É isto um homem

May 23, 2017 | Autor: Rebeca Serrano | Categoria: Primo Levi, Auschwitz
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É isto um homem?

Vocês que vivem seguros em suas cálidas casas, vocês que, voltando à noite, encontram comida quente e rostos amigos, pensem bem se isto é um homem que trabalha no meio do barro, que não conhece paz, que luta por um pedaço de pão, que morre por um sim ou por um não. Pensem bem se isto é uma mulher, sem cabelos e sem nome, sem mais força para lembrar, vazio os olhos, frio o ventre, como um sapo no inverno. Pensem que isto aconteceu: eu lhes mando estas palavras. Gravem-na em seus corações, estando em casa, andando na rua, ao deitar, ao levantar; repitam-nas a seus filhos. Ou, senão, desmorone-se a sua casa, a doença os torne inválidos, os seus filhos virem o rosto para não vê-los.

Esboço sobre as relações sociais e o indivíduo em Auschwitz

Primo Levi, judeu italiano, foi detido pela Milícia Fascista aos 24 anos de idade. Sem experiência e baseado em um “moderado e abstrato espírito de rebelião” 1, juntou-se a um grupo de amigos para fundar um grupo de guerrilheiros ligado ao Movimento “Giustizia e Liberta”. Após a invasão de seu refúgio na mata, Levi foi levado como pessoa suspeita. Ao declarar sua condição de “cidadão italiano de raça judia” 2 foi mandado a Fóssoli, um campo de

concentração

anteriormente

destinado

aos

prisioneiros

ingleses

e

americanos. Após um período de detenção, foi anunciada a deportação dos mais de seiscentos judeus italianos presos nesse campo. O seu destino era Auschwitz Levi descreve um tempo em que as pessoas, como seres sociais e seres humanos, dividiam-se em duas categorias: as que mereciam viver e as que deveriam morrer. A prisão e extermínio dos cidadãos de “raça judia” faziam-se necessários aos olhos dos alemães; os judeus deveriam apenas receber ordens e cumpri-las. Sua liberdade há tempos não existia, sua existência havia sido taxada como algo ilegal e até nocivo. Após algum tempo de enclausuramento, o anúncio da deportação foi recebido como um pré-aviso de morte. O autor narra o momento de preparação para a viagem à Polônia. As famílias embalando seus pertences, cuidando de suas crianças e até realizando seus rituais religiosos de lamentação. As relações sociais de trabalho existiam nesse campo, assim como relações pessoas de amizade, amor e afeto. Dentro dessa prisão, desta limitação dos corpos em um espaço determinado, ainda havia espaço para uma tímida convivência humana. O transporte para o campo de Auschwitz evidenciou o tratamento desumano a que esses seres chamados “inferiores” seriam submetidos. Doze vagões de carga para seiscentos e cinqüenta pessoas. Fome, sede e pancadas (socos, murros e pontapés). Os judeus apanhavam por diversas razões: para andar mais rápido, para ficar em silêncio. Apanhavam também sem razão nenhuma: violência pela violência. Bater em outro semelhante fora legitimado por uma classificação doentia. Um outro ser humano foi rebaixado à condição de não humano e passou a ser torturado, tanto física quanto mentalmente. 1 2

Levi, Primo. É isto um homem?. Rio de Janeiro: Rocco, 1988. Op.cit. p. 12.

Levi descreve detalhadamente a chegada ao campo onde ficaria a nova “carga”. Os “bárbaros latidos dos alemães ao mandar, parecendo querer libertar-se de sua ira secular” 3 foram os primeiros sons ouvidos naquele novo universo. Despidos de suas bagagens e classificados em válidos e inválidos para o trabalho, os homens foram separados de suas mulheres e crianças. Começou então, um processo de desumanização total, no qual os judeus serão desprovidos de todos os seus bens materiais, de seus familiares e entes queridos e, finalmente, de sua própria vida. Nesse intervalo entre a semivida e a morte, ainda servirão como mão-de-obra escrava para grandes companhias industriais alemãs. Num ato de barbárie, os judeus são despidos, “despiolhados” e tosados, ritual que se repete todos os dias e semanas enquanto internados no campo. Recebem, então, trapos velhos em forma de túnicas listradas de azul e branco para vestir, e ficam alinhados e em pé por horas, enlouquecidos pela sede e fome acumuladas desde a viagem de partida da Itália. Nesse lugar não há nomes, passado ou perspectiva de futuro. Como parte do processo de aniquilação do homem, os prisioneiros perdem seus nomes e são tratados por números. Números tatuados em seus braços esquerdos, que serão, a partir de então, marcas eternas. Esses números possuem significação, que será percebida somente mais tarde. Números mais altos classificam os novatos, recém chegados, enquanto que os números mais baixos classificam os prisioneiros que chegaram anteriormente ao inferno Auschwitz. A rotina de trabalho é extremamente extenuante. O trabalho é pesado e quase insuportável mediante as míseras gamelas de sopa rala recebidas todos os dias, antes e depois do trabalho. A alimentação é pobre em nutrientes e os prisioneiros, logo após poucos dias de confinamento, sofrem de fome crônica e emagrecimento. Alguns chegam à exaustão e morrem por uma condição chamada esgotamento orgânico. Não há somente prisioneiros judeus no campo. Estão presos, porém, em diferentes condições, os chamados presos políticos e os criminosos. Na hierarquia do campo, os criminosos (identificados por um triângulo verde costurado no casaco) mandam nos presos políticos (os triângulos vermelhos) e nos judeus (identificados pela Estrela de David, em vermelho e amarelo). 3

Op. cit. , p. 17.

Estas pessoas viveram em uma época em que o indivíduo dotado de características particulares e também universais (que o fazem membro de algum grupo social) foi aniquilado. Estava em processo uma concepção de mundo, liderada pelos alemães, em que as pessoas podiam ser classificadas através de sua “raça”; uma sociedade na qual era possível afirmar a inferioridade dos indivíduos baseada em critérios biológicos. Durante meses, e para alguns, anos, a vida continuou seu curso nessa condição de prisioneiro confinado em um campo de extermínio: a sobrevivência era garantida através da persistência no trabalho pesado, na sorte em não adquirir nenhuma doença grave, ou através da conquista de uma posição de superioridade em relação aos outros prisioneiros comuns. Essa diferenciação podia ocorrer através do trabalho (os médicos eram prisioneiros diferenciados, com privilégios), na conveniência de conhecer um dos superiores na hierarquia do campo – e que este estivesse disposto a favorecer algum prisioneiro através do suborno – e também da posição de Kapo, que era um judeu escolhido entre muitos – basicamente através de um comportamento cruel peculiar – e que estivesse disposto a delatar as atividades consideradas ilegais (contrabando, por exemplo) e a espancar seus semelhantes que por alguma razão mereciam punição. Não era mais possível delimitar com clareza a conduta das pessoas através da classificação bom/mau, certo/errado. As atitudes certamente condenadas no mundo exterior – tal como roubar, chantagear, entre outras – podem se transformar em salvação dentro do campo. O indivíduo deveria desenvolver novas aptidões para viver entre os outros. O banho era uma tortura particular. Deveria ser tomado toda semana, equilibrando-se todos os pertences entre os joelhos. Enquanto ensaboava o tórax, o prisioneiro deveria cuidar de manter entre as pernas sua gamela, sua colher, seu casaco e o par de sapatos. Alguns prisioneiros ainda se davam ao trabalho de seguir essa orientação. Levi narra a insistência de um de seus companheiros em manter esse hábito, como forma de conservar algum resquício da civilização para si, enquanto ele próprio havia desistido da tarefa, visto o gasto desnecessário de energia física. A descrição feita por Levi e por outras testemunhas nos faz refetir a respeito da existência de uma sociedade em que os indivíduos não eram iguais e sim classificados através de sua hereditariedade e da pureza do sangue,

segundo critérios pré-estabelecidos. Os relatos a respeito da vida diária nos levam a imaginar e tentar sentir o que essas pessoas viveram durante meses e anos, o quanto de humanidade se perdeu e se é possível recupera-la algum dia. O confinamento de seres humanos, sua tortura e posterior execução são acontecimentos relativamente recentes na história da sociedade ocidental civilizada. Estamos diante de um modelo de sociedade que existiu por alguns anos, por mais absurdo que possa parecer a persistência de um modelo político que fosse baseado, entre outras coisas, na afirmação de inferioridade de certos indivíduos em relação aos outros. Mais grave do que isso, do que a suposta legitimação biológica de tal argumento, foi a iniciativa, apoiada por milhões de pessoas, em segregar e exterminar os indivíduos diferentes, numa tentativa insana de “purificação da raça”, de emergência de uma nova geração de pessoas “puras”. A separação dos judeus da vida social foi ocorrendo aos poucos, inicialmente com atitudes individuais de preconceito, passando pelo isolamento em guetos, e finalmente ao extermínio em campos de concentração. Ler um testemunho de um sobrevivente dessa época permite apenas a reconstrução teórica do terror, do desespero e da vida diária em um lugar estranho, recebendo ordens e sofrendo agressões físicas e morais constantemente. As gerações de testemunhas diretas estão morrendo, sobram apenas os livros, as fotos, os museus. Acredito que estes poderão servir como uma lembrança abstrata de tempos sombrios. O verdadeiro sentimento de “viver” confinado em um lugar estranho, terrível, sem notícia dos parentes e amigos, sem uma fotografia, sem um objeto pessoal que trouxesse lembranças doces de tempos bons, sem identidade, sem nome, é um horror que, espera-se, nunca mais aconteça nas chamadas sociedades civilizadas, racionalizadas.

Bibliografia Levi, Primo. É isto um homem?. Rio de Janeiro: Rocco, 1988.

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