É justo um frete quebrar uma empresa?

June 14, 2017 | Autor: S. Ferreira de Souza | Categoria: Logistics, Shipping/ Transport Logistics, Multimodalismo
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Sávio Ferreira de Souza

Em minhas mãos a edição 110 do FIATA Review (Dez/15) que em sua página 14 relata um caso de venda de algodão embarcado em 35 contêineres acobertados por 5 B/Ls que terminou na Corte Britânica em ação promovida pela empresa de navegação MSC contra Cottonex Anstall em que a primeira reclamava cobrança de demurrage sobre seus contenedores pela retenção dos mesmos por um período de três anos e meio. O caso iniciou-se após uma recusa do importador em receber a carga no porto de Chittagong, Bangladesh, alegando que algo havia de errado na emissão dos Conhecimentos, visto pelo recebedor como potencialmente fraudulento.
Durante a disputa entre as empresas o embarcador tentou por várias formas persuadir as autoridades alfandegárias locais que transferissem a carga para um armazém, o que lhe foi negado, impossibilitando a devolução dos cofres de carga que estancaria a cobrança de sobre-estadias que já alcançara 10 vezes o valor da carga (atingindo USD 1 milhão) até a distribuição da ação na Corte Inglesa. O free time concedido pela MSC foi de 14 dias e a empresa entendia que o relógio continuaria contando, eternamente, até a devolução dos mesmos. A Cia de navegação escolheu entrar com a ação contra o embarcador eis que, segundo cláusula 14.8 do B/L, poderia optar entre os mercadores (embarcador/consignatário) para efetuar a cobrança.
O embarcador apresentou várias razões em sua defesa buscando tornar nula a ação, mantendo como ponto central de sua argumentação o fato de que, durante o período de retenção da carga, em algum momento, a demurrage deveria ter sido estancada, alegando também que a MSC poderia haver mitigado sua perda buscando meios de recuperar seus equipamentos por sua conta ou mesmo colocar outros contêineres na linha de navegação de forma a diminuir suas perdas.
A Corte britânica entendeu que a mesma cláusula (14.8) do Conhecimento de Carga que permitia a cobrança da demurrage tinha como raiz a liquidação de danos, declarando por isso que MSC, em termos práticos, não estava legalmente obrigada a efetuar ações que mitigassem estas perdas, o que não é de se estranhar da leitura de uma cláusula contratual de adesão, ou seja, aquelas onde não se aceita negociação bilateral de seus termos, o que pode ser fonte de uma distorção da justiça em si mesma, possuindo o condão até de liquidar com uma empresa pela dívida infindável em que, involuntariamente, se envolveu em boa-fé, fato este que necessita ser mais bem explorado.
O objeto da BOA FÉ é sempre a PESSOA, um indivíduo, jamais uma classe, uma espécie ou coletividade. Não se pode exigir BOA FÉ para com a humanidade ou para com a coletividade do Sistema que se opera, simplesmente por que nem a humanidade, nem a coletividade, existem. Desafia-se a alguém que tenha ouvido de um pregador ou de um professor dizer que a Bíblia ou a educação ensinam a amar a humanidade. Se isto aconteceu o educando foi enganado, uma vez que este fato não aparece nos livros santos nem uma vez sequer e a educação, sabemos todos, obedece a politicas de grupos, jamais da humanidade como um todo, presente apenas nos discursos. Sobre o tema, discorre Kreef (pag. 163):

Como a humanidade é cômoda! Nunca bate à nossa porta nos momentos mais inconvenientes. Ela não é briguenta, alcoólatra ou fanática. A humanidade nunca defende as opiniões erradas em política, religião ou ideologia de gênero. Ela nunca é nojenta, vulgar, bajuladora, fedorenta ou grosseira. A humanidade é tão ideal que se pode morrer por ela facilmente. Mas, morrer pelo próximo, morrer pelo João da esquina, isso é impensável. A não ser que haja amor.

A cláusula de liquidação de danos referida pela corte britânica, ao ditar que a MSC não estava obrigada a buscar mitigar seus danos, é um destes casos em que se busca punir o humano em nome da coletividade dos negócios. No entanto, em um simples relance o leitor já percebe que o ato é injusto. Claro! Uma norma que parece aceitável para toda uma coletividade, quando aplicada ao caso real, em algum momento poderá tender a se afastar da justiça, principalmente quando se percebe que uma das partes lucrava com o infortúnio alheio causado por ações de terceiros, não sendo um ato que se coadune com a Moral e a Boa-fé.
De fato, nota-se que há uma pessoalidade nas relações integras que incomoda a muitos, pois enquanto a Humanidade não tem corpo, nome ou destino, o homem tem, e neste sentido o termo JUSTIÇA encarna a mesma acepção de amplitude que o termo HUMANIDADE. Não pode haver justiça sem que se envolva uma pessoa, pois dar a cada um o que é seu (um dos conceitos mais difundidos de Justiça) não se faz em relação à humanidade, mas a cada um em particular, e isso exige atos mais exatos que a matemática em sua aplicação.
Exatamente por estes conceitos a Corte Inglesa foi simpática ao argumento da defesa onde se alegava que, após meses de disputa sobre a carga após sua chegada sem que as autoridades buscassem solucionar o caso já caracterizava causa suficiente para que se vislumbrasse uma fissura no contrato firmado, expresso no B/L, tendo em vista a impossibilidade do embarcador, mesmo querendo, em devolver os equipamentos à MSC.
Tal fissura, entendeu a Corte, atacava de forma contundente o coração do contrato de tal forma que a partir deste ponto não havia mais legitimidade da MSC em cobrar tais valores passados ou continuar a cobrar as demurrages futuras indefinidamente.
A Corte, desde então, entendeu que dentro de alguns meses de disputa, no momento em que ficou claro para as partes que o embarcador não poderia devolver os contêineres à MSC, seria o momento em que a ultima deixaria de poder cobrar pelas sobre-estadias. Esta decisão, que se tornou um marco na indústria da Navegação e suas demurrages, não é mais do que a aplicação do conceito da Boa-fé ao contrato, não em termos gerais, mas pela análise do caso concreto, local onde, de fato, se estabelece a justiça.
Entende-se este caso como um marco para o mundo do Multimodalismo que está sujeito a varias legislações e a julgamentos nem sempre lastreado na boa-fé dos contratantes, mas que, como já se viu no Brasil, pode quebrar empresas que se aventurem a comercializar com o exterior sem possuir acesso à profissionais que possam, de alguma forma, ajudá-los na defesa quando algo der errado, o que não é o caso da Inglaterra, um dos berços da navegação.
Como estudioso da área, o caso me pareceu alentador e encheu-me de confiança de que a Moral residente em cada um de nós, apesar dos esforços relativistas em negá-la, é suficiente para fazer aflorar a indignação na pessoa sempre que ela se deparar com uma injustiça, como aconteceu, nitidamente, com os juízes desta Corte.
Sempre haverá almas dispostas a dar sua contribuição ao mundo, muitas vezes enfrentando todo tipo de adversidades, perigos ou ameaças de forma que ele fique menos injusto e mais acolhedor! Quem se lembrou do Juiz Sérgio Moro, fez bem, pois ele dá mostras de entender o que é, de fato, fazer justiça, pelo que merece esta humilde citação.



É JUSTO UM FRETE QUEBRAR UMA EMPRESA?





B/L= Bill of Lading ou Conhecimento de Embarque em Navios.
Demurrage ou sobre-estadias: multa cobrada por Armadores pela retenção de seus navios ou contêineres além do prazo ajustado.
Tempo livre após a chegada da carga ao destino para devolução dos contêineres ao Armador.
KREEFT, PETER. Três filosofias de vida. Trad.: Magno de Siqueira. São Paulo: Quadrante, 2015
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