades técnicas conformaram imagens e imaginários futuros delirantes, a exemplo de Francis Bacon, Georges Méliès, Santos Dumont, Buckminster Fuller, Constant Nieuwenhuys, Tony Garnier e tantos outros.
Frente a tantos deleites já desejados, o modelo smart city nos propõe um futuro amedrontado e amedrontador, por seu apego excessivo aos limites da expertise das técnicas contemporâneas. O pseudo caráter futurista desse modelo considera essencialmente a extensão global quantitativa de um potencial técnico já disponível, conhecido e criticado. É acanhado e frustrante esse futuro que coincide por demais com o presente.
Houve um tempo em que sonhávamos cidades nas quais as crianças aprenderiam sobre o mundo e a cultura a partir de desenhos magníficos feitos sobre os muros. Houve um tempo em que sonhávamos cidades que seriam fraternidades de homens livres, iguais entre si, e viveríamos dedicados a cultivar o melhor de nossa humanidade. Houve um tempo em que sonhávamos cidades nas quais estaríamos livres do peso diário do trabalho e poderíamos brincar, celebrar e vagar pela terra confraternizando despreocupados.
O que houve com nossos sonhos?
Aproximações críticas
Antes de nos perguntarmos que sentidos apontariam os desejos que hoje estão deslocando imprevisivelmente a técnica, cabe reconhecer a sobrevivência de alguns mitos no seio do modelo urbanístico em pauta e que comparecem aqui como mitos, esboçados com o sentido das 'falsas notícias' que exigiram a reflexão do então jovem historiador Marc Bloch (2012):
O mito do caos urbano. Sem caos não há a gênese de um novo logos ordenador sobrehumano (teogonia) nem de uma nova ordem (cosmogonia). A mitificação faz um discurso que pretende problematizar esse caos sem mencionar aspectos políticos, sociais ou históricos inerentes às cidades como lugar de conflitos, diálogos e acordos;
O mito do espaço-tempo isotrópico, homogêneo, que sustentaria a smart city universal ou genérica em uma dimensão técnica e tecnológica una e uniforme, o que definitivamente, não condiz com a singularidade dos lugares;
O mito da onipresença, onisciência e onipotência da inteligência smart. É mesmo possível estar em todo lugar, ver tudo e, vendo tudo, e possível tudo saber e tudo controlar?;
O mito da absoluta neutralidade e precisão da nova ordem ou da inteligência acrítica como deus ex machina ou logos ex machina. O logos apolítico que supostamente ordena racionalmente (da melhor maneira possível) – de cima para baixo –, mas não questiona os fundamentos da (des)ordem anterior nem necessita de perspectivas históricas. Toda solução daí proveniente será perfeita e irá, segura e positivamente, dentro de mais ou menos tempo, diagnosticar, equacionar e solucionar todos os problemas urbanos. A excelência técnica é solução política: tecnocracia. O aperfeiçoamento da administração pública é uma questão de gestão competente – gestores esclarecidos e empresas de TI capazes - e não um campo de representações públicas e lida ininterrupta com conflitos advindos da pluralidade da polis. Como contraexemplo há que se pensar os campi universitários;
O mito do projeto não-problemático. A nova ordem oriunda do caos não tem participação nenhuma na atual condição urbana caótica, problemática. O projeto proposto não é ambíguo nem contraditório – negando a própria natureza do projeto, pro-ballo, problema – é uma resposta desenraizada da história das cidades, feita de uma única faceta: soluções ou smart solutions. Cabe perguntar: onde estavam até então as empresas de TI, os técnicos e os cientistas da computação?;
O mito das soluções a priori que ocultam os verdadeiros problemas ou a arte de restringir os problemas/projetos apenas àqueles supostamente solucionáveis. Como o modelo smart city pretende lidar com a solidão, a exclusão social, o analfabetismo, o desamparo e a degradação humana?
Cabe à tecnologia, especialmente aquela elaborada no seio das universidades, com a necessária autonomia, responsabilidade e rigor, refletir criticamente sobre as técnicas contemporâneas, considerando seus potenciais, seus imaginários, suas poéticas, e suas repercussões inexoráveis no âmbito do construir e do habitar a Terra. Como tecnologia, especialmente no campo da arquitetura e do urbanismo, tais desafios envolvem não apenas o aprofundamento do conhecimento crítico dos fenômenos, mas também a ampliação e o aprimoramento das interferências propositivas, projetuais, capazes de extrair do livre exercício experimental e especulativo horizontes futuros mais fraternos.
Relembrando as considerações do emérito professor da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo, engenheiro Milton Vargas (1994, p.184):
[...] é necessário abordar as implicações humanistas da peculiar maneira de ser da tecnologia e dos seus conteúdos; a de 'servir-para'. Isto envolve a Axiologia, a teoria filosófica dos valores, e a Ética, a teoria filosófica do comportamento humano. O 'servir-para' das tecnologias implica um certo comportamento humano em relação a elas e, portanto, uma ética, não tanto por parte dos tecnólogos, mas, muito mais por parte dos que a utilizam e decidem sobre sua utilização.

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