É nas lutas sociais que aprendemos? Mas aprendemos o quê? Algumas ideias e algumas histórias negras para a educação.

June 14, 2017 | Autor: L. Fernandes de O... | Categoria: Movimentos sociais, Movimento Negro
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Revista de Educação Técnica e Tecnológica em Ciências Agrícolas Programa de Pós-Graduação em Educação Agrícola da UFRRJ

Editoras

Andrea Berenblum Simone Batista da Silva

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Revista de Educação Técnica e Tecnológica em Ciências Agrícolas Programa de Pós-Graduação em Educação Agrícola da UFRRJ

EQUIPE EDITORIAL

Reitora Ana Maria Dantas Soares Vice-Reitor Eduardo Mendes Callado Pró-Reitor de Pesquisa e Pós-Graduação Roberto Carlos Costa Lelis Diretor do Instituto de Agronomia Alexis Rosa Nummer Vice-Diretor do Instituto de Agronomia Alexandre Raveli Neto Coordenadora do PPGEA Rosa Cristina Monteiro Vice Coordenador do PPGEA João Batista Rodrigues de Abreu

EQUIPE DE PRODUÇÃO: Editoração e Organização Literária Andrea Berenblum Simone Batista Capa e Projeto Gráfico Cinthia Marujo Ester Souza Revisão de Textos Cinthia Marujo Ester Souza Organização do Dossiê Ramofly Bicalho

André Scarambone Zaú Andrea Berenblum Cinthia Marujo Ester Silva Gabriel de Araujo Santos João Batista Rodrigues de Abreu Jorge Luiz de Goes Pereira José Roberto Linhares de Mattos Lia Maria Teixeira de Oliveira Liliane Barreira Sanchez Maria Cristina Affonso Lorenzon Miriam de Oliveira Santos Ramofly Bicalho dos Santos Ricardo Luiz Louro Bandeira Rosa Cristina Monteiro Sandra Regina Gregório Simone Batista da Silva Wanderley da Silva

CONSELHO EDITORIAL Bruno Matos Vieira (UFRRJ); Cecilia Maria Aldigueri Goulart (UFF); Estela Scheivar (FFP/ UERJ); Fernando Gouvêa (UFRRJ); Gustavo Fischman (Arizona State University); Lucília Augusta Lino (UERJ); Luiz Henrique Magnani Xavier de Lima (UFVJM); Luiz Otávio Costa Marques (UFVJM); Marlene de Almeida Augusto de Souza (UFS); Nara Hiroko Takaki (UFMS); Vanderlei Zacchi (UFS).

Fotografia da Capa Carolina Pitzer

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Direitos para esta edição: Programa de Pós-Graduação em Educação Agrícola da UFRRJ RETTA – Revista de Educação Técnica e Tecnológica em Ciências Agrícolas BR 465, Km 07 – Instituto de Agronomia CEP 23.890-000 – Seropédica – RJ (Brasil) Tel.: (21) 3787-3741 E-mail: [email protected] URL: http://www.ufrrj.br/SEER/index.php?journal=retta&page=login

ISSN2177-8086 (versão impressa)

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Volume VIII

Número 11

Janeiro-Junho

2015

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SUMÁRIO

Ramofly Bicalho

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Editorial

Giovanni Semeraro

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Lia Maria Teixeira de Oliveira

39

A educação para a democracia pelos movimentos populares

Marizete Andrade da Silva Ramofly Bicalho

63

Katja Augusto

91

Luana Carvalho Aguiar Leite

115

Aline Abbonizio

131

Roberta Lobo

152

Dossiê: Movimentos Sociais e Educação

Marília Campos

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79

Educação do campo e as lutas dos movimentos sociais pelos direitos às políticas públicas Limites e possibilidades na implementação de políticas públicas de educação do campo

Lutas dos Movimentos Sociais do Campo e suas contradições na construção da Educação do Campo A Luta dos Movimentos Sociais pela construção de uma Educação do Campo

Considerações acerca das bases teóricas de construção da educação do campo a partir da luta histórica pelos movimentos sociais Educação escolar indígena condições de vida

e melhorias de

Educação e a revolta popular no Brasil contemporâneo

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Artigos Luiz Fernandes de Oliveira

171

Renato dos Santos Gomes Lucília Augusta Lino de Paula

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Cinara dos Santos Costa Ramofly Bicalho

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PROEJA indígena: um direito, uma conquista

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Diretrizes para autores

Iranilde de Oliveira Silva Sandra Sanches Ramofly Bicalho

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É nas lutas sociais que aprendemos? Mas aprendemos o quê? Algumas ideias e algumas histórias negras para a educação O Estatuto da Criança e do Adolescente: algumas considerações sobre o direito à educação Contrariando as expectativas – a experiência do PRONERA no Estado do Pará

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SUMMARY

Ramofly Bicalho

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Editorial

Giovanni Semeraro

21

Lia Maria Teixeira de Oliveira

39

The education for democracy by popular movements

Marizete Andrade da Silva Ramofly Bicalho

63

Marília Campos

79

Katja Augusto

91

Luana Carvalho Aguiar Leite

115

Aline Abbonizio

131

Roberta Lobo

152

Dossier: Social Movements and Education

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Field of Education and the struggles of social movements for the rights to public policy

Possibilities and limitations in the implementation of public politics of countryside education Peasant social movements struggle and their contradictions in the construction of peasant education

The fight of social movements for the construction of a Field of Education

Considerations about the basis of theory Field of Education construction from historic struggle by social movements Indigenous school education and improvement in living conditions Education and the Popular Uprising Contemporary Brazil

in

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Articles Josué Cardoso Rêgo

171

Renato dos Santos Gomes Lucília Augusta Lino de Paula

199

Iranilde de Oliveira Silva Sandra Sanches Ramofly Bicalho Cinara dos Santos Costa Ramofly Bicalho

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Do we learn with the social struggles? But what do we learn? Ideas and black educational stories

The Statute of Children and Adolescents: some considerations on the right to education

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Contrary to expectations PRONERA ahead

a course via

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Indigenous PROEJA: A right, a victory

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Guidelines for authors

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EDITORIAL Ramofly Bicalho1 Fico feliz com o lançamento, pela Revista Retta, do Dossiê Movimentos Sociais e Educação - fruto de conquistas, transformação pessoal e resistências. O leitor poderá sentir nestas páginas o cheiro da luta, da dedicação e do compromisso político de educadores e lideranças dos movimentos sociais. No processo de organização deste dossiê, fomos educados a lidar com os conflitos de ideias e a diversidade. Os autores não apresentaram apenas registros acadêmicos e análises distanciadas da realidade, mas envolvimento crítico e pessoal com a temática da Educação do Campo na sua estreita relação com os Movimentos Sociais na atual conjuntura. Acreditamos que este número da Revista Retta pode contribuir para o enfrentamento de realidades que ultrapassem os limites locais, revelando utopias concretas de educadores e educandos. Não há espaços para romantismos e retóricas vazias deslocadas da realidade de vida das pessoas. Os autores não estão preocupados apenas em mostrar números e estatísticas, mas destacar possibilidades de inovação nas propostas alternativas de Educação. Propostas que, além de ler o mundo, têm como objetivos valorizar saberes, conhecimentos, histórias, memórias, identidades, sonhos, limites e possibilidades. Nesse sentido, reafirmamos a necessidade de estreitamento das relações entre educação do campo e movimentos sociais, dialogando com projetos político-pedagógicos emancipadores. Compreendemos que a docência e a militância não podem ser encaradas como meramente técnica, conservadora e desarticulada da realidade de vida dos educadores, educandos e sujeitos, individuais e coletivos, do campo.Ao contrário, deve ser a possibilidade de ler o mundo e (re)inventar novos modelos de sociedade em um projeto de país que contemple as diversidades. Doutor em Educação (UNICAMP). Docente da Licenciatura em Educação do Campo e do PPGEA – Programa de Pós-Graduação em Educação Agrícola, ambos da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. Endereço eletrônico: [email protected]

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Assim, ao começar a apresentação do dossiê Movimentos Sociais e Educação, destaco as ricas possibilidades de valorização das práticas sociais e pedagógicas que educadores e educandos são capazes de criar e pronunciar acerca da realidade brasileira. Para ler estas páginas e comunicar outro mundo possível e, em gestação, é necessário deixar ressoar em nós os movimentos que não renunciam à construção de projetos inovadores e emancipadores para os formadores deste BRASIL. Cada artigo nesta Revista é um testemunho da vitalidade democrática, e relata as múltiplas interligações que devemos considerar na dinâmica dos projetos políticos, econômicos, sociais e ambientais que se alargam e se complexificam na articulação por uma vida melhor. Obviamente, a Educação do Campo, nessa conjuntura, ocupa um espaço estratégico e privilegiado, ao defender a agricultura familiar, orgânica e agroecológica, denunciando o fechamento de milhares de escolas do campo nos últimos anos e a utilização cada vez maior de agrotóxicos.

Os autores, numa estreita relação entre sonhos, responsabilidade e ética, não pouparam esforços na construção dos percursos, valorizando a ousadia e interligando questões locais e globais. Este dossiê pode romper com o bombardeio de notícias e informações selecionadas, distorcidas, acríticas e vendidas como mercadorias que “fazem cabeças” e opiniões públicas. Os autores foram extremamente rigorosos no exercício cotidiano de entranhar-se em problemas vivos, correndo riscos e projetando possibilidades. Lidar com tais experiências, abertas e incompletas, acerca da Educação do Campo pode contribuir para a formação crítica de educadores/as e movimentos sociais do campo.

Neste dossiê enfrentamos feridas expostas, anunciadas, camufladas, e que não se restringem às questões educacionais. Há outras privações tais como a concentração de terras nas mãos de uma minoria da população brasileira, a expropriação da palavra, o analfabetismo, o descrédito dos saberes feitos das experiências, das histórias de vida, identidades e memórias. Assim, os textos deste dossiê não anunciam certezas que as ciências pretendem produzir, mas a honestidade dos que pensam e vivenciam o cotidiano e a realidade de vida de educadores e movimentos sociais. 12

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Giovanni Semeraro, no artigo A educação para a democracia pelos movimentos populares, parte da grande contribuição que os movimentos populares têm dado para formar o Brasil e libertá-lo do colonialismo, da ditadura, e mostra como suas atividades se concentraram nessas duas últimas décadas, particularmente, para construir uma democracia fundada sobre a participação e a soberania popular. Em oposição à implantação de uma democracia formal e elitista, crescentes organizações sociais e populares vêm se dedicando a reivindicar não apenas a efetiva universalização dos direitos civis, mas, sobretudo, a socialização do poder político e econômico. Ao difundir, com suas mobilizações, uma consciência crítica sobre os problemas estruturais do país e as necessidades reais que afetam grandes massas da população, desmascaram as armadilhas dos grupos dominantes e apresentam uma proposta de democracia pela qual o povo se institui como sujeito soberano pelo exercício do seu próprio poder. Lia Maria Teixeira de Oliveira, no artigo Educação do campo e as lutas dos movimentos sociais pelos direitos às políticas públicas,objetiva situar algumas questões a respeito dos movimentos sociais ligados às classes trabalhadoras e os sujeitos do campo, que protagonizam as lutas por igualdades de condições de acesso e permanência na educação básica; discute sobre o movimento da educação do campo em contextos sócio-históricos de análise, no sentido de abordar sobre os processos de formação e socialização no campo como sendo práticas socioculturais de resistência em prol da dignidade e cidadania.

Marizete Andrade da Silva e Ramofly Bicalho dos Santos, no texto Limites e possibilidades na implementação de políticas públicas de educação do campo, têm como objetivo central apresentar reflexões acerca de três políticas públicas específicas da Educação do Campo: o Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (PRONERA), integrado ao Ministério do Desenvolvimento Agrário; o Programa de Apoio à Formação Superior em Licenciatura em Educação do Campo (PROCAMPO); e o Programa Nacional de Educação do Campo (PRONACAMPO), ambos vinculados ao Ministério da Educação. Esses são programas oriundos das mobilizações das organizações e movimentos sociais. Essas políticas públicas evidenciam que a luta pela reforma agrária transcende a luta pela terra. RETTA, Vol. VIII, nº 11, jan.-jun./2015

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Marília Campos,no artigo Lutas dos Movimentos Sociais do campo e suas contradições na construção da educação do campo, anuncia que os Movimentos Sociais do Campo, em suas lutas pela conquista da terra na década de 1990, produziram experiências educativas próprias, principalmente dentro dos acampamentos. Reivindicaram também o acesso à educação pública conquistando diversas escolas financiadas pelo Estado, além de políticas públicas que resultaram na criação do PRONERA (1998) e da Educação do Campo, lentamente institucionalizada através de Diretrizes Operacionais (Resolução CNE/CEB No1/2002) e de sua transformação em modalidade da Educação Básica (Resolução CNE CEB No4/2010). O artigo também problematiza o corte de recursos para a educação na atual gestão Dilma (2014-2018),o lançamento da proposta da “Pátria Educadora”, bem como o “descompromisso” dos gestores da educação pública nos diversos níveis da Federação, e nos adverte que a “Educação do Campo” pode estar se tornando apenas um novo nome para o antigo “Ensino Rural” dentro da confluência perversa entre as políticas públicas neoliberais e as perspectivas de luta política dos Movimentos Sociais do Campo. Katja Augusto, no artigo A luta dos movimentos sociais pela construção de uma educação do campo, aborda a questão da educação nas áreas rurais. Começa por assinalar o tratamento que o Estado brasileiro conferiu às populações rurais no âmbito da educação, para depois apresentar o modelo educacional defendido pelos movimentos sociais do campo. O retrato das escolas situadas no meio rural revela-nos que as carências são enormes, proporcionais ao descaso do poder público para com a educação nessas áreas. Os índices de analfabetismo e de baixa escolaridade são também dramáticos. Luana Carvalho Aguiar Leite, no texto Considerações acerca das bases teóricas de construção da educação do campo a partir da luta histórica dos movimentos sociais, aprofunda o debate sobre a concepção de educação integral / politécnica, presente nos referenciais teóricos marxistas, base para construção da proposta de educação do campo, oriunda dos movimentos sociais. Associa ainda os elementos da agroecologia, como uma nova matriz, produtiva e social, para o campo em contraponto ao agronegócio e sua contribuição na perspectiva da educação do campo integral. 14

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Aline Abbonizio, no texto Educação Escolar Indígena e melhorias de condições de vida, mostra, baseada numa pesquisa de doutorado sobre inovação educacional na região do alto rio Negro - Amazonas, como a educação escolar indígena no Brasil pode ser considerada como um conjunto de experiências de educação escolar que atua diretamente para a melhoria das condições de vida comunitária. O argumento desenvolvido parte da elucidação de três aspectos presentes em diversas experiências de escolas indígenas: 1) a produção de conhecimento necessário aos estudantes e outras pessoas implicadas; 2) a prática daquilo que se pretende preparar nos estudantes e outras pessoas implicadas; 3) a intervenção direta para a melhoria das condições de vida dos estudantes e outras pessoas implicadas.

Roberta Lobo, no artigo Educação e a Revolta Popular no Brasil Contemporâneo, apresenta reflexões profundas sobre o sentido da educação, da formação humana e da revolta popular no Brasil Contemporâneo. Dos anos de 1990 até a atualidade verificou-se um desmanche do que, autoritariamente, foi realizado pela ditadura militar das décadas anteriores. A falência do nacional-desenvolvimentismo e a fetichização do neodesenvolvimentismo dos governos Lula-Dilma fazem parte de um complexo processo de crise do capital e de dissolução das formas sociais e estatais, até então conhecidas. Trabalha com o termo escafandrista, aquele educador inquieto que rejeita o senso comum e aposta na intuição das novas gerações em negar a espoliação e a humilhação como herança inquestionável. Luiz Fernandes de Oliveira, no texto É nas lutas sociais que aprendemos? Mas aprendemos o quê? Algumas ideias e algumas histórias negras para a educação, defende que a produção do conhecimento pelos movimentos sociais é uma reflexão que, no contexto acadêmico e escolar, vem recebendo aos poucos maior importância para se pensar os processos pedagógicos e, de forma mais ampla, a construção de uma educação de qualidade para as novas gerações. Nesse texto, reflete sobre a necessidade de pensar como os movimentos sociais produzem “pedagogias outras” e como demarcam, com suas lutas e presenças, um papel construtivo para considerar outras formas de ensinar e aprender além das pedagogias tradicionais escolares. RETTA, Vol. VIII, nº 11, jan.-jun./2015

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Renato dos Santos Gomes e Lucília Augusta Lino de Paula, no artigo O Estatuto da Criança e do Adolescente: algumas considerações sobre o direito à educação, compreendem que o Estatuto da Criança e do Adolescente ECA não é apenas um ordenamento jurídico, mas também um ordenamento jurídico-pedagógico, um instrumento do direito e da educação. Os autores demonstram as conquistas desse instrumento num país com desigualdades sociais profundas que apenas recentemente começam a ser alvo de políticas públicas que apontam para o enorme desafio a ser enfrentado. A funcionalidade do ECA nas escolas do campo também foi abordada, considerando a diversidade dos movimentos sociais do campo e da cidade e suas relações com a educação do campo, no que se refere à garantia do direito à educação das crianças e adolescentes das comunidade rurais de Nova Iguaçu. Iranilde de Oliveira Silva, Sandra Sanches e Ramofly Bicalho, no texto Contrariando as expectativas – a experiência do PRONERA no Estado do Pará, têm por objetivo apresentar parte da pesquisa realizada na Dissertação de Mestrado “Juventude e Agroecologia: Caminhos que se encontraram na Escola Agrotécnica Federal de Castanhal – Pará”, destacando a importância que o curso,voltado à formação técnica, com ênfase em agroecologia, via PRONERA, pode proporcionar para os sujeitos do campo no Estado do Pará. Importante ressaltar que esse curso surge como demanda das organizações sociais do campo, na perspectiva de que os jovens tenham acesso e avancem no seu processo educacional, além de enfrentar as dificuldades relacionadas à assistência técnica.

Cinara dos Santos Costa e Ramofly Bicalho, no texto PROEJA indígena: um direito, uma conquista, apresentam parte de uma pesquisa em andamento que aborda questões sobre a contextualização histórica da Educação de Jovens e Adultos (EJA) no país e o Programa de Integração da Educação Profissional Técnica de Nível Médio ao Ensino Médio na Modalidade de Educação de Jovens e Adultos (Proeja). Trabalham ainda com a Educação Escolar Indígena, vista como direito e conquista. As reivindicações dos indígenas por uma educação diferenciada que contemple a diversidade cultural vêm de longo tempo, dos movimentos indígenas postos na Constituição federal de 1988 e demais legislações que trazem uma nova concepção da escola indígena, caracterizada como comunitária, intercultural, bilíngüe /multilíngue, específica e diferenciada. 16

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Neste Dossiê, os autores preencheram nossos olhos e nos conduziram a uma bela viagem para compreender como a prática educativa pode viabilizar uma educação do campo articulada aos movimentos sociais, crítica e organicamente vinculada às lutas por uma sociedade mais livre e menos desigual. O convite que me foi feito pela Revista Retta para organizar o Dossiê Movimentos Sociais e Educação me emocionou profundamente, em especial, pelo prazer da leitura dos diversos artigos e oportunidade de confessar aos futuros leitores que uma relação acadêmica entre educadores e movimentos sociais pode estreitar relações de carinho, respeito e amizade sincera. Tenho apostado ao longo da minha vida, dos meus familiares e amigos, na possibilidade concreta de fazer com que nossas palavras e ações voem longe, abrindo portas de uma vida mais saudável para toda a humanidade. Tenho certeza de que esta obra será uma herança muito bonita para todos os sujeitos, individuais e coletivos, que compõem esse Dossiê. Junho de 2015.

Ramofly Bicalho Professor da UFRRJ – Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro

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DOSSIÊ:

Movimentos Sociais e Educação

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A EDUCAÇÃO PARA A DEMOCRACIA PELOS MOVIMENTOS POPULARES

Giovanni Semeraro1

Resumo Partindo da grande contribuição que os movimentos populares têm dado para formar o Brasil e libertá-lo do colonialismo e da ditadura, este artigo mostra como nestas últimas duas décadas suas atividades se concentraram, particularmente, para construir uma democracia fundada sobre a participação e a soberania popular. Em oposição à implantação de uma democracia formal e elitista, crescentes organizações sociais e populares vêm se dedicando a reivindicar não apenas a efetiva universalização dos direitos civis, mas, sobretudo, a socialização do poder político e econômico. Ao difundir com suas mobilizações uma consciência crítica sobre os problemas estruturais do País e as necessidades reais que afetam grandes massas da população, desmascaram as armadilhas dos grupos dominantes e apresentam uma proposta de democracia pela qual o povo se institui como sujeito soberano pelo exercício do seu próprio poder.

Palavras-chave: movimentos populares, democracia e educação política.

THE EDUCATION FOR DEMOCRACY BY POPULAR MOVEMENTS Abstract Starting from the great contribution that popular movements have given to form Brazil and free him of colonialism and dictatorship, this article shows how during these last two decades its activities have focused, in particular, to build a democracy based on participation and sovereignty popular. In opposition to the implementation of a formal and elitist democracy, many social and popular organizations have dedicated themselves to claim not only the effective universalization of civil rights, but above all the socialization of political and economic power. With their activities spread a critical awareness of the structural problems of the country and the real needs that affect large masses of the population, unmask the pitfalls of dominant groups and present a proposal for a democracy in which the people is established as a sovereign subject for exercising their own power. Keywords: popular movements, democracy and policy education. Prof. de Filosofia da Educação da Universidade Federal Fluminense (UFF), autor de diversos livros e artigos, pesquisador do Cnpq e coordenador do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Filosofia Política e Educação (NUFIPE). Endereço eletrônico: [email protected]

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Os movimentos populares: escolas de educação política e democracia No Brasil, um contingente considerável das camadas marginalizadas da população tem encontrado nos movimentos populares e nas organizações sociais o meio para expressar não apenas a reivindicação de seus direitos e suas aspirações políticas, mas, um significativo lugar para se educar como cidadãos ativos e criativos. Na omissão do poder público que oferece, quando o faz, uma escola precária, abstrata e domesticadora, orientada exclusivamente a adestrar mão de obra para trabalhos desqualificados e mal remunerados, muitos movimentos populares têm se dedicado a despertar uma consciência crítica dos problemas sociais, econômicos e políticos e a organizar ações voltadas a transformar a realidade. Ao mobilizar energias racionais e políticas, laços afetivos e culturais, suas atividades ensaiam uma educação integral, muitas vezes, mais fecunda que tantos programas estéreis ministrados por uma escolarização burocratizada.

Contrariamente ao lugar comum que os retrata como fugazes e inconsistentes, de importância irrisória frente aos poderosos centros de poder que contam na sociedade, a extensa e rica trajetória dos movimentos populares demonstra uma extraordinária história de persistência e criatividade na formação do país. Mesmo nos períodos mais nefastos de colonialismo, autoritarismo e repressão, as experiências político-pedagógicas e a concepção de mundo que foram se gestando no seu interior têm aberto caminhos para solucionar problemas cruciais e regenerar a sociedade. Uma vez que em cada período histórico os movimentos populares assumem diferentes objetivos e configurações, aqui, focalizaremos alguns dos aspectos mais característicos que foram emergindo no contexto das ultimas décadas. Ao longo desses anos, a educação política promovida pelos movimentos populares brasileiros foi marcada essencialmente pelo envolvimento no processo de democratização. Senos anos 1960 e 1970 a tônica predominante havia sido a “libertação”, a partir dos anos 1980 suas atividades se pautam fortemente pela construção de uma democracia de caráter popular. A busca da libertação, particularmente retratada 22

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na “pedagogia da libertação” (assim como na filosofia e na teologia da libertação), expressava os anseios para se libertar da ditadura e da longa história de (neo)colonialismo externo e interno. Nesta tarefa, muitos educadores se associaram às lutas populares conferindo à educação o caráter de “ato político” (FREIRE, 1982, p. 23) e dando lugar a um florescimento espantoso de práticas político-pedagógicas e de criações teóricas que tiveram na episteme da “libertação” a temática aglutinadora. Impulsionados por esse propósito, crescentes pressões dos movimentos populares, juntamente com outras forças sociopolíticas e a crise mundial que abalava a economia do Brasil no final dos anos 70, concorreram para derrubar o regime militar e abrir um novo ciclo histórico no país (SEMERARO, 2009, pp. 102-107).

No início da década de 1980, a abertura democrática levou os movimentos populares a saírem de posições defensivas e periféricas, do âmbito de associações-comunidades preocupadas em se proteger da opressão para criar inovadoras organizações na sociedade civil e na sociedade política. Este visível deslocamento do paradigma da “libertação” para a construção da “democracia” pode ser comparado ao fenômeno que Gramsci chama de “momento ‘catártico’”, ou seja, a transformação de indivíduos dominados pela estrutura externa em sujeitos ativos e organizados politicamente, capazes de elaborar um projeto próprio de sociedade, “ponto de partida para toda a filosofia da práxis” (GRAMSCI, 1975,Q 10, § 6, 1244). Ao longo desse processo, os movimentos populares travam um grande embate com a “transação conservadora” que ocorria na “transição” da ditadura para a democracia (FERNANDES, 1986, p. 87), um “simulacro de democracia”, na verdade, uma vez que eram introduzidas novas formas de exploração e de desigualdades (OLIVEIRA, 1999, p.150).O rearranjo das classes dominantes no período pós-ditadura, de fato, desencadeou no país intensos programas de caráter neoliberal, privatizações indiscriminadas e a configuração de um Estado mínimo que minavam as conquistas constitucionais formalmente inclusivas. Frente à “modernização conservadora” (COUTINHO, 1985, p.106) que manteve inalteradas as estruturas do autoritarismo e do “patrimonialismo” (CHAUÍ, 2008, p.187), os movimentos populares se posicionaram para RETTA, Vol. VIII, nº 11, jan.-jun./2015

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reivindicara implementação de amplas reformas sociais, instituições efetivamente democráticas, serviços públicos de qualidade e a universalização dos direitos (FERNANDES, 1989, p. 13ss).

Tais reivindicações continuam até hoje uma vez que, desde a promulgação da Constituição de 1988 (embora no Brasil vigorem um “Estado democrático de direito” e uma pluralidade de organizações sociopolíticas), insidiosas armadilhas postas pela concentração incontrolável do poder econômico, pela “governabilidade” enredada em um ardiloso sistema eleitoral e no esvaziamento da representação política impedem o avanço da democratização. Conjugados a um ambiente de “crise permanente” que o capitalismo promove, tais aspectos abrem o caminho a um disfarçado “Estado de exceção” (AGAMBEN, 2005, p.21), a mecanismos funcionais a um mercado absoluto (livre de qualquer compromisso) que gera precarização do trabalho, desintegração social e um reordenamento das desigualdades sob outras formas.

O acirramento dessas contradições, intensificadas nessas últimas décadas, tem gerado crescentes conflitos no Brasil e uma constelação de protestos que alcançaram grande impacto nas “manifestações de junho de 2013”, uma imponente insurgência de massa que levou às ruas de todo o país uma mistura aparentemente caótica de revolta, de reivindicações e de questionamento das diversas esferas de poder. Contrariamente aos que interpretam esses fenômenos como erupções isoladas e passageiras ou ocorrências cíclicas do sistema, neles há um conjunto de elementos que denunciam uma crise profunda do sistema e apontam para propostas mais substanciais de democracia. Se nas décadas anteriores diversas mobilizações se voltaram essencialmente a conquistar direitos civis e políticos, a garantir as liberdades e o reconhecimento das diferenças, nesses últimos 20 anos as reivindicações populares foram se concentrando principalmente sobre os direitos sociais e os “direitos da natureza”, sobre a apropriação dos bens comuns e a socialização do poder não só político, mas, também econômico. Hoje, de fato, o “modelo civilizatório” predominantealcança níveis absurdos deinsanidade quando se observa que500 corporações transnacionais - “modernos leviatãs” –dominam os setores estratégicos da atividade 24

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econômica e possuem o orçamento de 180 países (BORON, 1995, p.55)2. Neste contexto, diversos movimentos sociais e populares vêm enfrentando as investidas do projeto neoliberal que promove a mercantilização dos serviços públicos, desmantela leis trabalhistas, dissemina a precariedade social e a depredação da natureza, fomenta megacorporações e formas pré-modernas de poder que subjugam o Estado e esvaziam a democracia. É nesse período que, sintomaticamente, se multiplicamos protestos contra o sistema financeiro, o Fundo Monetário Internacional (FMI), o Banco Mundial (BM), o Forum Econômico Mundial, os summits dos G7, a Organização Mundial do Comércio (OMC) e os organismos multilaterais. E é, exatamente, nesses anos que aparecem novos atores sociopolíticos como o Movimento dos Sem Terra (MST)e a Via Campesina, os Zapatistas e as organizações dos índios na América Latina, o Fórum Social Mundial e o “Summit dos Povos”, o Grito dos Excluídos, o Movimento de Mulheres Camponesas (MMC), a Coordenação dos Movimentos Sociais (CMS), o Movimento Unificado dos Negros, entidades em defesa do meio ambiente, o Levante Popular da Juventude, numerosas mobilizações de estudantes, consultas e plebiscitos (Alca, Vale do Rio Doce, Tarifas energéticas, Petróleo, Ficha limpa, Propriedade da terra, Clima etc) que revelam uma crescente ação das forças populares pela democratização do poder. Mais recentemente, movimentos em defesa de amplos setores sociais empurrados para o “precariado” (BRAGA, 2012) e tornados “descartáveis” pelo processo de “desterritorialização”, da desordem urbana e da dissolução dos laços sociais, vêm intensificando suas pressões contra um sistema que “inclui excluindo” (AGAMBEN, 2005, p.15).

O embate com a concepção liberal e elitista de democracia

Nesse período, portanto, uma onda cada vez mais frequente e surpreendente de protestos e reivindicações passou a convulsionar não só as periferias, mas, também o centro. Além do campo, numerosos movimentos 2 Uma pesquisa recente com o título “A rede global do controle societário” realizada pelo Instituto Federal Suiço de Tecnologia de Zurig confirma e atualiza dramaticamente esses dados mostrando que uma rede de 147 empresas (bancas e multinacionais) controla 40% de todo o volume financeiro, mantendo assim o domínio sobre mercados e governos de muitos países (La Repubblica, 02/01/2012, caderno de Economia). RETTA, Vol. VIII, nº 11, jan.-jun./2015

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se levantaram também nas cidades (HARVEY, 2012), questionando “o mundo de catracas” e alvejando os circuitos mais sofisticados do “novo espírito do capitalismo” high-tech e pós-moderno. Por trás das explosões de rebeldia, as mobilizações irradiadas por esses novos atores revelam aspectos muito sintomáticos que se colocam em sintonia com as inúmeras manifestações disseminadas em todas as regiões do mundo, inclusive nos países centrais. Muitas dessas insurgências, organizadas em formas autogestionárias, se levantam principalmente contra a privatização do público, a concentração inaudita do poder econômico, científico e midiático que esvaziam a política e bloqueiam a expansão da democracia. Ao reivindicar a socialização dos bens comuns, a transparência das transações financeiras, serviços públicos dignos e o fim da violência do Estado contra as expressões de “soberania popular”, os atuais movimentos populares desmascaram um sistema que se proclama democrático, mas age despoticamente, que se diz “republicano”, mas se põe a serviço de interesses privados, que solicita a participação dos cidadãos, mas entrega as decisões aos tecnocratas. Questionam, particularmente, o pressuposto de que qualquer reivindicação deve ser mediada por instituições que não representam a sociedade e que toda a atividade política realizada fora dos “domesticados” canais oficiais é antidemocrática (CHOMSKY, 1999, p. 69). Além disso, a multiplicação e a intensidade dessas sublevações cada vez mais difícil de controlar - levam a pensar que a crise não é transitória, mas, muito profunda pelo fato de que atinge pontos estruturais e o próprio coração do sistema. O que se questiona, na realidade, não é apenas o aviltamento do trabalho e a privação de direitos, a concentração das riquezas e a dilapidação dos recursos naturais, mas, acima de tudo, o projeto destrutivo do modo de produção e reprodução do capitalismo, a globalização elitista e o esvaziamentoda democracia. Se a luta pela independência dos povos colonizados nos períodos anteriores provocou mutações na concepção de uma democracia restrita, hoje, os levantes dos movimentos sociais sinalizam a necessidade da sua universalização, o que implica uma “transição da estrutura da economia mundial capitalista que está se esgotando para um novo tipo de sistema” (TARIQ, 2011, pp. 14-15).Tal percepção faz com que, ao lado das teorias que continuam a defender a capacidade do capitalismo em saber 26

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combinar “liberalismo e democracia”(BOBBIO,1994), direitos universais e imperialismo,venha a crescer o pensamento de numerosos autores e grupos sociais que desvelam a insustentabilidade dessas contradições e a incompatibilidade do sistema vigente com a democracia (ZIZEK, 2009, p.107ss; WOOD, 2003, pp. 189-190; LOSURDO, 1993).

Incompatibilidade, na verdade,já apontada por Marx quando trata da questão da democracia em diversas ocasiões (TEXIER, 2005; ABENSOUR, 1998, pp. 72ss), principalmente, quando enaltece a experiência da Comuna de Paris e aponta para uma sociedade organizada na forma de “autogoverno dos produtores associados”. Mas, a chave mais importante para entender a configuração que a democracia assume na nossa sociedade deve ser encontrada na análise que Marx faz do funcionamento do sistema capitalista. De fato, em sintonia com o seu modo de produção, voltado a despossuir o trabalhador e concentrar o poder econômico nas mãos da burguesia, o capitalismo implementa um modelo político-administrativo semelhante que usurpa o poder popular e o concentra nas mãos de pequenos grupos endinheirados e de tecnocratas subservientes. Desta forma, tal como a riqueza no circuito do capital torna-se uma propriedade nas mãos de poucos (malgrado seja produzida por todos), também a democracia instaurada neste sistema torna-se um oligopólio por trás das aparências da universalidade. E, na verdade, se a mercadoria é elevada à condição de sujeito (enquanto o trabalhador é reduzido a objeto) e “a relação entre seres humanos assume a fantasmagórica forma da relação entre coisas” (MARX, 1968, p. 111), opera-se também uma ilusão e uma inversão fatal em relação à democracia liberal, uma vez que nesta o representante neutraliza o representado, o ator se sobrepõe ao autor (DUSO,1988, p. 22), a tela à plateia, o indivíduo à coletividade, gerando uma separação que produz alienação política nas formas imaginárias da inclusão participativa. Mas, ao mostraras profundas contradições deste sistema, aparentemente sólido e imutável, Marx aponta para a possibilidade da sua superação pela luta de classe que se trava no seu interior. É a partir dessa base que Gramsci se dedica a aprofundar a política como campo aberto de “relação de forças”em disputa pela hegemonia (Q 13,§17, p.1583) e interpreta a democracia como um processo que tem seu autêntico sentido RETTA, Vol. VIII, nº 11, jan.-jun./2015

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quando é capaz de levar as classes subalternas a passar da subjugação à subjetivação, da condição de “dirigidos” para a de “dirigentes” (Q 8, § 191, p.1056). Ao promover a autonomia e o protagonismo das classes subalternas, Gramsci resgata não apenas o sentido mais radical da democracia, mas, coloca em questão toda a concepção política fundada sobre a divisão comando-obediência, governante-governado, elite-povo, mestre-aluno (Q,12, §2, p.1547). Uma revolucionária visão que abre o caminho para entender que a democracia não pode ser entendida como um sistema político “menos pior” entre outros, mas, é a indeclinável expressão pela qual o povo se institui como sujeito soberano pelo exercício do seu próprio poder. Seguindo esse caminho, a práxis político-pedagógica que os movimentos populares produzem concorre não só para a formação da própria personalidade e a participação na sociedade, mas se torna uma experiência fundamental que fermenta a gestação de uma concepção de democracia em oposição ao pensamento liberal e ao sistema econômico instaurados no mundo pela burguesia. A burguesia moderna, de fato, ao resgatar a democracia grega, interpreta-a e a plasma de acordo com seus interesses. Por um lado, apresenta-a como uma arma para combater o Absolutismo e a Igreja, mas, por outro lado, trava seus mecanismos expansivos para impedir a emancipação efetiva das massas populares e a sua participação política e econômica. Na verdade, destituída dos horizontes da igualdade social e da universalização, a democracia grega nunca chegou a se constituir efetivamente como um “poder do povo”. Rousseau já observava que a Atenas de Péricles “não era uma democracia, mas uma aristocracia tirânica governada por sábios e oradores” (1964, p. 246). Ao longo da história, desde Platão e Aristóteles até numerosos autores modernos como, por exemplo, I. Kant (1995, p.57) e A. de Tocqueville (1995, pp. 257ss), a democracia é prevalentemente considerada uma forma de governo que abre o caminho ao “despotismo da maioria”. Por isso, insurgências como a Comuna de Paris – “momento de mais autêntica democracia que a história tenha conhecido” (FLORES, 2012, p. 7) – são imediatamente sufocadas no sangue e neutralizadas com duras restaurações. 28

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Em contraposição às perigosas convulsões de massa e às experiências traumáticas que desencadeiam um enfrentamento aberto entre as classes sociais (ARENDT, 1990, pp. 172ss), a imagem de democracia difundida pelos grupos dominantes é a de um moderno instrumento conciliatório diligentemente administrado para garantir a “liberdade”do indivíduo, gozada na esfera privada (CONSTANT,1980, p.511; FINLEY, 1988, p.82), cultuada como uma “religião” (CROCE, 1986, p, 116) em cujo reino a propriedade, a ordem e a divisão de classe permanecem intocadas. Seguem a mesma linha os autores que, a pretexto de salvaguardar a separação entre “ética da responsabilidade e ética da convicção”, a pureza da ciência distante das deformações “ideológicas” da política (WEBER, 2001, p.162), na prática, confirmam a divisão entre governantes e governados, entre tecnocracia e massa popular.

Em sintonia com essas teorias minimalistas, a democracia é inculcada essencialmente como “forma de tomada de decisões” (SARTORI, 1994, p.18),como governo de uma “elite preparada” que se alterna no poder por meio do “mercado das eleições” (SCHUMPETER, 1984, p.89), um ritual periódico para referendar e legitimar propostas decididas nos círculos fechados de “profissionais”. Esses “representantes”, sustentados por poderosos grupos econômicos, são encarregados de administrar a “coisa pública” em termos pragmáticos, estruturam a política nos moldes da gestão de uma empresa (governance), mantendo-se à distância dos “fanatismos e da ignorância da plebe”. Desta forma, a “soberania popular” acaba sendo exercida pelo “mercado que vota todos os dias” e as eleições se transformam em espetáculo, estruturadas essencialmente por um marketing sofisticado que vende um produto ou aposta em uma “corrida de cavalos”, como se expressa o insuspeito R.Dahl (2010, p. 44). Em tal sistema, seus atores se especializam na manipulação da opinião pública (ARENDT, 2006, p. 167), agem nos subterrâneos (BOBBIO, 1999, p.352), longe do debate público, da esfera propriamente democrática da polis, nos meandros inacessíveis da finança, dos lobbies, nas fortalezas inexpugnáveis dos conglomerados econômicos que subjugam as instituições públicas e esvaziam o sentido da política. Acrescente-se a isso, o imenso poder do monopólio da “videocrazia”, um espaço extraordinário de instilação diária da ideologia dominante no qual as palavras, os discursos, RETTA, Vol. VIII, nº 11, jan.-jun./2015

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as atividades humanas, e até as críticas, são capturadas e metabolizadas pela indústria do entretenimento e do consumo, pelas técnicas de uma comunicação globalizada que anula o sentido efetivo da democracia (CANFORA, 2004, p.338).

Quando se desativa a política e se reduzem os “cidadãos” a espectadores e consumidores empurrados para a esfera privada, a massa continuamente ameaçada pela precariedade e a insegurança (ZIZEK, 2007, p.35), perde qualquer sentido falar em democracia como “participação cívica” (PUTNAM, 1993, p.105) e respeito das “regras do jogo” (BOBBIO, 1994, p.86). Revela-se também ilusório crer que seja suficiente “um quadro institucional e normativo a partir do qual uma sociedade justa se torna possível” (AGAMBEN, 2005, p. 26);ou, que bastaria melhorar algumas coisas e esperar que se realizem as “promessas não compridas” (BOBBIO, 1989, p.10)da burguesia, na verdade, nunca previstas nos planos, pena a dissolução do sistema. Juntamente com a análise dessas teorias, hoje,é necessário considerar também as invisíveis guerras econômicas, tecnológicas e “cibernéticas”, o desmesurado crescimento da máquina bélica que alimenta a poderosa indústria do warfare (BURGIO, 2007, p. 14), as violações de todo tipo de direitos por “razões de terrorismo”, as intermináveis “intervenções militares”, os “planos de segurança” e as “missões humanitárias” em regiões estratégicas para difundir “liberdade e democracia” em conformidade às normas do império (LOSURDO, 2007), ou seja, um conjunto de ações denunciadas pelos movimentos populares cada vez mais antenados e que mostram a desmentida mais clamorosa da democracia no sistema vigente.

Desafios postos aos atuais movimentos populares na óptica de Gramsci

Diante desse quadro, nos movimentos populares se alastra a convicção de que a gravidade das crises contínuas, que afetam não só a economia e a política, mas também, todo o conjunto das relações sociais e o meio ambiente, não podem ser explicados apenas pela corrupção e o abuso de poder, pelo desperdício e a irresponsabilidade administrativa, por disfunções de uma máquina que precisa ser corrigida e melhorada, 30

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mas pelas contradições que se tornaram tão insustentáveis e destrutivas a ponto de colocar em questão o inteiro sistema. E na verdade, por trás das revoltas, da ira e da indignação de muitos movimentos populares atuais, mais que ações moralizadoras e reivindicações pontuais, “se olharmos objetivamente, o mundo está gritando a demanda de um sistema diferente” (TARIQ, 2011, pp.14-15),um outro projeto de sociedade. Convencidos de que a democracia não poderá se realizar enquanto não forem abatidas as muralhas mais estruturais do predominante modo de produção e reprodução, crescentes movimentos populares não alimentam a ilusão de “regulamentar” o capital nem se limitam a obter benefícios pontuais para “lenir” a pobreza e “amenizar” as desigualdades (LINERA, 2008, p. 29). Além disso, também desvelam as contradições de “uma esquerda que governa com a mão direita”, planos governamentais que, sob a égide do reformismo e da modernização, implantam modelos falidos de um “neodesenvolvimentismo” que acelera o crescimento do capital enquanto freia as reformas de fundo, que quer promover o “público” com o estímulo dos interesses “privados”, o bem-estar social com a degradação do trabalhador e a devastação da natureza, que apela às massas, mas neutraliza a participação política popular, que distribui “bolsas de assistência”, mas não democratiza o poder, não favorece a construção coletiva de um Estado popular e de uma sociedade efetivamente autônoma para superar o modelo concentrador e destruidor que encontra terreno particularmente fértil no Brasil e na América Latina.

Frente a esta imponente concentração de poder, portanto, os movimentos populares precisam aprofundar a consciência de que é preciso se articular e criar uma “vontade coletiva”para não cair em atos aleatórios e infrutíferos, superando a fragmentação das lutas e a equivocada ideia de uma democracia fundada sobre um pluralismo inoperante e relativista. O sincretismo de uma amorfa convivência democrática e o holismo harmonizador, de fato, não mudam a realidade, mas deixam tudo como está. Na verdade, como Gramsci alerta: As ideologias voltadas a conciliar interesses opostos e contraditórios são criação inorgânica e a sua ‘historicidade’ será breve [...] A filosofia da práxis, ao contrário, não tende a resolver pacificamente as contradições existentes na história e na sociedade, mas,

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Quando orientadas por uma “leitura do mundo que vem antes da leitura da palavra”, que conjuga vida e conhecimento, prática e teoria, experiência e política, as classes subalternas que se aglutinam em movimentos sociais vivenciam uma educação que leva a “conhecer o mundo enquanto se transforma” (Q 11, §12, p.1385) e se apresentam com uma “consciência operosa de necessidade histórica, como protagonistas de um real e efetivo drama histórico” (Q 13, §1, p.1559). Efetivamente, só conectando inseparavelmente “educação política” e “necessidade histórica” com grande paixão e realismo, se evita que, tanto a consciência sem operosidade se torne fátua, assim como a operosidade sem consciência se transforme em ativismo inconsequente. A história, de fato, ensina que toda iniciativa que não esteja vinculada às “reais necessidades históricas” da população é mero voluntarismo e transforma-se, mais cedo ou mais tarde, em violência e dominação.

Por isso, contrariamente aos seus detratores que os acusam de “utopismo” e idealismo, crescentes movimentos populares se dedicam ao estudo da realidade na qual estão já integrados e reivindicam a gestão democrática do próprio território e do funcionamento da sociedade. Frente à situação calamitosa em que se encontram a terra, as águas, as florestas, os recursos naturais, a biodiversidade, o espaço urbano, os serviços públicos, as instituições político-administrativas, os meios de comunicação social, o sistema econômico e a produção, as políticas energéticas e alimentares (LINERA, 2010), os movimentos populares apresentam “reivindicações que no seu conjunto desorgânico constituem uma revolução” (Q 13, § 23, p.1603).Neste sentido, contrariamente às ilusões e à lavagem cerebral, diariamente incutidas pela “indústria cultural” e a “sociedade do espetáculo”,os movimentos populares desempenham uma extraordinária função como “agentes práticos das transformações históricas” (Q 10, § 31, p.1273), se fazem portadores 32

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de inovações concretas, “historicamente verdadeiras”porque “socialmente universais” (Q 10, §44, p.1330). É na relação ativa, ensina Gramsci, como universo popular e com o próprio ambiente (“que age como mestre”) que nasce o “filósofo democrático”, capaz de elaborar “um novo modo de conceber o mundo e o homem, uma concepção que não é mais reservada aos grandes intelectuais, aos filósofos de profissão, mas [que] tende a se tornar popular, de massa, com caráter concretamente mundial, modificando (ainda que com o resultado de combinações híbridas) o pensamento popular” (Q 15, § 61, p.1826). Tudo isto não quer dizer que os movimentos sociais devam ser considerados como um sujeito unitário já formado e infalível que brota espontaneamente no espaço puro da política ou que opera como um demiur­go que se autodetermina sem necessidade de uma concepção coerente de mundo e de consistentes organizações políticas. Longe de idealizações e ingenuidades, é preciso analisar cuidadosamente a diversidade e a complexidade dos atuais movimentos sociais, as ambiguidades e as fragilidades, as armadilhas e os riscos que espreitam em suas atividades. Na “relação de forças” sociopolíticas que hoje se colocam em “assédio recíproco”, o confronto ideológico-político e a disputa hegemônica se tornaram lutas mais insidiosas e capilares, exigindo enormes recursos estratégicos de resistência e inteligência, “qualidades excepcionais de paciência e de espírito criativo”. Tão impactantes quanto afetas à fugacidade, as irrupções de alguns movimentos inspiram mudanças, mas podem se prestar também a abrir caminhos para forças reacionárias. Não há dúvida de que a criatividade das suas ações se sintoniza com uma sociedade marcada pela velocidade e a instantaneidade. Mas, se de um lado, questionam os centros de poder, as instituições paquidermes e a “mumificação” de organizações políticas tradicionais, por outro lado, podem estar sujeitos à crença mágica de que seja possível mudar a realidade a toques de teclado e de atos simbólicos. Mantendo posições críticas frente às formas de anarquismo pós-moderno, ao imediatismo e a conceitos vagos como o de “multidão” (NEGRI, 2003, p. 169), é preciso discernir o que não passa de onda efêmera e quais ações dos movimentos populares correspondem efetivamente à expansão da democracia, o que é um simples ajuste do sistema e quais os elementos de ruptura e de superação. RETTA, Vol. VIII, nº 11, jan.-jun./2015

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Partindo da visão de que a política e a economia, a filosofia e a cultura, os intelectuais e o povo, a educação e o projeto de sociedade formam um “bloco” inseparável, é necessário analisar como o grito das ruas e a espontaneidade das mobilizações populares podem se transformar em planejamento político de grande eficácia, como suas energias podem concorrer para transformar a ordem existente promovendo uma democracia de caráter popular que se subtrai à “lógica errática” e espetacular do capital (ZIZEK, 2011, p.204). Isto significa estudar, crítica e cuidadosamente, as relações que vêm ocorrendo entre sociedade civil e sociedade política, entre movimentos sociais e partidos, entre vontade popular e instituições jurídico-administrativas. Sem perder de vista que a força transformadora de um movimento não se mede apenas pelas críticas e as expressões de indignação, mas, pela capacidade de tornar-se dirigente de um novo projeto de sociedade, é preciso avaliar as potencialidadesque conduzem a “elevar-se à fase da hege­monia político-intelectual na sociedade civil e tornar-se dominantes na socie­dade política” (Q 4, §38, p.460). Pois, se for verdade que “A unidade histórica das classes dirigentes acontece no Estado” e se“as classes subalternas, por definição, não são unificadas e não podem se unificar enquanto não chegarem a se tornar «Estado»” (Q 25, §5,p.2288; SEMERARO, 2014, pp. 61-76), a construção e a direção de um Estado efetivamente democrático,torna-se hoje, o maior desafio e, ao mesmo tempo, a maior contribuição da educação política elaborada pelos movimentos populares.

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EDUCAÇÃO DO CAMPO E AS LUTAS DOS MOVIMENTOS SOCIAIS PELOS DIREITOS ÀS POLÍTICAS PÚBLICAS Lia Maria Teixeira de Oliveira3 Resumo Este ensaio objetiva situar algumas questões a respeito dos movimentos sociais ligados às classes trabalhadoras e os sujeitos do campo, que protagonizam as lutas por igualdades de condições de acesso e permanência na educação básica. Discute-se sobre o movimento da educação do campo em contextos sócio-históricos de análise, no sentido de abordar sobre os processos de formação e socialização no campo como sendo práticas socioculturais de resistência em prol da dignidade e cidadania. Nestas lutas há aquelas que visam a emancipação de sujeitos das amarras do passado do coronelismo, dos detentores de latifúndios, que desde então mantiveram os territórios rurais estruturados pela monocultura, cuja intervenção governamental garantiu a passagem do latifúndio para o modo de produção capitalista da grande empresa agrícola (o agronegócio) com políticas de créditos e desenvolvimento de tecnologias. Todavia no campo tem os territórios que secularmente lutam contra os parcos investimentos públicos para modernização dos meios de produção e universalização do acesso às instituições educacionais. A sobrevivência dos territórios, até então negligenciados pelas políticas agrícolas e fundiárias, se deu por força da militância dos atores coletivos, que não se intimidaram ao longo da história e conquistaram no século XXI, entre 1998 a 2014, políticas públicas para que os povos do campo se organizassem social e economicamente pelo modelo da agricultura familiar em bases sustentáveis. Sobretudo, no ensaio há referências sobre a organicidade pedagógica das experiências de formação em educação do campo, que denota as especificidades no tratamento dos projetos em meio a diversidade, as identidades sociais, as territorialidades, as memórias e organização políticocultural como traços constitutivos. Palavras-chave: democratização da educação; luta de classe, cidadania; educação popular do campo.

Professora Associada III, do Departamento de Educação do Campo, Movimentos Sociais e Diversidade – IE e do programa de pós-graduação em Educação Agrícola do Instituto de Agronomia – IA, ambos da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro – UFRRJ; Doutora em Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade. Email: [email protected]

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FIELD OF EDUCATION AND THE STRUGGLES OF SOCIAL MOVEMENTS FOR THE RIGHTS TO PUBLIC POLICY Abstract This essay aims to situate some questions about the social movements that star in the struggle for equal conditions of access and permanence to basic education, among the working classes in the countryside, their children and youth. It discusses about the movement of the field of education in socio-historical contexts analysis, in order to deal on training and socialization processes in the field as socio-cultural practices of resistance for the sake of dignity and citizenship. In these struggles, there are those aimed at the emancipation of subjects from the shackles of the past coronelismo, the estates holders, which has since maintained rural areas by way of production in monoculture bases, whose government intervention ensured the passage of large estates to the mode Capitalist production of major agricultural business (agribusiness); but the field has the territories, for centuries fighting the scarce public investments for modernization and universal access to educational institutions. The survival of the territories hitherto neglected by agricultural and land policies, occurred under the militancy of collective actors, which was undaunted throughout history and conquered reached the twentyfirst century, between 1998-2014, policies for people of the field. They organize themselves socially and economically by the model of family farming on a sustainable basis. Above all, there are references in the essay on the organic nature of pedagogical training experiences in rural education, which denotes the specific treatment of the projects in the midst of diversity, social identities, territoriality, memories and politico-cultural organization as constitutive features. Keywords: democratization of education; class struggle, citizenship; popular education field;

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Introdução Eu acredito é na rapaziada Que segue em frente e segura o rojão Eu ponho fé na fé da moçada Que não foge da fera e enfrenta o leão Eu vou à luta com essa juventude Que não corre da raia a troco de nada Eu vou no bloco dessa mocidade Que não está na saudade E constrói a manhã desejada Aquele que sabe que é negro o coro da gente E segura a batida da vida o ano inteiro Aquele que sabe o sufoco de um jogo tão duro E apesar dos pesares ainda se orgulha de ser brasileiro.... (Gonzaguinha, Acredito na Rapaziada)

A educação básica do campo e os movimentos sociais se relacionam a partir da luta política de sujeitos pelos direitos humanos, direitos universais que em muitos países foram conquistados entre os séculos XVII e XIX, mas nas áreas rurais do Brasil, dos seus sertões, ainda os poderes públicos estão em dívidas com as populações. Na atualidade, em que pese uma memória dos conflitos travados pelos povos do campo em prol das liberdades humana e de posse da terra, eles chegaram ao século XXI sem as garantias do regime político liberal. Estão ainda na luta pelos direitos humanos e sociais há muito universalizado nas leis liberais (e mais recente neoliberais) da maioria das nações democráticas organizadas pelo sistema capitalista de produção e mercados. No Brasil encontramos grupos sociais racistas e sexistas que estão em instituições escolares, universitárias, e que se posicionam radicalmente contra em relação às leis de cotas para gêneros, classes e originários de escolas púbicas, bem como às ações afirmativas oriundas de acordos entre Estado e movimentos sociais. Trata-se de uma realidade engendrada em meio aos conflitos considerados em outras nações socialmente já anacrônicos, por estarem em desacordos e desalinhados à época atual. Muito do posicionamento de resistência dos movimentos sociais diz respeito aos direitos sociais que RETTA, Vol. VIII, nº 11, jan.-jun./2015

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estão estabelecidos em medidas legais que foram ditadas pelas elites políticas em aliança com as elites econômicas, para atender parte das reivindicações das classes populares. Neste contexto, as elites acordam os direitos sociais sempre estendendo às minorias apenas “benefícios” que nada ou pouco tem a ver com direitos, com políticas de inclusão, pois são velhos projetos de educação compensatória com nova roupagem. Exemplos de tais iniciativas podem ser relembrados aqui, a saber: a Reforma da educação profissional em meados de 1990, que inicialmente pretendia retirar o ensino técnico do MEC para o Ministério do Trabalho; também o que aconteceu início dos anos 1990 com o programa CAIC (ou CIAC) de Collor de Mello maquiado como Escola de Tempo Integral, assim foi com a Alfabetização Solidária que estava dentro de um programa denominado Comunidade Solidária, para erradicar o analfabetismo, mas recebia os recursos da iniciativa privada, por fora das políticas públicas; e tantos outros. Por estas e outras, compreendemos que os movimentos sociais precisam se manter mobilizados para conquistarem políticas públicas efetivas igualitárias que nas leis democráticas estão escritas e sancionadas para cumprirem a função social tal como a Constituição e a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional preconizam. Vale ressaltar parte de dois artigos que dispõem sobre os princípios democráticos, liberais da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Considera-se importante citar uma parte de ambos artigos da LDB/1996, a saber: “Art. 2º A educação, dever da família e do Estado, inspirada nos princípios de liberdade e nos ideais de solidariedade humana, tem por finalidade o pleno desenvolvimento do educando, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho. Art. 3º O ensino será ministrado com base nos seguintes princípios: I – igualdade de condições para o acesso e permanência na escola; II – liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar a cultura, o pensamento, a arte e o saber; III – pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas; IV – respeito à liberdade e apreço à tolerância; (Incluído pela Lei nº 12.796, de 2013).

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Então, perante as duas leis, a Constituição e a LDB (1961 e 1996), teríamos garantias sociais e públicas asseguradas aos que precisam ser incluídos ao trabalho e à educação, visto que em ambas as Leis de princípios liberais, todos os brasileiros têm direito a educação.

Compreendemos aqui, e em qualquer outro fórum de discussão, que a educação do campo está fundamentada na teoria e prática de sujeitos e culturas notadamente marcadas pela diversidade de projetos de sociedade engendrados nos sertões, nos interiores, nos campos, nos locais onde crianças, jovens e adultos por meio de suas territorialidades culturais se identificam. Há de se considerar, numa perspectiva de análise, os elementos políticos (organizativos) e multiculturais que constituem as trajetórias dos sujeitos do campo, organizados em movimentos sociais. Por isso toda e qualquer perspectiva curricular do e no campo compreenderá a alteridade dos grupos étnicos, as diferenças, a diversidade e os projetos de desenvolvimento locais socioambientais sustentáveis. Tomando estas colocações anteriores como norteadoras de nossa análise, então, se propõe neste texto tecer algumas questões essenciais para este tema. Inquietemo-nos em trazer para reflexão, as seguintes perguntas: Em que bases se dão as lutas dos movimentos sociais por justiça, igualdade e políticas educacionais do campo, a partir dos anos de 1990? Existem especificidades sociais ou de classe que se materializaram como políticas de e para educação do campo? A implementação das políticas ditas de inclusão dos sujeitos do campo tem contribuído para ampliação do acesso à escolarização de qualidade social? Qual a relação entre a educação do campo e a educação popular?

As questões anteriormente situadas somente poderão ser respondidas se fizermos um exercício de aprofundamento sobre os processos sociais passados e do presente, que têm como protagonistas os sujeitos do campo. Neste sentido, achamos muito pertinente as leituras que realizamos de alguns autores como Mançano Fernandes (2008), Arroyo (1999; 2004), Molina (1999; 2004, 2011) e Caldart (2012, 2011, 2000, 2003) e tantos outros que compõem o conjunto de reflexões e análises desde o final dos anos 1990, que retratam uma epistemologia das lutas sociais e o agir sobre a práxis dos sujeitos e atores do campo, cujas perspectivas RETTA, Vol. VIII, nº 11, jan.-jun./2015

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denotam o compromisso de educadores na busca do entrelaçamento entre os projetos institucionalizados com as experiências dos movimentos sociais. Dessa forma, as respostas, ainda que não conclusivas, denotam uma realidade sócio-histórica secular, demandada pelas classes populares do campo que lutam desde os primeiros movimentos por políticas educacionais no Brasil, que estão registrados já na primeira Constituição republicana até os dias de hoje. Neste contexto de todos os autores que discutem sobre políticas educacionais e ou políticas públicas para escolarização, estes tecem suas reflexões sobre a relação entre a educação básica do campo e as tensões entre Estado e os movimentos sociais em luta pelos direitos sociais e a reforma agrária.

O contexto educacional recente do mundo rural vem sendo transformado por movimentos instituintes que começaram a se articular no final dos anos 1980, quando a sociedade civil brasileira vivenciava o processo de redemocratização pós-regime totalitário, participando da organização de espaços públicos e de lutas democráticas em prol de vários direitos, dentre eles, a educação do campo. A educação, como direito de todos ao acesso e à permanência desta na escola, está consagrada na Constituição brasileira (artigo 206) que indica a necessidade da elaboração, financiamento, implementação e avaliação de políticas mantidas pela União, estados e municípios. A educação sendo práticas de natureza cultural, educacional e científica prima pela busca da universalização na sua implementação e no respeito às diferenças como princípio cultural de combate à exclusão, principalmente quando se trata dos “povos do campo”. Esta assegura as condições de participação pela cidadania, de modo que se responda criticamente sobre as decisões de classe.

Cury (2008) discute sobre a importância do conceito de “educação básica”, destacando o termo como embrionário do processo Constituinte. Comenta o protagonismo dos movimentos sociais na Constituição de 1988, mostrando a legitimidade de vários movimentos tais como os dos sindicatos de docentes, dos movimentos estudantis, ambientalistas, enfim, de diversos segmentos que, organizados, lutaram pela universalização da educação escolar antes e pós-Constituinte. O autor nos relembra ainda sobre o Fórum em Defesa da Escola Pública, instalado para que as entidades da sociedade civil acompanhassem as discussões e 44

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decisões constitucionais sobre a escola pública de qualidade socialmente referenciada. Cury, sobretudo, ainda ressalta a importância da década de 1990, quando fóruns, encontros e congressos de educação se voltaram para acompanhar a tramitação do então Projeto de Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional até sua versão final, sancionada em 1996 (LDB n°9394/1996). Período em que os movimentos sindicais obtiveram a conquista do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e Valorização do Magistério (FUNDEF). A década de 1990, no Brasil, é tida, segundo os educadores, como sendo um período pessimista da educação, da formação e profissionalização de professores, no entanto, pode ser considerada em nossa visão um marco de lutas dos movimentos sociais pela redemocratização da educação nacional pública e gratuita, bem como pelos direitos sociais/humanos. Foi na década de 1990 que os movimentos contribuíram mais intensamente para tornar concretizada as reivindicações e demandas das classes populares e os compromissos de universalização da educação básica e das diversas modalidades de educação (Educação de Jovens e Adultos/EJA, Educação especial, Educação do Campo), gerando novas políticas educacionais que gradativamente reconfiguraram os espaços públicos de atendimento as demandas vindas das lutas populares, ampliando o campo de conquista de direitos humanos. Tomando o período de sanção da LDB/1996 até hoje, podemos afirmar que houve avanços na ampliação das modalidades da educação escolar muito em função da ação sintonizada dos movimentos sociais em fóruns internacionais, em fóruns latino-americanos e em fóruns nacionais.Para Cury, a educação básica é um conceito avançado e inovador no Brasil, a medida em que se instituiu em meio à efervescência de propostas reivindicadas pelos movimentos, ao mesmo tempo em que se tornava um bem público e ampliando o campo dos Direitos.

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Materialidade dos Movimentos Sociais: Educação Pública para os Sujeitos do campo Compreendemos a Educação do Campo como sendo fruto das práticas sociais que se deram e se dão no mundo rural, urbano e rururbano4. Trata-se de categoria sócio-histórica que formulou e formula uma pedagogia fundada na cotidianidade ressignificada nas lutas político-culturais dos sujeitos e povos do campo que sobreviveram à expulsão e a expropriação de terras. Dia a dia estão no enfrentamento contra as recorrentes expropriações produzidas pelo Capital e pelo Agronegócio. Dessa forma, o conceito de “Educação do Campo” foi forjado no bojo das lutas dos movimentos sociais do campo, nas lutas contra hegemônicas dos sujeitos que buscam diferenciar seu projeto educativo daquele da histórica educação rural. Por serem assim, estes sujeitos coletivos vêm requerendo das instituições públicas, programas e projetos em todos os níveis e modalidade5, de formação específica, buscando assegurar estes como políticas de Estado. Por outro lado, no âmbito das políticas emanadas por organizações internacionais, os chamados “povos do campo”6 foram progressivamente enquadrados como grupos de alta “fragilidade social” e que, portanto, demandantes de alvo de atenção e de investimentos financeiros e técnicos. Podemos destacar outras formas de expressar a ocupação ou territorialidades de habitantes urbanos que praticam a agricultura familiar nas periferias de espaços urbanos, metropolitanos de grandes capitais que, por conseguinte, tem uma história de expulsão e/ou expropriação de suas terras e notadamente de identidades rurais. Assim os indivíduos na forma de atores coletivos foram se organizando política e socialmente pela agricultura rururbana, mas, no tocante às condições objetivas e materiais se organizam no processo produtivo de forma precária, devido à situação de desterritorialização. É notório para alguns pesquisadores que o habitus desses atores se constitui em subjetividades socializadas porque traz elementos do campesinato, do agricultor tradicional, pressupondo ainda a manutenção de identidades sociais do tipo camponês (ver GRAZIANO DA SILVA, 2002).

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Desde 2010 foi estabelecida pelo CNE a Resolução nº 4 que Define as Diretrizes Curriculares Nacionais Gerais para a Educação Básica. Nesta Resolução consta pela primeira vez no Brasil abertura para que nós educadores tivéssemos mais próximos da institucionalização de planos e programas pautados pelas modalidades da educação básica, incluindo a Educação de jovens e adultos, educação indígena, educação quilombola e a educação do campo, que foram literalmente definidas nos art. 35 e 36 da aludida Resolução.

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Povos do campo, agricultores familiares, quilombolas, caiçaras, atingidos por barragens, agricultores sem terra, indígenas, tal como se autodenominam desde o final dos anos 1990 quando do primeiro congresso de educação do campo. Logo depois reivindicaram a institucionalização no Parecer CNE/ CEB nº 36/2001 Diretrizes Operacionais para a Educação Básica nas Escolas do Campo.

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Notadamente, a partir da LDB/1996 e das Diretrizes Operacionais da Educação Básica do campo, Parecer CNE 36/2001, as experiências dos sujeitos do campo têm ganhado importância e contextualização principalmente pela pedagogia da Alternância que aproxima escola/universidade, comunidade e sociedade, por meio de didáticas de auto-formação que vislumbram contrapor à pedagogia de esquemas curriculares arbitrados fora dos princípios da luta de classe da educação popular.

Os esquemas formativos da educação do campo quando aplicados na escola/universidade, efetivamente, são provenientes dos processos sociais de luta democrática em que os próprios movimentos vão se produzindo pela vida material/objetiva e dando sentido aos conteúdos, subjetivando o que se objetiva, alcançar do coletivo. Inclusive, trazem para a universidade/escola a sua organicidade política como pedagogia/filosofia da práxis, utilizando formas de disciplina, estilos, doutrinas, narrativas, místicas; enfim, os sujeitos coletivos resgatam visões de mundo, linguagens e culturas das diversas ruralidades que, tecidas na vida de “lida”, de trabalho, de lutas pela superação de naturalizações impostas, então reestruturam seus repertórios ingênuos em críticos.

A configuração de novos/outros espaços de formação técnica, de construção de conhecimentos especializados contribuem para contextualização do mundo social e de trabalho dos povos do campo; havendo uma perspectiva participativa de planejar e executar os processos educativos que se concretizam na medida em que sua produção se dá pelo protagonismo dos povos do campo, nos cursos/programas. Para eles, sujeitos sociais e atores coletivos do campo, a relação entre as lutas travadas nas esferas instituintes, são conhecimentos que constituem e ressignificam os conteúdos escolares/universitários, por isso a importância de aportes dos estudos culturais e políticos na organização dos currículos. A organicidade e as pautas de lutas são norteadas por conteúdos postos, que nessas contemplam as identidades forjadas nas tessituras sociopolíticas, socioambientais. O mundo rural na sua relação com o urbano também faz parte das experiências e estudos, uma vez que as migrações dos sujeitos do campo em busca de trabalho e sobrevivência na cidade, ou núcleos urbanos forçaram estes a arquitetar outros lugares, transformando paisagens e produzindo novas territorialidades, como aquela que definimos RETTA, Vol. VIII, nº 11, jan.-jun./2015

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anteriormente, os rururbanos (GRAZIANO DA SILVA, 2002). Embora as políticas sociais/públicas se voltem para os sujeitos excluídos, utilizando os discursos da “inclusão”, sabemos que existem intenções dos governos de controle sobre a educação popular do campo pela massificação de práticas e conteúdos de uma escolarização unidimensional e as diretrizes oficiais na reestruturação educacional7 das últimas três décadas. Os movimentos sociais se colocam pedagogicamente por meio da diversidade cultural e política, se contrapondo à padronização do ensino-aprendizagem representada pela organização curricular por competências de perspectiva neocolonizadora; buscam construir seu trabalho pedagógico a partir da Pedagogia da Alternância8 que atende a organicidade da Escola em Movimento (CALDART, 2000).

Ao se definirem como agricultores familiares, quilombolas, sem terra, mestiços, caiçaras, agricultores urbanos ou rurais, juventude rural e outras formas biográficas, esses povos do campo buscam seus pertencimentos socioculturais e de trabalho. O resultado de práticas pedagógicas vindas das experiências dos cursos de graduação nas Universidades Federais, dos projetos de Ensino Médio e de Educação de Jovens e Adultos com formação profissional revela outras e diversas possibilidades de construção de saberes e fazeres para o desenvolvimento local/regional Aqui nos referimos às reformas nos níveis e modalidades de educação básica que estão sendo deflagradas desde a Nova República, com as várias tentativas de obliterar o debate democrático desde o Fórum Nacional em Defesa da Escola Pública instalado para acompanhar as discussões e decisões constitucionais sobre a escola pública de qualidade socialmente referenciada; aquelas do início dos anos 1990, entre o Plano Decenal de Educação para Todos, passando pela aprovação da LDB da Educação Nacional – Lei Federal nº 9394 e3 1996 – até a enxurrada de pareceres, resoluções, decretos e portarias ministeriais que foram e estão sendo promulgados, na maioria das vezes a revelia dos movimentos populares e civis.

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A Resolução nº 04 de Julho de 2010 reforça a relação político-cultural entre os movimentos sociais do campo e a organicidade pedagógica. A aludida base legal recomenda que o processo de escolarização se dê com a seguinte orientação: “Art. 36. A identidade da escola do campo é definida pela vinculação com as questões inerentes à sua realidade, com propostas pedagógicas que contemplam sua diversidade em todos os aspectos, tais como sociais, culturais, políticos, econômicos, de gênero, geração e etnia. Parágrafo único. Formas de organização e metodologias pertinentes à realidade do campo devem ter acolhidas, como a pedagogia da terra, pela qual se busca um trabalho pedagógico fundamentado no princípio da sustentabilidade, para assegurar a preservação da vida das futuras gerações, e a pedagogia da alternância, na qual o estudante participa, concomitante e alternadamente, de dois ambientes/ situações de aprendizagem: o escolar e o laboral, supondo parceria educativa, em que ambas as partes são corresponsáveis pelo aprendizado e pela formação do estudante.”

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a partir dos conhecimentos prévios. Saberes e técnicas que vêm sendo apropriados por diversos outros atores coletivos como estratégia para transformar processos educativos tecnoburocráticos em libertários, para emancipação das estruturas de poder agrário até então dominantes. Inclusive os povos do campo, como caiçaras, quilombolas e indígenas são contemplados na Resolução nº 4/2010 como sendo práticas específicas respeitando pedagogias próprias e a diversidade étnico-cultural. Compreendida sob a ótica dos movimentos sociais, a educação básica entre o fim dos anos 1990 e até hoje, necessitaria de políticas de universalização para se tornar efetivamente acessível como sendo um direito de todos, inclusive dos povos do campo. Aqui está se levando em conta além dos usuários dos processos de escolarização, os agentes profissionais da educação das instituições públicas, professores e técnicos, que são segmentos/categorias da educação básica que carecem de políticas que assegurem suas territorialidades e identidades sociais. Sobretudo, tais questões são discutidas nos fóruns institucionalizados assim como espaços de construção política dos coletivos entendo a educação do campo como sendo prática social crítica e multicultural. SOUZA (2011) aborda a prática social de construção de um coletivo em prol da Educação Básica do campo no Brasil. Para ela:

É na prática dos coletivos consolidados historicamente e daqueles que se organizam no momento presente que a educação do campo ganha força. É muito mais do que educação escolar o que está em questão: é a vida na terra; é o aprendizado da política; é a experiência coletiva que mostra que a formação humana é necessária e viável; é a intensificação das lutas sociais e políticas na construção de um projeto político em que o bem comum é definido pela comunidade e não pelos estrategistas governamentais. (SOUZA, 2011 p. 81)

Neste contexto, como vimos na introdução deste artigo, a educação do campo inicia no fim da década de 1990 como sendo um movimento, que ao longo desses 15 anos veio tomando a configuração também institucionalizada, na medida em que as políticas públicas foram sendo sancionadas não mais como políticas de governo, mas como políticas de Estado, a partir de RETTA, Vol. VIII, nº 11, jan.-jun./2015

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2010 em diante9. O PRONERA – Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária foi o primeiro programa a contemplar as reivindicações do movimento que abarcava a luta dos sujeitos sociais do campo de áreas de assentamento de reforma agrária, iniciando em 1998 como sendo uma política de governo e ao final do governo Lula da Silva então, foi reestruturado para ser uma política de Estado, por meio do Decreto nº 7352/2010. Estamos num país democrático cujas leis propagam discursos de igualdades de condições, inclusive à educação básica. Então por que foi necessário o Governo Federal baixar um Decreto para garantir aos povos do campo o acesso à política pública, PRONERA, por exemplo? Neste sentido, então, as estruturas políticas e culturais deviam garantir práticas que afirmem aos cidadãos os direitos civis, os direitos políticos e os direitos sociais, de modo que haja extensão de direitos à população do campo de forma mais contundente para o acesso e a permanência na escola/universidade. Historicamente a educação destinada aos povos do campo (classes populares), jovens e adultos, era classificada como educação rural10 e sujeita ao tradicionalismo político orquestrado na relação público-privado e sob a égide das relações sociais e políticas hegemônicas provenientes

Consta no discurso legal que o Decreto nº 7352/11/2010 - dispõe sobre a política de educação do campo e o PRONERA – que o governo tem como compromisso, a saber: “Art. 1º A política de educação do campo destina-se à ampliação e qualificação da oferta de educação básica e superior às populações do campo, e será desenvolvida pela União em regime de colaboração com os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, de acordo com as diretrizes e metas estabelecidas no Plano Nacional de Educação e o disposto neste Decreto. § 1º Para os efeitos deste Decreto, entende-se por: I - populações do campo: os agricultores familiares, os extrativistas, os pescadores artesanais, os ribeirinhos, os assentados e acampados da reforma agrária, os trabalhadores assalariados rurais, os quilombolas, os caiçaras, os povos da floresta, os caboclos e outros que produzam suas condições materiais de existência a partir do trabalho no meio rural; e II - escola do campo: aquela situada em área rural, conforme definida pela Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE, ou aquela situada em área urbana, desde que atenda predominantemente a populações do campo. § 2º Serão consideradas do campo as turmas anexas vinculadas a escolas com sede em área urbana, que funcionem nas condições especificadas no inciso II do § 1o. § 3º As escolas do campo e as turmas anexas deverão elaborar seu projeto político pedagógico, na forma estabelecida pelo Conselho Nacional de Educação. § 4º A educação do campo concretizar-se-á mediante a oferta de formação inicial e continuada de profissionais da educação, a garantia de condições de infraestrutura e transporte escolar, bem como de materiais e livros didáticos, equipamentos, laboratórios, biblioteca e áreas de lazer e desporto adequados ao projeto político pedagógico e em conformidade com a realidade local e a diversidade das populações do campo”

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Conceito e prática superados pelos movimentos sociais declarados por ocasião da Conferência Nacional de Educação do Campo, em Luziânia, 1998.

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do latifúndio e mais atualmente do agronegócio11. Com o fortalecimento dos movimentos sociais, este quadro foi sendo alterado e as políticas públicas se ampliam e passam a incorporar as demandas dos movimentos sociais por uma educação básica do campo em consonância às expectativas dos sujeitos.

A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional de 1996 reconhece a singularidade da educação do campo ao afirmar, em seu artigo 28, que os sistemas de ensino deverão promover, na oferta de educação básica, as adequações necessárias às adaptações diante das peculiaridades da vida rural e de cada região (BRASIL, 2006). Como dissemos anteriormente a legislação educacional brasileira não só reconhece a especificidade da educação do campo, como a importância e premência de intensificar a implementação de suas modalidades de educação.

Contudo, a consolidação e a expansão das escolas do campo, para atender as demandas pela escolarização básica e superior, sobretudo, carece de respeito às leis nacionais e internacionais de direitos humanos, sociais e civis pelas próprias instituições públicas e sociais, bem como as Leis nacionais em vigência. Uma exemplificação deste descaso com as populações do campo, é a dura realidade do fechamento de escolas rurais, que entre 2003 e 2013 tem o drástico índice de fechamento de mais de 31,4%, em função de um fenômeno que campeia nas secretarias de educação dos municípios de vários estados do Brasil, a tal “nucleação” das escolas12. Os movimentos sociais exercem uma função política e politizadora fundamental na construção de alternativas de propostas não somente no âmbito educacional, mas também de trabalho e de produção agrícola, que sejam contrárias ao que se costuma praticar pelo neoliberalismo no campo, o agronegócio de matriz econômica conservadora e acumuladora; a alternativa dos movimentos sociais de trabalho e organização da produção se dá pela agricultura familiar em bases orgânicas e agroecológicas, que desde 2013, tornou-se política de Estado com a promulgação do Plano Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica, que neste ano está sendo avaliada a execução da primeira edição e o lançamento da Edição para 2015/2016.

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A nucleação significa a reunião de duas, três ou mais escolas rurais em uma escola no núcleo urbano, denominada escola-polo, com um número maior de carteiras e transportes coletivos escolares para atender as crianças na jornada de rodar quilômetros dentro de um ônibus ou micro-ônibus quase sempre em condições indignas. Ver reportagem Folha de São Paulo online de 03/03/2014, sobre Fechamento das Escolas do Campo. A questão é tão grave que em 28 de março de 2014, a Agência Brasil publicou uma matéria sobre a Lei sancionada pela presidente Dilma Roussef que dificulta o fechamento de escolas rurais, indígenas e quilombolas. A Lei de nº 12.960, de 27 de março de 2014 altera a LDB/1996 ao que concerne por parte dos Conselhos Municipais de Educação manifestação sobre

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É dentro dessa dinâmica tecida entre movimentos instituintes e o institucional que a concepção e a implantação dos cursos de Licenciatura em Educação do Campo (LEC) no Brasil se articulam, a um só tempo, a saber: sendo um processo de democratização política do país, com a ampliação do acesso ao ensino superior e sendo com a implementação de políticas públicas de estado que contemplem as reivindicações por escolarização dos povos do campo e dos movimentos sociais. Nesta perspectiva pedagógica, então, os novos currículos são desenhados em tempos e espaços de formação que se associam como tempo escola e tempo comunidade. A tríade, produção-território, camponês-atores políticos, possibilita engendrar outra perspectiva de educação rural que corresponde política e culturalmente às expectativas dos atores pela preparação de homens e mulheres para a luta pela reforma agrária com sustentabilidade ambiental. A práxis da educação do campo como processo de socialização crítico-dialéticana esfera social entrelaçada à acadêmica, só tem sido possível entre os sujeitos que se encontram marcadamente pela diversidade político-cultural de um rural contemporâneo.

A Resolução nº. 01 (03 de abril de 2002 - Diretrizes Operacionais da Educação do Campo), mesmo tendo sido criada não garantiu a implementação dos projetos educativos nas escolas do campo. Desta feita, em 2003, um Grupo Permanente de Trabalho de Educação do Campo (GPT) foi institucionalizado no Governo Lula Da Silva posto que este se deparara com a morosidade de implementação das diretrizes nos estados. Por força da pressão dos movimentos sociais e instituições diversas (dentre elas, a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil/CNBB, Universidade de Brasília/UnB) e a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura/Cátedra UNESCO) em 2004, o Governo criou a Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade no âmbito do MEC. Segundo o MEC, a meta era: “pôr em prática uma política que respeitasse a diversidade cultural e as experiências de educação e de o assunto, em ato normativo. O projeto é de autoria do Poder Executivo e o ministro da educação da época, Aloízio Mercadante, destacou que nos últimos cinco anos foram fechadas mais de 13 mil escolas do campo.(http://agenciabrasil.ebc.com.br/educacao/noticia/2014-03/sancionada-lei-que-dificultafechamento-de-escolas-rurais-e-quilombolas, acessada em 2/08/2015)

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desenvolvimento das regiões, para ampliar a oferta de Educação Básica e de EJA nas escolas rurais e assentamentos do INCRA.” Para dar conta das políticas reguladoras, do financiamento da educação infantil, da educação básica, do ensino superior e das modalidades, assegurando as especificidades de saberes e territorialidades, nesta secretaria foi institucionalizada a Coordenação Geral da Educação do Campo.

Dessa forma, as políticas públicas da educação do campo se instalaram no bojo de dois Ministérios: do MDA, através do INCRA/PRONERA e do MEC, através da SECAD, fato que contribuiu, na implementação das ações, em alguns momentos para a convergência, em outros para um choque e uma disputa. Ainda assim, há de se ressaltar que, pela primeira vez no Brasil, se “reconhece a diversidade sócio-cultural e o direito à igualdade e à diferença” (Parecer n.36/2001 do CNE) na educação básica do campo. Os movimentos sociais se configuram como sujeitos produtores de direitos, contribuindo para o estabelecimento de novas leis e políticas educacionais, bem como aberturas de políticas para trabalho e renda da agricultura familiar. Alguns fatos mais recentes ilustram estas conquistas dos atores: uma foi a inclusão da educação do campo nas Diretrizes Curriculares da Educação Básica através da Resolução Nº 4 (CNE/CEB, de 13 de julho de 2010) e o Decreto Presidencial 7352/2010 que institucionalizou o PRONERA enquanto ferramenta de implementação de políticas de educação do campo. Outro fato importante foi a Lei n° 11.947, de junho de 2009, que determinou a compra, por parte dos poderes públicos, de no mínimo 30% da merenda escolar diretamente dos agricultores familiares, fato que pode potencializar mudanças para esse setor de trabalho/ produção e política agrícola.

No último Censo Agropecuário, 2006 (IBGE), o Brasil tinha 4.551.967 estabelecimentos em 106.761.753 hectares de agricultura familiar. A efervescência de experiências e de exercício da cidadania que a educação do campo vem promovendo é responsável pela sua repercussão em todo território nacional, na medida em que se pode atestar a ampliação de cursos no PRONERA, assegurando dignidade de trabalho e educação aos sujeitos do campo. Entretanto, sabemos que não basta a aprovação dos RETTA, Vol. VIII, nº 11, jan.-jun./2015

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textos legais, se não se conseguir romper com a estrutura agrária e a superestrutura que alimentam a exclusão e a desigualdade social na relação campo-cidade. Os dados e índices que constituem o cenário educacional das áreas rurais e campesinas são preocupantes, mas é essencial divulgá-los e analisá-los para que se possa compreender o porquê da opção por uma pedagogia radical dos movimentos em luta contra a pedagogia bancária (FREIRE, 1982) naturalizada no cotidiano escolar. A promoção e implementação de políticas públicas tem se dado muitas delas pela esfera federal; no que tange aos poderes públicos municipais estes vêm se ancorando na União, pouco se manifestam ou asseguram políticas locais, sendo estas, então, pauta dos movimentos do campo, para reverter os sérios problemas de acesso e de permanência de jovens e crianças do campo na escolarização.

No campo dos sistemas de ensino, falta ainda, em muitos deles, a constituição de coordenações da Educação do Campo dentro das Secretarias de Educação bem como de Conselhos Municipais, para encaminhamento das políticas e financiamento da escola do campo, inclusive, atendendo à oferta de formação continuada dos professores e adultos trabalhadores. Em vários estados, por exemplo, existem fóruns compostos por movimentos sociais e organizações da sociedade civil para lutar pela implementação de políticas de educação do campo, nos Conselhos Municipais de Educação, se tornando forças importantes na cobrança ao Estado e União. Há que se avançar ainda no âmbito da institucionalização das políticas e diretrizes para a educação do campo nos Planos Municipais e Estaduais de Educação, bem como na proposição de concursos específicos para os profissionais da educação do campo. A implementação da Pedagogia da Alternância é outro tema polêmico, estando instituída e respaldada em raros Planos Estaduais de Educação, embora em relevância nas Diretrizes Gerais de Educação Básica, de 2010. A Alternância tem sido sistema educativo em alguns Estados que tem as experiências de Centros Familiares de Formação em Alternância. De todos os aspectos caraterísticos da Educação do Campo, entretanto, o mais contraditório de todos é o do fechamento das escolas. Por parte dos sistemas estaduais e municipais de ensino permanece a política 54

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de fechamento das escolas do campo, através da nucleação e da oferta de transporte para deslocamento dos educandos para escolas urbanas. Esta política já foi reiteradamente criticada e condenada pelo MEC, pelo Conselho Nacional dos Secretários de Educação (CONSED), pela União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (UNDIME) e pelo CNE, visto que contribui para a evasão, a repetência e a distorção série-idade, na medida em que afasta as crianças e jovens de seus locais comunitários, infringindo inclusive a LDB/1996. O MST realizou uma campanha nacional em 2011 contra o fechamento das escolas do campo, denunciando que mais de 24 mil escolas foram fechadas no meio rural desde 2002 (ALBUQUERQUE, página do MST, 30/06/2011). Vários estudiosos vêm denunciando a nucleação de escolas como sendo responsável pela dificuldade de acesso, inclusão e permanência dos jovens e crianças do campo nas escolas. Conforme aponta Mançano Fernandes (2008), as contradições nas instituições do mundo rural, são provocadas pela divisão do campo brasileiro em dois territórios, grosso modo, do campesinato sem reforma agrária e do agronegócio. Para ele esta divisão está na raiz das contradições entre as políticas públicas que visam atender as reivindicações dos povos do campo e a dificuldade e desafios de implementação das mesmas. Políticas Públicas e Leis promulgadas não asseguram os direitos? Para Mançano Fernandes (2008) a divisão denota que:

A fundação do agronegócio expandiu sua territorialidade, ampliando o controle sobre o território e as relações sociais, agudizando as injustiças sociais. O aumento da produtividade dilatou sua contradição central: a desigualdade. A utilização de novas tecnologias tem possibilitado, cada vez mais, uma produção maior em áreas menores. Esse processo significou concentração de poder – consequentemente – de riqueza e de território. Essa expansão tem como ponto central o controle do conhecimento técnico, por meio de uma agricultura científica globalizada (p.50)

Para o Agronegócio os processos de ocupação promovidos pelos agricultores e trabalhadores sem terra são uma ameaça ao controle do RETTA, Vol. VIII, nº 11, jan.-jun./2015

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território onde os grandes proprietários expandem seus negócios e criam mercadorias, commodities agrícolas e extrativistas (minerais). Mançano Fernandes (2008) analisa que o controle do território por parte dos empresários do agronegócio garante a mercantilização e a renda da terra. As políticas de créditos garantem ao agronegócio a perpetuação do modo de produção capitalista, mas também a acumulação de capital e o empobrecimento dos trabalhadores e a perda e dificuldade de acesso aos direitos. Mançano Fernandes faz o que ele denomina de leitura territorial para discutir que:

Temos então uma disputa territorial entre capital e campesinato. As propriedades camponesas e as capitalistas são territórios distintos, são totalidades diferenciadas, onde se produzem relações sociais diferentes, que promovem modelos divergentes de desenvolvimento. Territórios camponeses e territórios capitalistas como diferentes formas de propriedades privadas disputam o território nacional. Para se compreender essa disputa, é importante uma análise dos níveis e escalas territoriais: o primeiro território e o segundo território. O primeiro território é formado pelos espaços de governança em diferentes escalas: nacional, regional, estadual, municipal e distrital. O segundo território é composto pelos diferentes tipos de propriedades particulares. A partir dessa tipologia, pode-se compreender as conflitualidades entre modelos de desenvolvimento que disputam territórios, condição essencial para sua expansão. Estamos nos referindo especialmente aos modelos de desenvolvimento do agronegócio – resumidamente a partir da produção de monoculturas em grande escala, com trabalho assalariado, intensamente mecanizado e com utilização de agrotóxicos e sementes transgênica; e ao modelo de desenvolvimento do campesinato ou agricultura familiar, em síntese, a partir da produção de policulturas, em pequena escala, com predominância do trabalho familiar, com baixa mecanização, em sua maior parte, com base na biodiversidade sem a utilização de agrotóxicos. Esses modelos disputam territórios, produzindo o segundo território no interior do primeiro território. A disputa do segundo território também é a disputa do primeiro território. Embora sejam diferentes, estão no mesmo espaço geográfico municipal, que está no espaço geográfico estadual, e este, por sua vez, está no espaço geográfico nacional, formando a multiterritorialidade. (p.54).

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Merece destaque tal trecho do livro organizado pelo autor, que abordou pelo olhar de uma concepção teórico-metodológica da Geopolítica, a especificidade político-cultural e econômica que tenciona os processos formativos de educação do campo nas instituições que aderiram aos programas e projetos destinados aos povos do campo. A educação do campo como agenda pública ficou na esfera federal, falhando nas esferas estaduais e municipais, em que pese os investimentos federais, ao criar Grupo de Trabalho no MEC para pressionar estados e municípios na implementação das Diretrizes Operacionais de Educação do Campo desde 2003 e em 2004 criando a SECADI (ex-SECAD), como uma secretaria especial. Molina (2011) reconhece criticamente que no caso da educação do campo

A efetiva promoção do direito à educação, com reais garantias de acesso e permanência com sucesso e qualidade, em todos os níveis de ensino, para as populações do campo, requererá a adoção de políticas e programas que sejam capazes de traduzir, na prática da ação do Estado, os princípios da igualdade material determinados na Constituição federal Brasileira, de 1988. São as graves desigualdades sociais para se dar o acesso e permanência com qualidade à educação Pública que obrigam o Estado para o cumprimento de suas atribuições constitucionais, a conceber e implementar políticas que sejam capazes de minimizar os incontáveis prejuízos já sofridos pela população do campo em função de sua histórica privação de direitos. (p. 117)

Os instrumentos formativos, quando aplicados aos processos provenientes da relação entre academia e saberes populares, crescem ao incorporar a Pedagogia da Terra, à Alternância à vida dos sujeitos, transformando processos educativos submetidos à lógica do capital dos currículos arbitrados pelos sistemas culturais oficiais em práxis que incorpora as territorialidades e identidades sociais campesinas em emancipação. Portanto, as políticas educacionais para estes sujeitos vão ganhando sentidos didático-curriculares nas expectativas de geração e criação das condições materiais e subjetivas na luta dos sujeitos pelas condições existenciais de vida digna. Inclusive, os esquemas formativos que unem as instituições e atores coletivos trazem para a universidade a sua organicidade política, formas de disciplina, estilos, filosofias e doutrinas que RETTA, Vol. VIII, nº 11, jan.-jun./2015

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se entrelaçam às abordagens críticas utilizadas, configurando novos espaços de organização e de cultura/artes. A pedagogia da mística é fundamental visto que, pela arte, literatura, cosmologias, expressão corporal os conhecimentos são significados entre ruralidades e territorialidades. Ao se definirem como agricultores familiares, quilombolas, sem terra, indígenas, mestiços, agricultores urbanos, juventude rural e outras formas identitárias, esses sujeitos buscam afirmar seus pertencimentos sociais como “povos do campo”. A educação do campo, portanto, difere da educação rural neste campo de luta por transformação de sujeitos alienados, submissos, em sujeitos emancipados, que buscam reverter uma formação que tem uma matriz científica, adotando pedagogias eugênicas que excluíram homens e mulheres dos saberes produzidos ou, ainda, criando instituições fundamentadas na pedagogia da eugenia, para “civilizar” os “incivilizados” (ELIAS, 1994).

O conceito/prática de educação do campo denota ser um “campo” (BOURDIEU,1997), relacional e em disputa, justamente porque os sujeitos atribuem significados em meio às contradições estruturantes da realidade social brasileira e às experiências político-culturais de educação libertária. Esta educação básica do campo é imperativa no devir de transformações, na medida em que dela brotará ideias para promover a luta cultural dos povos do campo em que indivíduos se transformam em sujeitos/atores protagonistas da sua emancipação. No caminho perspectivado por esta busca, entretanto, ainda encontramos como grandes desafios: a ampliação da educação infantil, do segundo segmento do ensino fundamental e do ensino médio para os sujeitos do campo; a luta contra o fechamento das escolas do campo; o investimento na formação inicial e continuada de educadores do campo; a construção de materiais didáticos contextualizados e a implementação de metodologias ativas e participativas; o investimento na formação dos gestores das escolas do campo; a implementação da pedagogia da alternância nas escolas do campo, referenciando-a em documentos oficiais (Planos Municipais e Estaduais de Educação); a constituição de Coordenações de Educação do Campo no âmbito das Secretarias Municipais e Estaduais de Educação; a institucionalização de diretrizes de educação do campo no âmbito dos Planos Municipais e Estaduais de Educação; a abertura de concursos públicos específicos. 58

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Finalizando... Assim como a educação escolar em meio urbano, a educação do campo está envolta de contradições e desafios que perpassam a vida cotidiana, cujas relações sociais e de trabalho estão delimitadas pela luta por direitos sociais e civis, que são as lutas pela reforma agrária e pelo protagonismo nos projetos sociais que visam a transformação do mundo rural em espaços não mais divididos entre campesinato e agronegócio. Há então nos movimentos sociais uma prática coletiva de um projeto social que transforme o campo em espaço de democracia e equidade.

Logo no início deste texto levantamos questões que esperamos ter, se não respondido, então pelo menos ter aguçado o leitor para buscar elementos no texto ou em outros que apontam a educação do campo diametralmente oposta ou antônimo à educação rural. Os movimentos sociais do campo foram e são os protagonistas de uma construção epistemológica e metodológica que estrutura os alicerces dos programas e projetos formativos dos sujeitos do campo.

A temática abordada buscou relacionar o processo de construção de uma educação do campo tencionado pelos movimentos sociais, que são formas organizativas de mobilização popular que resistem via MST e FETAG inicialmente, mas aos poucos vão ganhando adesões de outros movimentos como os indígenas, quilombolas, caiçaras e de educadores populares da rede cidadã, RECID, por exemplo. Neste quadro, ganham espaços a pedagogia da terra, a pedagogia da alternância, as pedagogias libertárias, que passam a ser adotadas como práticas educativas de autogestão e autoformação que propiciam a problematização por processos participativos e coletivos de construção do conhecimento a partir das realidades experimentadas pelos sujeitos do campo.

Por último, esperamos ter tecido a relação entre movimentos sociais e a educação do campo a partir de princípios da educação popular, buscando reforçar a idéia de emancipação dos sujeitos por meio dos processos de construção de conhecimento crítico a partir dos saberes político-culturais dos povos do campo. Tal como a educação popular, a educação do campo nasceu e está sendo significada no seio das organizações sociais RETTA, Vol. VIII, nº 11, jan.-jun./2015

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contra hegemônicas, onde os homens e mulheres do campo forjam as suas identidades sociais, culturais e ambientais tomando decisões e se posicionando em prol de uma educação de classe.

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LIMITES E POSSIBILIDADES NA IMPLEMENTAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS DE EDUCAÇÃO DO CAMPO Marizete Andrade da Silva13 Ramofly Bicalho dos Santos14 RESUMO O presente artigo tem como objetivo central apresentar reflexões acerca de três políticas públicas específicas da Educação do Campo: o Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (PRONERA), integrado ao Ministério do Desenvolvimento Agrário, o Programa de Apoio à Formação Superior em Licenciatura em Educação do Campo (PROCAMPO) e o Programa Nacional de Educação do Campo (PRONACAMPO), ambos vinculados ao Ministério da Educação. Oriundas da mobilização das organizações e movimentos sociais, estas políticas públicas evidenciam que a luta pela reforma agrária transcende à luta pela terra, uma vez que compreende a ocupação de outros espaços delimitados pela colonialidade. Inicialmente, faz neste estudo, uma sucinta abordagem do contexto que deu origem a Educação do Campo e posteriormente expõem-se os principais aspectos dos programas citados. Foi realizada pesquisa bibliográfica e documental, tendo entre as fontes de investigação Portarias e Decretos, assim como alguns dos referenciais produzidos nos últimos anos sobre a educação do campo no Brasil. Conclui-se apresentando alguns dos principais desafios a serem enfrentados pelo Movimento da Educação do Campo para a consolidação dos resultados dessas políticas públicas. Palavras chaves: Educação do Campo; Pronera; Procampo; Pronacampo

Mestranda no PPGEA – Programade Pós-graduação em Educação Agrícola da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro – UFRRJ. Professora da Rede Municipal de Ensino do município de Vila Pavão – ES. Endereço eletrônico: [email protected].

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Doutor em Educação pela UNICAMP. Coordenador da Licenciatura em Educação do Campo e Docente no PPGEA, ambos na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. Endereço eletrônico: [email protected].

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POSSIBILITIES AND LIMITATIONS IN THE IMPLEMENTATION OF PUBLIC POLITICS OF COUNTRYSIDE EDUCATION ABSTRACT The present article has the central goal to present ideas about the three specific public politics of the Countryside Education: The National Program of Education in the Agrarian Reform (PRONERA), integrated to the Ministry of Agrarian Development, the Program of College Support in Countryside Education Graduation (PROCAMPO) and the National Program of countryside Education (PRONACAMPO), both attached to the Ministry of Education. Arising from the mobilization of organizations and social movements, these public politics show that the fight for the agrarian reform transcends the fight for the earth, once it understands the occupation of other delimited spaces by the coloniality. Initially, this study presents a short approach of the context that originated the Countryside Education and later expose the most important aspects of the programs quoted. The bibliographic and documental research was made, having as source of investigation Ordinances and Decree, as well as some of the references made in the last years about the education of the field in Brazil. One concludes that presenting some of the most relevant challenges to be confronted by the Field Education Movement for the consolidation of the results of these public politics.  Keywords: Countryside Pronacampo 

Education;

Pronera;

Procampo;

Introdução A expressão Educação do Campo identifica uma reflexão pedagógica que germina das inúmeras práticas educativas desenvolvidas pelos sujeitos que vivem no campo. Consiste numa reflexão que considera o campo como espaço onde se produz pedagogia. Trata-se, também, de um projeto que reafirma a finalidade mais expressiva das práticas educativas desenvolvidas no campo que é contribuir com o desenvolvimento mais pleno do ser humano e sua inserção consciente no contexto social em que faz parte (CALDART, 2002).

A realidade que gerou este movimento em favor da Educação Básica do Campo é de um significativo processo de desumanização 64

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que historicamente caracteriza a vida da população camponesa. Uma realidade marcada por opressões e injustiças. Por outro lado, essa mesma realidade reivindica alterações sociais profundas e imediatas.

O processo de exclusão social, político e econômico acompanha a história do Brasil desde o seu surgimento, como fosse condição inerente desta sociedade firmada sob o caráter elitista. Contudo, a luta dos movimentos sociais pelo direito à educação produziu inúmeras conquistas em favor do desenvolvimento do campo brasileiro. Conforme Caldart (2002), o movimento por uma educação do campo está vinculado à luta por educação com outras lutas em favor de transformações que garantam melhores condições de vida para a população camponesa, e esta conexão se justifica pela impossibilidade de educar o povo sem modificar as condições que o desumaniza. Dentre as conquistas adquiridas através deste movimento, faz-se notório ressaltar as políticas públicas que sobressaíram neste cenário, como o Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (PRONERA), Programa de Apoio à Formação Superior em Licenciatura em Educação do Campo (PROCAMPO) e o Programa Nacional de Educação do Campo (PRONACAMPO). Estas são políticas que não somente representam a capacidade de articulação da massa, mas apontam a crescente necessidade de garantir um projeto popular para o campo, cuja organização tenha como referência a cultura e o trabalho dos grupos sociais. Pensar em Educação do Campo é, portanto, entender a complexidade da dimensão do campo, constituído não apenas pela paisagem, mas também como modo de vida. Neste contexto, as políticas públicas permitem reafirmar este espaço e legitimar as lutas que dali advém. São, portanto, necessárias para a consolidação de um projeto popular para todo o país. A conquista de políticas públicas como o PRONERA, PROCAMPO e PRONACAMPO somente é compreendida se interpretadas às tensões que são estabelecidas nas relações dos movimentos sociais camponeses com o Estado. O embate entre estas duas categorias resultou em experiências históricas que contribuem para que as massas populares possam direcionar outras formas de luta e se posicionar como sujeitos de direitos. RETTA, Vol. VIII, nº 11, jan.-jun./2015

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Políticas Públicas de Educação do Campo: Pronera, Procampo e Pronacampo Nos últimos anos foram identificadas muitas práticas educativas, em todas as regiões do país, originadas no interior das organizações e movimentos sociais do campo. Com o objetivo de garantir a educação básica nas comunidades rurais e também formar quadros dirigentes, muitas dessas ações, ainda que isoladas, tiveram resultados concretos e serviram para que os movimentos sociais e organizações não se inibissem diante da passividade do governo federal. Pressionado pela massa popular, coube ao estado reconhecer estas experiências e desenvolver políticas públicas específicas para o campo, de modo que as referidas práticas educativas fossem ampliadas e reconhecidas pela sociedade. Neste cenário, políticas públicas como o Programa Nacional da Reforma Agrária foram fundamentais para promover melhorias na vida do coletivo rural.

O PRONERA surgiu em decorrência das discussões do I ENERA, em 1997, como reconhecimento da necessidade de vencer o desafio de aumentar a escolarização das trabalhadoras e dos trabalhadores rurais. Naquele encontro identificou-se que muitas experiências genuínas para a promoção da educação do campo estavam sendo desenvolvidas por várias universidades e organizações sociais e que era preciso buscar articular estas ações. A partir de então, começaram a organizar mobilizações que resultaram na criação do PRONERA. Segundo Molina (2003) o referido programa surgiu com muitas lutas e desentendimentos, sendo decisiva a pressão feita pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra tanto para sua estruturação, quanto para a liberação orçamentária.

Após várias negociações, o então Ministério Extraordinário da Política Fundiária instituiu, por meio da Portaria nº 10/98, em 16 de abril de 1998, o Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária, sendo incorporado ao Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), em 2001. Hage (2012) afirma que ao ser congregado ao INCRA, o Programa passa a depender do apoio das instâncias mais elevadas do mesmo e não mais do setor de projetos especiais da Superintendência do Desenvolvimento Agrário. Tal modificação regulamentou o PRONERA, uma vez que passou 66

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a ter o apoio do Estado. Contudo, esta nova configuração enfraqueceu a participação dos movimentos sociais e das universidades.

No ano de 2004, em virtude da necessidade de ajustar o PRONERA com as diretrizes políticas, durante o governo do então presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que apresentava a educação como direito social prioritário em sua proposta de governo, foi constituído o Manual de Operações. De acordo com este documento o PRONERA tem por finalidade:

Fortalecer a educação nas áreas de Reforma Agrária estimulando, propondo, criando, desenvolvendo e coordenando projetos educacionais, utilizando metodologias voltadas para a especificidade do campo, tendo em vista contribuir para a promoção do desenvolvimento sustentável (BRASIL, INCRA, 2004, p. 17).

O objetivo do PRONERA demonstra que ele se constitui como mecanismo a favor da democratização da educação para os trabalhadores e trabalhadoras da reforma agrária, uma vez que respeita as particularidades dos sujeitos sociais e que paralelamente contribui para a permanência dos agricultores no campo, pois apresenta o desenvolvimento sustentável como resultado desse processo. O Manual apresenta, sob os princípios da inclusão, interação, participação e multiplicação quais as competências dos movimentos sociais, do governo e das universidades e enfatiza os projetos que serão atendidos: - alfabetização e escolarização de jovens e adultos no ensino fundamental e capacitação e escolaridade de educadores (as) para o ensino fundamental em áreas da Reforma Agrária; - formação continuada e escolaridade de professores(as) de áreas da Reforma Agrária (nível médio na modalidade normal ou em nível superior por meio das licenciaturas); - formação profissional conjugada com a escolaridade em nível médio por meio de cursos de educação profissional de nível técnico ou superior (de âmbito estadual, regional ou nacional) em diferentes áreas do conhecimento voltados para a promoção do desenvolvimento sustentável no campo. (MANUAL DE OPERAÇÕES, 2004, p. 21).

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Desde seu surgimento, aproximadamente duzentos mil trabalhadores e trabalhadoras escolarizaram-se em níveis diferentes de ensino: alfabetização, ensino fundamental e médio, cursos técnicos e profissionalizantes e os cursos de nível superior. Ao mesmo tempo em que o Programa apoiava o acesso aos níveis mais elevados de escolarização viabilizou-se, através dos convênios junto às universidades públicas, a pluralidade das áreas dos saberes oferecidas por estes cursos, com a finalidade de impulsionar o desenvolvimento dos assentamentos rurais. Priorizou-se cursos que pudessem contribuir com a produção agrícola, como os cursos profissionalizantes e técnicos da administração de cooperativas e de agroecologia e, no âmbito educacional, prevaleceu a formação dos educadores da comunidade a qual fazem parte, como os cursos de Pedagogia da Terra e Magistério, no sentido de favorecer a ampliação da oferta da Educação Básica do Campo (MOLINA e JESUS, 2010). A abrangência do programa e a afirmação do direito à diversidade, opondo a unificação cultural, tem sido uma de suas maiores tônicas. Neste sentido, o PRONERA estabeleceu uma concepção de política pública diferente, em que é garantida a participação dos sujeitos coletivos, capazes de universalizar novos direitos alicerçados na promoção da diversidade. Esta diversidade teve reconhecimento por meio da publicação do Decreto nº 7.352, de 4 de novembro de 2010, no qual o Estado brasileiro integra o PRONERA à política pública de Educação do Campo (art.11º). O Decreto 7.352 representa um marco na história da Educação do Campo, uma vez que conceitua quem são as populações do campo e o que se entende por escola do campo. Ainda estabelece os princípios que abrangem os processos de ensino, considerando as especificidades dos sujeitos nele envolvidos: Art. 6º Os recursos didáticos, pedagógicos, tecnológicos, culturais e literários destinados à educação do campo deverão atender as especificidades e apresentar conteúdos relacionados aos conhecimentos das populações do campo, considerando os saberes próprios das comunidades, em diálogo com os saberes acadêmicos e a construção de propostas de educação no campo contextualizadas.

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Embora, como qualquer política pública no Brasil, o PRONERA tenha dificuldades de ser executado, ele legitima o diálogo entre a realidade e o processo educativo ao reconhecer os saberes acumulados, os símbolos das comunidades e a história de cada sujeito social. Esta orientação para o contexto e para o desenvolvimento do campo, pautado na autonomia dos trabalhadores e trabalhadoras, sendo fruto da articulação entre a academia, os movimentos sociais e sindicais fez com que o PRONERA se tornasse uma importante referência para entender a Educação do Campo no Brasil.

No tocante às contribuições que o PRONERA trouxe à Educação do Campo, ressalta-se, conforme Molina e Jesus (2010), os resultados obtidos através dos projetos de escolarização. Estes contemplaram diversos trabalhadores e podem ser traduzidos por meio dos educandos atendidos, bem como as parcerias firmadas através de mais de duzentos convênios com, aproximadamente, sessenta universidades parceiras. Porém, vale considerar que o espaço acadêmico ainda apresenta resistência à interação. Em várias universidades existe dificuldade em aceitar a presença dos movimentos sociais e alunos neste território historicamente institucionalizado para servir a elite econômica e intelectualizada. Por outro lado, a contribuição das universidades ao programa revela que muitos educadores e estudantes das instituições públicas tem buscado uma nova orientação para o ensino superior no país, na perspectiva de ir ao encontro dos interesses daqueles que foram socialmente excluídos. Nesse sentido, Gadotti (2003) reflete: A universidade precisa pensar constantemente nessa direção. É assim que ela se educa. Estudantes, professores, ultrapassando os muros para aprenderem junto à população, não por curiosidade intelectual, mas porque aprendem ensinando. Como diz Darci Ribeiro, “orientar o jovem universitário para a convivência com os deserdados de sua própria geração é também, uma forma de recuperá-lo para o país real, de ganhá-lo para uma vivência mais solidária através da imersão nas condições de existência do conjunto da população a que se propõe servir”. Esta universidade estaria fazendo educação popular (GADOTTI, 2003, p. 120).

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A experiência que o PRONERA acumulou nos mais diversos âmbitos de abrangência influenciou a concepção e a elaboração de novas políticas públicas, tendo em vista o desenvolvimento do campo através de ações educativas que ajudem na formação dos sujeitos, como o Programa de Apoio à Formação Superior em Licenciatura em Educação do Campo (PROCAMPO). O PROCAMPO foi criado em 2007 através do Ministério da Educação pela iniciativa da então Secretaria de Educação Continuada Alfabetização e Diversidade - SECAD. O Programa surge por meio de parcerias com as Instituições Públicas de Ensino Superior e objetiva viabilizar a criação de cursos de Licenciatura em Educação do Campo, a fim de promover a formação de professores da educação básica de escolas que estejam localizadas em áreas rurais.

A aprovação do PROCAMPO, a partir do reconhecimento da necessidade de uma formação inicial para o educador e a educadora do campo, contribuiu para trazer ao contexto das políticas públicas, no âmbito educacional, questões ainda não discutidas com seriedade pelo governo brasileiro. Como verificado na história do país, a política educacional até então destinada para o campo considerava este espaço como extensão da cidade, de modo que a instituição escolar, o currículo, e também o educador foram levados dos centros urbanos para o campo.

O Programa foi implantado inicialmente na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Universidade Federal da Bahia (UFBa), Universidade Federal de Sergipe (UFS) e na Universidade Federal de Brasília (UnB). Para a elaboração do Projeto Pedagógico do Curso foram convidados a participar, além dos representantes das universidades, os movimentos sociais, para que o projeto inicial fosse enriquecido com discussões da militância política de cada estado federativo, visto que a proposta da alternância representava um desafio. Para ANTUNES – ROCHA (2010) a formação tempo escola, articulada com o tempo comunidade, assinala para uma temporalidade ajustada com a espacialidade. Favorece a superação de um dos mais significativos desafios para a formação dos educadores do e para o campo, no que se refere a criar condições para que o processo formativo possa acontecer em diálogo com a cultura, o lazer, a religião e o trabalho. 70

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O Programa de Apoio à Formação Superior em Licenciatura em Educação do Campo apresenta como missão oferecer condições de execução de projetos de cursos em Educação do Campo que estejam integrados ao ensino, pesquisa e extensão, valorizando o estudo de temáticas significativas para as populações campesinas. O sentido do PROCAMPO, portanto, é promover licenciaturas que tenham como princípios formar educadores através das áreas do conhecimento, e não através de saberes fragmentados, habilitados para uma única disciplina, como ocorre na maioria das instituições de ensino superior.

A formação de docentes que vão atuar em áreas de conhecimento atende aos anseios de formar educadores que assumam o compromisso com a emancipação do povo do campo. O educador e a educadora do campo necessitam compreender a relevância do seu papel na elaboração de alternativas para organizar o trabalho escolar na lógica da educação, enquanto prática social. Esta formação deve possibilitar ao educador e àeducadora a capacidade de implementar e propor transformações necessárias à rede escolar que atendam à população camponesa. O educador do campo é mais do que um agente educativo é, pois, componente essencial na transformação da sociedade. Por isso defendemos com tanta insistência a necessidade de política e projetos de formação das educadoras e dos educadores do campo. Também porque sabemos que boa parte deste ideário que estamos construindo é algo novo em nossa própria cultura. E que há uma nova identidade de educador que pode ser cultivada desde este movimento por uma educação do campo (Caldart, 2002, p. 36).

A formação específica para o educador e a educadora do campo significa garantia de práticas coerentes com os valores e princípios do campo, reconhecendo as relações sociais que ali se estabelecem e tantos outros aspectos que apontam o território campesino, não como extensão da cidade, mas como outra realidade e forma de viver peculiar. Portanto, não se pode analisar a formação específica somente na perspectiva de valorização de saberes. É preciso compreendê-la, especialmente, na dimensão da autonomia e na organização de outra sociedade que negue qualquer forma RETTA, Vol. VIII, nº 11, jan.-jun./2015

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de opressão. Neste sentido, as demandas que se fazem presentes nas instituições do campo necessitam de profissionais cuja formação possibilite entender a atual realidade do campo, pressionada pelo modelo econômico excludente e exige dos seus sujeitos maior capacidade de resistência.

Outro importante programa de Educação do Campo no Brasil refere-se ao Programa Nacional de Educação do Campo (PRONACAMPO) previsto pelo Decreto nº 7.352 e instituído por meio da Portaria nº 86, de 1º de fevereiro de 2013. Foi lançado pela presidente Dilma Rousseff em março de 2012, com o propósito de oferecer apoio financeiro e técnico para viabilização de políticas no campo. Segundo o documento considera-se o PRONACAMPO como: Conjunto de ações articuladas que asseguram a melhoria do ensino nas redes existentes, bem como, a formação dos professores, produção de material didático específico, acesso e recuperação da infraestrutura e qualidade na educação no campo em todas as etapas e modalidades (PRONACAMPO/MEC, 2012).

O programa está estruturado sob quatro eixos: Gestão e Práticas Pedagógicas, Formação de Professores, Educação de jovens e adultos, Educação Profissional e Tecnológica e Eixo Infraestrutura Física e Tecnológica. O primeiro eixo compreende a disponibilização de materiais pedagógicos e didáticos específicos para as populações quilombolas e do campo, tendo como referências o Programa Nacional Biblioteca da Escola – PNBE e o Programa Nacional do Livro Didático – PNLD; fomento à educação integral com ampliação curricular e apoio às escolas com turmas multisseriadas e escolas de comunidades quilombolas. Estas iniciativas previstas neste eixo atendem demandas históricas dos movimentos sociais do campo, o qual faz alusão ao incentivo e a permanência, no campo, da juventude camponesa, valorizando seus saberes e oferecendo condições adequadas de funcionamento às escolas com turmas multisseriadas. Na maioria dos casos estas escolas estão localizadas nas comunidades rurais, distantes das sedes dos municípios, apresentam um quantitativo de educandos que não atinge o contingente estabelecido pelas secretarias de educação para compor uma turma por série e, geralmente, funcionam precariamente em locais improvisados. 72

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O Segundo eixo faz referência à formação inicial e continuada dos educadores em exercícios na educação do campo e quilombola. Estas formações serão desenvolvidas no âmbito do PROCAMPO, da RENAFOR e da Universidade Aberta do Brasil – UAB.

O terceiro eixo diz respeito à expansão da oferta de Educação de Jovens e Adultos por meio da proposta pedagógica dos saberes da Terra. Ademais, considera a inclusão social dos jovens e trabalhadores do campo através do fortalecimento da educação profissional e tecnológica da rede estadual e federal. Neste documento, ainda se insere a formação inicial e continuada para os trabalhadores, tendo em vista os arranjos produtivos locais. Em muitos estados brasileiros a oferta de educação para jovens e adultos tem sido feita através de programas descontínuos e políticas compensatórias. Portanto, o reconhecimento à necessidade de incluir os trabalhadores e trabalhadoras no âmbito de práticas educacionais específicas foi uma resposta à histórica reivindicação dos movimentos sociais.

O último eixo aborda um dos maiores desafios das escolas do campo na atualidade e, uma das principais reivindicações das organizações e movimentos sociais camponeses. Dentre estas reivindicações, considera-se o respeito ao apoio financeiro e técnico para a construção de escolas, da inclusão digital, melhoria nas condições de funcionamento das escolas quilombolas e do campo e oferta de transporte escolar intra-campo (PORTARIA Nº 86, 1º DE FEVEREIRO DE 2013). Garantir infraestrutura física adequada e recursos tecnológicos às escolas do campo e quilombolas representa a possibilidade de assegurar educação de qualidade e evitar a evasão de um contingente considerável de educandos e educandas que não encontram motivação para se fazer presente em espaços tão precários. Pelo fato de ser um programa muito recente o PRONACAMPO necessita ser melhor debatido no âmbito da Educação do Campo. A restrição ao protagonismo dos movimentos sindicais e sociais na elaboração das ações desta política está bem distante do cenário em que foram elaboradas as políticas anteriores. Neste contexto, com clareza é identificado o predomínio do agronegócio disputando os recursos públicos. A evidência desta disputa é a incorporação da formação profissional concebida RETTA, Vol. VIII, nº 11, jan.-jun./2015

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pela agricultura industrial, representada pelo Pronatec Campo15. Contudo, apesar desta contradição dentro do Programa, o mesmo teve uma conquista significativa no que diz respeito à formação de educadores do campo por meio da ampliação de políticas com esta finalidade. O eixo pertinente à formação de educadores considera a concepção que os movimentos sociais apresentam sobre a política voltada para a formação de educadores traduzida pelo Programa de Apoio à Formação Superior em Licenciatura em Educação do Campo – PROCAMPO (FONEC, 2012).

Considerações Finais A Educação do Campo não pode ser compreendida nem efetivada sem políticas públicas que sustentem este projeto educativo que forma sujeitos para organizar uma outra sociedade. No entanto, na construção de um projeto popular para o campo, a exigência e a elaboração de políticas públicas revela um dos maiores desafios para os movimentos sociais, ou seja, a necessidade de diálogo com os órgãos do governo. Historicamente o Estado brasileiro dispensou qualquer representatividade do povo na idealização e na consolidação de suas políticas e dos seus programas. É inadmissível que os sujeitos principais a quem estas políticas se reportam não participem de suas elaborações. Caso contrário serão políticas homogeneizadoras, com objetivos incompatíveis com as demandas do campo. Neste sentido, ressalta-se a importância da organização popular para a exigência e a efetivação do compromisso do Estado com a massa camponesa. O Movimento por uma Educação do Campo não pode deixar de considerar a estrutura da organização, até mesmo para continuar existindo dentro de uma realidade tão dinâmica e tão contraditória. Como bem expressa Fernandes (2008, p. 164):

Criado em 2011, está integrado ao  Programa Nacional de Educação no Campo (Pronacampo),  do Ministério da  Educação, e incorporado ao Programa Nacional de Acesso  ao Ensino Técnico e Emprego (Pronatec).  Recebe apoio do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) e disponibiliza vagas no Programa Escola Técnica Aberta do Brasil (e-Tec) e noscursosde formação inicial e continuada (FIC).

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RETTA – Revista de Educação Técnica e Tecnológica em Ciências Agrícolas A minimização da diferenciação, a inclusão de novos camponeses no espaço de diferenciação ou a exclusão deste espaço pode ser controlado por meio de políticas públicas, que são geradas pelos paradigmas predominantes e que estão presentes no poder do Estado. A geração de políticas é resultado também do poder de organização dos movimentos camponeses, que podem definir o sentido de políticas.

O sentido da existência da organização também se verifica quando a reconhecemos como componente fundamental na estruturação das políticas públicas, para que não haja descompasso entre a instituição dos decretos e a afirmação prática dos mesmos. A organização se apresenta, então, como força transformadora que mantém o equilíbrio do movimento revolucionário para a concretização dos objetivos estabelecidos. Em qualquer exercício de análise que fizermos, iremos encontrar a organização como esteio central que estabelece o ponto de referência para o comportamento de seus militantes. Não basta que eles tenham um nível elevado de informações e conhecimentos, é preciso que transformem esse conhecimento em diretrizes que se combinem com os “desejos e motivações” das massas nas ações concretas. Fora isso, todo conhecimento político é inútil (BOGO, 2010, p. 181).

Vale ressaltar, ainda, que todo movimento pela Educação do Campo que reivindica políticas públicas específicas, tem sua gênese no protagonismo das organizações e movimentos sociais nos quais também se sustenta. Na medida em que se eleva a consciência do povo sobre seus direitos, novas políticas públicas são exigidas e, assim, se justifica o fato de serem os movimentos sociais os mais engajados nessa luta, uma vez que “são esses movimentos os grandes educadores coletivos da nova consciência política dos direitos.” (Arroyo, 2004, p. 60)

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FONEC - Fórum Nacional de Educação do Campo: Notas para análise do momento atual da Educação do Campo. Seminário Nacional – Brasília, 15 a 17 de agosto 2012. GADOTTI, M. Educação e poder: introdução à pedagogia do conflito. 13. ed. São Paulo: Cortez, 2003.

HAGE, Salomão Mufarrej. Por uma escola do campo de qualidade social: transgredindo o paradigma (multi)seriado de ensino. Brasília, v. 24, n. 85, p. 97-113, abr/ 2011.

MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO. Programa Nacional de Educação do Campo: PRONACAMPO. Brasília/ DF: MEC, Março de 2012. Disponível em http://www.consed.org.br/images/phocadownload/pronacampo.pdf. Acesso em 26 de junho de 2015.

MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO. Portaria nº 86 de 1º de Fevereiro de 2013. Institui o Programa Nacional de Educação do Campo - PRONACAMPO, e define suas diretrizes gerais. Brasília/DF: GABINETE DO MINISTRO. Disponível em http://www.lex.com.br/legis_24140877_PORTARIA_N_86_ DE_1_DE_FEVEREIRO_DE_2013.aspx. Acesso em 26 de junho de 2015. MOLINA, Mônica Castagna. A contribuição do PRONERA na construção de políticas públicas de educação do campo e desenvolvimento sustentável. 2003. Tese. (Doutorado em Desenvolvimento Sustentável). Centro de Desenvolvimento Sustentável da Universidade de Brasília, Brasília, 2003.

MOLINA, Mônica Castagna: JESUS, Sonia Meire Santos Azevedo de. Contribuições do PRONERA à Educação do Campo no Brasil Reflexões a partir da tríade: Campo –Política Pública – Educação. In. :Clarice Aparecida dos Santos, Mônica Castagna Molina, Sonia Meire Santos Azevedo de Jesus (organizadoras). Memória e história do Pronera: contribuições para a educação do campo no Brasil. Brasília: Ministério do desenvolvimento Agrário, 2010. p.29-63. PRONERA. Manual de Operações. Brasília, 2004. RETTA, Vol. VIII, nº 11, jan.-jun./2015

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LUTAS DOS MOVIMENTOS SOCIAIS DO CAMPO E SUAS CONTRADIÇÕES NA CONSTRUÇÃO DA EDUCAÇÃO DO CAMPO Marília Campos16 RESUMO Os Movimentos Sociais do Campo, em suas lutas pela conquista da terra na década de 1990, produziram experiências educativas próprias, principalmente dentro dos acampamentos. Reivindicaram também o acesso à educação pública conquistando diversas escolas financiadas pelo Estado, além de políticas públicas que resultaram na criação do PRONERA (1998) e da Educação do Campo, lentamente institucionalizada através de Diretrizes Operacionais (Resolução CNE/CEB No1/2002) e de sua transformação em modalidade da Educação Básica (Resolução CNE CEB No4/2010). Como modalidade, a Educação do Campo passa a integrar as novas Diretrizes Curriculares Nacionais, devendo ser implementada pelos sistemas de ensino nos âmbitos municipal, estadual e federal. No entanto, se as referências da Educação do Campo partem das experiências de educação não-escolar, como podem se adequar ao formato escolar sem perder suas características? Além disso, o corte de recursos da educação na atual gestão Dilma (2014-2018) aliado ao lançamento da proposta da “Pátria Educadora”, bem como ao “descompromisso” dos gestores da educação pública nos diversos níveis da Federação, nos levam a crer que a “Educação do Campo” pode estar se tornando apenas um novo nome para o antigo “Ensino Rural”, dentro da confluência perversa entre as políticas públicas neoliberais e as perspectivas de luta política dos Movimentos Sociais do Campo. Palavras-Chave: Movimentos Sociais do Campo; Educação do Campo; Políticas Neoliberais.

Doutora em Sociologia (PPGAS – UFRJ), Prof.aAdjunto II da Licenciatura em Educação do Campo – UFRRJ. Endereço eletrônico: [email protected]

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PEASANT SOCIAL MOVEMENTS STRUGGLE AND THEIR CONTRADICTIONS IN THE CONSTRUCTION OF PEASANT EDUCATION ABSTRACT The Peasant Social Movements during their struggle to conquest the rural area in the 1990’s produced their own educational experiences especially inside the camps. They also claimed access to public school, being able to achieve many State schools and beyond that, public politics that leaded to the creation of PRONERA (1998) and Peasant Education, which is, slowly institutionalized through Operational Guidelines (Resolution CNE/CEB No1/2002) and its transformation into modality of Basic Education (Resolution CNE CEB No4/2010). As a modality, the Peasant Education is included in the new National Curricular Guidelines and should be applied by the educational system in national, state and city levels. Nevertheless, when the Peasant Education references come from non-school educational experiences, how could they fit into a school pattern without losing its basic features? Besides that, the resources cut in the Education Area during the present Dilma administration (20142018) together with the project “Pátria Educadora”, as well as the lack of commitment of the Public Education administrators in many levels of the Federation, make us believe that the “Peasant Education” is becoming a new name for the old rural schooling, inside the mean convergence between the neoliberal public politics and the educational propositions produced by the Peasant Social Movements. Keywords: Peasant Social Movements, Peasant Education, Neoliberal Politics

Recordando o percurso histórico da Educação do Campo Em julho de 1997, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra - MST organizou o I Encontro Nacional de Educadores da Reforma Agrária - ENERA. Naquele momento, buscava-se sistematizar experiências educativas alternativas produzidas no processo de luta pela ocupação da terra, 80

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bem como articular as mobilizações pelo acesso à educação por parte de acampados e assentados da Reforma Agrária. No ano seguinte (1998), foi organizada a I Conferência Por Uma Educação Básica no Campo em Goiás, ocasião em que os movimentos buscaram construir uma contraposição crítica ao histórico “ensino rural”, tendo como referência o resgate da “identidade camponesa”. Em abril de 1998, como consequência de todas essas articulações, foi criado o Programa Nacional de Educação da Reforma Agrária – PRONERA, ligado ao Ministério do Desenvolvimento Agrário – MDA e ao Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária – INCRA. O papel do PRONERA estava voltado para a implementação de projetos de educação específicos para as áreas de Reforma Agrária, ou seja, não se estendia a todas as escolas das áreas rurais – sob jurisdição dos sistemas de ensino e do Ministério da Educação, tornando-se uma política pública especial e pontual para aqueles grupos específicos de sujeitos do campo. Em 2001, em função das diversas articulações realizadas entre os movimentos sociais do campo e outras instituição, a Câmara de Educação Básica do Conselho Nacional de Educação – CNE/CEB – aprovou o Parecer no 36 esboçando as Diretrizes Operacionais para Educação Básica nas Escolas do Campo, em 2002 transformada na Resolução No1. O termo “Educação do Campo” começa a ser utilizado a partir desse contexto marcado pelo Seminário Nacional sobre Educação do Campo, realizado em novembro daquele mesmo ano, em Brasília. Conforme nos indica Caldart (2013, p. 259):

O esforço feito no momento de constituição da Edu do Campo (...) foi de partir das lutas pela transformação da realidade educacional específica das áreas de Reforma Agrária (...) para lutas mais amplas pela educação do conjunto dos trabalhadores do campo.

Segundo a autora, para que isso pudesse ocorrer, tornar-se-ia necessário retomar as experiências históricas das Escolas Família Agrícola, do Movimento de Educação de Base, dos quilombolas, dos indígenas, dos movimentos sociais do campo, de organizações sindicais e comunitárias de agricultores. Ressalta ainda que “a educação não se resolve por si mesma e nem apenas no âmbito local.” (CALDART, 2013, p. 259) RETTA, Vol. VIII, nº 11, jan.-jun./2015

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Em julho de 2004, foi organizada a II Conferência Por Uma Educação Básica no Campo, ocasião em que se buscou reafirmar a luta por políticas públicas que garantissem aos sujeitos do campo o direito à educação – e a uma educação que fosse no campo e do campo. Dessa forma, a Educação do Campo surgia como forma de Educação Diferenciada já que, conforme estava indicada nas Diretrizes Operacionais (2002):

[Art. 2o, Parágrafo Único] A identidade da escola do campo é definida pela sua vinculação às questões inerentes à sua realidade, ancorando-se na temporalidade e saberes próprios dos estudantes, na memória coletiva que sinaliza futuros, na rede de ciência e tecnologia disponível na sociedade e nos movimentos sociais em defesa de projetos que associem as soluções exigidas por essas questões à qualidade social da vida coletiva no país.

Naquele momento, conforme nos indica Caldart (2013, p. 259), algumas interrogações eram lançadas pelos Movimentos Sociais: por que os camponeses não precisavam ter acesso à escola e por que a almejada “universalização” da Educação Básica não incluía os trabalhadores do campo? Por que, no Brasil, foi possível constituir diferentes mecanismos para impedir a universalização da educação escolar básica, mesmo pensada dentro dos parâmetros das relações sociais capitalistas? Importante lembrar que, nos anos 2000, a conjuntura esteve marcada pela afirmação do Agronegócio e das Commodities, bem como o recuo da Reforma Agrária. Relevante frisar que a gestão Collor de Mello (19901992) havia introduzido os primeiros mecanismos neoliberais, aprofundados e fortalecidos durante as duas gestões FHC (1994-1998; 1998 – 2002), bem como na era das gestões petistas (Lula: 2002 – 2006; 2006 – 2010 e Dilma: 2010 – 2014; 2014 – 2018). Imprescindível recordar a implementação processual de procedimentos neoliberais no âmbito das políticas educacionais e em sua articulação com os demais setores das políticas de governo – estas últimas referenciadas em acordos internacionais dos quais o Brasil tornou-se signatário. No bojo desse percurso, em 2004, durante a primeira gestão Lula, foi criada, no âmbito do Ministério da Educação – MEC,a Secretaria de 82

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Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade – SECAD17, voltada para implementação de políticas da Diversidade (Educação Especial, Educação para as Relações Etnicorraciais, Educação do Campo, Educação Indígena, Educação Quilombola, Educação em Direitos Humanos, Educação Especial, Gênero e Diversidade Sexual, Educação Ambiental, Educação de Jovens e Adultos). Na SECAD, foi criada uma Coordenadoria Geral da Educação do Campo, instituindo, dessa forma, uma instância específica voltada para implementação daquela política, paralelamente àquela outra sob responsabilidade do PRONERA-MDA-INCRA. A Educação do Campo, então, passou a se constituir, enquanto política pública, como uma cobra com duas cabeças. Em 2007, no âmbito da CGEC-SECAD e como consequência dos debates realizados em 2004 em torno da necessidade de formação de professores do campo de maneira diferenciada, ocorrem as primeiras experiências das Licenciaturas em Educação do Campo em Universidades Federais. Estas experiências apontavam, dentre outras questões, para a vivência da Pedagogia da Alternância e para uma formação de professores que partisse das múltiplas realidades socioculturais dos diversos sujeitos do campo (acampados e assentados da Reforma Agrária, agricultores familiares, povos tradicionais do campo, extrativistas, ribeirinhos, etc).

Em 2010, é criado o Fórum Nacional da Educação do Campo – FONEC, instância capaz de aglutinar os diversos movimentos e sujeitos do campo, sistematizando suas demandas e seus enfrentamentos a partir do lento processo de implementação das políticas públicas relacionadas à Educação do Campo. Naquele mesmo ano, ainda são aprovados o Decreto No 7.352 e a Resolução CNE/CEB No 4. O Decreto No 7.352 institui a Política de Educação do Campo e o PRONERA, sendo importantes os conceitos de “escola do campo” e de “povos do campo”.18 Já a Resolução CNE/CEB Atualmente, SECADI – “I” de “Inclusão”.

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Segundo o Decreto No 7.352/2010, “populações do campo” são “os agricultores familiares, os extrativistas, os pescadores artesanais, os ribeirinhos, os assentados e acampados da Reforma Agrária, os trabalhadores assalariadosrurais, os quilombolas, os caiçaras, os povos da floresta, os caboclos e outros que produzam suas condições materiais da existência a partir do trabalho no meio rural”. Por “Escola do Campo” compreende-se “aquela situada em área rural, conforme definida pelo IBGE, ou aquela situada em área urbana, desde que atenda predominantemente a populações do campo.

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No 4 institui as novas Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Básica, incluindo a Educação do Campo, a Educação Indígena e a Educação Quilombola como modalidades da Educação Básica, instituindo sua implementação no âmbito dos sistemas de ensino nas diversas instâncias da Federação (municipal, estadual e federal), indicando diversas configurações específicas no âmbito das Diversidades.

A essa altura do momento histórico, as políticas da Educação do Campo foram sendo construídas de forma articulada com políticas de outros Ministérios, voltadas principalmente para o fortalecimento dos agricultores familiares e agroecológica.19 Para complementar, em 2013, a Portaria No 86 institui o Programa Nacional de Educação do Campo - PRONACAMPO. Em 2014, a Lei No12.960 de 27 de março de 2014, indicou a necessidade de constar a exigência de manifestação de órgão normativo do sistema de ensino para o fechamento de escolas do campo, indígenas e quilombolas, como tentativa de fazer frente ao recorrente e histórico fechamento e nucleação das escolas nas áreas rurais. No entanto, apesar de tudo isso, o quantitativo de escolas fechadas permanece alarmante.

Contradições no percurso da institucionalização recente da Educação do Campo: Conforme vimos até agora nessa revisita rápida do percurso da Educação do Campo dentro do âmbito das políticas da Diversidade, a Educação do Campo propõe um conjunto de direcionamentos específicos, tais como: tratar o projeto institucional das escolas do campo como espaço público de investigação de experiências; construir propostas pedagógicas que contemplem a diversidade do campo (aspectos sociais, culturais, políticos, econômicos, de gênero, de geração e de etnia); flexibilizar o calendário escolar (Pedagogia da Alternância); realizar a avaliação institucional As políticas da Educação do Campo são articuladas com outras voltadas para a agricultura familiar e orgânica, tais como a instituição do Programa Nacional da Agricultura Familiar - PRONAF; da Política Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica – PNAPO, o Programa de Aquisição de Alimentos PAA, o Programa Nacional de Alimentação Escolar - PNAE, dentre outros.

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da proposta em função de seus impactos na localidade através de controle social da qualidade da educação e gestão democrática(escola, comunidade local, movimentos sociais, órgãos normativos dos sistemas de ensino e outros). Além disso, cabe aos sistemas de ensino implementar ações de formação inicial e continuada de professores para garantir a formação de professores diferenciados, tendo em vista a diferenciação do custo-aluno e a necessidade de construção de materiais didáticos específicos. Nesse âmbito, as Diretrizes Operacionais indicaram, ainda, que os movimentos sociais poderiam subsidiar as políticas educacionais, enunciado que vai colocando os movimentos sociais onde, de certa forma, eles sempre estiveram: do lado de fora da escola pública, do lado de fora do Estado – ainda que a geração da década de 1990 tenha aprofundado sua militância nas fileiras da administração pública e na engenharia político-participativa. Uma geração de militantes sociais que optou lutar por políticas públicas e pela “ocupação” do Estado. Caldart (2013, p. 261) nos apresenta um conjunto de questões e tensionamentos para o processo em curso da Educação do Campo. Questiona:

Como defender a educação dos camponeses sem confrontar a lógica da agricultura capitalista que prevê sua eliminação social e mesmo física? Como pensar em políticas de educação no campo ao mesmo tempo em que se projeta um campo com cada vez menos gente? Como admitir como sujeitos propositores de políticas públicas, movimentos sociais criminalizados pelo mesmo Estado que deve instituir essas políticas?

Aponta ainda que a Educação do Campo se constitui como luta social pelo acesso dos trabalhadores do campo à educação, ganhando também uma dimensão de pressão coletiva por políticas públicas mais abrangentes. A autora pontua ainda outra questão bastante grave: a vinculação que a Educação do Campo com a luta pela terra, quando o contexto atual que estamos vivenciando está caracterizado pelo recuo da Reforma Agrária. Como fica a Educação do Campo em contexto de afirmação das políticas agrária e agrícola para o agronegócio? No contexto atual de crise econômica, o Agronegócio já vem propagando que tem representado importante papel na sustentação do desempenho econômico do Brasil, RETTA, Vol. VIII, nº 11, jan.-jun./2015

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já que, segundo o CEPEA, o setor representa quase um quarto do PIB nacional, prevendo que o Produto Interno Bruto (PIB) do agronegócio do Brasil crescerá 2,8% em 2015. O setor vai encontrar em 2015 um mercado interno estagnado ou em fraca expansão, resultado do aumento do desemprego e de desaceleração dos salários.20

Retornando às observações de Caldart (2013), a Educação do Campo também traz, em seu processo de constituição, a sua especificidade, tendo em vista sua busca em torno de uma atividade educativa que se referencie em outras lógicas de produção da vida, dos modos de vida. Aponta-nos ainda que a Educação do Campo não nasceu como Teoria Educacional; suas primeiras questões foram práticas. Mas por se tratar de práticas e de lutas contra-hegemônicas, faz-se necessária Teoria (a partir dos modos de vida dos sujeitos do campo). Nesse âmbito da implementação de políticas voltadas para a Diversidade, perguntamos: que lugar ocupa essa política no interior do MEC? O próprio Ministério da Educação parece não saber bem como conciliar uma política sistêmica voltada para a padronização dos conteúdos e dos procedimentos nos sistemas de ensino – a partir de procedimentos de avaliação estandardizada e classificatória – com uma política voltada para a implementação de políticas educacionais específicas e diferenciadas. Como ficarão as escolas do Campo como Educação Diferenciada no bojo da testagem nacional padronizada? “Provinhas Brasil” das escolas do campo? “Provinha Brasil” quilombola?

Além disso, torna-se necessário atentar para o fato de que o contexto da educação, ao nível nacional, está marcado pelo corte orçamentário e pela apresentação da proposta “Pátria Educadora” pela Secretária de Assuntos Estratégicos. Este quadro deveria nos propor uma reflexão acerca da precarização que caracterizará toda a vida educacional no âmbito público, inclusive para a justificativa de implementação de parceria público-privada como forma de financiamento da educação. Nesse âmbito, uma série de procedimentos já foi encaminhada, tais como as metas já anunciadas na ocasião da institucionalização do Plano de Desenvolvimento da Educação PDE (2007), o Índice de Desenvolvimento da Educação Básica – IDEB, bem http://tradecorp.com.br/pib-do-agronegocio-do-brasil-deve-crescer-28-em-2015-preve-cepea/

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como o lançamento do Plano de Metas Compromissos Todos pela Educação (Decreto 6.094/2007).

A proposta “Pátria Educadora” incorpora plenamente as perspectivas neoliberais; em seu texto, explicita que, atualmente, possuímos muitos experimentos que seguiram a lógica empresarial, chegando a afirmar que “temos muito que aprender com a orientação empresarial”. Como expressão dessa lógica, o documento propõe: fixação de metas de desempenho; a continuidade da avaliação; uso de incentivos e métodos de cobrança; acompanhamento e “afastamento” dos diretores conforme sua atuação, além da despolitização do processo da escolha de diretores; além da proposição de procedimentos de individualização do ensino. Para Frigotto (2010), o PDE já expressava uma “Pedagogia de Resultados” (Saviani) baseado em avaliação de produtos. No âmbito da gestão, então, a lógica sistêmica estaria apoiada em: parceria público-privado; Pedagogia dos Resultados e das Competências; Teoria do Capital Humano. No que diz respeito às Universidades, esse avanço da lógica neoliberal também se faz sentir, já que de instituições públicas ligadas ao Estado Republicano estão se transformando em Organização Social vinculada ao Mercado, marcada por intenso produtivismo. Dessa forma, segundo Frigotto (2010): ...o pensamento mercantil da Universidade Operacional nos tomou quase por completo. (...) consciente ou inconscientemente entramos no mercado do conhecimento, do ensino e da pesquisa e nos submetemos aos critérios de mensuração mercantil. E uma mercadoria recusa a diferença, recusa o diverso, recusa o plural, a mercadoria é univocidade. (Oliveira) A mercadoria é reificação, o fetiche e a alienação em ato. Para o mercado não há sociedade, há indivíduos em competição. E para o mundo da acumulação flexível, não há lugar para todos, só para os considerados mais competentes...

Todo esse quadro nos leva a refletir acerca da fragilidade do MEC no âmbito das políticas públicas. Apesar de todo o conjunto de diversos planejamentos (nacionais, internacionais) em vigor desde os anos 1970, o MEC permanece estruturalmente limitado e a educação não se constitui realmente em prioridade. Assim, segundo Garcia in KUENZER (2003), a situação do MEC estaria marcada por: a) pouca influência na formulação RETTA, Vol. VIII, nº 11, jan.-jun./2015

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da política educacional; b) a descontinuidade das ações; c) redução do planejamento a orçamento; d) diminuição da capacidade do MEC em influir nos destinos da Educação.Note-se que esta era a análise do autor para a situação da educação brasileira na década de 1980.

Por último, voltemos às formulações de Caldart (2013, p. 262). Para a autora, a Educação do Campo está para além da educação escolar: “uma política de educação do campo nunca será somente de educação em si mesma e nem de educação escolar, embora se organize em torno dela. ” Como experiências de educação não-escolar (experiências produzidas pelos movimentos sociais) podem ser circunscritas/restritas ao espaço escolar? O que se perde na transformação da escola comunitária, construída na luta coletiva, em escola do Estado? Que saberes e práticas da comunidade são expulsos? Como educação não-escolar, por que o movimento social organiza suas lutas “em torno da escola”, em torno de demandas por políticas públicas? O que se perde e se ganha com isso? Precisamos interrogar-nos também acerca desse processo político que vem se desdobrando ao longo das gestões petistas, marcado pela presença de diversos militantes dos movimentos sociais em diversos postos de “gerência” do Estado. Nesse processo, várias lutas e bandeiras (demandas) históricas vêm sendo incluídas nos documentos de formulação de políticas públicas. Então temos um duplo ilusionismo: o (“ex”-) colega de lutas e as pautas de luta e formulações construídas nos enfrentamentos ao longo das décadas. Tudo isso ocorrendo num contexto de repasse de encargos anteriormente do Estado para a “sociedade civil”. Esse processo, Dagnino (2004, p. 99) denominou de “confluência perversa”:

...os anos noventa no Brasil são caracterizados por uma inflexão nas relações entre o Estado e setores da sociedade civil comprometidos com o projeto participativo democratizante, onde estes últimos substituem o confronto aberto da década anterior por uma aposta na possibilidade de uma atuação conjunta com o Estado. A chamada ‘inserção institucional’ dos movimentos sociais é evidência dessa inflexão. (...) Assim, o que essa ‘confluência perversa’ determina é um obscurecimento dessas distinções e divergências, por meio de um vocabulário comum e de procedimentos e mecanismos institucionais que guardam uma similaridade significativa.

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Uma das tendências apontadas por Caldart (2013) era que “pela lógica do modelo dominante, é a Educação Rural e não a Educação do Campo que deve retornar à agenda do Estado.” Parece-nos que isso tem acontecido: os atores se misturaram, perdeu-se a “confiança”, lobos vestem-se sob peles de cordeiro. Sem ter conseguido se diferenciar suficientemente nas cenas políticas das últimas décadas, os movimentos sociais do campo vivem o dilema de precisar aprender a se diferenciar, a revalorizar experiências contra-hegemônicas como caminhos alternativos a serem buscados, conquistados, experimentados.

Referências BETINHO – Herbert José de Souza. Como se faz análise de conjuntura. 19 ed, Petrópolis: Vozes, 1999.

CALDART, Roseli; PEREIRA, Isabel Brasil; ALENTEJANO, Paulo; FRIGOTTO, Gaudêncio (org). Dicionário da Educação do Campo. 3 ed, Rio de Janeiro, SP: Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio, Expressão Popular, 2013.

DAGNINO, Evelina. Sociedade Civil, participação e cidadania: de que estamos falando?In: MATO, Daniel (coord). Politicas de cidadania y sociedade civil em tempos de globalizacion. Caracas: FACES, Universidad Central de Venezuela, 2004, p. 95-110. KUENZER, Acácia Z., CALAZANS, Maria Julieta Costa; GARCIA, Walter. Planejamento e Educação no Brasil. 6 ed, SP: Cortez, 2003.

FRIGOTTO, Gaudêncio. Os circuitos da História e o Balanço da Educação no Brasil na primeira década do século XXI. Conferência de Abertura da XXXIII Reunião Anual da ANPED. Caxambu, MG, 17 de outubro de 2010. OLIVEIRA, Francisco de; BRAGA, Ruy; RIZEK, Cibele. Hegemonia às avessas. Boitempo. RETTA, Vol. VIII, nº 11, jan.-jun./2015

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SECRETARIA NACIONAL DO MST. II Encontro Nacional de Educadoras e Educadores da Reforma Agrária – II ENERA – Textos para estudo e debate. SP: MST, 2014.

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A LUTA DOS MOVIMENTOS SOCIAIS PELA CONSTRUÇÃO DE UMA EDUCAÇÃO DO CAMPO Katja Augusto21 Resumo Neste ensaio, aborda-se a questão da educação nas áreas rurais. Começa-se por assinalar o tratamento que o Estado brasileiro conferiu às populações rurais no âmbito da educação, para depois apresentar o modelo educacional exigido pelos movimentos sociais do campo. O retrato das escolas situadas no meio rural revela-nos que as carências são enormes, proporcionais ao descaso do poder público para com a educação nestas áreas. Os índices de analfabetismo e de baixa escolaridade são também dramáticos. Para os movimentos, uma das formas de combate aos flagelos sociais que os povos rurais enfrentam perpassa por uma educação que leve em consideração a sua realidade e os seus interesses, uma educação que leve em conta as necessidades e as expectativas das populações que habitam o campo. Este texto foi escrito após ampla revisão bibliográfica sobre o tema e entrevistas a militantes e professores de áreas rurais. Palavras-chaves: Meio rural, Movimentos sociais do campo, Educação do campo.

THE FIGHT OF SOCIAL MOVEMENTS FOR THE CONSTRUCTION OF A FIELD OF EDUCATION Abstract This essay approaches the education in rural areas. It starts to point out the treatment that Brazilian state gave to rural people in terms of education, and then to present the educational model required by rural social movements. The picture of the rural schools shows us the big shortage, proportional to the neglect of the authorities to the education in this area. The illiteracy and low scholarity rates are dramatic too. For the social movements, one way to fight against Graduada em Comunicação Social – Jornalismo e pós-graduada em Mídias Digitais.Doutora em Ciências da Comunicação (2014), pela Universidade de Coimbra. Endereço eletrônico: [email protected]

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RETTA – Revista de Educação Técnica e Tecnológica em Ciências Agrícolas social scourges that rural people face is to offer them an education that takes into consideration their reality and concerns, needs and expectations. This essay was written after a wide bibliographic review about the theme and interviews with militants and teachers of rural areas. Keywords: Rural area, Rural social movements, Rural education.

Introdução A educação dos homens e mulheres que viviam no meio rural brasileiro sempre foi tratada com desprezo pelos governantes. Todas as Constituições elaboradas e publicadas até o século XX deixaram evidente esse descaso, ao não fazer qualquer referência à educação nas áreas rurais, mesmo sendo o Brasil “um país de origem e predominância eminentemente agrária” (RAMOS, MOREIRA & SANTOS, 2004: 7). Quando o poder público começou a pensar num projeto de escola e educação rurais, o que aconteceu na primeira metade do século XX, tinha como um dos principais objetivos reduzir as taxas de analfabetismo, as quais eram dramaticamente altas. Mas também visava a “valorização do homem rural” e fixá-lo “à terra em que vive” (PRADO, 1995: 5-6), de forma a evitar que migrasse para as grandes cidades. Na verdade, tal projeto estava inserido num plano maior que pretendia impulsionar o desenvolvimento econômico do país, de caráter urbano-industrial, no qual o meio rural e a agricultura desempenhariam um papel importante, em virtude da necessidade de modernizar e aumentar a produção do setor agrário. A proposta da escola rural de então foi elaborada pelo Estado segundo as orientações educacionais de organizações internacionais, como a CEPAL e a UNESCO, e de acordo com os interesses da elite econômica, que considerava que a escola situada no campo deveria formar os estudantes unicamente para o trabalho manual. Os movimentos populares que à época já existiam no campo pouco ou nada puderam contribuir, com as suas vivências, para a construção do projeto, tendo sido apenas convocados “para participar da ação coletiva de construção de um país desenvolvido” (HIDALGO & MIKOLAICZYK, 2012: 112). Esta escola seria bem diferente daquela existente no meio urbano. Não só desconsiderava 92

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completamente os saberes locais, como também negava uma educação de qualidade aos seus educandos e educandas, uma vez que os conteúdos estavam limitados a ler, escrever e contar, além da formação de mão-de-obra para trabalhar no campo. O intuito era prevenir que a expansão dos conhecimentos sobre o mundo por parte dos estudantes rurais os fizesse almejar outros horizontes, abandonando dessa forma o seu meio e deixando-o carente de trabalhadores especializados.

A escola rural era, assim, o indicativo, ou um dos muitos indicativos, de que o plano de desenvolvimento econômico do Brasil era excludente, já que diferenciava os seus cidadãos e cidadãs de acordo com o meio no qual estavam inseridos, ao destinar uma educação claramente inferior aos habitantes das áreas rurais. O próprio termo “rural” era já tido como um sinônimo de inferioridade, por ser constantemente vinculado às ideias de “lugar atrasado, rude e rústico” (HIDALGO & MIKOLAICZYK, 2012: 113). A falta de uma política de educação voltada para as populações rurais, que não fosse de caráter compensatório, acarretou num “quadro de precariedade no funcionamento da escola do campo”. A este quadro juntou-se a falta de profissionais pedagógicos capacitados, as péssimas infraestruturas, as más condições de trabalho, os salários inadequados, bem como falta de financiamento e um currículo desarticulado com as necessidades do campo (RAMOS, MOREIRA & SANTOS, 2004: 7).

Com o início da redemocratização do país, no final da década de 1970 e princípio da década de 1980, os movimentos sociais do campo conseguiram iniciar uma luta de reivindicação por uma educação que não estivesse fundamentada num pragmatismo econômico e que reconhecesse a cultura e os saberes das sociedades rurais. Começou, então a luta pela construção de uma educação do campo, que defendesse a “valorização do homem do campo e sua participação nos rumos da história, valorização do local em detrimento do global e a valorização acentuada do discurso das ‘especificidades’ da educação que se promove no campo, para os homens do campo” (HIDALGO & MIKOLAICZYK, 2012: 113). Este percurso está longe de ser um processo terminado, pois apenas começou a ganhar visibilidade e a conquistar espaço a partir do momento em que as suas demandas foram inspiradoras de políticas públicas. RETTA, Vol. VIII, nº 11, jan.-jun./2015

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O papel dos movimentos sociais do campo na construção de uma educação do campo A situação da educação e das escolas rurais permanece ainda muito aquém do ambiente ideal, ou pelo menos com o mínimo necessário, para uma prática de ensino-aprendizagem de qualidade. Segundo a literatura sobre o assunto, essa precariedade ainda persiste, apesar das lutas promovidas pelos povos e movimentos do campo. São escolas isoladas, com poucas condições, classes multisseriadas, professores despreparados e sobrecarregados. Não são raras as vezes em que os governos locais optam por fechar estas escolas e mandar as crianças para aquelas situadas no meio urbano, a dezenas de quilômetros de distância, sob a alegação de que o cumprimento de transportá-las diariamente para as escolas urbanas fica mais barato do que manter abertos os estabelecimentos de ensino nos meios rurais. Uma vez na cidade, estes estudantes são frequentemente estigmatizados, ao serem colocados em turmas separadas dos colegas citadinos ou ao serem considerados atrasados por esses mesmos colegas quando compartilham a mesma sala:

O prefeito e o secretário de educação acham que tem pouco aluno. (...) não pode pagar professor para ir lá [à zona rural] para dar aula para meia dúzia de alunos, pagando ajudas de custo (...). Então, traz para a cidade. E o aluno já vem em desvantagem, porque tem o lado social também: mal vestido, às vezes está com o pé no chão, sandália de dedo, não tem o tênis da moda (...). É estigmatizado, porque eles gozam! (Abraão Silva, 59 anos22). Aqui não tem escola dentro do Assentamento23. (...) A Prefeitura acabou fechando várias escolas pelo número de alunos. Então a política do governo, tanto em nível federal quanto do estado e local, é pegar e juntar, fazer a junção das

Entrevista com Abraão Silva, realizada no dia 5 de agosto de 2013, na UFRRJ.

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Assentamento Roseli Nunes, situado no município de Piraí, região do Vale Médio do Paraíba do estado do Rio de Janeiro. Assentamento rural é todo o projeto “de Reforma Agrária com base nos instrumentos de desapropriação por interesse social de imóveis rurais que não cumprem a sua função social”, cujos assentados são, maioritariamente, trabalhadores rurais sem terra ou com pouca terra (LEITE in CALDART el all, 2012: 110-114)

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escolas. Sai mais barato para o município. É mais fácil fechar três escolas e comprar um ônibus para pegar as crianças e juntar num polo maior. Piraí não é diferente. Então as crianças... tem uma van escolar que vai ao Assentamento e pega todas as crianças e leva até a um determinado ponto, onde passa o ônibus escolar grande, [que] pega as crianças e leva para a escola. (Sidnei Ramos, 31 anos24).

Percebemos, a partir dos depoimentos, que, os governantes consideram ser desperdício de recursos financeiros manter abertas as escolas rurais cujo número de alunos é inferior ao “mínimo desejado”. Não se leva em consideração o transtorno do deslocamento causado às crianças e jovens, muito menos a qualidade de ensino ofertada. Além disso, a opção de transferência das crianças e dos adolescentes das áreas rurais para as escolas das cidades corrobora a ideia de superioridade destas em relação àquelas (determinismo geográfico), o que “reforça a dicotomia ainda presente no imaginário da sociedade” (MORIGI, s/d: 8). Sem dúvida, o preconceito experimentado por esses jovens rurais pode dar lugar a um sentimento de autonegação e à dificuldade em “se enxergar como sujeitos daquela histórica”, como diz Nilton César. Para esse aluno de Licenciatura em Educação do Campo e militante do MST,

como sujeitos históricos, eles [os jovens] têm que entender que têm uma carência diferente que é só deles. E eles vão ter que entender que as relações sociais do trabalho com a terra não são o que as pessoas estão achando que são. Não é escravocrata, não é... Porque quando se fala de agricultor, se fala de um homem sofrido, aquele de ruga de sol, aquele cara cujos pés são totalmente deformados pelo trabalho com a terra... Então essa visão de sofrimento é que tem de parar na cabeça das pessoas. E, infelizmente, os jovens sofrem isso. Quando eles vão para uma escola na cidade, que a maioria deles quando vão fazer o ensino médio vão para os centros urbanos, (...) eles são – o termo usado, o tal de bullying – ou sitiantes, ou sem terra, os transformando em diferentes. Eles não são diferentes. Porque se não existe uma integração [entre] campo e cidade, nem cidade existe. (Nilton César, 25 anos25).

Entrevista com Sidnei Ramos, realizada no dia 23 de julho de 2013, na UFRRJ.

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Entrevista com Nilton César, realizada no dia 18 de julho de 2013, na UFRRJ.

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Há, de fato, um preconceito, um estigma, uma segregação social eminentes, que estas crianças e jovens sentem na pele e com os quais frequentemente são confrontados nos ambientes urbanos, podendo mesmo condicionar o desenvolvimento social e o futuro destas crianças e jovens. Este quadro de dificuldades enfrentadas pelas populações rurais para frequentar a escola reflete-se no seu nível de escolaridade. Segundo dados do início do século XXI, os habitantes do campo com 15 anos ou mais têm em média menos de quatro anos de educação formal, menos da metade prevista para os habitantes urbanos. A maioria das escolas existentes nas áreas rurais, das quais um número considerável tem apenas uma sala de aula e as turmas são multisseriadas, são de ensino fundamental, em maior número as do primeiro segmento e em menor as do segundo, e uma minoria apenas são de educação infantil e de ensino médio. Isto revela o parco apoio do poder público à população no fornecimento de espaços destinados às crianças enquanto os pais trabalham, como também o desamparo em que se encontram os jovens que querem continuar os estudos para além do primeiro segmento do ensino fundamental. É o caso, por exemplo, da aldeia indígena de Sapucaia, no município de Angra dos Reis, na região do litoral do estado do Rio de Janeiro:

nós temos uma escola dentro da comunidade, que é uma escola intercultural, bilíngue, que é reconhecida pelo Estado, só que não tem ainda professor formado para implementar esse segundo segmento. É uma escola de primeira à quarta [série] só. (...) [Quando terminam a quarta série], não têm como ir fora dali. E a comunidade quer que continuem estudando dentro da comunidade, só que o Estado não implanta o segundo segmento. Aí, param [de estudar]” (Algemiro Caraí Mirim, 50 anos26).

O depoimento de Algemiro Caraí Mirim revela, mais uma vez, a falta de apoio do poder público, neste caso, da secretaria de educação do governo do estado do Rio de Janeiro, já que é o órgão responsável pela instituição de escolas de ensino fundamental, na promoção da educação dos habitantes das áreas rurais. Este descaso, especificamente com as comunidades indígenas, tem como consequência a baixa escolaridade destas populações. Entrevista com Algemiro da Silva Caraí Mirim, realizada no dia 5 de agosto de 2013, na UFRRJ.

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Se para frequentar o ensino médio, o público jovem de boa parte das comunidades rurais se depara com enormes dificuldades devido à conjuntura socioeconômica e à realidade local, o ensino superior é ainda mais difícil de alcançar. Marcella Medeiros, militante da Fetag e aluna de Licenciatura em Educação do Campo na UFRRJ, salienta essa questão relativamente aos jovens do Assentamento Prefeito Celso Daniel, localizado no município de Macaé:

Geralmente, eles fazem até o [ensino] médio, por ter mais essa facilidade do transporte, a Prefeitura dá os materiais, o uniforme... Então, as crianças se mantêm até o ensino médio. Mas a universidade ainda está muito longe desse público. Agora com o curso de Licenciatura em Educação do Campo, que foi uma conquista dos movimentos, [é] que a gente vem trabalhando a questão de inserir esses jovens para concluir a universidade, até para ver que é um mundo diferente” (Marcella Medeiros, 32 anos27).

De acordo com o depoimento de Marcella Medeiros, percebemos que, por norma, os jovens provenientes das áreas rurais têm dificuldade em alcançar o ensino superior, por motivos que vão desde a falta de acesso a um ensino de qualidade que os estimule a continuar os estudos à falta de motivação própria e por parte do seio familiar. A situação econômica é também um entrave à entrada na universidade, pois estes jovens, muitas vezes, são confrontados com a necessidade de trabalhar para ajudar no sustento da casa e da família. Como as universidades estão, na sua maioria, localizadas nas grandes cidades, deixar a família para ir para a universidade acarreta custos extras que boa parte das famílias não têm como pagar. Outro dado do descaso para com as escolas rurais é a falta de qualidade da infraestrutura: além de algumas não possuírem energia elétrica, a maior parte não tem biblioteca, laboratório de informática e de ciências. O desleixo do poder público face à manutenção dos edifícios escolares é frequente, como se pode perceber pelo relato do professor Rodrigo Barbosa, diretor da Escola Municipal Barão do Guandu, localizada na área rural do município de Nova Iguaçu: Entrevista com Marcella Medeiros, realizada no dia 16 de junho de 2013, na UFRRJ.

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RETTA – Revista de Educação Técnica e Tecnológica em Ciências Agrícolas [Em 2011], a escola estava com o telhado caindo praticamente, foi interditada pela Defesa Civil, e daí é que tivemos uma melhora, porque está tendo uma obra lá, a do Arco Metropolitano, está passando pertinho da escola. Teve um acordo da Prefeitura com a equipa do Arco Metropolitano, a Prefeitura entrou com a parte da pintura e com a parte elétrica, e o Arco entrou com a reforma do telhado. Então nós ficamos fora da escola uns três meses aproximadamente; dois ou três meses funcionando inicialmente na igreja, depois em um sítio. Agora deu uma melhorada em relação à infraestrutura. (...) Vamos dizer assim, a parte da infraestrutura está caminhando. O que eu vejo no momento [é que] era necessário uma ampliação do espaço, porque o [programa] Mais Educação28 funciona num espaço aberto, que é muito bom, mas quando chove não tem como ter o Mais Educação. (...) mas até mesmo das salas, de construção de novas salas. Porque a escola chegou no limite dela em termos de aluno” (Rodrigo Barbosa29).

Acresce, ainda, outra situação grave relativa ao quadro de professores, uma vez que uma parte considerável não tem a habilitação mínima para exercer esta função. É também alarmante o atraso escolar entre os estudantes da rede pública rural de ensino, o qual, embora também seja preocupante entre a população estudantil da cidade, no campo atinge valores superiores a 60% (RAMOS, MOREIRA & SANTOS, 2004: 11-30). Tanto para Rodrigo Barbosa quanto para Cristina Tavares, coordenadora do setor de Educação Ambiental e Educação do Campo da Secretaria Municipal de Educação (Semed) de Nova Iguaçu, um dos motivos para esse quadro de atraso recai no parco apoio dos pais nos estudos dos filhos:

O Programa Mais Educação, de acordo com site oficial, é uma estratégia do Ministério da Educação para a “ampliação da jornada escolar a organização curricular na perspectiva da Educação Integral”, a partir do qual as escolas públicas estaduais e municipais desenvolvem “atividades nos macrocampos de acompanhamento pedagógico; educação ambiental; esporte e lazer; direitos humanos em educação; cultura e artes; cultura digital; promoção da saúde; comunicação e uso de mídias; investigação no campo das ciências da natureza e educação econômica”. Disponível em: http://portal.mec.gov.br/index. php?option=com_content&view=article&id=16690&Itemid=1115 Acesso: 03/01/2014.

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Entrevista com Rodrigo Barbosa, realizada no dia 22 de agosto de 2013, na Secretaria Municipal de Educação de Nova Iguaçu.

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RETTA – Revista de Educação Técnica e Tecnológica em Ciências Agrícolas A grande verdade é que falta um pouco a participação dos pais. Eu acredito que, até pensando do meu lado como orientador educacional, é importante que a escola tenha esse lance com a família. E não só lá, em qualquer realidade, mas eu falo lá pelo Guandú mesmo, que falta os pais participarem um pouco mais da vida escolar dos filhos. Porque é trabalho que eles levam para casa e não fazem; precisa de um apoio, mas o pai não dá um procedimento... E a escola consegue com a sala de recursos, que é para aqueles que têm um pouco de dificuldade, que têm uma necessidade especial. Aí, a mãe fala que não quer que o filho vá. Sabe, é uma coisa que a mãe não precisa pagar nada. (Rodrigo Barbosa). Ainda tem muita repetência (...) Até ao terceiro ano, não se reprova. (...) Então, quando chega lá no terceiro ano, [o aluno] ainda não sabe ler, ou então se sabe ler, são palavras soltas, não sabe formular frases. Mas isso não é só nas escolas rurais, mas noutras escolas também acontece isso. (...) Tem pais que dão valor à educação. Agora, se você não tem isso dentro de casa, ou na comunidade onde você vive todo o mundo trabalha com aquilo e não se fala nunca que se tem que estudar, que tem que melhorar sua vida, você acha que eles vão procurar? Que eles vão estudar? É muito difícil ver um ou dois que tenham uma visão de chegar até o ensino médio, não vou nem falar a faculdade. É muito difícil, porque não tem ninguém que os empurre, que os impulsione para isso. E o meio em que eles vivem não ajuda” (Cristina Tavares30).

Os relatos de Rodrigo Barbosa e Cristina Tavares revelam que há problemas cuja resolução está fora do alcance das próprias escolas e secretarias de educação. Como os pais, na generalidade, não tiveram acesso a um ensino de qualidade nem viveram em ambientes que estimulassem o estudo, parte deles não dá valor à escola na formação dos filhos. Consequentemente, não se esforçam para incutir nas crianças e jovens a importância de frequentar a escola, do saber e do conhecimento, e, assim, entra-se num ciclo vicioso dificílimo de contrariar. É também imperativo comentar e questionar o sistema de aprovação automática até o terceiro ano. Se este sistema foi criado para diminuir os índices de repetência, Entrevista com Cristina Tavares e Patrícia Soares, realizada no dia 22 de agosto de 2013, na Secretaria Municipal de Educação de Nova Iguaçu.

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pelo menos nos primeiros anos escolares, até que ponto é válido perpetuá-lo se, na verdade, o aluno chega ao terceiro ano sem saber a matéria referente aos anos transatos?Consideramos que este mecanismo é danoso ao desenvolvimento escolar da criança, visto que ela torna-se incapaz de acompanhar a aula, servindo apenas para ocultar o verdadeiro quadro da educação primária.

Por norma, os problemas apresentados pelas escolas situadas nas áreas rurais são resultados de políticas de educação inadequadas para as populações residentes no campo, que sempre as trataram como atrasadas e que desconsideraram a sua realidade sociocultural. Principalmente aquelas lançadas nas últimas décadas do século XX, que tinham um forte vínculo com o modelo econômico neoliberal e que, portanto, desvirtuavam o ensino público de qualidade, gratuito, laico e plural, desvalorizando o magistério. Tais políticas determinavam, entre outras medidas, a diminuição dos ordenados dos docentes e do corpo educacional e administrativo escolar; privatização do ensino público, incluindo o ensino superior; implementação do ensino a distância, como forma de diminuir o quadro de professores do Estado; desmembramento do ensino médio em geral e profissional (MORIGI, s/d: 3). Sem dúvida que estas políticas públicas prejudicaram também a qualidade da educação proporcionada no meio urbano, mas, nas áreas rurais, em conjugação com o histórico abandono, legaram a educação a uma situação de indigência profunda. Daí que o desenvolvimento da atividade educativa das crianças e jovens rurais se encontre em volta de problemas como a falta de instalações, de corpo docente qualificado e familiarizado com a realidade social e cultural do meio rural, assim como de um currículo e um calendário adequados às necessidades e ao desenvolvimento e aos interesses dos habitantes do campo que evite a fuga dos jovens estudantes para as cidades (KOLLING, NÉRY & MOLINA, 1999: 26-27).

A desconexão entre as práticas educativas das escolas situadas nas áreas rurais e o contexto sociocultural da comunidade onde estão inseridas ainda é uma realidade, que nalgumas zonas se agravou. Foi o caso da escola rural do Porto de Cubatão, no litoral sul do estado de São Paulo, onde estudam crianças e adolescentes de comunidades quilombolas, indígenas, caiçaras e extrativistas. Nilton César recorda que, na sua época, havia: 100

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RETTA – Revista de Educação Técnica e Tecnológica em Ciências Agrícolas uns professores que procuravam trazer um pouco da cultura local para dentro da escola, de produzir materiais didáticos e tal. Depois, eu não sei o que acontece nessas secretarias de educação, que as coisas vão mudando. Porque, quando meus irmãos já estavam estudando lá no ensino fundamental, eu fui desenvolver um trabalho na escola, [mas] a escola estava totalmente fechada a trabalhos. E como a gente ia desenvolver a agricultura, falavam que tinha uma política dentro da escola de que a agricultura não era importante dentro das comunidades caiçaras. Nem a pesca. (...) Como ela tem de seguir as políticas do estado, eu acho que ela continua a mesma escola conservadora que ela foi. Ela só tem uma estrutura cultural em volta diferente, mas ela não reproduz o contexto. Ela não trabalha com o contexto social a seu redor. Ela trabalha com a política hegemônica. (Nilton César, 25 anos).

O mesmo acontece com a escola municipal localizada no quilombo de Santa Rita de Bracuí, no município de Angra dos Reis, na região do litoral sul do estado do Rio de Janeiro:

Teve um projeto chamado ‘Frutos da Terra’, em 96, com a professora Badaró, onde fizeram um livro contando um pouco a história da comunidade. Então, foi um projeto que contava a história da comunidade, do quilombo, e eles trabalhavam com isso. Mas esse processo de mudança [de gestão pública] foi deixando um pouco de lado e, aí, foi enfraquecendo. Hoje, a gente quer conversar com a diretora a respeito das diretrizes quilombolas, que saíram no ano passado (...). Nós fomos lá, mas ela não estava. A gente vai voltar lá, de novo. (Fabiana Ramos, 28 anos31).

Estes dois depoimentos retratam a total descontextualização entre a educação oferecida e a realidade social e cultural dos alunos e alunas das comunidades rurais, quilombolas, indígenas, caiçaras etc., fruto da imposição de uma política de educação hegemônica, nos moldes urbanos. Para os movimentos sociais do campo, esse desencontro de interesses e de perspectivas gera nos professores provenientes do meio urbano Entrevista com Fabiana Ramos e Angélica Pinheiro, realizada no dia 22 de julho de 2013, na UFRRJ.

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um choque de realidade, devido às inúmeras dificuldades com as quais se deparam, enquanto os alunos das escolas rurais têm dificuldade em se ver representados no ensino em que lhes é proposto. As políticas de educação desenvolvidas para o campo até os finais do século XX seguiam a mesma direção das políticas econômicas, agrárias e agrícolas para a região: o estímulo ao agronegócio. O agronegócio é uma agricultura de caráter capitalista que prevê a concentração de terras para a monocultura, com forte utilização de insumos e de tecnologia avançada e pouca mão-de-obra e cuja produção é maioritariamente destinada ao mercado externo. Este tipo de economia acarreta uma série de consequências sociais para o campo, na medida em que provoca a desapropriação das terras aos camponeses, a diminuição de empregos e o êxodo rural e gera concentração de riquezas, miséria e injustiças sociais (FERNANDES & MOLINA in MOLINA & JESUS, 2004: 50-51). Para Abraão Silva, engenheiro químico, integrante do Sindicato dos Trabalhadores Rurais e aluno da Licenciatura em Educação do Campo, os trabalhadores rurais só terão um vida mais digna, quando o poder público: acreditar mais no agricultor, (...) investir mais no agricultor, dar condições ao agricultor para que combata o agronegócio (...) um produtor orgânico tem investimento e gastos um pouco mais altos, e o tempo às vezes pode demorar mais um pouco, enquanto o [agronegócio] é mais imediato (...) Botou adubo, botou o produto químico, pesticida, visando o macro, então isso é mais imediato. Esse imediatismo leva o agricultor [à falência]. (...) eu participei do conselho de agricultura, que era parte do sindicato, eu sei como é que eles viram as costas mesmo. Nesses encontros, mensalmente ou duas vezes por mês com a secretária de agricultura, meio ambiente... todas as mudanças de governo elas entram com perspectivas de mudança, cheias de propostas, mas tudo aquilo é conversa fiada! Três, quatro, cinco, seis meses depois, volta tudo à estaca zero. Ficam de costas para o conselho de agricultura” (Abraão Silva, 59 anos).

É por conta do desamparo ao agricultor e à agricultura citado por Abraão Silva que o meio rural ainda sofre com o êxodo rural e o envelhecimento, já que os jovens preferem abandonar o campo e tentar a vida na 102

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cidade a passar pelas mesmas dificuldades enfrentadas pelos pais para sobreviver e fazer face ao poderia das empresas agrícolas, muitas delas multinacionais e bem consolidadas no mercado.

Com uma concepção completamente antagônica do agronegócio, aparece a agricultura camponesa, caracterizada pela policultura, cuja produção é destinada tanto para o mercado interno quanto para o mercado externo, e que utiliza o conhecimento local e tecnologia apropriada, prioriza a diversidade e gera emprego. Consequentemente evita as migrações em massa para a cidade, promove a distribuição de riquezas e o desenvolvimento local no âmbito econômico, social e cultural (FERNANDES & MOLINA in MOLINA & JESUS, 2004: 50-51). Por isso é que uma das grandes bandeiras defendidas pelos camponeses é a reforma agrária, pois só ela seria capaz de provocar verdadeiras mudanças estruturais no meio rural. Na verdade,

a questão da Reforma Agrária hoje não é apenas uma questão rural, é também urbana, pois muitas famílias de origem urbana participam de ocupações de terra e são assentadas. Com o aumento da pluriatividade, o desempregado rural também é desempregado urbano. A Reforma Agrária não é apenas uma política para amenizar os problemas do campo, é também uma forma de enfrentar parte dos problemas urbanos. (...) concentrar as pessoas na cidade é uma forma de não mexer na estrutura fundiária, de não se fazer a Reforma Agrária, de não desenvolver a agricultura camponesa (FERNANDES & MOLINA in MOLINA & JESUS, 2004: 47).



É nesse contexto de degradação econômica e social para os povos do campo, escravizados pelo capital, que os movimentos sociais se organizam na luta por melhor qualidade de vida no meio rural, o que inclui a educação. Surgiu, assim, em meados da década de 1990, o Movimento de Articulação Por Uma Educação do Campo, que juntava entidades, as mais diversas, existentes no campo e fora dele: o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), a Universidade de Brasília (UnB) e a Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) (CAVALCANTE, 2010: 557). RETTA, Vol. VIII, nº 11, jan.-jun./2015

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O objetivo deste Movimento foi alargar e aprofundar o debate sobre uma educação que atendesse aos interesses das populações das áreas rurais e fortalecesse a luta por políticas públicas que contivessem um projeto político-pedagógico-cultural em que a escola não produza e reproduza a desigualdade, mas que esteja vinculada a um novo projeto de desenvolvimento, autossustentável, ecológico, socialmente justo e nele uma escola anticapitalista, sob o controlo social e popular da comunidade (MORIGI, s/d: 3-4).

Muito embora, na generalidade, a realidade da educação nas áreas rurais se encontrasse no estado descrito no ponto anterior, destacam-se alguns projetos desenvolvidos pela população do campo organizada, com vistas a colmatar a ausência do Estado, tais como as Escolas-Família Agrícola, os projetos de alfabetização de jovens e adultos do Movimento de Educação de Base (MEB), as escolas nos assentamentos e acampamentos do MST e as escolas indígenas (KOLLING, NÉRY & MOLINA, 1999: 28). Um exemplo de iniciativa deste gênero foi a criação, em meados da década de 1980, da primeira escola no então acampamento de Campo Alegre, da qual fez parte Sônia Martins, professora primária, integrante da Comissão Pastoral da Terra e aluna da LEC:

Cheguei a Campo Alegre, super animada, tinha acabado de me formar, cheia de ideias, e aí começamos a fazer esse trabalho com as crianças em 84. Em 85, nós tínhamos meio que consolidado um pouco esse processo de convencer as famílias de criar um grupo de alunos. Nós trabalhávamos manhã e tarde, era um grupo de alunos multisseriado. Até meados de 84, nós dávamos aula no chão, o carvão era o lápis, e o chão, a terra eram o caderno. (...) Era debaixo da árvore que nós dávamos aula. (...) Nesse lugar onde dávamos aula no chão, foi possível ocupar a casa que antes funcionava como cozinha comunitária, que era a cozinha que fazia alimento para todo o mundo que estava acampado. (...) Dentro da casa, nós conseguimos uma concentração melhor delas e conseguimos distribuir mais as crianças no turno da manhã e da tarde, com as três professoras que tinham. Então, nós tínhamos crianças de três, quatro anos; tinha uma turma maior que pegava sete, oito, nove e dez anos; tinha uma outra turma que eram aqueles que já tinham

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O relato de Sônia Martins referente à década de 1980 vai ao encontro das demandas apresentadas ao poder público pelos movimentos sociais do campo e pelo Movimento de Articulação Por Uma Educação do Campo: uma educação que valorize o contexto social das populações rurais e que não reproduza a desigualdade. Essas iniciativas legitimam a importância da educação na formação dos sujeitos, educação essa que é um direito humano e um dever do Estado, mas que este nem sempre o garante. Este tipo de iniciativas encontram-se referidas num texto de Carlos Brandão (2008), intitulado “Humanizar é educar: O desafio de formas pessoas através da educação”, no qual o autor pergunta: “Para a realização utópica de que mundo, ou para a reiteração ‘realista’ de que tipo de sociedade, nós educamos quem educamos?” Logo em seguida, responde: Uma resposta direta ao dilema (...) poderia ser dada na sequência de seu par de opostos: para o “Mundo do lado da Vida” (e aqui escrevo com maiúsculas as duas palavras) ou para o “mundo do lado do sistema”. A diferença está em que entre os que se situam “do lado da vida” e, como tal, estão de fora do “lado do sistema” e não fazem parte da articulação de seus poderes, esta vocação é declarada como um ideário pedagógico aberto ao diálogo. Enquanto aqueles que trazem para o círculo da educação o “valor-sistema” desde um ponto originário de exercício de poder – inclusive sobre a educação e seu destino – preferem calar ou dizer o que pretendem de uma maneira dissimulada. Ou, o que é mais comum, com uma ilusória autenticidade posta fora de discussão, pelo simples fato de ser “oficial” (BRANDÃO, 2008: 3).

Nesta perspectiva, podemos dizer, que a educação tão desejada e defendida pelos povos do campo e pelos movimentos sociais que os acompanham se enquadra no “Mundo do lado da Vida”, já que nela está implícita Entrevista com Sônia Martins, realizada no dia 22 de julho de 2013, na UFRRJ.

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a liberdade de ação, a construção do saber, a participação coletiva, a valorização da experiência e do diálogo, assim como o respeito à diversidade.

O modelo de educação que se pretende implantar rompe claramente com o modelo de educação rural previsto pelo Estado em função de “duas diferenças básicas”: “os espaços onde são construídos e os seus protagonistas” (FERNANDES & MOLINA in MOLINA & JESUS, 2004: 37). Da fato, em vez de ser uma educação elaborada por pessoas alheias aos interesses e às necessidades das populações do campo, isto é, de uma educação “para” o campo, trata-se de uma educação “no e do campo”: “No: o povo tem direito a ser educado no lugar onde vive; Do: o povo tem direito a uma educação pensada desde o seu lugar e com a sua participação, vinculada à sua cultura e às suas necessidades humanas e sociais” (CALDART in MOLINA & JESUS, 2004: 17).

As bases da educação do campo

De acordo com Roseli Caldart, há um conjunto de “premissas básicas” que estão na base da educação do campo (CALDART, 2010). A primeira premissa seria a de que a educação do campo nasceu da necessidade das populações pobres das áreas rurais, carentes de trabalho, de terra e de escola, acederem a uma vida mais digna. A partir desse contexto, assistiu-se à organização dos sujeitos do campo em torno de movimentos sociais com o fim de levarem por diante lutas por terra e trabalho e pelo direito à educação. Assim, se diz que, no cerne da educação do campo, está a “pedagogia do movimento” que “tem como origem e referência o Movimento Social dentro ou desde um projeto de transformação da sociedade e do ser humano” (CALDART, 2010: 4). No processo de formulação e idealização da escola e da educação adequadas às necessidades dos sujeitos do campo e no encaminhamento das reivindicações destes ao Estado, o papel dos movimentos sociais é decisivo para a sua materialização.

A segunda premissa da educação do campo é a necessidade de transformar a “forma escolar nas práticas e nas reflexões pedagógicas” (CALDART, 2010: 6). O objetivo da educação do campo é tornar a escola relevante para as populações rurais, superando o projeto social capitalista, vinculando-a aos seus 106

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interesses e perspectivas e promovendo a sua emancipação. Tal só é possível com a reorganização dos conteúdos programáticos, de modo a torná-los mais pertinentes aos sujeitos do campo. Ao mesmo tempo, esta realidade só será possível com o estabelecimento de uma inter-relação entre a escola e a comunidade, a partir da formação e participação de educadores/educadoras, educandos/educandas e pais/mães. Por isso, vale a pena relembrar Paulo Freire, quando nos diz que defender a presença participante de alunos, de pais de alunos, de mães de alunos, de vigias, de cozinheiras, de zeladores nos estudos de que resulte a programação dos conteúdos das escolas (...) não significa negar a indispensável atuação dos especialistas. Significa apenas não deixá-los como “proprietários” exclusivos de um componente fundamental da prática educativa. Significa democratizar o poder da escolha sobre a maneira mais democrática de tratá-los, de propô-los à apreensão dos educandos, em lugar da pura transferência deles do educador para os educandos. (...) Não é possível democratizar a escolha dos conteúdos sem democratizar o ensino (FREIRE, 2003: 111).

Ainda nesta segunda premissa, de acordo com Caldart, está implícita uma outra premissa que é “a convicção de que as tendências de transformação são as tendências de futuro e de que os esforços coletivos de construção da sociedade dos trabalhadores (via socialismo) é a perspetiva de futuro” (CALDART, 2010: 7). Ou seja, para a consolidação das mudanças sociais que os sujeitos do campo anseiam, é fundamental que a escola assuma uma outra postura, distinta da postura capitalista, a qual deve incluir a superação das relações sociais impostas pela dicotomia campo-cidade. Para que essa transformação da forma escolar aconteça – e aqui reside a terceira e última premissa –, é indispensável pensar a educação do campo a partir das práticas já existentes que procuram preencher o vazio deixado pelo Estado no cenário da educação das populações rurais. Essas experiências – algumas delas já foram citadas neste texto – não poderiam ser desconsideradas pelos movimentos da educação do campo, uma vez que elas são o princípio da contestação à política educacional vigente e a RETTA, Vol. VIII, nº 11, jan.-jun./2015

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semente de uma proposta de educação diferenciada para a realidade do campo. Conforme Caldart, “[e]sta especificidade se refere fundamentalmente aos processos produtivos e de trabalho no campo (centrados ou de alguma maneira vinculados à agricultura), das lutas sociais e da cultura produzida desde estes processos de reprodução da vida, de luta pela vida” (CALDART, 2010: 9).

A educação do campo dialoga, assim, com “uma determinada tradição pedagógica crítica, vinculada a objetivos políticos de emancipação e de luta por justiça e igualdade social”, que articula “a tradição do pensamento pedagógico socialista” com “a dimensão pedagógica do trabalho e da organização coletiva” e a “reflexão sobre a dimensão da cultura no processo histórico”. A educação do campo faz também referência à “pedagogia do oprimido” de Paulo Freire e à “educação popular” desenvolvida na década de 1960, além da “pedagogia do movimento”, já aqui abordada (CALDART in MOLINA & JESUS, 2004: 14).

A educação popular e a pedagogia do oprimido são bastante importantes para a concepção da educação do campo, pois ambas estão ligadas à prática pedagógica como ação libertadora. A educação popular, tal como a educação do campo, tem a sua origem nos questionamentos sobre a educação oficial oferecida às classes trabalhadoras, por considerá-la completamente dominadora, domesticadora e incapaz de qualificar os seus destinatários. Era preciso, portanto, proporcionar a estas camadas da sociedade uma outra educação na qual se sentissem representadas e o conhecimento ali construído fosse útil para a sua formação humana e política. Como sinaliza Cavalcante, “[f]requentar a escola e não se ver representado por esta escola, era o dilema de muitos. Não ter sequer acesso a esta escola, o dilema de tantos outros”; e, nesse quadro de exclusão, a educação popular “alcança[va] os jovens, os adultos, os filhos de muitos desses, no rural e no urbano” (CAVALCANTE, 2010: 555). Quanto à pedagogia do oprimido, o seu contributo está no fim da educação do campo: fazer com que “o oprimido tenha condições de, reflexivamente, descobrir-se e conquistar-se como sujeito da sua própria destinação histórica” (FREIRE, 1975: 8). Para alcançar esse objetivo, em vez de partir de conteúdos programáticos pré-estabelecidos, recorre ao 108

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diálogo entre educadores/educadoras e educandos/educandas para que aqueles e aquelas possam tomar conhecimento sobre a realidade em que estes e estas estão inseridos e sobre suas respectivas visões de mundo para, a partir daí, juntos, selecionarem os temas mais relevantes a serem abordados. Estes temas são chamados por Freire de “temas geradores” (FREIRE, 1975: 125).

O propósito maior da educação do campo, como se pôde perceber, é levar o desenvolvimento ao campo e aos camponeses, não pelo viés capitalista e neoliberal da educação rural, concentrador e excludente, mas de maneira democrática, construtiva e inclusiva. Trata-se de uma educação que se compromete, portanto, em desenvolver com os sujeitos a capacidade crítica e emancipatória, de forma a torná-los agentes da transformação do meio em que estão inseridos, sem nunca desprezar a sua história e a sua cultura, mas antes resgatando-as e valorizando-as. Por esse motivo, esta educação também se utiliza de uma “pedagogia do compromisso”, tendo em vista que lhe são inerentes o compromisso com a “solidariedade”, com o “desenvolvimento”, com a “sustentabilidade”, com a “democracia” e com a “intervenção social” (CALIARI, ALENCAR & AMÂNCIO, 2002: 5). Desde a criação do Movimento de Articulação Por Uma Educação do Campo, vários encontros foram – e continuam sendo – realizados, quer em âmbito nacional, quer em âmbito regional, com o intuito de debater, propor e encaminhar propostas ao Estado para o desenho de um projeto político-pedagógico para o meio rural. A I Conferência Nacional “Por Uma Educação Básica do Campo”, realizada em julho de 1998, na Universidade de Brasília, é considerada o marco inicial na luta por uma educação específica para o campo, pois aí não só foi feito um diagnóstico da realidade vivida no campo, como também foi delineado um projeto, de cariz popular e de aplicação nacional, para o desenvolvimento do mesmo e estabelecido o tipo de políticas públicas necessárias para a construção de uma educação básica no e do campo.

Para os camponeses e os movimentos sociais rurais, o desenvolvimento do campo passa obrigatoriamente pelo estímulo à agricultura familiar cooperativada, pois só ela é capaz de gerar empregos, reduzir o custo dos alimentos e melhorar as condições de vida das populações RETTA, Vol. VIII, nº 11, jan.-jun./2015

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residentes. Entretanto, para que isso seja possível, é indispensável que o Estado se comprometa em apoiar a população do campo no desenvolvimento da agricultura familiar através de políticas agrícolas e agrárias e incentivos; realizar de forma rápida e efetiva a reforma agrária e acabar com os latifúndios; e fomentar o desenvolvimento social do campo a partir da oferta de escolas, infraestrutura, serviços públicos, telecomunicações e lazer (KOLLING, NÉRY & MOLINA, 1999: 33-34).Sem uma mudança da postura do poder público para com o mundo rural — que hoje só tem estimulado o latifúndio, o agronegócio, a concentração de riquezas e a desigualdade social, em detrimento da democratização e da justiça — qualquer projeto de desenvolvimento, que inclua os camponeses, está logo, a priori, inviabilizado. Em suma, o que se pretende é que a educação seja um direito das populações rurais, historicamente negado pelo Estado, e que, para isso, a educação do campo receba um tratamento público adequado (ARROYO in MOLINA & JESUS, 2004: 54). De acordo com Miguel Arroyo, são várias as razões que justificam a necessidade de um tratamento público para a educação do campo. Em primeiro lugar, uma vez que se trata de uma realidade desconhecida pela sociedade, em geral, e pelo Estado em particular, o incentivo a pesquisas e análises sobre essa mesma realidade auxiliaria na formação de uma visão correta sobre ela, para, depois, se proceder à elaboração de políticas em consonância com as necessidades locais. Sem esse diagnóstico como ponto de partida para formulação de políticas públicas, a probabilidade do seu sucesso é extremamente reduzido. Em segundo lugar, a educação oferecida no campo, desde as péssimas infraestruturas e a falta de material ao baixo salário auferido pelos professores, é bastante susceptível de “barganhas políticas”, as quais contribuem largamente para o seu atraso e a sua precarização. A inclusão da educação do campo na agenda pública possibilitaria a reversão do tratamento a que tem sido submetida e garanti-la-ia como um direito legítimo dos sujeitos rurais. Em terceiro, a educação que se pretende para o campo não pode continuar a seguir os ditames do mercado. Se a razão da sua desvalorização foi resultado da crença de que os trabalhadores e trabalhadoras rurais não precisavam de habilitações acadêmicas para o exercício da sua atividade, hoje a tônica é outra. A própria luta pela 110

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posse e permanência na terra, contra o alastramento do agronegócio e suas consequências nefastas para os camponeses, reivindica uma educação que valorize as especificidades dos seus sujeitos, em detrimento dos interesses privados daqueles que espoliam o campo com o agronegócio. Em quarto lugar, o meio rural não é mais o mesmo.

Hoje no campo há uma outra consciência dos sujeitos face aos seus direitos, há sujeitos organizados que pensam o campo a partir do próprio do campo. Se o campo é outro, se as necessidades e exigências são outras, logo as políticas precisam ser outras, e não mais as mesmas que têm vigorado. Por fim, é a consciência da noção por parte das populações rurais e seus movimentos sociais que a reivindicação por uma educação do campo, elaborada em consonância com os seus princípios e perspetivas, só será garantida por políticas públicas, quando for considerada um direito dos cidadãos do campo e um dever do Estado (ARROYO in MOLINA & JESUS, 2004: 54-61).

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CONSIDERAÇÕES ACERCA DAS BASES TEÓRICAS DE CONSTRUÇÃO DA EDUCAÇÃO DO CAMPO A PARTIR DA LUTA HISTÓRICA PELOS MOVIMENTOS SOCIAIS Luana Carvalho Aguiar Leite33 Resumo Este trabalho tem como objetivo trazer algumas discussões tratadas na monografia de especialização para conclusão do curso em Trabalho, Educação e Movimentos Sociais, ofertado pela Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (ESPJV). O presente trabalho tratou de contribuir na discussão sobre a concepção de educação integral, ou melhor, politécnica, presente nos referenciais teóricos marxistas que são a base para a construção da proposta da educação do campo oriunda dos movimentos sociais. Outro aspecto do texto foi demonstrar elementos da agroecologia como uma nova matriz produtiva e social para o campo em contraponto ao agronegócio e sua contribuição para a perspectiva da educação do campo integral. Palavra-chave: Educação do Campo; Movimentos Sociais; Politecnia; Agroecologia.

CONSIDERATIONS ABOUT THE BASIS OF THEORY FIELD OF EDUCATION CONSTRUCTION FROM HISTORIC STRUGGLE BY SOCIAL MOVEMENTS Abstract This paper aims to bring some discussions dealt with in the monograph of expertise for completion of the ongoing Work,

Especialista em Trabalho, Educação e Movimentos Sociais pela Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/FIOCRUZ). Faz parte do Setor de Educação do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) no Rio de Janeiro. Endereço eletrônico: [email protected]

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RETTA – Revista de Educação Técnica e Tecnológica em Ciências Agrícolas Education and Social Movements, offered by the Polytechnic School of Health Joaquim Venancio (ESPJV). This study tried to contribute to the discussion on the design of comprehensive education or better, polytechnic, present in the theoretical Marxist references that are the basis for the construction of the proposed field of education coming from social movements. Another aspect of the text was to demonstrate elements of agroecology as a new productive and social blueprint for the field as opposed to agribusiness and its contribution to the perspective of full field of education. Keyword: Rural Education; Social movements; polytechnic; Agroecology.

Introdução Este artigo é fruto da monografia de conclusão do Curso de Especialização em Trabalho, Educação e Movimentos Sociais realizado em parceria entre o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e a Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/FIOCRUZ), que teve como objetivo principal trazer contribuições para o debate da Politecnia inserido na Educação do Campo e no debate do MST.Dessa forma, este trabalho traz algumas reflexões sobre as bases teóricas que orientam a concepção de educação do campo formulada pelos movimentos sociais em parcerias com instituições no campo da educação. Busca ainda contribuir com a questão da agroecologia, como nova matriz produtiva, social e cultural para o campo, em contraponto ao agronegócio, e entender como esta ciência pode, a partir da sua base conceitual, contribuir pedagogicamente para a construção de uma educação politécnica nas escolas do campo.Busco ainda analisar comparativamente o projeto da Educação Integral com a proposta da Educação do Campo que vem sendo acumulada historicamente pelos movimentos sociais, principalmente pelo MST, e como esta, caso ocorra, está acontecendo nestas escolas. Não podemos esquecer que este trabalho teve como referencial, o materialismo histórico dialético apresentado por Marx em seus estudos sobre o sistema capitalista. 116

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Dessa forma, apresentamos a análise da educação a partir da perspectiva de uma educação emancipadora para os povos do campo, que seguindo os princípios da educação do campo, seja pensada desde o território e a partir dos sujeitos que dele fazem parte.

Educação Integral: Conceitos e Problematizações Para pensarmos em uma educação integral, devemos partir do questionamento sobre que educação é essa que queremos. Na perspectiva marxista, que é por onde nossos estudos se baseiam, a educação deve ter como foco a formação de indivíduos omnilaterais. A formação omnilateral, nesse sentido, pressupõe um desenvolvimento total das capacidades humanas, tanto para o trabalho, como para outros conhecimentos pertinentes a vida humana.

Os seres humanos se fazem indivíduos a partir dos processos sociais que vivenciam ao longo do seu desenvolvimento histórico e, sendo assim, os indivíduos se formam principalmente através do trabalho. Trabalho este que nesta sociedade capitalista adquire uma negatividade, pois se configura de forma degradante e expropria do trabalhador sua força de trabalho. O produto já não é mais seu e sim daquele que detém os meios de produção, no caso, a burguesia. Outro aspecto é que, na sociedade capitalista, a educação se desenvolve numa perspectiva unilateral, sendo dicotomizada a formação intelectual da formação para o trabalho manual.

No capitalismo, o papel dos trabalhadores é se preparem na escola para o trabalho manual, sendo ofertado o mínimo da formação intelectual de modo que seja interiorizada a idéia de que uns nasceram para dominar e outros para serem dominados. Em outras palavras, há aqueles que detêm os meios de produção e há aqueles que necessitam vender sua força de trabalho para sobreviverem. Já o papel da burguesia é ter acesso aos conhecimentos produzidos pela humanidade, o domínio das artes e da cultura, sendo, dessa forma, sua educação mais abrangente, para que possam manter a dominação. Segundo Saviani: RETTA, Vol. VIII, nº 11, jan.-jun./2015

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RETTA – Revista de Educação Técnica e Tecnológica em Ciências Agrícolas Escola constitui o instrumento mais acabado de reprodução das relações de produção de tipo capitalista. Para isso ela toma a si todas as crianças de todas as classes sociais e lhes inculca durante anos a fio de audiência obrigatória “saberes práticos” envolvidos na ideologia dominante. Uma grande parte (operários e camponeses) cumpre a escolaridade básica e é introduzida no processo produtivo. Outros avançam no processo de escolarização, mas acabam por interrompê-lo passando a integrar os quadros médios, os “pequeno-burgueses de toda a espécie”. (1984, p. 24 e 25).

Marx nos propõe uma educação que busque a superação desta sociedade capitalista e, para isto, é imprescindível que os trabalhadores tenham uma formação voltada para a omnilateralidade, que possibilite o desenvolvimento de todas as capacidades humanas e o acesso ao conhecimento historicamente produzido pela humanidade. Nessa perspectiva omnilateral o trabalho é central, é um princípio educativo em todos os processos formativos. O trabalho para Marx, no seu sentido ontológico, é constitutivo do ser humano, é a sua essência, e sendo assim, forma-o como indivíduo. Porém, nesta sociedade capitalista, o trabalho adquire um sentido negativo a partir do momento que o trabalhador necessita vender a sua força de trabalho para sobreviver, já que não possui os meios de produção. O capitalismo se sustenta explorando o trabalho dos trabalhadores na geração de mais valor. Marx afirma que

O trabalho é um processo entre homem e natureza, um processo em que o homem, por, sua própria ação, media, regula e controla seu metabolismo com a natureza (...) ao atuar, por meio desse movimento, sobre a natureza externa a ele e ao modificá-la, ele modifica, ao mesmo tempo, a sua própria natureza (1983, p. 149).

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Em outro texto, Marx aponta ainda que A efetivação do trabalho tanto aparece como desefetivação que o trabalhador é desefetivado até morrer de fome. A objetificação aparece tanto como uma perda do objeto que o trabalhador é despojado dos objetos mais necessários não somente à vida, mas também dos objetos do trabalho (2004, p. 80).

É por existir esta exploração, que há a divisão do trabalho e, nesse sentido, o trabalho vira mera mercadoria para a burguesia. Sendo assim, com a divisão social do trabalho, há a divisão entre instrução e trabalho manual. Para a burguesia, que é a classe dominante, a instrução é importante para manter a dominação; e para a classe trabalhadora, o trabalho manual é necessário para favorecer o aumento da produção para sustentar o capitalismo. A escola, como uma instituição dentro do sistema capitalista, reproduz estas relações de dominação e esta separação entre instrução e trabalho. A escola, hoje, reproduz massivamente a ideologia dominante. Essa ideologia tem como base os meios de produção para que a classe dominante se perpetue no poder. As crianças e jovens, desde cedo, quando entram na escola são massacrados por uma ideologia com a qual eles não se identificam, porém é interiorizada, e, então, passam a reproduzi-la como sendo sua e chegam a defender os interesses dos que o dominam.

É importante entender como se dão essas questões nas escolas, para perceber até que ponto essa educação dita “integral” não reforça esses conceitos burgueses e até que ponto elas visam à transformação dos indivíduos. Marx também ao falar desta separação entre o trabalho manual e o trabalho intelectual, aponta o desafio de superação através da perspectiva que ele vai chamar de educação tecnológica.Está aí a raiz da concepção marxista de educação. Uma educação onde há uma interação sem distinção da instrução com o trabalho, ou seja, a escola não se separa do RETTA, Vol. VIII, nº 11, jan.-jun./2015

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trabalho, seja esse entendido como atividade humana que deve ter como finalidade a formação social e do indivíduo. Marx nos aponta três eixos essenciais para pensarmos a educação: 1. Educação intelectual; 2. Educação Corporal;

3. Educação Tecnológica; (Marx apud Rodrigues, 2006, p. 113). É a partir desta análise de Marx que Saviani vai construir aqui no Brasil a categoria Politecnia, entendendo que esta abrange o sentido da formação do sujeito na perspectiva da omnilateralidade, o desenvolvimento pleno das capacidades intelectuais e manuais em todos os sentidos. “Conceituei Politecnia como dizendo respeito aos fundamentos científicos das múltiplas técnicas que caracterizam a produção moderna”. SAVIANI (2007, p. 164) Manacorda (2010) também retrata a concepção de Politecnia fazendo uma discussão sobre a substituição desta nomenclatura por Educação Tecnológica, por considerar que esta segunda tenha um sentido mais preciso do que a primeira em relação ao que Marx dizia.Porém, nos seus estudos sobre a Pedagogia Marxista, compreende o que Marx aborda no conceito de homem omnilateral.

Está dada a exigência da omnilateralidade, de um desenvolvimento total, completo, multilateral, em todos os sentidos, das faculdades e das forças produtivas, das necessidades e da capacidade da sua satisfação. (MANACORDA, 2010, p. 94).

Podemos, a partir do que nos apresentam os autores acima, compreender a politecnia, ou a educação tecnológica, como a tentativa de ressignificar a dicotomia construída entre o processo de educação estabelecida na instituição escolar e o trabalho realizado pela classe 120

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trabalhadora que expropria a força de trabalho do trabalhador para a produção e reprodução material da mercadoria nas condições dadas historicamente. E como esta perspectiva vem contrapor essa lógica propondo uma formação crítica sobre a realidade da sociedade. Dessa forma é que os movimentos sociais vêm ao longo de um período construindo o conceito da educação do campo.

Educação do Campo e Agroecologia na perspectiva da politecnia A Educação do Campo refere-se aos sujeitos do campo, no seu comportamento, na sua identidade, para reafirmar a importância desses sujeitos no processo de desenvolvimento rural que seja baseado nas suas demandas; para tanto, isso envolve a concepção de uma educação que empodere estes para que se tornem protagonistas das suas lutas e vitórias. É pensar a educação do campo, para o campo e com o campo, é confrontar esse modelo existente de agricultura que expulsa o trabalhador do campo.

A educação do campo é muito mais que uma proposta pedagógica para uma escola diferenciada - ela deve ser compreendida como uma proposta contra-hegemônica, que discute e desconstrói esse modelo de produção da vida internalizado nos indivíduos desde cedo, e em cuja construção a escola tem um papel importante. Roseli Caldart aponta que este conceito de educação do campo, ainda em construção permite afirmar que Objetivo e sujeitos a remetem às questões do trabalho, da cultura, do conhecimento e das lutas sociais dos camponeses e ao embate (de classe) entre projetos de campo e entre lógicas de agricultura que têm implicações no projeto de país e de sociedade e nas concepções de política pública, educação e de formação humana. (2012, p. 257)

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A educação do campo se materializa como expressão de uma educação para a transformação, que tenha o trabalho como princípio educativo, e que esteja alicerçada na cooperação, que seja voltada para as várias dimensões do ser humano, com valores humanistas e socialistas, e estreita relação entre teoria e prática, com conteúdos formativos socialmente úteis, vínculo orgânico entre processos educativo, políticos e econômicos, gestão democrática, auto-organização dos/das estudantes e formação permanente dos educadores e educadoras.

Esses princípios teorizados e que precisam ser estudados por todos que acreditam na educação do campo são fruto das experiências e práticas realizadas por sujeitos do campo. Então, é inadmissível pensar esta educação não estando vinculada aos processos de trabalho, de luta, de cultura, de organização coletiva destes sujeitos. Nessa conjuntura, a escola deve ser entendida como um espaço de contradições e, portanto, um campo de disputas: se de um lado, há uma massificação da reprodução da hegemonia capitalista, por outro, ela é em sua maioria ocupada pela classe trabalhadora, e é nessa contradição que se colocam as possibilidades de enfrentamento e resistência ao modelo capitalista. Por mais que a agricultura familiar tenha a posse da terra, não significa que detenha os meios de produção, pois este se encontra ainda subordinada ao capital. Sendo assim, o agronegócio é a expressão mais moderna do desenvolvimento do capital no campo, pois engloba não só a questão da terra e da produção, mas envolve a financeirização, a industrialização e a especulação do campo. Expulsa os trabalhadores que sobrevivem do campo engessando aqueles que resistem e lutam por suas vidas.

Diante da conjuntura do capital que também se expressa no campo de forma acentuada e devastadora, se faz indispensável a atuação de organizações coletivas, como é o MST e outros movimentos sociais que atuam no campo. É nesse enfrentamento com o agronegócio que se dá como pano de fundo o real enfrentamento que é da classe dominante com a classe trabalhadora, do capital com o trabalho. 122

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Ao trabalharmos com a educação do campo, é preciso internalizar que sendo o trabalho parte constituinte do ser humano, nossas práticas educativas precisam ter como referência a vida, a realidade dos próprios sujeitos. Não estamos dizendo que devemos ficar nos problemas cotidianos; porém, é necessário que partamos do ponto de suas vivências e saberes produzidos para então avançamos a conhecimentos mais aprofundados que foram historicamente acumulados pela humanidade.

A educação politécnica se faz presente na educação do campo desde o início dos processos educativos de cada indivíduo e da coletividade, na formação para o trabalho, na compreensão dos fundamentos científicos que são base para o conhecimento das técnicas e da filosofia para produção e reprodução da vida através do trabalho no mundo moderno. Trabalho este que adquire um sentido positivo quando se faz como princípio educativo que ajuda na compreensão do homem para sua libertação daquilo que o aliena e o degrada. A partir da libertação, abre as possibilidades para o desenvolvimento de sua formação omnilateral, o desenvolvimento das múltiplas capacidades humanas para além do trabalho. Com esta concepção, a educação do campo também traz a crítica da fragmentação dos conhecimentos, da divisão entre ensino intelectual e trabalho manual, que neste sistema mais tem se consolidado como teoria educacional.

Articular os conhecimentos práticos adquiridos na vivência dos processos produtivos destes sujeitos do campo com os elementos teóricos que possam contribuir para o aprimoramento das técnicas e também para a reflexão do sentido deste trabalho é compreender de fato o sentido da educação do campo para a classe trabalhadora. Uma das práticas indispensáveis no processo educativo que tenha como base a educação do campo é a agroecologia. A agroecologia é um conceito recente que se pode dizer ainda em construção, e refere-se à ciência que parte de bases científicas para construção de uma agricultura alternativa, ecologicamente correta, socialmente justa e economicamente viável.

Sendo assim, a agroecologia se apresenta como uma ciência que traz uma nova matriz tecnológica para o campo, atendendo às necessidades RETTA, Vol. VIII, nº 11, jan.-jun./2015

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da agricultura familiar e se colocando como contraponto ao modelo atual de agricultura que é o agronegócio; além disso, a agroecologia reforça o sentido politécnico da indissociação entre trabalho manual e trabalho intelectual. É correto afirmar que não se pode falar de trabalho produtivo dentro dos processos educativos da educação do campo sem que este trabalho esteja ligado ao modelo agroecológico. A educação politécnica afirma a necessidade de que para o trabalho produtivo é necessário o manejo de técnicas, relacionando aos estudos dos fundamentos das técnicas, casando perfeitamente com o que a agroecologia propõe. Em se tratando dos processos educacionais, a educação do campo vem como teoria para legitimar estes conceitos. A agroecologia é uma ciência que articula não só os processos produtivos e econômicos para geração de renda, mas também trata da sociabilidade da vida camponesa, de seus costumes e sua cultura reafirmando sua identidade como pressuposto da resistência camponesa, no direito a fixação de seu território frente à expansão do agronegócio. Dialoga também com a cidade, seja na produção de alimentos, como na superação desta falsa dicotomia entre campo e cidade. Sendo assim, elabora os conhecimentos necessários para a produção e reprodução da vida no campo, em condições emancipatórias que não estão ligadas à lógica do capital. Agroecologia integra e articula conhecimentos de diferentes ciências, assim como o saber popular, permitindo tanto a compreensão, análise e crítica do atual modelo do desenvolvimento e de agricultura industrial, como o desenho de novas estratégias para o desenvolvimento rural e de estilos de agriculturas sustentáveis, desde uma abordagem transdisciplinar e holística (CAPORAL, et all, 2006, p.5).

Nesse sentido, a agroecologia traz para o debate não só a questão do envenenamento da produção agropecuária e a sua forma de produzi-la em larga escala; pois se nos resumíssemos a essas questões a agricultura orgânica resolveria nossos problemas, sendo este apenas um modelo 124

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alternativo de técnica diversificada e que respeita os ciclos bioquímicos das plantas e animais.

Porém, a agroecologia possibilita a crítica na raiz do modelo de produção adotado. Modelo esse agroexportador, que não produz alimentos e sim commodities, negociados no mercado financeiro e concentrador de terras, que expulsa os camponeses do seu lugar de origem e os submetem às condições precárias de trabalho, que não respeita os tempos da natureza nem a própria natureza e que, principalmente, envolve hoje não só o proprietário da terra, mas tem toda uma cadeia produtiva que vai desde a empresa multinacional de agrotóxicos e fertilizantes, até às grandes indústrias e o setor financeiro representado pelos bancos.

É por isso que ao afirmar a agroecologia como instrumento para construir novas relações produtivas e sociais no campo, devemos potencializar a educação do campo como concepção pedagógica e política que pode contribuir na formação dos novos sujeitos para essa transformação. Ao assumirmos a construção destas novas relações, estaremos trabalhando na transformação da nossa realidade e na superação deste sistema capitalista.

Considerações Finais

Compreender como está a atual conjuntura da educação brasileira hoje é um passo importante para entendermos que a escola é sim ainda um espaço em disputa. A Educação do Campo é um exemplo do acúmulo teórico que os movimentos sociais foram conquistando ao longo de suas lutas, em especial, o MST. Mas é também um exemplo de práticas pedagógicas que vão ao encontro do que nos dizia Marx sobre a formação integral do indivíduo que lhe possibilita instrumentos para a luta pela transformação da sociedade.

Este artigo buscou sintetizar as principais discussões abordadas ao longo da monografia, no que se refere à questão da politecnia inserida dentro de uma proposta de educação do campo. Para tanto, vimos como a escola no sistema capitalista atua no sentido de legitimar, de criar consenso, de conformar, de criar uma falsa igualdade entre os indivíduos, desconsiderando a RETTA, Vol. VIII, nº 11, jan.-jun./2015

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existência da classe trabalhadora e da classe burguesa e, por conseguinte, da luta de classes. A escola, como vemos hoje, trabalha baseada numa formação unilateral, distinguindo o trabalho intelectual do trabalho manual.

Marx e outros autores que analisamos vão nos dizer que para a construção de uma nova sociedade, é preciso que pensemos numa outra lógica de educação. Educação esta que tenha como alicerce a relação entre trabalho intelectual e trabalho manual. Sendo assim, privilegia-se a formação do indivíduo vista numa perspectiva omnilateral, onde é capaz de desenvolver todos os seus sentidos. Marx vai chamar de Politecnia ou de Educação Tecnológica essa educação que comtempla a formação para o trabalho, seja ele intelectual e manual como princípio educativo para a construção de novas relações de produção.

A Educação do Campo busca como um de seus princípios essa articulação entre trabalho e educação, entendendo que, como o trabalho é parte constitutiva do ser humano, ele precisa estar em diálogo com os processos educativos que também contribuem no desenvolvimento humano, de modo que este trabalho seja empoderado pela classe trabalhadora no sentido de ter o controle dos processos produtivos, apesar de estarmos dentro do sistema capitalista e saber que não estamos imunes a ele. Nesse sentido, a agroecologia se apresenta como uma matriz tecnológica que irá contribuir neste processo apresentado acima, sendo ela capaz de materializar nas escolas do campo essa discussão da articulação entre trabalho e educação, da apropriação dos processos produtivos e da ciência que os produz.

Assim, podemos dizer que a Educação do Campo, sendo uma concepção de educação que parte da especificidade das escolas do campo, compartilha e interage com a Pedagogia Socialista iniciada por Marx e desenvolvida por marxistas, tendo com a agroecologia a possibilidade real de proporcionar uma formação politécnica aos filhos dos trabalhadores do campo.

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EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA E MELHORIAS DE CONDIÇÕES DE VIDA Aline Abbonizio34 Resumo Este artigo mostra como a educação escolar indígena no Brasil pode ser considerada como um conjunto de experiências de educação escolar que atua diretamente para a melhoria das condições de vida comunitária. Esta característica da educação escolar indígena baseou uma pesquisa de doutorado sobre inovação educacional na região do alto rio Negro, Amazonas. O argumento desenvolvido aqui parte da elucidação de três aspectos presentes em diversas experiências de escolas indígenas: 1) a produção de conhecimento necessário aos estudantes e outras pessoas implicadas; 2) a prática daquilo que se pretende preparar nos estudantes e outras pessoas implicadas; 3) a intervenção direta para a melhoria das condições de vida dos estudantes e outras pessoas implicadas. Palavras-chave: Educação escolar comunidade; condições de vida.

indígena;

educação

e

INDIGENOUS SCHOOL EDUCATION AND IMPROVEMENT IN LIVING CONDITIONS Abstract This article shows how the indigenous school education can be considered a set of school education’s experiences who acts directly to improvement in living conditions of the communities. This feature of indigenous school education based an research about educational innovation in upper Rio Negro, Amazonas The research chose three distinguishing features like aspects:

Professora doutora do Curso de Licenciatura em Educação do Campo da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. Endereço eletrônico: [email protected]

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RETTA – Revista de Educação Técnica e Tecnológica em Ciências Agrícolas 1) production of knowledge needed from involved people; 2) it practices its objectives to prepared the involved people; 3) intervention from the changes of living conditions of the communities. Keywords: Indigenous school community; living conditions.

education;

education

and

Introdução Este artigo mostra como a educação escolar indígena no Brasil vem compatibilizando seus objetivos educacionais com as realidades de vida e projetos de futuro das comunidades em que atua. Este sentido para a escolarização foi investigado em uma tese de doutorado voltada para explicitar aspectos distintivos entre a educação escolar convencional e educação escolar indígena a partir do caso da Escola Khumuno W’Kotiria, que fica em São Gabriel da Cachoeira, a noroeste do estado do Amazonas (ABBONIZIO, 2013). O propósito deste artigo é recuperar o debate teórico que fundamenta aquela pesquisa a partir da explicitação de três aspectos considerados pouco recorrentes na educação escolar convencional: 1) a produção de conhecimento necessário aos estudantes e outras pessoas implicadas; 2) a prática daquilo que se pretende preparar nos estudantes e outras pessoas implicadas; 3) a intervenção direta para a melhoria das condições de vida dos estudantes e outras pessoas implicadas. Pesquisas sobre educação escolar indígena vêm informar que comunidades indígenas estão conduzindo sua escolarização por caminhos que, por ora, podem ser definidos como uma síntese de elementos não-indígenas, como a própria ideia de escola, com elementos próprios das comunidades indígenas, como suas formas peculiares de obter alimentos e de se comunicar. A correspondência entre as necessidades atuais de vida das comunidades e as necessidades das novas gerações, como será mostrado, é respaldada por uma legislação específica, mas, revela-se, principalmente, na maneira pela qual algumas comunidades indígenas estão redefinindo suas escolas a partir de suas necessidades de valorização cultural, de subsistência e de melhoria das atuais condições de vida. 132

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Existe uma considerável produção acadêmica em torno desta redefinição da escola indígena. Esta produção foi propiciada, em grande medida, pela atuação de pesquisadores e assessores no próprio processo de implementação da escola “diferenciada”. Além disto, uma série de publicações do Ministério da Educação35 brasileiro que têm a finalidade de “orientar a elaboração de programas de educação escolar indígena que atendam aos anseios e aos interesses das comunidades indígenas” (BRASIL, 1998a), joga luz sobre uma variedade de temas como interculturalidade, diversidade cultural, ensino bilíngue, legislação indígena etc. Parte desta produção é retomada aqui no sentido de compor um quadro que contribua para definir a educação escolar indígena a partir de seus esforços por conciliar necessidades de subsistência atuais com as aspirações que as comunidades indígenas têm acerca de seu futuro.

Um novo modelo de educação

Deve-se admitir que há um tipo de educação que se realiza por meio da relação entre organizações escolares e os projetos de vida e de futuro das pessoas implicadas direta ou indiretamente com as ações daquelas organizações. Este tipo de educação não se reduziria à disseminação de saberes, mas, constituir-se-ia numa intervenção coletiva, impulsionada, apoiada ou composta pela organização escolar para melhorar condições de vida das pessoas.

Em 1994, é lançado o documento “Diretrizes para a política nacional de educação escolar indígena” (BRASIL, 1994), em 1998, fica pronto o “Referencial curricular nacional para as escolas indígenas” (BRASIL, 1998a) e um livro sobre matemática e povos indígenas (BRASIL, 1998b). Em 2002, o MEC apresenta “Referenciais para a formação do professor indígena” (BRASIL, 2002a), no mesmo ano, apresenta o “Programa Parâmetros em Ação Educação Escolar Indígena” (BRASIL, 2002b; 2002c; 2002d; 2002e). Em 2003, o MEC publica os “Anais do seminário Políticas de ensino médio para povos indígenas” (BRASIL, 2003). Em 2006, cinco volumes da Coleção Educação Para Todos são dedicados a temáticas indígenas (BRASIL, 2006a; 2006b; 2006c; 2006d; 2006e). Em 2007, são apresentados dois volumes sobre diversidade sociocultural indígena (BRASIL, 2007a; 2007b) e, em 2012, as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Escolar Indígena na Educação Básica (BRASIL, 2013).

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É uma educação que aparece próxima de práticas inscritas no âmbito da chamada educação popular (BRANDÃO, 2006), notadamente a partir de experiências ligadas a organizações religiosas, associações de bairro e outras organizações da sociedade civil que, de formas variadas, incorporaram ao seu fazer educativo a intervenção sobre os meios de vida das pessoas, tanto as educandas quanto as demais pessoas da comunidade. Na revisão destas iniciativas, foi possível perceber que, paralelamente à alfabetização de pessoas adultas, da evangelização, da educação política, foram constituídas cooperativas de trabalho autogerido, cursos profissionalizantes, micro-empreendimentos solidários, produção de alimentos, de vestuário, educação nutricional, educação em saúde coletiva etc. Muitas destas iniciativas foram originalmente criadas com a intenção de alfabetizar, conscientizar politicamente ou evangelizar. No contato com aqueles grupos e suas realidades de vida, ampliaram a abrangência de sua atuação e criaram propostas de intervenção para o enfretamento dos considerados problemas locais (ABBONIZIO, 2009). Se a intervenção nos meios de vida aparece com alguma recorrência em projetos educativos não-escolares, no âmbito escolar, mais precisamente, na escola pública, este tipo de iniciativa é exceção. De acordo com Ghanem (2004), a educação escolar promove poucas possibilidades de cidadãos comuns participarem das decisões sobre sua própria educação, isto porque ela se impõe a diferentes grupos e culturas em vez de promover um diálogo produtivo com eles.

Tal modelo de educação, segundo o mesmo autor, reduziu a escola elementar a uma agência especializada em transmitir saberes considerados legítimos e indispensáveis, embora sejam em grande medida frívolos e alheios às necessidades mais vivas dos diferentes grupos sociais (Ibidem, p. 16). Este mesmo modelo educacional também foi imposto aos povos indígenas, e assumiu o caráter de instrumento de colonização e, pois, de etnocídio, fosse a escola missionária ou a de governos coloniais. Isto significou a introdução de práticas educacionais orientadas ao desrespeito pelos conhecimentos, línguas, organizações sociais e políticas tradicionais daqueles povos. A mudança deste tipo de orientação da escolarização de pessoas indígenas tem sua gênese na década de 1970, ainda durante a ditadura militar 134

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brasileira, quando surgem no cenário político nacional organizações não-governamentais voltadas para a causa indígena, entre as quais, a Comissão Pró-índio de São Paulo, o Centro Ecumênico de Documentação e Informação (CEDI), a Associação Nacional de Apoio ao Índio (ANAÍ) e o Centro de Trabalho Indigenista (CTI). Também compõem este cenário, setores progressistas da Igreja Católica voltados à defesa dos direitos humanos e das minorias étnicas. Duas organizações católicas são criadas para atuar junto à escolarização indígena: a Operação Anchieta (OPAN), em 1969 e o Conselho Indigenista Missionário (CIMI), em 1972. A partir de 1974, assembleias indígenas em todo o país contribuíram para a articulação de líderes indígenas e para a criação de organizações indígenas, como a União das Nações Indígenas (UNI), em 1980, e outras de definição étnica ou regional, como o Conselho Geral da Tribo Tikuna, a Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro, o Conselho Indígena de Roraima, o Conselho Geral da Tribo Sateré-Mawé, a Organização do Conselho Indígena Munduruku etc. A articulação entre organizações civis indigenistas e organizações indígenas estimulou uma prática e uma política indigenista, paralela a oficial, visando defesa dos territórios, assistência à saúde e escolarização. Acerca disto, intensifica-se a organização de movimentos de professores indígenas, como a Organização Geral dos Professores Tikuna Bilíngues (OGPTB), Comissão dos Professores Indígenas do Amazonas e Roraima (COPIAR) e a Organização dos Professores Indígenas de Roraima (OPIR) (FERREIRA, 2001). Este movimento político levou a importantes disposições na Constituição Federal de 1988 (BRASIL, 1988), criando as bases para a construção de um novo modelo de escola para indígenas, que se opôs ao modelo missionário e civilizatório. De acordo com Grupioni (2008, p. 34-37), em contraposição a uma escola que se constituía pela imposição do ensino da língua portuguesa, pelo acesso à cultura nacional e pela perspectiva da integração, é desenhado outro modelo de como deveria ser a nova escola indígena: comunitária (na qual a comunidade indígena deve ter papel preponderante); diferenciada das demais escolas brasileiras; específica (própria a cada grupo indígena onde estiver instalada); intercultural (em diálogo entre conhecimentos ditos universais e indígenas) e bilíngue (com a consequente valorização das línguas maternas). RETTA, Vol. VIII, nº 11, jan.-jun./2015

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Produção de conhecimento necessário à ação De acordo com Silva (1995, p. 9-10), na segunda metade da década de 1970, em meio a um intenso processo de reorganização da sociedade civil e constituição de novos atores no cenário político brasileiro, tomam vulto o movimento indígena e as entidades civis de apoio à causa indígena. Conforme aquela autora, no contexto da busca de informações, na formulação de projetos e reivindicações e na defesa de seus direitos, o debate dos povos indígenas e seus interlocutores na sociedade nacional trouxe a educação escolar indígena para o primeiro plano. Nas aldeias e nas áreas indígenas, foi neste mesmo período que emergiram as primeiras tentativas de construção de uma educação escolar sintonizada com os interesses, os direitos e as especificidades de povos e culturas indígenas. Este processo, segundo a mesma autora, foi intenso, rápido, politicamente inovador e transformou a escola indígena convencional (definida e gerida desde fora, imposta e estranha aos índios) em espaço de articulação de informações, práticas pedagógicas e reflexões dos próprios índios sobre seu passado e seu futuro, sobre seus conhecimentos, seus projetos e a definição de seu lugar em um mundo globalizado.

Até os anos 1970, como indicam Kahn e Franchetto (1994, p. 6), é possível identificar um projeto claro, explícito e pragmático que norteou a escolarização para as pessoas indígenas no Brasil: catequese e socialização para a assimilação dos índios na sociedade brasileira. A tradição indigenista, de acordo com elas, estava pautada no estímulo a formas sociais e econômicas que geravam dependência e subordinação da terra e do trabalho indígena à lógica de acumulação. O lema era integrar, civilizar o índio, concebido como um estrato social submetido a uma condição étnica inferior à da cultura ocidental cristã. Um exemplo da aplicação daquela tradição foram os convênios que os órgãos oficiais de tutela, primeiro o Serviço de Proteção ao Índio (SPI) e depois a Fundação Nacional do Índio (Funai), estabeleceram com instituições religiosas para escolarizar indígenas em suas comunidades e aldeias. Este quadro passa a ser alterado a partir da década de 1980, período de grande transformação nas concepções que vão nortear o convívio do Estado brasileiro com sua realidade indígena. Este período marca a afirmação dos movimentos indígenas organizados no Brasil, motivados também pelo caminho construído 136

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pelas organizações civis indigenistas para a conquista de direitos formais garantidos na Constituição Federal de 1988.

Conforme as mesmas autoras, o processo de reconquista dos territórios indígenas foi decisivo na demanda por um ensino escolar formal nas aldeias. As organizações de apoio aos indígenas tiveram papel fundamental junto à Funai, pressionando o governo para o reconhecimento das terras indígenas. Os líderes indígenas, ao se dirigirem às autoridades federais, ou no contato direto com as forças políticas locais interessadas em suas terras, como madeireiros, mineradoras, garimpeiros e fazendeiros, foram percebendo que a escola implantada há anos em suas aldeias era de pouca serventia: oferecia-lhes uma matemática incapaz de fazer-lhes assumir o controle de trocas comerciais historicamente injustas, um código escrito limitado à leitura de trechos da Bíblia, de “bê-a-bás” ou, ainda, de textos que empobreciam e infantilizavam fragmentos da tradição oral (KAHN; FRANCHETTO, 1994, p. 07).

A nova escola indígena que começa a ser desenhada nasce, portanto, da ruptura com um modelo escolar que desrespeitava e desconsiderava a cultura indígena e que também era deficiente na preparação do indígena para uma relação menos assimétrica com a sociedade não-indígena envolvente.

O processo de criação de escolas que fossem das comunidades indígenas aponta para esforços de compatibilização dos objetivos escolares com a realidade de vida das pessoas implicadas. Sob este aspecto, vêm à tona definições a respeito de quais conhecimentos são necessários. Ao mesmo tempo, ao romper com a lógica histórica da escola como agência especializada em transmitir conhecimentos considerados universais, a escola indígena se volta para a produção do conhecimento que entende necessário.

A identificação entre educação escolar e produção de conhecimento, para Ghanem (2004, p. 18) é condição fundamental para uma relação adequada e coerente entre escolarização e democracia. Conforme ele entende, para se adequar à democracia não bastaria à educação escolar brasileira promover a multiplicação de aprendizagens e buscar aprendizagens significativas RETTA, Vol. VIII, nº 11, jan.-jun./2015

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se elas seguirem sendo a doação de saberes que podem circular ou ter utilidade no contexto dos alunos. As aprendizagens significativas precisam ser interpretadas como saberes que são necessários produzir no âmbito dos educandos, estabelecidos com cada vez mais influência direta de educadores e educandos e produzidos por eles. A necessidade de produzir um saber indisponível oferece uma baliza, uma orientação para buscar conhecimentos existentes e para possíveis aprendizagens. Sem privilegiar essa busca de conhecimentos orientada, a aprendizagem ou se reduz ao lúdico, ou se impõe heteronomamente, ou é cega. Mais do que abandonar o “ensino frontal” e buscar um modelo adequado de ensino, no sentido de transferir saberes, é preciso conceber a educação escolar como esforço de produção de conhecimento necessário à ação do indivíduo sobre si e do sujeito pessoal sobre as relações sociais (GHANEM, 2004, p. 218). Para aquele autor, uma educação escolar adequada à democracia não significa “melhorar” ou “aumentar” a qualidade da educação escolar. Trata-se de mudar de qualidade, edificar outro modelo baseado na produção de conhecimento. Em tal modelo, mais importante que estabelecer um padrão nacional ou internacional, é que cada grupo local estabeleça, com crescente nitidez, o conhecimento que necessita produzir, podendo, por conseguinte, tornar evidentes os conhecimentos já existentes que suportem essa produção. Só depois disso é que restaria buscar as formas eficientes de dominar os conhecimentos existentes (GHANEM, 2004, p. 219). Um marco teórico deste entendimento está nas formulações de Paulo Freire sobre o modelo educacional brasileiro. Tais formulações, embora tenham surgido há mais de cinquenta anos, não perderam sua atualidade. As objeções de Freire ao modelo educacional vigente articulavam-se em torno de alguns temas principais: a superposição da escola à realidade; a orientação excessivamente centralizadora das instituições escolares; o rígido autoritarismo e o caráter assistencialista das atividades. A primeira e mais geral dentre estas críticas apontava para a ausência de entrosamento entre a educação e a realidade brasileira. A escola seria “desenraizada”, “desatualizada”, “inorgânica”, “inautêntica” e “desvinculada da vida porque estranha às condições do presente” (BEISIEGEL, 1982, p. 95). 138

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Partindo do pressuposto de que o homem realiza plenamente sua humanidade enquanto interfere, Freire (2007, p. 31) propõe que a educação não é um processo de adaptação do indivíduo à sociedade, já que o homem deve transformar a realidade para “ser mais”. Conhecido internacionalmente como criador de um método de alfabetização, ao estudar as articulações mais gerais entre a educação e a sociedade no Brasil, aquele autor concluía que a simples alfabetização de pessoas adultas seria por si mesma insuficiente. O essencial era transcender a erradicação do analfabetismo para que se erradicasse a inexperiência democrática do Brasil, por meio de uma educação para a democracia, numa sociedade que se democratizava. A escola, desvinculada da vida, centrada na palavra esvaziada de realidade, não contribuiria, portanto, para que estudantes ganhassem experiência sobre o que fazer, pois, neste modelo, não se desenvolveria a criticidade da consciência, indispensável à democratização (BEISIEGEL, 1982, p. 109-10).

As ideias de Freire foram importantes fontes de inspiração de uma movimentação maior, desencadeada na década de 1960, em torno de práticas que se autodenominaram de “educação popular”. É certo que alguns autores como Beisiegel (2004) e Paiva (1973) entendem que educação popular seria o mesmo que escolarização do povo, ou escolarização de todos os brasileiros, não se reduzindo às experiências da década de 1960. No entanto, a expressão educação popular passou a tipificar os esforços voltados não apenas para a escolarização básica de jovens e adultos, embora a questão da alfabetização inicial fosse um elemento extremamente valorizado, mas estava referida a atividades de mobilização e conscientização política e se manteve, na maior parte das vezes, fora dos muros da escola pública, mesmo quando eram promovidas pelos governos. No Brasil, foram desenvolvidas principalmente nos chamados centros de cultura popular e nas Comunidades Eclesiais de Base (CEBs)36, sendo seus exemplos mais notáveis o Movimento de Educação de Base (MEB), o Movimento de Cultura Popular (MCP), a Campanha De Pé no Chão Também se Aprende a Ler e o Centro de Cultura Popular da União Nacional dos Estudantes (CPC/UNE)37. Pequenos grupos organizados em torno de paróquias do meio urbano ou de capelas no meio rural.

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A este respeito, conferir Beisiegel (1982), Betto (1985), Brandão (1977), Catão (1986), Góes (1980), Paiva (1973) e Wanderley (1984).

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Focalizando outros países da América Latina além do Brasil, Bengoa (2000, p. 22) aponta que as organizações indígenas que emergiram nos anos de 1980 estiveram, muitas vezes, ligadas à educação popular e foram adquirindo crescentemente uma “consciência étnica” para além dos problemas econômicos, sociais e políticos que afetavam aos indígenas na região. Um processo parecido, conhecido a partir de Messeder e Ferreira (2010), deu-se entre um pequeno grupo de professoras da Aldeia Tupinambá de Sapucaeira, uma das 25 comunidades que constituem o povo autodenominado Tupinambá de Olivença, em 1996. O grupo começou a trabalhar voluntariamente para alfabetizar as pessoas da aldeia e, ao participar do Coletivo de Alfabetizadores Populares da Região Cacaueira – Caporec, teve contato com a obra de Paulo Freire. A partir daí, foram estimulados a conciliar ao processo educacional o estudo e a problematização da sua realidade de vida. Isto contribuiu para que questões étnicas emergissem nas histórias de vida de alfabetizandos e dos alfabetizadores e passaram a integrar o programa de formação docente. Assumindo-se como indígenas, muitos alfabetizadores integravam atividades de formação e de articulação política indígena que preparavam as atividades paralelas à “Comemoração dos 500 Anos do Descobrimento do Brasil”. Para os autores, portanto, o trabalho de militância em torno da alfabetização na zona rural daquela região foi responsável pelo processo de organização étnica do conjunto do povo Tupinambá.

A correspondência entre escolarização indígena e educação popular também está explicitada em Monte (2000, p. 15), que trata do processo de elaboração da política de escolarização indígena no Acre, no início da década de 1980, no âmbito do programa “Uma experiência de autoria”, executado a partir da aliança entre a Comissão Pró-Índio e organismos públicos. Aquela autora aponta que a formulação de um projeto de escolarização flexibilizada a partir das especificidades e variedades de sociedades indígenas envolvidas e do potencial de participação dos atores, por seu caráter inovador, não contava com referenciais teórico-metodológicos prévios além dos princípios políticos e pedagógicos da educação popular. 140

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A prática enquanto preparação para a ação Retomando a caracterização proposta por Ghanem (2006), à medida que a escola se consolida como agência especializada em transmitir saberes considerados legítimos e indispensáveis, ela se distancia e se alheia das necessidades mais vivas dos diferentes grupos sociais. Por este motivo, pode ser concebida como inovadora a educação escolar que, ao invés de se impor, propõe um diálogo produtivo com os grupos sociais. Este diálogo é produtivo conforme esteja voltado para a realização daquilo que se pretende preparar. A prática, portanto, não é importante apenas enquanto facilitadora da aprendizagem de alguma coisa, ela é a própria vivência daquilo para o qual está voltado o processo educacional.

Ao pesquisar as representações dos Tapirapé sobre a escola, Gorete Neto (2009) sublinha que, para aquele grupo, a necessidade da escola está associada ao contato com o não-índio. Conforme ela observa, a escola para aquele povo se configura como espaço privilegiado para aprender a língua portuguesa e a(s) cultura(s) não-indígena(s). Esta representação se aproxima das representações Tapirapé sobre a língua portuguesa, já que, assim como a escola, serve para o contato/embate com o não-índio, para a defesa dos direitos indígenas.

Na opinião de um líder e professor Tapirapé recolhida por aquela autora, “a escola ajudou na luta da terra porque a pessoa sabe como fazer documentação para autoridade”. Uma contribuição da escola, portanto, é possibilitar que os líderes dominem o processo de confecção de documentos. Isto envolve não só saber escrever em português, mas, também, certo domínio do jargão específico e da estrutura de tais documentos. Na década dos anos 2000, por exemplo, os Tapirapé estavam em conflito com mineradores não-índios. Um grupo destes mineradores assediou alguns líderes para que autorizassem a prospecção de minérios dentro da terra indígena, mas, a maioria dos Tapirapé era contrária à entrada dos mineradores. Mesmo assim, aqueles líderes levaram em sigilo alguns mineradores onde supostamente se encontravam as jazidas, em um local considerado sagrado para os Tapirapé. A descoberta deste fato pela comunidade gerou grande temor de que o território Tapirapé fosse invadido, depredado, e seu sítio sagrado violado. Naquele período, estava RETTA, Vol. VIII, nº 11, jan.-jun./2015

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acontecendo uma das etapas do curso “2º grau Tapirapé”, que formaria a primeira turma da aldeia neste nível de ensino. Diante das circunstâncias, os cursistas elaboraram, durante a aula de língua portuguesa, dois documentos para serem enviados ao procurador da república, em Mato Grosso, denunciando os fatos e exigindo providências. Estes documentos também foram entregues ao cacique de cada uma das aldeias. Os documentos foram apresentados à comunidade e, após uma intensa discussão realizada na escola, foi decidida a destituição de todos os caciques que atuavam naquele momento, envolvidos ou não com o caso (GORETE NETO, 2009, p. 54-55). No exemplo Tapirapé, a ação educacional não está voltada a uma preparação para um estado de coisas futuro. Não é uma formação baseada em conhecimentos que hipoteticamente serão necessários para a ação política futura. A ação educacional é a ação política. Isto significa que, naquele tipo de organização escolar, a vivência da ação é considerada a melhor preparação para a ação (cf. McCOWAN, 2010).

O processo de escolarização Tapirapé atrela à aprendizagem da língua portuguesa um valor instrumental. Sua aquisição não é importante em si mesma, mas condição para a comunicação, para o enfrentamento de situações de opressão e o exercício da reivindicação de direitos. Ao mesmo tempo, é um caso exemplar de intervenção direta da escola sobre a realidade de vida dos atingidos e envolvidos em sua área de abrangência. Neste sentido, a escola Tapirapé exemplifica esforços de produção de conhecimento necessário à ação coletiva, inovando em relação às práticas escolares convencionais centradas no ensino e em saberes pretensamente universais.

Educação como intervenção

As ideias de que o processo de escolarização pode intervir diretamente para a melhoria das condições de vida das pessoas envolvidas ou atingidas em sua área de abrangência, ou, que os objetivos da escolarização podem ir ao encontro das aspirações de vida e futuro destas mesmas pessoas, ainda que não sejam controversas, nem diretamente 142

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combatidas, são pouco recorrentes enquanto prática social e ainda não despertam grande interesse das pesquisas acadêmicas. Um trabalho que relaciona diretamente escolarização e desenvolvimento local no Brasil é o de Dowbor (2007), que propõe que a escolarização não poderia se limitar à constituição de um estoque básico de conhecimentos para cada pessoa. Quem convive num território teria de passar a conhecer os problemas comuns, as alternativas, os potenciais. A escola passaria, assim, a articular as necessidades do desenvolvimento local e os conhecimentos correspondentes, o que asseguraria à nova geração instrumentos de intervenção sobre sua realidade (Ibidem, p. 80). O tom propositivo de sua abordagem, no entanto, leva a crer que ações que procuram equacionar escolarização com necessidades locais de desenvolvimento são pouco recorrentes no Brasil.

A mesma equação não parece ser uma exceção no âmbito da educação escolar indígena. Muito pelo contrário, a ideia de que a escolarização pode servir para melhorar a vida da comunidade tem raízes históricas e se consolida na medida em que a gestão da escola passa a ser indígena e comunitária. A pesquisa de Messeder e Ferreira (2010) sobre a escola dos Tupinambá, na Serra do Padeiro, sul da Bahia, traz algumas iniciativas interessantes que surgem do relacionamento estreito entre escolarização e intervenção sobre a realidade local. Uma destas se refere à alimentação escolar, ou merenda. O cardápio é variado e, na maior parte das vezes, são utilizados os produtos agrícolas da própria comunidade, como aipim, frutas, farinha, pipoca, com os quais são preparados mingaus, sopas, beiju e sucos. A partir da Associação Indígena Tupinambá da Serra do Padeiro (AITSP), a escola compra os produtos agrícolas da comunidade, propiciando um movimento financeiro importante para os moradores. Esta forma de gestão dos recursos da escola tem sido ambicionada por outras comunidades indígenas e entendida como um exemplo bem sucedido de auto-sustentabilidade. Conforme destacam os autores, a escola da aldeia contribui de forma efetiva para a melhoria da qualidade de vida dos moradores da comunidade em vários aspectos. A compra do excedente de produção para a RETTA, Vol. VIII, nº 11, jan.-jun./2015

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alimentação escolar possibilita a entrada de recursos regulares na comunidade e soluciona, em alguma medida, os problemas de escoamento da produção, dificultado pelos custos de transporte e também pelo preconceito dos comerciantes da cidade em relação aos indígenas. O salário dos profissionais da escola (docentes e funcionários) contribuiu no processo de capitalização comunitária, em um contexto de circulação restrita de dinheiro. A merenda elaborada com os produtos locais garante melhor qualidade na alimentação dos alunos e a consideração dos costumes e hábitos alimentares locais. Além disto, os autores apontam para uma manifestação de respeito e preservação dos recursos naturais daquela região, como, por exemplo, nas atividades do projeto “Agroecologia em terras indígenas Serra do Padeiro: Povo Tupinambá Buerarema-BA”, que capacitou e difundiu uma proposta de agricultura sob base agroecológica, introduzindo e aperfeiçoando técnicas socialmente apropriadas, com ênfase nos sistemas tradicionais, no manejo sustentável dos recursos naturais e na valorização do trabalho das mulheres nas atividades agrícolas. Além do desenvolvimento de atividades que fortaleceram e incentivaram ações produtivas e auto-sustentáveis na comunidade, o projeto formou agentes multiplicadores para atuarem nas demais comunidades Tupinambá. Para aqueles autores, portanto, as atuações da Associação e da escola se confundem com o ideal de preservação da Serra do Padeiro. Não é permitida a retirada de madeira da mata, a menos que seja para utilização doméstica e as armadilhas de caça só podem ser colocadas no entorno das roças. Além disto, a Associação encaminhou processos jurídicos contra os fazendeiros locais – que praticavam o desmatamento e provocavam a poluição do rio Una – e organizou a retomada das áreas invadidas (MESSEDER; FERREIRA, 2010, p. 191). Outro exemplo neste sentido pode ser encontrado na pesquisa de McCallum (2010) acerca da atuação da Comissão Pró-Índio do Acre. O projeto “Uma experiência de autoria”, já mencionado, atuou junto a professores selecionados entre os dez povos indígenas daquela região, contribuindo para a instalação de escolas nas aldeias e capacitando aqueles docentes para administrar as atividades das escolas. O primeiro curso aconteceu na capital Rio Branco, em 1983, e prosseguiu com cursos anuais. De acordo com ela: 144

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RETTA – Revista de Educação Técnica e Tecnológica em Ciências Agrícolas os objetivos políticos e a ideologia do projeto da CPI-Acre eram radicalmente diferentes dos que haviam inspirado a educação indígena até então no Brasil. O objetivo imediato era treinar os professores e então apoiar os seus esforços em alfabetizar e ensinar matemática básica para os seus parentes nas aldeias. O objetivo maior era empoderar os alunos, dando-lhes a capacidade de entender as contas e de administrar o comércio dos seus produtos, a fim de acabar com a escravidão das dívidas, às quais haviam sido submetidos, desde a chegada dos seringalistas no Acre e no Território Kaxinawá, no final do Século XIX. As ambições políticas dos fundadores da CPI incluíam a de assegurar os direitos a terra: as escolas indígenas eram um dos meios para alcançar esse fim. A independência econômica seria alcançada e, então, mantida através do estabelecimento de cooperativas indígenas para a venda dos seus produtos e a compra de mercadorias essenciais para o transporte e a redistribuição nas áreas indígenas. (MCCALLUM, 2010, p. 94).

O relacionamento direto entre escolarização e intervenção sobre condições de vida manifesto nas experiências indígenas pode ser interpretado a partir do enfoque proposto por Touraine (1998, p. 323). Ele entende que, ao modelo escolar propedêutico, dever-se-ia sobrepor outro, que partiria da observação das desigualdades de fato e procuraria corrigi-las ativamente, produzindo uma visão realista e não idealizada das situações coletivas e pessoais. Desta forma, os conhecimentos (e os assim chamados valores) seriam ressituados em situações sociais e históricas concretas. Para aquele autor, esta concepção da educação escolar não se define somente pela sua pertença a uma sociedade democrática. Ela atribui à escola um papel ativo de democratização, levando em conta as condições particulares em que as diferentes pessoas se defrontam com os mesmos instrumentos e com os mesmos problemas. Quando a escola indígena se dedica a contribuir para a solução dos problemas comunitários, volta-se para a busca e produção de conhecimentos que possam ser necessários para melhorar as condições de vida da comunidade. Diferente do modelo de escola somente orientado à preparação em torno de conhecimentos que hipoteticamente serão úteis em um estado futuro, é uma escola que se compromete com a realidade de RETTA, Vol. VIII, nº 11, jan.-jun./2015

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vida atual das pessoas a quem se dirige. Sob este aspecto, ao invés de pressupor necessidades futuras, a escola indígena contribui ativamente para a realização de projetos de futuro comunitários, estejam relacionados à valorização de suas culturas tradicionais ou à busca de equilíbrio nas relações com a sociedade não-indígena.

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EDUCAÇÃO E A REVOLTA POPULAR NO BRASIL CONTEMPORÂNEO Roberta Lobo38 Resumo Os enlaces entre Educação, Revolta Popular e Brasil Contemporâneo implicam num mergulho de escafandrista na “insurgência” e na “tempestade perfeita”. Neste ensaio, apresentamos alguns movimentos necessários ao escafandrista, adquirindo fôlego para reflexões profundas sobre o sentido da educação e da formação humana no tempo presente. Dos anos de 1990 até a atualidade verificou-se um desmanche do que autoritariamente foi realizado pela ditadura militar das décadas anteriores. A falência do nacionaldesenvolvimentismo e a fetichização do neodesenvolvimentismo dos governos Lula-Dilma fazem parte de um complexo processo de crise do capital e de dissolução das formas sociais e estatais até então conhecidas. Financeirização da economia, bolhas de especulação, doutrina da pacificação, cidades vendáveis para os megaeventos, endividamento, remoções, imobilidade urbana e encarceramento fazem parte de uma dinâmica social que se consolida há 30 anos. Sob este desassossego levamos o escafandrista aos dilemas de uma esquerda refinada nas técnicas de gestão da barbárie, bem como aos impasses que vão conduzindo a desintegração social brasileira. Impasses apresentados tanto pela revolta popular de 2013, quanto pelo movimento “coxinha” que insiste em ganhar asas num jogo já dado no zero a zero. O escafandrista é o educador inquieto que rejeita o senso comum e aposta na intuição das novas gerações em negar a espoliação e a humilhação como herança inquestionável. Palavras-Chave: Educação; Revolta Popular; Brasil Contemporâneo.

Graduação em História/UERJ; Mestrado em História Social/UFRJ; Doutorado em Educação/UFF; Pós-Doutorado em História da Música/UniRio. Professora do Departamento Educação do Campo, Movimentos Sociais e Diversidade da UFRRJ. Endereço eletrônico: [email protected].

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EDUCATION AND THE POPULAR UPRISING IN CONTEMPORARY BRAZIL Abstract The links between Education, Popular Uprising and Contemporary Brazil require a deep dive in the “insurgency” and “perfect storm”. In this essay, we present some movements needed to the diver, acquiring breath for deep reflection on the meaning of education and human formation at the present time. From 1990’s to the present, there has been a dismantling of what was authoritatively held by the military dictatorship of previous decades. The failure of national developmentalism and the fetishization of neo-developmentism of Lula-Dilma governments are part of a complex process of capital’s crisis and dissolution of social and state forms hitherto known. Financialization of the economy, speculative bubbles, the pacification doctrine, salable cities for mega events, debt, removals, urban immobility and incarceration are part of a social dynamic that is consolidated for 30 years. Under this unrest, we took the diver to the dilemmas of a refined left in barbarism management  techniques, and the impasses that will lead Brazilian social disintegration. Impasses presented both by Popular Uprising of June 2013, as the “coxinha” movement that insists on creating wings in a game already zero to zero. The diver is the restless educator who rejects common sense and bet on intuition of the new generations in denying the spoliation and humiliation as unquestionable heritage. Keywords: Education, Popular Uprising, Contemporary Brazil.

Abrindo com coquetel-molotov A revolta popular que se espalhou entre os meses de junho a outubro de 2013, não agradou gregos, nem troianos. Do susto posto, o limite da irracionalidade do sistema, a insurgência das cidades, o governo assustado, a elite enraivecida, a esquerda tradicional calada. Das inúmeras opiniões sobre a complexidade ainda inapreensível muita confusão e esquecimento restaram. Foram mais de 15 milhões de pessoas nas ruas em 152

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mais de 500 cidades39, autoconvocadas e de presença marcada na roupa, no cartaz feito à mão, na máscara ameaçada. Ainda hoje quem viveu não sabe dizer o que foi ou como foi, mas um vento ambíguo de liberdade e de pavor soprou sobre as ruas de um país em ponto de bala, prontamente fabricado para despedaçar com velocidade e eficiência. Estilhaços de um explosivo chamado Brasil são os anos da seqüência, com direito à reação conservadora, como de costume, implosão da política institucional e cobrança da janta patrocinada pelo capital em crise.

Uma quebra de paradigma sem dúvida, da mesma ordem quando, em 1964,o Partido Comunista Brasileiro optou com Jango pela derrota sem resistência. Parte da militância social, velhos militantes do Partidão e jovens dos movimentos estudantis e de cultura seguiram o caminho da luta armada, quebrando assim o monopólio do PCB sobre a esquerda no Brasil entre os anos de 1930 e 1960. A revolta popular de 2013 quebrou o paradigma da forma organizativa da esquerda brasileira (partidos, sindicatos e MST), bem como dos chavões de “consciência nacional” e “desenvolvimento”, “tática e estratégia”, “luta por políticas públicas”. A realidade das massas sobrantes402 rasgou o céu das grandes e médias cidades, criou novas fronteiras nas ruas, praças e avenidas, impedindo em relampejos de tempo a livre circulação do capital. Reduzir o fenômeno da revolta popular de junho de 2013 a uma atuação de jovens universitários da classe média iniciantes na política é no mínimo negligenciar o processo histórico de 30 anos de neoliberalismo na história do Brasil Contemporâneo.

É fato demonstrado por pesquisas de opinião que a maioria participante das manifestações era formada por jovens de camadas médias ou os “novos incluídos” via mundo do consumo dada a melhoria de renda dos últimos anos. A população pobre das periferias mais longínquas, pouco participou dos protestos. (GOHN, 2014, p.86).

Segundo Arantes (2014, p.378) faz-se necessário colecionarmos os relatos das jornadas de junho para que não fique " (...) soterrada a memória viva do maior protesto de massa da história brasileira, com esta peculiaridade igualmente divisora de águas, a de que ele foi rigorosamente autoconvocado, ao contrário dos episódios altamente coreografados, como as DiretasJá e os caras-pintadas".

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Sobre o conceito de massas sobrantes ver: Menegat, M. Sem Lenço, nem aceno de adeus. In: Estudo sobre ruínas. RJ: Revan: Instituto Carioca de Criminologia, 2012.

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Os revoltados em praça pública eram heterogêneos de bolso, de gosto e de opção política. Uma massa de jovens, secundaristas, universitários, profissionais liberais, trabalhadores do setor de serviços, desempregados, precarizados, moradores de rua. De todas as frações, de classe e de desclassificados41. Não era a luta por uma cidadania real de jovens otimistas se tornando ativistas simpatizantes do anarquismo e com grande impulso das redes sociais. São momentos de dissolução social da ordem do capital em que não sobra nada das “boas intenções” de nossos governantes. Sobram sim muitas balas de borracha e outros acessórios que precisam cumprir a função de reprodução do capital, precisam ser produzidas e consumidas incessantemente – uma irracionalidade infinita da lógica da expansão do valor. Reduzir a revolta popular de junho de 2013 a uma questão da juventude, ou mesmo, de re-significação da participação dentro do debate da crise da democracia é abrir mão de compreender uma sociedade que está se desintegrando a olhos nus, sem lente de aumento ou de cor, nada fica em pé sob o furor dos momentos finais do desmanche “nacional” que se iniciou lá pelos idos de 1990.

A prática sistemática da violência nas diferentes manifestações depois de junho ofuscou a legitimidade das ações, afastou as grandes massas das manifestações, contribuiu para o isolamento e segmentação dos ativistas. (...) Concluindo a respeito da violência nas manifestações, cito Caetano Veloso: “Não gosto de violência e nem desejo insuflar o entusiasmo de jovens narcisistas, que adoram se sentir salvadores da humanidade” (Folha de São Paulo, 29/01/2014). Caetano, criador de inúmeras controvérsias, dessa

"Vale lembrar que o Brasil é bem conservador - da "elite branca" paulistana à chamada "nova classe média" que ascendeu socialmente, tendo como referência símbolos de consumo (e a ausência deles como depressão). Trata-se de uma população com 93% a favor da redução da maioridade penal. Que acha que a mulher não é dona do seu corpo. Que é contra o casamento gay. Que tem nojo dos imigrantes pobres da América do Sul. Que apóia o genocídio de jovens negros e pobres da periferia das grandes cidades. (...) Grupos conservadores se organizaram na internet para pegar carona nos atos. Lá chegando colocaram suas mangas de fora com suas pautas paralelas. (...) Estavam aos milhares na Paulista e arredores, sendo uma ruidosa, chata e violenta minoria. Com um discurso superficial, que cola fácil, fez adeptos instantâneos. (...) Havia sim, um pessoal de ultra direita, que enxerga comunismo em ovo e estava babando de raiva, louco para derrubar um governo. (...) Essa ultra direita se utiliza da violência física, da intimidação como instrumentos de pressão: por menos numerosa que seja, provoca sustos. Eles estão entre os mais pobres, mas também entre os mais ricos - com acessos a recursos midiáticos e dinheiro. A saída deles do armário e seu ataque a manifestantes ligados a partidos foi bastante consciente". (SAKAMOTO, 2013, p.97-98)

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RETTA – Revista de Educação Técnica e Tecnológica em Ciências Agrícolas vez ganhou inúmeros aplausos! Eu também não gosto da violência. Sou da paz e pelo diálogo. (GOHN, 2014, p.79)

Roberto Schwarz em 1994 anunciava o que nos esperava. Os anos de 1990 se apresentavam como negatividade de uma modernização autoritária incompleta, sendo acompanhada pela desintegração das condições objetivas do nacional-desenvolvimentismo. O nosso contemporâneo se inicia com a falência do nacional-desenvolvimentismo e a fetichização do neodesenvolvimentismo dos governos Lula-Dilma. As massas que sobram há 30 anos para onde se moveram? Ocupações de terra, favelas, periferias, presídios, valas comuns. A “juventude de 2013” estava nascendo quando a desintegração já se iniciara. A lucidez de Schwarz não nos permite abstrair a revolta popular de junho deste lastro histórico.

No Brasil corremos o risco de ver reprisado o desastre da Abolição, quando os senhores, ao se modernizarem, se livraram dos escravos e os abandonaram à sua sorte. É sabido que o novo padrão competitivo, íngreme em face das realidades da vida popular, se compõe à maravilha com o nosso descaso secular pelos pobres. Em seu “despreparo”, estes estão deixando de interessar até como força de trabalho quase gratuita. Passou o tempo em que incorporá-los parecia um imperativo econômico. Diante das novas tendências estruturais, mais segmentadoras que integradoras, com as suas desqualificações sociais duras e sobretudo o desemprego tecnológico, não será fácil as elites decidirem e entenderem, até para uso particular, em que consista ser parte de um país ou governá-lo. Só por coração cristão ou deformação esquerdista antiga os cidadãos da faixa atualizada, aliás policlassista, sentirão afinidade com os que sobraram. O divórcio entre economia e nação é uma tendência cujo alcance ainda mal começamos a imaginar. A pergunta não é retórica: o que é, o que significa uma cultura nacional que já não articule nenhum projeto coletivo de vida material, e que tenha passado a flutuar publicitariamente no mercado por sua vez, agora como casca vistosa, como um estilo de vida simpático a consumir entre outros? Essa estetização consumista das aspirações à comunidade nacional não deixa de ser um índice da nova situação também da... estética. Enfim, o capitalismo continua empilhando vitórias. (SWCHARZ, 1994, p.5)

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Depois das “Jornadas de Junho” de 2013, tivemos na sequência a Copa do Mundo em julho de 2014, as Eleições Presidenciais em outubro de 2014, o Movimento coxinha em abril de 2015 e agora a “crise”. Agora? No concreto, o que restou? A falência da democracia representativa tão atenciosa às demandas populares na era do lulismo42? A autocrítica frente à ausência da democracia participativa? A retórica do Plebiscito e da Reforma Política? Restou nossa velha herança monárquica, a repressão autoritária, os decretos, as prisões, mais remoções, mais-recessão, se quisermos aludir a um termo anacrônico ao nosso tempo. Nada de novo na dinâmica da civilização burguesa na periferia, mais-repressão como tônica do complexo formativo de uma subjetividade domesticada, intensificação da extração do valor como eixo de uma dessocialização implacável43. O que de fato aconteceu nestas três décadas de democratização do Estado no que diz respeito à política econômica e à formação social brasileira? Sem a crítica do valor, torna-se frágil a compreensão das contradições do lulismo e todo o impacto (ou não) da revolta popular de 2013. Desindustrialização, desmonte, globalização, terceira revolução técnico-científica, defasagem tecnológica dos países da periferia, sem a compensação dos baixos salários, concorrência direta, desemprego em massa, aumento das importações e da dívida pública, um solene adeus à política econômica pautada no projeto do Estado, salvador do desenvolvimento nacional. Na década de 1990, o ‘desmonte da nação’, a partir dos primeiros choques da abertura da economia, foi verdadeiramente catastrófico. Um estado de emergência social se espalhava em todas as regiões do território nacional. A violência passou a ser endêmica e o número de mortes por causas externas e de encarcerados chegou a índices de uma guerra civil. Diante deste estado de calamidade, ao vencer as eleições em 2002, o PT se credenciava para a gestão desta crise social com uma longa ficha corrida de experiências (principalmente em prefeituras). Nestas experiências, o partido foi

Para maior esclarecimento sobre as raízes sociais e ideológicas do chamado lulismo ver: Singer, André. Os sentidos do lulismo. Reforma Gradual e pacto conservador. SP: Companhia das Letras, 2012.

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Arantes em "Fratura Brasileira do Mundo" aponta as raízes desta dessocialização social que nos marca desde a colônia, seu processo histórico com a modernização conservadora e seu fenômeno de exportação para o "centro do sistema" com o avançar da globalização (Arantes, Paulo. Zero à esquerda. SP: Conrad, 2004).

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RETTA – Revista de Educação Técnica e Tecnológica em Ciências Agrícolas criando para si outro lugar na história, distinto das antigas polêmicas sobre ser um partido revolucionário ou de reformas. Seu sentido histórico último será mesmo o de ter construído um sistema original de gestão de uma sociedade que desmorona. (Menegat, 2015, p.5)

A análise de Menegat (2015) sobre o dilema do PT, no que se refere à gestão da barbárie com o aprofundamento da crise, é bastante esclarecedora, principalmente porque une crítica do valor à crítica do projeto de Estado implementado pela esquerda institucional. Segundo Menegat, pegando carona na bolha financeira44 do preço das commodities, o governo Lula foi alimentando a ilusão de um desenvolvimento nacional com melhorias pontuais para a já desfigurada classe trabalhadora, valorizando como “progressismo” a política de assistência materializada nos programas sociais e na ampliação do consumo interno de bugigangas largamente financiadas. Durante a vigência da bolha financeira (20022008; 2010-2012), a crença neste neodesenvolvimentismo levava o PT de vento em e poupa na gestão de uma economia invertida. “A exportação de ferro, soja, milho, açúcar etc. financiou uma inversão na tendência de déficit da balança comercial causados pela perda de competitividade da indústria nacional.” (MENEGAT, 2015, p.3). A aposta no inchaço das bolhas e no aumento do preço das commodities agrícolas e da extração mineral fez surgir o Programa de Aceleração do Crescimento, o PAC - I, reforçando nosso lugar de canteiro de obras com a reconstrução e ampliação da infra-estrutura logística. No início do segundo mandato, um novo bilhete da sorte, a descoberta do pré-sal, capitalização e especulação da Petrobrás e do Brasil como grande produtor de petróleo. Mais e mais lenha na ilusão neodesenvolvimentista, mas de repente, mais do que de repente, crise, estouro da bolha, desemprego aos baldes, violência indiscriminada, revolta popular, reação conservadora. Segundo Menegat, bolhas financeiras são sintomas agudos de crise. Elas consistem no emprego do capital excedente que circula no mercado mundial, resultante de uma superacumulação que já não encontra oportunidades rentáveis de aplicação na produção em nenhum lugar do mundo. Dinheiro quente desesperado ante a possibilidade iminente de desvalorização. Elas são uma exacerbação e ampliação do chamado capital fictício observado por Marx ainda no século XIX. (2015, p.3)

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RETTA – Revista de Educação Técnica e Tecnológica em Ciências Agrícolas (...) Como a bolha estourou, também este aspecto do projeto lulopetista ficou a ver navios. A sinergia que a gestão econômica da crise social deveria produzir não se efetivará jamais. De tudo isto, sobrará apenas o braço punitivo hipertrofiado com prisões abarrotadas e as polícias superarmadas. As técnicas de gestão da barbárie, além da concepção de integração econômica, pressupunham também o financiamento, que passará a ser cada vez mais difícil no próximo período. O fim da festa pregou uma peça na prepotência ideológica do progresso sem fim da esquerda tradicional (eis outra convergência trágica entre os manifestantes de classe média e o PT - se bem que a esquerda oposicionista, sobre este tema, em nada se diferencie). Sobram canteiros de obras inacabadas por todos os lados, índios removidos para sempre de suas terras ancestrais e hidrelétricas sem fios para conectar a eletricidade com os centros urbanos e as fábricas que nunca existirão. O desemprego voltou a crescer e, por um bom tempo, não encontrará obstáculos que o limite. A violência também seguirá novos rumos. Esta população de brancos enraivecidos que se despe na av. Paulista como se estivessem ‘na maior’ intimidade, já avisou que “fará justiça com as próprias mãos. A dívida pública deve crescer aos saltos. O financiamento do PAC-II, principalmente com as capitalizações do BNDES, junto às políticas anticíclicas (com isenções de impostos e subvenções), deixou um rombo nos cofres públicos. O desmonte do Brasil entrará num outro ciclo de estagnação endividada. O futuro já acabou. Mas contra o que mesmo se voltam os protestos? (MENEGAT, 2015, p.5)

Sejamos mais sinceros com nossas deformações de origem, parte da derrocada atual do país está na persistência pela velha “esquerda combativa”de um modelo de gestão da sociedade e do Estado, que deu aviso de esgotamento no pré-golpe de 1964, bem como nos primórdios da era do desmonte nos anos de 1990. O refinamento das técnicas de gestão de uma sociedade em desmanche, este o troféu do PT num tempo de findas ideologias sobre o “nacional-popular”. A revolta popular de junho de 2013 foi o basta no papinho da “inclusão social”, dos megaeventos como chuva de investimentos para a melhoria das cidades, do aumento do consumo com base no endividamento, do acesso ao ensino superior precarizado sem trabalho à vista. 2013 foi o reconhecimento do luto de um ex-gigante em estado de putrefação. E desta negação inaugura-se a possibilidade a partir dos marginalizados de novas formas de fazer política diante desta “acumulação democrática de escombros”45.

Pegando carona no título da Tese de Doutorado de Felipe Brito : Acumulação (democrática) de escombros. Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da UFRJ, 2010. Vale a pena conferir.

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Cidades Insurgentes e lições não soterradas As cidades se tornaram espaços potenciais de acumulação de capital no contexto da globalização neoliberal, daí a importância dos megaeventos tais como Copa das Confederações, Copa do Mundo, Olimpíadas, etc. São momentos de meganegócios, momentos de furor das bolhas financeiras que invadem cidades já marcadas desde tempos imemoriais pelo abismo das desigualdades sociais. Aos grandes capitais internacionais ligados aos megaeventos somamse capitais nacionais e locais das áreas de construção civil, mercado imobiliário, turismo, gastronomia e hotelaria. Políticos de plantão integram esta “máquina de crescimento”, apostando na visibilidade de suas iniciativas e no apoio econômico para futuras campanhas. A dilapidação do fundo público, seguindo leis casuísticas e apressadas, além de projetos incompletos, se dá sob o argumento do “legado” que, após o megaevento, restará em benefício de toda a população. (MARICATO, 2014, p.18)

Tal “legado” não ocorreu em Pequim, na Cidade do Cabo, na Grécia ou mesmo na África do Sul. Remoções a rodo da população indigesta, elefantes brancos, elevação do custo de vida, abertura irrestrita aos capitais imobiliários, de infra-estrutura e serviços para o bel prazer da expansão autodestrutiva do valor. Passados os anos de 1990, a financeirização da economia46 se consolida como modo operante do capital globalizado, que coloniza as cidades como quintais de sua reprodução, vinculando-se aos processos de especulação imobiliária, de espetacularização de suas imagens fabricadas, imagens altamente rentáveis, pactuadas pelo consenso midiático e pela eficiência da nova “reordenação urbana” assegurada pelas mãos do Estado com sua “política de segurança”, que se amplia como mercado em expansão. Daí o requinte do novo século: financeirização da economia + estado de exceção = neodesenvolvimentismo para quem necessita. Na prática, o neodesenvolvimentismo, isto é, a inclusão das cidades na política de crescimento econômico - vai contra as cidades, pois ignora a política urbana e seu requisito central, o uso e a regulação do solo. (...) A retomada dos investimentos por meio dos Programas

Ver: Oliveira, Francisco. A Era da Indeterminação. SP: Boitempo, 2007.

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RETTA – Revista de Educação Técnica e Tecnológica em Ciências Agrícolas de Aceleração do Crescimento (PAC) de 2007 e 2011 pelo governo federal, junto à do financiamento habitacional, atraiu os capitais de especulação urbana. (...) O boom imobiliário que se seguiu ao lançamento do programa Minha Casa, Minha Vida acarretou um aumento de 185% no preço dos imóveis do Rio de Janeiro entre 2009 e 2012, conforme o índice FipeZap. A perspectiva da realização tanto da Copa quanto das Olimpíadas no Brasil também contribuiu para a febre imobiliária. Com o aumento do preço dos imóveis e dos aluguéis, parte da população trabalhadora foi expulsa para outras fronteiras, ampliando a extensão das cidades e comprometendo áreas de proteção ambiental e de risco geotécnico. (MARICATO, 2014, p. 21)

Somando tudo neste caldeirão dos últimos anos temos Unidades Policiais Pacificadoras, Minha Casa, Minha Vida, Lei Geral da Copa, obras monstruosas para a Copa do Mundo de 2014 e para as Olimpíadas de 2016, desprezo às condições de trabalho e vida da imensa população que vive nas cidades e suas periferias. “(...) Lembremo-nos de José Afonso de Oliveira Rodrigues, Raimundo Nonato Lima Costa, Fábio Luiz Pereira, (...) mortos nas obras dos estádios e de cerca de 170 mil famílias removidas compulsoriamente de suas casas (...) (MAIOR, 2014, p.33). Portanto, as cidades vão perdendo sentido enquanto valor de uso para os “cidadãos” ou para os que nela vivem e trabalham. Velozmente, vão sendo esquadrinhadas em função dos “ativos imobiliários, [estes] mais do que representarem um valor de uso para as cidades, são um ativo financeiro passivo de especulação”. (ROLNIK, 2014, p.67). Megaeventos determinam as “áreas marcadas para morrer” (id.p.68), naturalizando as remoções e o estabelecimento de exceções como política direta do Estado associado aos interesses do capital financeiro ávido por expandir-se.

A revolta popular de 2013 foi o primeiro sinal desta negatividade, onde cidades e serviços de qualidade não estão disponíveis a qualquer um ou a qualquer preço. Para a população mestiça, negra e pobre, os serviços são precários e caros, e um governo paralelo de exceção47 só con-

VAINER (2014, p.72-73) explicita alguns atos deste governo paralelo de exceção: a criação pelo Ministério da Justiça de uma Secretaria Extraordinária de Segurança para os Grandes Eventos (Decreto n.7538, 1 agosto de 2011), consórcio público reunindo União, Estado e Município do Rio de Janeiro;

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firma sua expulsão do processo atual do circuito de produção do valor e do direito à cidade. “Favelização, informalidade, serviços precários ou inexistentes, desigualdades profundas, degradação ambiental, violência urbana, congestionamentos e custo crescentes de um transporte público precário e espaços urbanos segregados. Neste contexto, o surpreendente não é a explosão, mas que ela tenha tardado tanto”. (VAINER, 2013, p.39)

Lições não soterradas são aquelas onde pessoas mesmo sob os escombros insistem em manifestar-se, em reagir, em garantir o direito à desobediência civil, em criticar as técnicas de gestão da barbárie aplicadas pelos governos Lula-Dilma. Existe uma dor dilacerante que atravessa nossa história negativa no que diz respeito à dignidade da população marginalizada. A violência econômica pautada na transferência descarada de recursos públicos para o capital financeiro se completa com a violência extra-econômica da força policial repressiva, pautada na doutrina da pacificação48. As cidades em chamas apontam para este fim de linha da ideologia do desenvolvimento e do fetiche de um “Brasil Para Todos” e de “Pátria Educadora”. (...) a onda social que deixou no seu rastro centenas de novos coletivos ao longo de cinco meses de altos e baixos como uma “insurgência nas ruas”, “insurgência social”, “insurgência popular”. Não é prova de nada, mas pode vir a ser. Resta a novidade de sua redescoberta de agora, porém sentido e referência não podem ser o mesmo. A única evidência da pista intricada que seguimos até aqui foi o aviso de incêndio dado pelos pacificadores. (ARANTES, 2014, p.378).

o Regime Diferenciado de Contratações (Lei n.12462, 04 agosto de 2011), protegendo as marcas da FIFA e da COI, liberando estados e municípios a se endividarem além do limite autorizado pela Lei de Responsabilidade Fiscal; a Lei Geral da Copa (n.12.663/2012). Citando um pouco mais: Criação da Comissão Especial de Investigação de Atos de vandalismo em manifestações políticas (2013); Lei das Máscaras (11/09/2013); Lei das Associações criminosas (02/08/2013); Criação dos Tribunais Itinerantes durantes as manifestações (31/10/2013); Reativação da Lei de Segurança Nacional de 1983 (ARANTES, 2014). As Unidades Policiais Pacificadoras no Rio de Janeiro são apenas a cereja do bolo da chamada Doutrina da Pacificação, trabalho social armado a fim de fortalecer a boa governança do mercado da cidadania. A favela pacificada torna-se um produto vendável, com jovens empreendedores (fim da sociedade salarial) e serviços "legalizados" neste amplo mercado em expansão da segurança pública. "Segundo mr. Herne: um dos principais desafios deste projeto é convencer a população favelada que os benefícios em submeter-se à autoridade estatal (segurança, propriedade legítima da terra, acesso à educação) superam os custos (taxas, contas, obediência civil)" (ARANTES, 2014, p.365).

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A revolta popular de 2013 é a explosão de vozes dissonantes que se espraiam nestas cidades (financerizadas e militarizadas) sem futuro à vista. Se a educação ainda faz algum sentido hoje, lembremos as lições de Pellountier e Bertold Brecht, educar para revoltar e dar o salto para além desta forma social domesticada, onde Estado e mercadoria organizam irracionalmente nossas vidas (ainda prenha de sentidos?). Muitas coisas são necessárias para mudar o mundo: • Raiva e tenacidade. Ciência e Indignação. • A iniciativa rápida, a reflexão longa.

• A paciência fria e a infinita perseverança.

• A compreensão do caso particular e do conjunto.

• Apenas as lições da realidade podem nos ensinar como transformar a realidade49.

Crise, movimento coxinha e nocaute Mesmo sob os gritos de “Não vai ter Copa”, “as bolhas de exceção da Fifa” ultrapassaram o ano de 2014, deixando na balança inquéritos policiais, prisões, remoções, endividamentos, cidades sitiadas e populações pacificadas em excesso. Não podemos mais disfarçar as continuidades autoritárias de um regime democrático híbrido onde “aquele cidadão que está nos protestos populares é considerado um inimigo que deve ser combatido, a ação da política remonta à idéia de toque de recolher, muito característico da época da ditadura, que é retirar o manifestante da rua” (TAVARES apud ARANTES, 2014, p.365).

A esquerda institucional, marcada pela forma partidária, pela burocratização, pela dependência dos recursos públicos e de atrelamento ideológico às concepções de “desenvolvimento nacional”, atonitamente tentou “orga Bertold Brecht citado por David Harvey em "A liberdade da Cidade". In: MARICATO, Ermínia [et al.]. Cidades Rebeldes: Passe Livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil. SP: Boitempo, 2013.

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nizar” os protestos em julho de 2013, mantendo a fórmula requentada dos carros de som, da fala hierarquizada e do limite bem marcado da manifestação sem “desobediência”50. Não conseguiram. As massas sobrantes e os coletivos autônomos de toda a sorte implodiram as margens das avenidas e ocuparam palácios de governo, assembléias legislativas e o congresso nacional e seguiram sua “série de atos profanatórios”51. Aqui estão indistintos PT, CUT, PSOL, PSTU, MST, “(...) o piloto automático da esquerda que ainda não se conformou com a evidência de que manifestações de massa podem acontecer sem organizações de massa, dogma da pirâmide e sua base que ainda compartilha com a direita que se julga vitoriosa porque “sua” mídia pautou o povaréu na rua (...) (ARANTES, 2014, p.398). A polarização fetichizada apresentada nas Eleições Presidenciais de 2014 dá continuidade ao desmoronamento social e político do país. A tensão social se espalhou, gerando intolerância para todos os gostos nas ruas. O debate político foi rasteiro, superficial e inócuo, pois no concreto não considerou as reais demandas populares apresentadas nas manifestações de 2013: fim das remoções, desmilitarização da vida nas periferias, controle social do lucro das grandes empresas revertido para a qualidade de vida nas cidades. Mais uma vez confirmado o desencontro (desconfortável?) da esquerda progressista (positivista?) e produtivista, pois não quer “ver” nem o “desmanche nacional”, tampouco os milhões de desorganizados nas ruas que não querem ser mais governados e desovados como nos últimos anos. No final das contas desajustadas, o que nos apresenta o velho infantilismo de esquerda? Reforma política e políticas públicas, domesticação que cumpre o papel de solicitar a castração do reprimido que retornou sem aviso prévio. "Na primeira onda de manifestações encerradas em junho, as centrais sindicais, o MST e os partidos de esquerda não lograram polarizar a vida política. Enquanto os protestos desmaiavam nas ruas já cansadas no fim do mês, algo se insinuava no ar. O roteiro previsível do teatro da política brasileira se tornou incerto". (SECCO, 2013, p.71)

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Para maior esclarecimento sobre a Doutrina contrainsurgente da Pacificação e a compreensão da insurgência que levantou o país como uma profanação, ver ARANTES (2014) e sua leitura de Profanações de Giorgio Agamben (2007). "A conclusão de Agamben é que o capitalismo contemporâneo como religião total, quer dizer, um ritualismo integral, impulsionado por imperativos meramente cultuais, torna-se um sistema voltado para a "criação de algo absolutamente Improfanável" - e assim sendo, a profanação do improfanável tornou-se a tarefa política da geração que vem". (ARANTES, 2014, p.399).

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RETTA – Revista de Educação Técnica e Tecnológica em Ciências Agrícolas (...) o que de fato está chocando e enfurecendo é o poder coletivo exibido por muitos corpos juntos na rua, demonstrando ser o mais efetivo instrumento de oposição, e pior ainda, sem clamar por um chefe - e não só aqui, essa praga está se alastrando pelo mundo. Capaz de agir em comum sem ser governada, desafia não só o Estado que necessita agora de um povo unido em torno da pátria de chuteiras, mas igualmente os partidos que precisam da massa de eleitoresconsumidores organizados por nichos de demanda, bem como os movimentos e organizações sociais, cujos cadastros definham se o público alvo fica muito arisco, e o Capital, enfim, por tudo o que se disse, somando o zelo indispensável aos envolvidos na procura de um bem escasso chamado emprego. Pois esta legião sem nome começou a mostrar a cara em Junho. (ARANTES, 2014, p.460)

Protestar sem risco e sem violência. O Movimento Coxinha e seus fiéis brancos, limpos e pacíficos bradam pela paz armada. Assim foram as marchas fabricadas nas zonas elitizadas de diversas cidades brasileiras em abril de 2015. Se for para falar em minorias, então sejamos justos, uma minoria nem tanto culta, mas muito rica e lobista, insana e também profana? Um romper o dique foi instaurado, estranhamentos vários, um qualificado agir através do tempo histórico que mesmo anacrônico, ainda nos faz recordar a velha equação de Florestan Fernandes: uma burguesia anti-nacional, anti-democrática que não tolera os conflitos sociais exacerbados pela “gentinha” que ousa se colocar como sujeito político autônomo. Copa e Junho, e mais adiante Olimpíadas, são apenas aplicativos de ocasião, a verdade verdadeira é que o processo de pacificação nacional está ingressando num estágio de ajuste da segurança interna à condição de potência emergente, arcando em sua ascensão com um lastro social negativo, embora invariavelmente bem administrado. Se fosse só para prender e arrebentar, não carecia de mais uma cartilha. Trata-se de impor a paz e mantê-la. (ARANTES, 2014, p.449)

Brasil e Crise, o que isto significa mesmo? Seguindo a anti-cartilha do filósofo Paulo Arantes vemos que a complexidade de todos estes processos imbricados não pode resultar em coisa boa ou mesmo vislumbrar uma solução a médio ou longo prazo. O capital se renova através de uma acumulação de catástrofes econômicas, sociais e ambientais. A apropriação da expressão “tempestade perfeita”, como condição histórica que nos 164

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atinge, vai compondo este horror de esclarecimento necessário ao escafandrista-educador. Vejamos: A frase tornou-se comum no inglês coloquial americano desde que um bestseller com este título, depois transposto para o cinema, consagrou-a como sinônimo de evento desastroso produzido pela convergência excepcional de circunstâncias adversas, no caso gerador da metáfora, o naufrágio de um barco pesqueiro colhido em alto mar pela combinação catastrófica de três tempestades, nada mais nada menos. Um outro naufrágio, o do Lehman Brothers e sua constelação de megadesastres generalizou de vez seu emprego na caracterização de uma crise aparentemente de novo tipo. Desde então assumiu também, segundo pude ler na Wikipédia, uma conotação hipotética do pior possível entre todos os cenários. (ARANTES, 2015, p.2)

A impossibilidade de negação da crise fez do início do segundo mandado do Governo Dilma uma “tempestade perfeita”. Anúncio de cortes orçamentários, demissões, fábricas e lojas fechadas, terceirizados não pagos, contratos temporários dispensados, universidades em greve, investigação sobre a corrupção na Petrobrás, fortalecimento do movimento coxinha em torno do impeachment com apoio midiático, impotência generalizada de todos. Uma esquerda que não consegue mais manter o discurso de um governo em eterna “disputa”, como também sair do conforto ideológico de um discurso sobre a conspiração de direita que não a tolera dentro do governo. Perdida como cego no tiroteio da “tempestade perfeita” a la brasileira não sabe para onde correr, pois há muito se despediu das esquinas e vielas do canto popular. De mãos atadas ao governo, mal anunciam a crítica aos seus companheiros-gestores. Sem solução salvadora, sem dinheiro e sem crédito, sem apoio popular, com dívidas e dúvidas, o que sobrou para o governo do país emergente? Em tempo, isto não é o fim do mundo. Apenas o fim de dois séculos de espera “progressista”, encerrado justamente por uma crise de um novo tempo, por assim dizer empurrada com a barriga, ritualmente adiada pela compra de tempo, pela renovação dos prazos para o desastre, que ficará para a próxima vez, etc. E no entanto, nada mais familiar do que esse cenário de inação, mal camuflada pela frenética proliferação de correções provisórias para gerir a multiplicação das crises de todo tipo no curto prazo. (ARANTES, 2015, p.5)

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Está generalizado no ar de nossas cidades o peso arbitrário das contenções da revolta popular, governar a crise é ter como saída imediata mais-pacificação. As Olimpíadas de 2016 no Rio de Janeiro serão mais um experimento, a cidade interditada para os pobres, a cidade consumível para os gringos e para a elite defensora da paz armada. E no horizonte decrescente de expectativas (ARANTES, 2014), o contrapelo da “tempestade perfeita” não tem anúncio de voltar a surgir. No entanto, não soterrar a memória da mais autêntica revolta popular do Brasil Contemporâneo é tarefa do escafandrista-educador, atento aos caminhos minados que a história lhe apresenta, descartando o véu das ideologias caducas, juntando-se às novas gerações e ao seu legado insurgente.

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______. Entre os destroços do presente. (http://blogdaboitempo.com. br\2014\04\10\paulo-arantes-entre-os destroços-do-presente. Visitado em 14 de julho de 2015. GOHN, Maria da Glória. Manifestações de junho de 2013 no Brasil e praças dos indignados no mundo. RJ: Vozes, 2014.

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É NAS LUTAS SOCIAIS QUE APRENDEMOS? MAS APRENDEMOS O QUÊ? ALGUMAS IDEIAS E ALGUMAS HISTÓRIAS NEGRAS PARA A EDUCAÇÃO Luiz Fernandes de Oliveira

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Resumo A produção do conhecimento pelos movimentos sociais é uma reflexão que, no contexto acadêmico e escolar, vem recebendo aos poucos maior importância para se pensar os processos pedagógicos e, de forma mais ampla, a construção de uma educação de qualidade para as novas gerações. Neste texto, queremos refletir sobre a necessidade de pensar como os movimentos sociais produzem “pedagogias outras” (ARROYO, 2012) e como demarcam, com suas lutas e presenças, um papel construtivo para considerar outras formas de ensinar e aprender além das pedagogias tradicionais escolares. Na primeira parte, o texto apresenta uma reflexão sobre a relevância dos movimentos sociais para a educação e, na segunda parte, uma reflexão acerca das contribuições da história dos movimentos negros para a educação brasileira. Concluo o texto, com a reflexão de que quaisquer processos educacionais que se pretendem focar numa educação crítica e de qualidade só têm a possibilidade de serem como se pretendem se forem engajados (HOOKS, 2013). Palavras Chaves: Movimentos sociais; Conhecimento; Pedagogias Outras.

Doutor em Educação Brasileira pela PUC-Rio. Professor Adjunto III do Departamento de Educação do Campo, Movimentos Sociais e Diversidade do Curso de Licenciatura em Educação do Campo do Instituto de Educação e do Programa de Pós-Graduação em Educação, Contextos Contemporâneos e Demandas Populares (PPGEDUC) da UFRRJ. Membro do Grupo de Pesquisa em Políticas Públicas, Movimentos Sociais e Culturas – GPMC.

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DO WE LEARN WITH THE SOCIAL STRUGGLES? BUT WHAT DO WE LEARN? IDEAS AND BLACK EDUCATIONAL STORIES Abstract The production of knowledge by the social movements is a reflection that, in the academic and school contexts, that has been gradually receiving moreimportance regarding the pedagogic processes and, in a larger scale, the construction of a quality education for the new generations. In this article, we want to reflect about the necessity of thinking about how the social movements produce “other pedagogy” (ARROYO, 2012) and how the mark, with their struggles and presence, a constructive role in consideration of other ways to teach and to learn beyond the traditional school pedagogies. In the first part, the text presents a reflection about the relevance of the social movements for education and, in the second part, there is a ponderation on how the black movements’ history contributes to Brazilian education. I conclude this article considering that any educational process focusing on a quality critical education can only fulfill its purpose if fully engaged (HOOKS, 2013). Keywords: Social Movements; Knowledge; Other Pedagogies.

Introdução Quando era jovem, na adolescência, aprendi um slogan do movimento sindical dos idos anos de 1980 que dizia: “só a luta faz a lei.” Alguns anos depois, em momentos de formação teórica e política no Movimento Sindical, sob a influência do marxismo, uma frase se acrescentou a este slogan na minha formação: “o Estado é o órgão de administração dos negócios da burguesia.”

Muitos outros slogans e frases surgiram ao longo da militância política, sindical e popular. Os anos passaram e outras conjunturas políticas e históricas foram se apresentando e nos ensinando que a luta faz a lei e que de fato o Estado está a serviço de uma elite privilegiada da sociedade. Contudo, outra dimensão nos marcou como sujeitos políticos: as lutas 172

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que travamos por leis e de questionamento ao Estado nos ensinaram muitas outras coisas, foi uma grande escola de vida, representou uma trajetória de aprendizagens e, por que não dizer, representou uma pedagogia própria dos movimentos sociais (ARROYO, 2012). Entretanto, esta constatação só pode surgir anos mais tarde quando me tornei professor e funcionário público daquele mesmo órgão que administra os negócios das elites privilegiadas. Ao entrar pela primeira vez numa sala de aula para lecionar sociologia para jovens adolescentes, tinha como referência pouca teoria pedagógica, nenhuma prática pessoal de ensino, nenhum procedimento técnico didático que me auxiliasse imediatamente na condução de uma aula perante cerca de 40 jovens. Minhas referências eram genéricas sobre educação e sociedade na graduação, além de memórias de como meus professores lecionavam na educação básica e, também, como me relacionava com pessoas nos movimentos sociais em que participava. Nestes últimos, geralmente, ocupava um lugar de direção política, que tinha a responsabilidade, junto com outros sujeitos, de conduzir as lutas por reivindicações e por direitos, contribuir na formação política de novos membros e convencer centenas de pessoas de que nossos ideais eram justos e nossa proposta política coerente contra o “Estado burguês”. Ou seja, mesmo não tendo referências stricto sensu de procedimentos didáticos escolares, comecei a lecionar no contexto escolar baseado em referenciais outros, muito além daquilo que é denominado como formação inicial docente. E grande parte destes referenciais, aprendi nos movimentos sociais e nas lutas “do dia-a-dia”.

Esse preâmbulo todo nos serve para apresentar uma reflexão que, no contexto acadêmico e escolar, vem recebendo aos poucos maior importância para se pensar os processos pedagógicos e, de forma mais ampla, a construção de uma educação de qualidade para as novas gerações. Pois, neste texto, queremos refletir sobre a necessidade de pensar como os movimentos sociais produzem “pedagogias outras” (ARROYO, 2012) e como demarcam, com suas lutas e presenças, um papel construtivo para pensar outras formas de ensinar e aprender além das pedagogias tradicionais escolares. Na primeira parte, o texto apresenta a reflexão sobre a relevância dos movimentos sociais para a educação e, na segunda parte, RETTA, Vol. VIII, nº 11, jan.-jun./2015

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uma reflexão acerca das contribuições da história dos movimentos negros para a educação brasileira. Concluo o texto, com a reflexão de que quaisquer processos educacionais que se pretendem focar numa educação crítica e de qualidade, só tem a possibilidade de serem como se pretendem se forem engajados (HOOKS, 2013).

Aprender com a vida, aprender com as lutas... Aprender e ensinar com/nos movimentos sociais não é uma ato meramente burocrático e impessoal como, muitas vezes, aprendemos na escola. Aprender e ensinar com/nos movimentos envolve todo o ser, é intenso, é existencial, é dolorido, carregado de momentos de vitórias e intensas derrotas. Requer racionalidade, pensar estratégico, pensar o presente, o passado e o futuro, teorizar tudo ao mesmo tempo. Mas também requer sensibilidade, emoção, sedução, performance ou produção de efeitos simbólicos que podem gerar frustrações ou alegrias extremas. De uma forma ou de outra, direta ou indiretamente, quase toda a sociedade brasileira tem ou é envolvida pelos resultados das ações dos movimentos sociais.

Os movimentos sociais estiveram e estão presentes na História de todas as sociedades. Temos que compreendê-los como um fenômeno intrínseco às sociedades e resultantes sempre de algum tipo de “conflito”. Entendendo-os dessa forma, podemos dizer que os movimentos sociais estão relacionados ao tema das mudanças sociais. Essas transformações ocorrem porque sujeitos ou grupos que não concordam com determinada situação procuram diversas maneiras para modificá-la, lutando pela conquista de direitos. Dessa forma, numa perspectiva ampliada, podemos entender, como exemplos de movimentos sociais através da História, as lutas entre patrícios e plebeus e as revoltas de escravos em Roma, na Antiguidade Clássica; assim como as inúmeras rebeliões camponesas que ocorreram na Idade Média, como as jacqueries francesas do século XIV. 174

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Os exemplos citados representam movimentos sociais com características bem diferentes: enquanto os plebeus e os escravos, em momentos históricos distintos, lutavam em Roma pelo que hoje chamaríamos de direitos políticos, os camponeses franceses se sublevaram em razão da sua condição servil, marcada pela sua submissão ao trabalho pesado nos feudos, e onde a miséria da população não impedia a cobrança de impostos absurdos e o confisco das propriedades camponesas, pelos senhores feudais. Saltando na História para a Inglaterra pós Revolução Industrial e o surgimento do proletariado como classe social explorada pelo capital, são exemplos de movimentos sociais o ludismo, no século XVIII, no qual os operários promoviam o quebra-quebra de máquinas, e o movimento cartista, em 1830, em que o proletariado organizado reivindicava a representação política no Parlamento.

Neste sentido, fica fácil de entendermos que atualmente a reivindicação de direitos é o elemento gerador dos movimentos sociais. Estes, portanto, devem ser entendidos como o resultado de conflitos sociais, presentes nas diversas sociedades, pois essas não são homogêneas e se dividem a partir de interesses de classe, gênero, etnia, ou, até mesmo, de orientação sexual e de geração. A existência de grupos de opressores e de oprimidos, em relação a estas questões, sempre significa a reafirmação de algum tipo de conflito que se encontra na origem ou na organização de movimentos sociais em uma determinada sociedade, muitas vezes gerando a carência de bens materiais e culturais de um sem relação a outros. A partir disso, grupos sociais que se sintam prejudicados ou oprimidos, de alguma forma, vão se organizar afim de eliminar ou, pelo menos, amenizar a opressão. A essa união chamamos de ações coletivas.

É necessário saber que os movimentos sociais possuem também uma relação de conflito com o Estado, pois nem sempre este satisfaz a vontade coletiva, se restringindo à vontade daqueles que dominam os recursos materiais da sociedade e aos seus interesses. Enquanto os movimentos sociais desejam modificações, mudanças, o Estado, na maioria das vezes, deseja manter a ordem das coisas, já que quase sempre ele representa os interesses das classes dominantes. RETTA, Vol. VIII, nº 11, jan.-jun./2015

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Um movimento social só tem força quando possui uma proposta, ou seja, quando se organiza de maneira objetiva para conquistar os fins que almeja alcançar. Por isso, há a necessidade de um projeto, a ser desenvolvido de acordo com a orientação política do movimento. A ideologia também é um fator importante, já que reflete a visão de mundo dos indivíduos que participam do movimento, suas perspectivas, as mudanças que ambicionam, o mundo que esperam combater ou construir de forma alternativa. Por fim, a organização é muito importante, porque ela é a base do movimento, essencial para o seu sucesso político. Afinal, sem instrumentos eficazes de comunicação e sem recursos financeiros mínimos, os movimentos sociais acabariam apresentando resultados bastante limitados na sua ação política. Neste contexto, o sujeito que é militante de algum movimento é envolvido em todo o seu ser. Sua identidade também pode ser constituída através dos movimentos. Mas não somente o militante, organizador das lutas, participante ativo dos debates e ações dos movimentos sociais, mas também aqueles que aceitam e participam momentaneamente de algum movimento, podem se envolver inteiramente enquanto ser, na sua plenitude. Miguel Arroyo (2012) explica as razões disso:

Há um dado a não ser perdido na procura das virtualidades questionadoras dos movimentos sociais, que remetem ao perene da condição humana: a terra, o lugar, a comida, o trabalho, a moradia, a infância, a sobrevivência, a identidade e diversidade de classe, idade, raça ou gênero. Os sujeitos coletivos que se agregam e põem em movimento se identificam com essas dimensões tão perenes. Eles remetem ao enraizamento de nossa condição e formação como humanos: a vida, o sobre-viver, as condições materiais, o lugar, o espaço, o corpo, a raça, a cor da pele, as corporalidades, o gênero, as relações mais básicas entre coletivos”. (ARROYO, 2012, p. 77)

Os movimentos sociais questionam as carências existenciais mais básicas e mobilizam os indivíduos por inteiro, não dividem os seus conteúdos 176

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em disciplinas, em gavetas separadas de temas e procedimentos didáticos. Os movimentos fazem perguntas novas, mas também aquelas velhas perguntas não respondidas e elaboram suas próprias respostas coletivamente. Neste aspecto, eles geram um conhecimento para si e para fora e, muitas vezes, em contraposição ao conhecimento hegemônico que é gerado/ ensinado nas escolas ou na academia. E neste processo, os movimentos sociais, nos mostram “que a formação humana é inseparável da produção mais básica da existência” (ARROYO, 2012, p.80). Os movimentos sociais são espaços educativos pelas formas como agregam e mobilizam pessoas em torno de suas lutas específicas ou gerais. Os movimentos fazem da experiência vivida uma produção de conhecimento. A cada luta e a cada resultado das ações faz-se um balanço: como pensamos em atuar? Como fizemos? Quais foram os resultados? O que fazemos na próxima ação? Será que o que estamos fazendo está acumulando para nossos objetivos finais? Será que a forma como estamos atuando é coerente com nossos princípios e objetivos finais? Será que todos estão conscientes do que queremos? Se não estão, como podemos formar esta consciência? Ou seja, podemos perceber que quando um movimento social, em sua radicalidade política, tenta reagir aos processos de dominação/exploração que estruturam a sociedade, envolvendo muitos sujeitos, eles revelam um caráter pedagógico na medida em que questionam uma realidade formando indivíduos (ARROYO, 2012).

Em muitas situações de ação de movimento, os sujeitos que delas participam, colocam em jogo sua condição existencial ou parte importante de sua vida. Em algumas situações, suas vidas são colocadas em situações de risco. Pois, algumas mobilizações sociais se caracterizam como situações de risco para certos indivíduos e coletivos: arriscando o emprego, a segurança, a identidade, a vida. Essas ações e riscos deixam marcas viscerais e estas as fazem aprender e ensinar para novas ações e geram conhecimentos sobre a realidade, constroem memórias coletivas, ou seja, constroem sua própria história. Isto tudo nos mostra que os movimentos sociais questionam a educação racionalista/escolar/acadêmica, que se apresenta como universal e que afirma que não RETTA, Vol. VIII, nº 11, jan.-jun./2015

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existe outra forma de conhecer o mundo que não seja através do Estado (escola e universidade). E mais, os movimentos sociais formulam novos conceitos, novas abordagens que advertem os espaços institucionalizados a reconhecerem que é necessário repensar concepções e a produção de conhecimento. Exemplos nesta perspectiva não faltam.

O movimento feminista, por exemplo, ao entrar em cena inicia uma revolução mental no que diz respeito às relações entre homens e mulheres numa sociedade machista e patriarcal. Questiona as relações cotidianas de dominação e divisão de trabalho desigual, estabelece novas posturas e fazeres cotidianos no lar, nos locais de trabalho e na linguagem. Questiona até mesmo a postura machista e contraditória do militante homem e revolucionário: solidário nos movimentos, mas machista dentro de casa na vida privada. Coloca em discussão a dicotomia do público e do privado: será que o que é privado não tem nada a ver com o público? Assim, o movimento de mulheres reposiciona o conhecimento sobre gênero e as relações históricas de dominação homem/mulher. Estas reflexões teóricas não surgem nas universidades e nas escolas. Surgem do próprio movimento feito exclusivamente por mulheres, sujeit@s políticos organizad@s e que, se reposicionando, constroem uma própria pedagogia, uma forma de socializar novos conhecimentos: não se pode mais escrever somente no masculino, as histórias contadas precisam destacar também as mulheres que organizam a vida das novas gerações etc. Outro exemplo é o movimento da juventude. As lutas da juventude, até há pouco tempo, estavam escondidas e isoladas no espaço doméstico. O advento do sistema escolar de massa fez com que eles se encontrassem e pudessem sair do isolamento, criando espaços coletivos - manifestações, ocupações, contestações, greves, expressões culturais alternativas. Em outros espaços os jovens deram vida a formas organizativas autônomas caracterizadas por um baixo grau de formalismo. Dos jovens partem as ideias de autogestão, de questionamento das hierarquias estabelecidas pelos adultos e de criação de novas formas de organização coletiva e simbólica. Além disso, podemos identificar em vários momentos das ações dos jovens algumas críticas profundas de como a escola não consegue perceber as especificidades da juventude. Um exemplo é esta crítica de jovens italianos nos anos de 1960 às posturas da escola em relação a suposta timidez de jovens camponeses: 178

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RETTA – Revista de Educação Técnica e Tecnológica em Ciências Agrícolas Cara senhora, você nem se lembra do meu nome. E você reprovou muitos. Mas tenho pensado muitas vezes em você, nos seus colegas, nessa instituição que se chama escola, e nos meninos que foram “rejeitados”. Nos rejeitaram nos campos e nas fábricas e nos esqueceram. Dois anos atrás, no primeiro ano, você me intimidava. Além disso,a timidezme acompanhoudurante toda minha vida. Desde pequeno não levantava os olhos do chão. Rastejava pelas paredes, para não ser visto. No começo eu pensei que era uma doença minha ou da minha família. Minha mãe eradaquelas que diante de um telegrama se intimidava. Meu pai observava e escutava, mas não falava. Mais tarde, eu acreditava que a timidez era apenas um mal dos camponeses (...) Agora eu vi que os trabalhadores deixam aos filhos mimados todas as posições de responsabilidade nos partidos políticos e todos os postos no parlamento. Então, eles são como nós. E a timidez dos pobres é um mistério muito antigo. Eu não sei como explicar (...). Talvez a timidez não seja nem covardia nem heroísmo. É apenas falta de prepotência. (SCUOLA DI BARBIANA, 1996, p.9-10)

Dessas críticas surgem novas formas de aprendizagens. Coletivos de jovens se auto organizam para aprender e ensinar. Enfim, de um presente vivido entre autonomia e opressão se tenta construir um futuro.

Muitos outros exemplos poderiam ser citados aqui, entretanto, o que devemos ressaltar é que os movimentos sociais sempre têm um caráter educativo. Os movimentos sociais representam um objeto que atravessa diversas dimensões da realidade e espaços simbólicos significativos da vida social. Essa transversalidade permite-nos afirmar que o conhecimento social ensinado e aprendido processa-se também na experiência de vida, sem lugares exclusivos para sua transmissão. Nesta perspectiva, cabe ressaltar as colocações de Arroyo (2002) quando afirma que é necessário compreender os movimentos sociais como espaço de formação docente, de construção de projetos educativos e que “reeduca a escola e o conhecimento” (p. 274). RETTA, Vol. VIII, nº 11, jan.-jun./2015

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Uma história dos movimentos negros para a educação Um destaque que daremos neste texto é a contribuição do movimento negro brasileiro ao campo da educação, percebendo que muitas contribuições que hoje presenciamos nas discussões educacionais foram fruto direto das lutas do movimento negro.

O pensador negro Clovis Moura em um de seus escritos (1990) afirmou que os terrores da escravidão, o mito da democracia racial, a teoria do embranquecimento e a miscigenação, não foram suficientes para impedir a resistência à opressão escravista e à hegemonia branca na construção da identidade nacional a partir do final do século XIX e início do XX. Antes da abolição, as lutas de resistência, os quilombos, as associações de escravos e ex-escravos para compra de alforrias, as comunidades religiosas e culturais, já se constituíam em instituições autônomas e organizações contra a escravidão e a dominação de uma elite branca. Com a transformação da condição de escravo para cidadão, negros e negras iniciam uma nova fase de lutas e organização. No Brasil, as formas de luta foram muito complexas e diversificadas. Destacamos aqui, resumidamente, alguns episódios da história do movimento negro e suas relações com a educação brasileira.

Porém, é necessário pôr em evidencia que o conceito de movimento negro se torna comum a partir das entidades e grupos negros surgidos na década de 70, para designar coletivos de negros e negras que procuram valorizar a própria cultura, lutar contra o racismo e reivindicar melhores condições de vida. É a partir desta caracterização que as entidades, os grupos negros e a própria produção acadêmica atual, caracterizam os momentos da história republicana em que negros e negras organizaram suas lutas. No mais, a intenção aqui é abordar algumas das iniciativas mais relevantes que constituem a memória desses movimentos, que marcam o atual processo de discussão dos atores que se mobilizam contra o racismo na educação, mas também, estão presentes nas formulações e textos oficiais das atuais políticas públicas educacionais. Dentre os movimentos que se destacam no período pós-abolição, situamos a chamada imprensa negra independente, nos anos 20 em São 180

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Paulo. Foram as primeiras formas organizadas e expressivas dos negros na recém República. Os jornais que circulavam na época eram o “Alfinete”, o “Kosmos”, “A voz da raça”, o “Clarim d’Alvorada” entre outros. Eram ligados às associações ou se constituíam eles mesmos em associações autônomas. Nas suas páginas faziam críticas ao racismo da sociedade brasileira, reclamavam da falta de autoestima dos negros e, a respeito da educação dos negros, incentivavam a educação e aquisição de conhecimentos de instrução para “a emancipação completa” no pós-abolição. Dentre as bandeiras de luta declaradas nas páginas dos diversos jornais, destacava-se o direito à educação. Esse fato desconstrói a ideia equivocada na história oficial, de que a comunidade negra, no pós-abolição, e mesmo antes, sempre foi analfabeta e desorganizada. Nestes jornais e nas suas entidades representativas, divulgavam-se muitos espaços em que negros poderiam estudar e instruir-se quando o Estado não oferecia ou negava acesso.

Nos registros encontrados em diversos jornais, aparece a ideia de que para estas entidades era necessário chamar para si a tarefa de educar e escolarizar as crianças, jovens e adultos negros. Para Gonçalves e Silva (2000), o que se evidenciava nas publicações era o fato de não haver “quase referência quanto à educação como um dever do Estado e direito das famílias. As entidades invertem a questão. A educação aparece como uma obrigação da família” (p. 143). Alguns anos depois, surge a Frente Negra Brasileira (FNB). Fundada em 16 de setembro de 1931, sua sede central situava-se na cidade de São Paulo. Sua estrutura organizacional era bem complexa, muito mais do que a quase inexistente dos jornais negros que a precederam e possibilitaram o seu aparecimento.

A FNB conseguiu ramificações em vários estados brasileiros. Em 1936, transforma-se em partido político. Sua proposta se fundamentava numa espécie de filosofia educacional para os negros, na medida em que acreditava que o negro poderia vencer e firmar-se na sociedade nos diversos níveis como a ciência, as artes e a literatura. Com a ditadura instaurada por Getúlio Vargas em 1937, a Frente foi fechada e seus membros presos e perseguidos. RETTA, Vol. VIII, nº 11, jan.-jun./2015

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A importância histórica da FNB caracteriza-se pelo fato de ter enfrentado, de forma organizada e política, a dissimulação do racismo, ter organizado escolas para negros, a conscientização cultural e política, a conquista de espaços institucionais e a aquisição de bens materiais para diversos negros. Raul Joviano do Amaral, um dos presidentes da FNB deste período, elaborou uma proposta de educação dos negros que, segundo Gonçalves e Silva (2000), representou a mais completa experiência escolar do Movimento Negro até então. Nesta, os objetivos eram: “agrupar, educar e orientar”. Mas, a Frente Negra Brasileira não se limitou ao estímulo à escolarização. Seus projetos também refletiam a ideia de efetuar uma mudança no comportamento dos negros. Por isso, uma das propostas era, além da escolarização, a de um curso de formação política para amadurecer as condições de luta contra o racismo. Segundo as fontes da pesquisa de Pinto (1994), este curso propriamente dito não ocorreu, mas foram proferidas conferências em espaços de tempo não regulares. A autora ainda informa que se introduziu, também, uma história do negro brasileiro para combater a história oficial. Apesar da repressão de Vargas, a FNB abriu um período na história republicana, que iniciou uma movimentação de parcelas dos negros brasileiros em nível nacional. Isto se deve, fundamentalmente, às novas condições sociais e econômicas do Brasil, pois, com o alvorecer de políticas públicas de caráter nacional, no campo do trabalho, da educação e da previdência, exigia-se dos movimentos sociais uma perspectiva de atuação mais ampla. Neste sentido, novas alianças irão surgir a partir de meados da década de 1940 com intelectuais nacionais e estrangeiros. E destas alianças, outro importante movimento surge no cenário nacional: o Teatro Experimental do Negro (TEN).

Fundado em 1944 e dirigido por Abdias do Nascimento, tinha como objetivo abrir os espaços das artes cênicas para atores e atrizes negros. A relevância desse movimento vem das novas questões abertas por seus membros: além de terem publicado um jornal – Quilombo -, realizaram duas conferências nacionais sobre o negro no Brasil, um congresso nacional e, na luta contra o racismo, reivindicavam que a discriminação racial fosse considerada como crime, além da reivindicação por políticas públicas de Estado. 182

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Diversamente de outros períodos, no que diz respeito à educação, o TEN defendia que o direito à educação era um dever de Estado. Reivindicava-se também ensino gratuito para todas as crianças e subsídios para os negros estudarem. Podemos considerar que esses pleitos vão ecoar nos momentos seguintes de nossa história até os dias atuais. Sobre isso, Gonçalves e Silva (2000) destacam:

Há, entretanto, algo novo no projeto do TEN: educação e cultura se entrelaçam. Entendem seus idealizadores que a escolarização, pura e simples, não bastaria para criar aquilo que Guerreiro Ramos chamou de “estímulos mentais apropriados à vida civil”. Segundo ele, os negros desenvolveram um profundo sentimento de inferioridade cujas raízes estão na cultura brasileira. Para libertálos desse sentimento não basta simplesmente escolarizá-los; seria preciso produzir uma radical revisão dos mapas culturais, que as elites e, por consequência, os currículos escolares, elaboraram sobre o povo brasileiro. Aliás, este foi o tema do I Congresso do Negro Brasileiro (p. 149).

Apesar desses movimentos, a teoria da democracia racial no Brasil hegemonizava o senso comum popular, assim como as teorias “científicas” no campo das ciências humanas durante as décadas de 1950 e 1960. Era o auge do mito da democracia racial. Após esse período, segundo Pereira (2008), na década de 1970 esta situação começa a mudar, pois “o samba e outras manifestações culturais de matrizes africanas haviam se consolidado como legítima Cultura ‘popular’ brasileira e insinuava-se um certo grau de respeitabilidade social em relação às manifestações religiosas” (2008, p. 43). Mas, no final da década de 70, junto ao movimento sindical e popular contra a ditadura militar, os movimentos negros são reavivados e aparece o Movimento Negro Unificado (MNU). Pereira (1999) caracteriza esse momento como um “choque social”, pois diante do tamanho êxito do mito da democracia racial, muitos setores da esquerda brasileira e dos movimentos sindicais e populares consideravam inúteis as movimentações negras, uma vez que se acreditava que o racismo não existia no Brasil. O MNU foi fundado em 1978. Tal unificação deu uma orientação a uma militância negra que vinha se constituindo durante toda a década RETTA, Vol. VIII, nº 11, jan.-jun./2015

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de 1970. O marco inicial de sua fundação foi uma manifestação pública ocorrida em São Paulo, um ato de protesto contra a violência policial desferida contra negros, representada pela morte em tortura do operário Robson Silveira Luz.

O objetivo desse movimento era o de desenvolver instrumentos de luta contra a opressão policial, o desemprego e a marginalização da comunidade negra. O MNU tinha inicialmente no seu programa básico de ação a desmistificação da democracia racial brasileira; a organização política dos “afro-brasileiros” para transformá-la em movimento de massas; a busca de alianças com outros grupos voltados para a luta contra o racismo; a organização em partidos políticos e sindicatos, além do apoio à luta internacional contra o racismo.

Os Movimentos Negros a partir dos anos de 1980 atribuíam à educação um papel prioritário na superação do racismo. Segundo Gonçalves e Silva (2000), o MNU estimulou no seu interior organizações e militantes capazes de formular propostas em relação ao tema da educação. Essa mudança na capacidade de formulação de propostas está relacionada ao crescimento de militantes com nível superior. Aqui se inicia um maior intercâmbio e trocas de experiências entre espaços acadêmicos e militância. Um caso exemplar é a Convenção do Movimento Negro, ocorrida em 1982, em Belo Horizonte. O evento foi marcado pela aprovação do Programa de Ação do MNU, que propunha: modificação dos currículos visando eliminar da formação dos professores os preconceitos e estereótipos relativos à cultura afro-brasileira e a criação de condições para que os negros não só ingressassem em todos os níveis educacionais como pudessem permanecer no sistema de ensino (Gonçalves e Silva, 2000). O MNU constituiu-se em um movimento nacional e, além da denúncia ao racismo, seus quadros se utilizaram e produziram novos estudos e pesquisas sobre o acesso e a escolarização da população negra. Com dados estatísticos em mãos e evidências cada vez mais explícitas das práticas de racismo na educação, seus militantes, na Convenção Nacional do Negro pela Constituinte, ocorrida em Brasília, nos dias 26 e 27 de agosto 184

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de 1986, apontou uma solicitação que foi apresentada na Assembleia Nacional Constituinte de 1987:

O processo educacional respeitará todos os aspectos da cultura brasileira. É obrigatória a inclusão nos currículos escolares de I, II e III graus, do ensino da História da África e da História do Negro no Brasil; que seja alterada a redação do § 8° do artigo 153 da Constituição Federal, ficando com a seguinte redação: ‘a publicação de livros, jornais e periódicos não depende de licença da autoridade. Fica proibida a propaganda de guerra, de subversão da ordem ou de preconceitos de religião, de raça, de cor ou de classe, e as publicações e exteriorizações contrárias à moral e aos bons costumes’ (SANTOS, 2005, p. 24-25).

Não podemos esquecer que, além das alianças acadêmicas, a partir de 1982, com a eleição de alguns representantes de oposição à ditadura militar em alguns governos estaduais, muitos militantes do movimento negro ingressam em assessorias para assuntos da comunidade negra e em secretarias estaduais de educação e cultura. Em estados como Rio de Janeiro, São Paulo e Bahia, muitos desses assessores militantes buscavam interferir nos currículos escolares e nos livros didáticos.

Um dado fundamental para se pensar a conjuntura do movimento negro e suas relações com a educação no período subsequente, é a sua relação com o movimento dos professores na década de 1980: Na medida em que o movimento negro se engajou nas lutas pela valorização da escola pública, ele pôde sensibilizar o setor educacional na defesa de suas reivindicações contra o racismo (Gonçalves, 1997, p. 499). O movimento negro passou, assim, praticamente a década de 80 inteira, envolvido com as questões da democratização do ensino. Podemos dividir a década em duas fases. Na primeira, as organizações se mobilizaram para denunciar o racismo e a ideologia escolar dominante. Vários foram os alvos de ataque: livro didático, currículo, formação dos professores etc. Na segunda fase, as entidades vão substituindo aos poucos a denúncia pela ação concreta. Esta postura adentra a década de 90 (GONÇALVES e SILVA, 2000, p. 155).

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Um marco histórico de ação do Movimento Negro e suas relações com os docentes e o mundo acadêmico, foi o Seminário “O Negro e a Educação” organizado pelo Conselho de Participação e Desenvolvimento da Comunidade Negra do Estado de São Paulo e a Fundação Carlos Chagas. Segundo Pereira (2003):

Foi como um rito de passagem. As intervenções já eram manifestamente engajadas na denúncia das desigualdades raciais na educação, fato até então incomum em eventos com essa temática. (...) Com clareza apresentavam a concepção de que nos currículos, equipamentos e procedimentos didáticos se encontravam fatores fundamentais de reprodução do racismo, potencializando os elevados índices de repetência e evasão escolar entre a população negra (p. 28).

Deste seminário se produziu a já clássica e pioneira publicação dos Cadernos de Pesquisa nº. 63, de novembro de 1987, revista acadêmica da Fundação Carlos Chagas. Neste número, encontram-se diversas formulações e reflexões educacionais produzidas por intelectuais negros e militantes. A partir dessa conjuntura histórica é que surgem também as discussões no campo das ações afirmativas na década de 1990, como por exemplo, a polêmica que envolve a sociedade acerca das cotas para negros nas universidades públicas.

Hoje nos deparamos, por conta dessas iniciativas, com uma série de polêmicas que, diferentemente de períodos anteriores, colocam a questão racial no cotidiano de discussões acadêmicas e de políticas públicas em educação. É possível afirmar que o senso comum assentado na afirmação da democracia racial já não é tão sólido e está sendo contestado e fragilizado. Neste processo, os movimentos negros brasileiros forjaram novos conceitos e classificações para os negros brasileiros.

Primeiramente, o conceito de “consciência negra” foi fomentado, a partir dos anos de 1960, contra a opressão colonial na África e pelo Protesto Negro nos EUA. Surge daí uma ênfase nas lutas anticolonialistas, decorrendo o Pan-africanismo, rumo a uma África livre e descolonizada. 186

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Esta perspectiva ecoou nas organizações de vanguarda nos EUA, onde aparecem a nação do Islã, liderada por Malcolm X, e o movimento pelos Direitos Civis, liderado por Martin Luther King. No início da década de 70, surgem os Panteras Negras. Por outro lado, neste mesmo período, vêm à tona os violentos conflitos raciais na África do Sul, com o regime do Apartheid. Nesses eventos, vão se destacar personalidades marcantes como Nelson Mandela e Steve Biko, que se transformaram em símbolos mundiais da luta contra o racismo. Esses movimentos despertaram intelectuais negros, profissionais liberais, estudantes, funcionários públicos e negros pobres no Brasil, a partir do final da década de 70, a se conscientizarem da necessidade de se auto afirmarem como negros. Essa construção ocorre na contramão do processo de embranquecimento e da hegemonia do mito da democracia racial. Portanto, o movimento ganha força e aparecem slogans como “negro é lindo”, “não deixe sua cor passar em branco” etc. Na esteira dessas novas construções, é que o Movimento Negro, na década de 90, consegue transformar o 13 de maio em Dia Nacional de Denúncia Contra o Racismo. E vai além: institui a Semana Nacional da Consciência Negra, estabelecendo o 20 de novembro, como comemoração da resistência e da morte do “herói negro” nacional Zumbi dos Palmares.53 De “cor preta” ou “negro” como terminologia pejorativa, o movimento, ainda de forma incipiente, consegue ressignificar a categoria “negro” como símbolo de uma condição étnica e racial. Até a noção de “raça” é ressignificada, não se tratando mais de uma noção biológica, mas política, ou seja, “raça negra” como um conjunto de indivíduos que possuem histórias e culturas comuns, no passado e no presente.

Toda esta construção conceitual, ou seja, “consciência negra”, “negro” e “raça” como expressão de uma política identitária pode ser caracterizada na perspectiva de um pensamento crítico de fronteira (WALSH, 2005) Esta proposta surge a partir do manifesto de fundação do MNU, em 4 de novembro de 1978, quando se instaurava o dia Nacional da Consciência Negra. Entretanto, segundo Gonçalves e Silva (2000), a evocação do primeiro 20 de novembro ocorreu em 1971 como ação do professor e poeta Oliveira Silveira no grupo Palmares, em Porto Alegre.

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que significa tornar visível outras lógicas e formas de pensar, diferentes da lógica eurocêntrica e dominante. Pois, estas reconceitualizações, partem da perspectiva das experiências subalternizadas pela colonização europeia.

O sociólogo peruano AnibalQuijano (2005), afirma que o conceito de raça é uma invenção europeia que engendrou formas de dominação onde a apropriação dos produtos do trabalho era acompanhada pela classificação de povos e culturas. As terminologias “negro” e “raça”, por exemplo, se processam nesta história colonial. Neste sentido, as ressignificações promovidas pelos movimentos negros propiciam aquilo que Mignolo (2003) denomina de diferença colonial, ou seja, pensar a partir das ruínas, das margens criadas pela colonialidade do poder, das experiências e histórias subalternizadas. Não se trata aqui de resgate de autenticidades identitárias, mas sim de uma operação conceitual a partir de um lócus específico de enunciação, marcada pela opressão, discriminação e racismo contra aqueles considerados não brancos. Alguns discursos e formulações dos movimentos negros, nos anos seguintes, evidenciarão a possibilidade concreta da emergência de uma razão subalterna, ou seja, um conjunto diverso de práticas teóricas que emergem em determinados contextos em resposta aos legados coloniais e dialogando com estes. O Movimento Negro em 1988 viveu profundamente o Centenário da Abolição. Em todo o Brasil ocorreram eventos, publicações de pesquisa, matérias de jornais sobre a situação da população negra no Brasil, dentre eles, a temática da educação recebeu uma atenção especial. Ainda em 1988, estabeleceu-se um marco para a redefinição do papel da África na concepção da nacionalidade brasileira. Foi assegurado na Constituição o reconhecimento da pluralidade étnica da sociedade brasileira e a garantia do ensino das contribuições das diferentes culturas e etnias na formação do povo brasileiro.

Além disso, a prescrição da Constituinte que transformou racismo em crime a ser punido com pena de prisão por meio do artigo 5º, inciso XLII, e foi regulamentada pela Lei 7.716/89, consolidou a chamada “Lei Caó”. Este fato foi considerado pelo Movimento Negro um grande avanço. Foi criada neste momento também a Fundação Cultural Palmares, entidade vinculada ao Ministério da Cultura e que tem como principal objetivo lutar 188

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pela preservação dos valores culturais, sociais e econômicos oriundos da influência africana na formação da sociedade brasileira.

Em 1995, o Movimento Negro comemora os 300 anos da morte de Zumbi dos Palmares. Nesse momento, deflagra-se um intenso processo de discussões sobre a população negra. A Universidade de São Paulo, por exemplo, produz um documento chamado “Zumbi, tricentenário da Morte de Zumbi dos Palmares” com proposições sobre políticas antirracistas, as chamadas Ações Afirmativas com ênfase na educação, culminando na Marcha Zumbi dos Palmares: Contra o racismo, pela cidadania e a vida, na qual cerca de 30 mil negros e negras foram à Brasília, no dia 20 de novembro, com um documento reivindicatório que foi entregue ao então presidente Fernando Henrique Cardoso. Dentre as reivindicações no campo educacional ressaltamos: monitoramento dos livros didáticos, manuais escolares e programas educativos controlados pela União; desenvolvimento de programas de treinamento de professores e educadores que os habilite a tratar adequadamente com a diversidade racial, identificar as práticas discriminatórias presentes na escola e o impacto destas na evasão e repetência das crianças negras e; o desenvolvimento de ações afirmativas para o acesso dos negros aos cursos profissionalizantes, à universidade e às áreas de tecnologia de ponta. Em fins da década de 90, com a contribuição também de muitos estudiosos acadêmicos, surge uma nova noção, para definição de 45% do povo brasileiro a época: a de afrodescendente, que abrange os pretos e pardos, assim denominados nas pesquisas estatísticas do IBGE. Aqui, o que se procura construir é uma nova identidade positivamente afirmada, com histórias e culturas, tradicionalmente herdadas ou reconstruídas de uma África ressignificada.54 Mas, também constitui-se numa resposta-

Alberti e Pereira (2007), num artigo para a Revista Estudos Históricos, vão, brilhantemente, ressaltar que o Movimento Negro a partir da década de 1970, descobre a África como um poderoso processo de instrumentalização da militância negra para ampliar a consciência sobre as origens do povo negro no Brasil e propiciar novas possibilidades de ação antirracista. Recolhendo depoimentos de velhos militantes negros deste período, até os dias atuais, eles vão constatar que um dos objetivos desses era reescrever a História do Brasil. E chegam às seguintes conclusões, depois de identificar diversas cooperações entre militância negra e estudiosos da História da África em algumas universidades brasileiras: “Não há dúvida de que a busca de uma África livre dos estereótipos dos animais selvagens e da miséria foi importante

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-proposta às ambiguidades classificatórias que tanto pesaram e pesam sobre os negros e seus descendentes no Brasil.

Momento significativo dessas novas elaborações foi a preparação e participação da delegação brasileira à Conferência contra o Racismo, a Xenofobia, a Discriminação e a Intolerância, promovida pela ONU, realizada na cidade de Durban (África do Sul), entre 31 de agosto e 8 de setembro de 2001.

Houve um intenso engajamento das organizações negras brasileiras na construção e realização desta Conferência. No plano nacional, esse processo teve início em abril de 2000, com a constituição de um Comitê Impulsor Pró-Conferência, formado por lideranças de organizações negras e organizações sindicais. O Comitê foi responsável pela constituição do Fórum Nacional de Entidades Negras para a Conferência, a partir do qual foi elaborado um documento sobre os efeitos do racismo no Brasil e formadas delegações para a participação no processo da Conferência. A delegação brasileira foi a maior em Durban, dentre as 150 delegações oficiais representadas por cerca de quatro mil participantes. Além de levar as reivindicações históricas do movimento negro, um dos itens exigidos foi a introdução dos estudos de História da África e História do Negro nos currículos escolares brasileiros. A conferência de Durban ratificou algumas deliberações e incorporou vários parágrafos consensuados na Conferência Regional das Américas, realizada em Santiago do Chile, e tornou o termo “afrodescendente” linguagem consagrada pelas Nações Unidas, designando um grupo específico de vítimas de racismo e discriminação. Além disso, reconheceu a urgência da implementação de políticas públicas para a eliminação das

para a consolidação dos movimentos negros a partir dos anos 70 (...). (p. 43) “O conhecimento do passado africano e dos acontecimentos recentes envolvendo populações negras espalhadas pelo mundo teve uma função importante no processo de construção e consolidação da identidade negra do militante. (...) importava buscar uma África livre de estereótipos, um passado que fosse motivo de orgulho para militantes, crianças e jovens negros. (...) O debate e a socialização dos novos conhecimentos, tanto no interior das entidades como entre elas, foram fundamentais para a formação de uma massa crítica capaz de expandir a causa do movimento para diferentes setores da sociedade, o que culminou com a Lei 10.639, que tornou obrigatório o ensino desse conteúdo nas escolas do país” (p. 47-48).

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desvantagens sociais de que esse grupo padece, recomendando, aos Estados e aos organismos internacionais, que elaborem programas voltados para os afrodescendentes e destinem recursos adicionais aos sistemas de saúde, educação, habitação, eletricidade, água potável e às medidas de controle do meio ambiente, e que promovam a igualdade de oportunidades no emprego, bem como outras iniciativas de ação afirmativa.A conferência abriu uma agenda no Brasil que impulsionou debates e reflexões acadêmicas muito além das propostas de cotas.

Se anteriormente indiquei que as reconceitualizações dos movimentos negros abriram a possibilidade da perspectiva da diferença colonial para se pensar as relações étnico-raciais no Brasil, neste processo a partir dos anos de 1990, é nítida a força que os movimentos adquiriram dentro do Estado brasileiro e do mundo acadêmico. Nos aspectos de reconstrução conceitual da identidade nacional, nas proposições de políticas públicas e nas terminologias de classificação social de setores significativos da nação brasileira, a diferença se define nas fronteiras externas da modernidade e emerge como reação às condições de vida criadas pela colonialidade. Este processo contribui para a produção de novos conhecimentos e novas perspectivas epistemológicas no campo do conhecimento histórico. Porém, como estamos falando em processos de construção e apostas políticas, não podemos negar que estas perspectivas dependem muito desses mesmos sujeitos históricos e produtores de conhecimento.

O Brasil, como signatário da “Declaração de Durban”, revigorou o debate sobre a implementação de políticas de ações afirmativas como estratégia de combate ao racismo e, após a posse do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em 2002, como resultado de uma negociação entre o governo e a sociedade civil, foi criada, em 21 de março de 2003, a Secretaria de Políticas de Promoção da igualdade Racial (SEPPIR), órgão assessor da Presidência da República.55 Entretanto, a SEPPIR resultou de um processo de construção de longos anos, que envolveu as ações e reivindicações dos movimentos negros e as ações dos governos de Fernando Henrique Cardoso.

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Para muitos militantes do movimento negro, a SEPPIR, foi a materialização de uma histórica reivindicação do movimento negro em âmbito nacional e internacional. De fato, foi a primeira vez que o Estado se colocou como responsável pelo enfrentamento estrutural das relações de desigualdades raciais. O longo caminho de reafirmação de reivindicações dos movimentos negros dá origem à Lei 10.639/03. A lei modificou a LDBEN e foi sancionada em 09 de janeiro de 2003. Ela torna obrigatória a inclusão no currículo oficial de ensino da temática “História e Cultura Afro-brasileira e africana”.56

A lei, de início, trouxe consigo uma intensa polêmica: para alguns significava imposição, para outros uma concessão. Porém, com a realização de diversos fóruns estaduais e nacionais promovidos pelo MEC e o empenho de diversos educadores e dos movimentos negros, os debates sobre o ensino da História da África e dos negros no Brasil nos currículos escolares vêm conquistando espaços significativos de luta antirracista na sociedade brasileira.

Ao lado das discussões sobre as ações afirmativas, as reflexões acadêmicas vêm se ampliando em outras discussões já presentes no campo educacional como currículo, práticas de ensino, multiculturalismo etc. Publicações começam a tomar corpo no cenário acadêmico, revistas de divulgação científica e também na mídia; as iniciativas da ANPED na formação de um Grupo de Estudos Afro-brasileiros e Educação em seus encontros anuais a partir de 2002; a recorrência de publicações de artigos nas principais revistas acadêmicas de educação a partir dos anos 90 e a fundação da Associação Brasileira de Pesquisadores Negros (ABPN) em 2000, são algumas das iniciativas que vêm se afirmando na área de educação. Em 2005, temos a edição do projeto a “Cor da Cultura”, veiculado pela TV Futura em parceria com o governo federal que, através de programas

Santos (2005) descreve que antes da apresentação do Projeto de Lei 259/1999, que culminou na aprovação da Lei 10.639/03, já existiam diversas legislações estaduais e municipais que, em função das pressões dos movimentos negros, incluíam nos currículos da educação básica a História dos negros no Brasil e do continente africano.

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educativos, contribuiu para divulgar ações e iniciativas de educadores, escolas e ONGs no campo das relações raciais e educação, dando prioridade às metodologias pedagógicas para aplicação das diretrizes curriculares para a educação das relações étnico-raciais. Cabe destacar que este projeto foi formulado por uma equipe de profissionais selecionados junto aos movimentos negros e a diversos especialistas ligados às principais universidades do país. Como vemos, há uma articulação de redes, envolvendo instituições acadêmicas, estudiosos e educadores e movimentos sociais que há anos priorizam estas discussões.

Vejamos o exemplo destas articulações nas publicações do MEC, que fazem parte de uma coleção denominada “Educação para todos”, lançada em 2005 com o apoio da UNESCO e do Banco Interamericano de Desenvolvimento. A primeira obra é “Educação anti-racista: caminhos abertos pela Lei Federal nº. 10.639/03”, e a segunda, é “História da Educação do Negro e outras Histórias” (Brasil, 2005a e 2005b).

As duas publicações apresentam alguns artigos oriundos dos Fóruns Estaduais de Educação e Diversidade Étnico-Racial, promovidos pelo MEC e movimentos sociais negros nos anos de 2004 e 2005. Esses fóruns reuniram representantes de Secretarias estaduais e municipais de educação, militantes dos movimentos negros e docentes interessados nas discussões raciais. Durante esse período foram realizados 20 fóruns estaduais de Educação e Diversidade Étnico-Racial. O objetivo dos encontros foi discutir as políticas públicas de promoção da igualdade racial com professores e gestores dos sistemas de ensino.

À primeira vista, percebemos que os conteúdos apresentados por esses estudiosos nos fóruns e publicados pelo MEC têm uma trajetória acadêmica e nos movimentos sociais de longa duração. Muitos desses especialistas estão vinculados à Associação Nacional de Pesquisadores Negros. Outros são provenientes de associações negras de pesquisas e ONGs que há vários anos vêm discutindo as relações entre questões étnico-raciais e educação. Faz-se necessário destacar ainda a presença de pesquisadores em algumas das principais universidades e programas de pós-graduação do RETTA, Vol. VIII, nº 11, jan.-jun./2015

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Brasil. Sem dúvida alguma, a presença desses pesquisadores nestas instituições acadêmicas representa uma força institucional de legitimação de suas elaborações científicas e militantes. Portanto, observa-se explicitamente uma estreita articulação entre especialistas e militantes na área das questões étnico-raciais com ações governamentais e acadêmicas, na perspectiva de elaboração de políticas de promoção da igualdade racial na educação. Nas duas publicações do MEC mencionadas, no conjunto dos autores - 23 no total –, a grande maioria tem uma trajetória de participação nos movimentos negros. Enfim, nesta trajetória, que não terminou neste período, mas a cada dia se articula em nível nacional, percebe-se a nítida influência do movimento negro na reformulação da questão racial na educação, tanto nas escolas como em outros espaços educativos da sociedade brasileira.

Concluindo? Não!!!...continuando a luta... Chegando ao final deste texto, a primeira questão que nos vem em mente é que, com os movimentos sociais, aprendemos que os sujeitos se movimentam e se agrupam demonstrando que são sujeitos de conhecimento. Sendo sujeitos de conhecimento, se posicionam no espaço e no tempo como agentes de ensino e aprendizagens.

No relato inicial do texto, afirmava que grande parte de meus referenciais de ensino e aprendizagens provinham daqueles movimentos nos quais participava. E não pôde ser diferente, pois as experiências explodiam na carne, na mente e na vida por um outro mundo possível durante grande parte de minha vida. As marcas daqueles movimentos ficaram emprenhadas na memória e, quando se anunciavam novas situações que exigiam decisões urgentes (nas salas de aula, por exemplo), as movimentações passadas apareciam como referências e bússolas para agir na urgência e decidir nas incertezas. Mais do que isso, diante de jovens estudantes em sala de aula, a leitura que fazia era das possibilidades de construção de uma nova consciência social e da construção de novas comunidades de aprendizagens como formulado por Hooks (2013), 194

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ou seja, onde aquele espaço pudesse ser transformado em espaços de reflexão coletiva sobre o mundo a fim de modificá-lo, apesar de todas as contradições que o constitui – como espaço institucionalizado, hierárquico e opressivo. Mas, isso não foi possível e ainda não está sendo, diante de sistemas de ensino altamente hierarquizados, elitistas, sexistas, racistas, classistas e muitas outras opressões que ainda regulam os cotidianos educativos institucionalizados pelo Estado. Entretanto, os movimentos sociais nos ensinam que há outras formas de aprender e ensinar, outras formas de produzir o conhecimento social. E se colocando como protagonistas em espaços não institucionalizados pelo Estado, os movimentos sociais afirmam sua presença e sua força, mesmo que conjuntural, de forma inovadora, sofisticada e ousada. Os movimentos criam novas metodologias de ação para resolução de suas questões, propõem novas ideias, conceitos e teorias e, ao longo da história das sociedades, interrogam as instituições autorizadas e as desestabilizam em algumas reflexões naturalizadas como verdades. Os movimentos sociais e suas lutas são obrigados a inventar processos e pedagogias “com outras radicalidades e virtualidades formadoras e emancipadoras” (ARROYO, 2012, p. 39). Fanon (2008) afirmava que para um negro que trabalha numa plantação de açúcar [nas Antilhas], a única solução é lutar, mas que ele “a empreenderá e a conduzirá não após uma análise marxista ou idealista, mas porque, simplesmente, ele só poderá conceber sua existência através de um combate contra a exploração e a fome” (2008, p. 186).

Essa afirmação de Fanon, formulada a partir de uma análise das relações sociais entre negros e brancos no colonialismo, também pode ser referenciada para pensar a nossa época e os nossos contextos de aprendizagens institucionalizados. Pois, diante de tantas opressões cotidianas, também presentes nos espaços escolares e universitários, não há como não lutar, não há como concordar com o paradigma da neutralidade. Pois, na medida em que os movimentos se posicionam e se afirmam como existentes, o campo do conhecimento hegemônico é posto a prova e não há mais como negar a presença das mulheres, dos jovens, dos negros, dos homossexuais, dos trabalhadores do campo etc. RETTA, Vol. VIII, nº 11, jan.-jun./2015

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Em movimento, esses sujeitos anunciam: existem outras formas de pensar o mundo, outras formas de projetar a vida e que é necessário reorganizar a condição humana superando a condição sub-humana.

Enfim, vimos no exemplo da discussão étnico-racial no Brasil através do movimento negro, que os sujeitos oprimidos pelo racismo possibilitaram a construção de uma nova pedagogia. Mas esta foi forjada nas lutas centenárias, e nos ensina que quaisquer processos educacionais que se pretendem focar numa educação crítica e de qualidade, só tem a possibilidade de serem como se pretendem se forem engajadas. Só nos resta a luta, ou como dizem os sujeitos de todos dos movimentos: a luta continua...

Referências: ARROYO, Miguel G. Educação em tempos de exclusão. In: FRIGOTTO, Gaudêncio e GENTILI, Pablo. (Orgs.). A cidadania negada. Políticas de exclusão na educação e no trabalho. São Paulo: Cortez, 2002, p. 270-279. _____. Outros sujeitos, outras pedagogias. Petrópolis: Ed. Vozes, 2012.

ALBERTI, Verena e PEREIRA, Amílcar Araújo. Qual África? Significados da África para o movimento negro no Brasil. In: Estudos Históricos. nº. 39, 2007, p. 25-56. BRASIL. Educação anti-racista: caminhos abertos pela Lei Federal nº. 10.639/03. Brasília: MEC/SECAD, 2005a.

____.História da Educação do Negro e outras Histórias. Brasília: MEC/ SECAD, 2005b.

FANON, Frantz. Pele negra, Máscaras Brancas. Salvador: EDUFBA, 2008. GONÇALVES, Luiz Alberto Oliveira. Le mouvement noir au Brésil. Lille: Presses Universitaires du Septentrion, 1997. 196

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HOOKS, Bel. Ensinando a transgredir: a educação como prática da liberdade. São Paulo: Martins Fontes, 2013.

MIGNOLO, Walter. Histórias Globais projetos Locais. Colonialidade, saberes subalternos e pensamento liminar. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2003. MOURA, Clovis. As injustiças de Clio. O negro na historiografia brasileira. Belo Horizonte: Oficina do livro, 1990. PEREIRA, Amauri Mendes. Três Impulsos para um salto – trajetória e perspectivas do Movimento Negro Brasileiro. Rio de Janeiro: CEAA-UCAM, Monografia, 1999.

____. Guerrilhas na Educação: a ação pedagógica do Movimento Negro na escola pública. In: Revista Educação em Debate.Fortaleza: Faculdade de Educação da Universidade Federal do Ceará,v. 2, n°. 46, 2003, p. 26-35. ____. Trajetórias e perspectivas do movimento negro brasileiro. Belo Horizonte: Nandyala, 2008.

PINTO, Regina P. A. Movimento negro em São Paulo: luta e identidade. São Paulo: Tese de Doutorado. FFCH/USP, 1994.

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SANTOS, Sales Augusto dos. A Lei 10.639/03 como fruto da luta anti-racista do movimento negro. In: BRASIL. Educação anti-racista: caminhos abertos pela Lei Federal nº. 10.639/03.Brasília: MEC/SECAD, 2005, p. 21-37.

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SCUOLA DI BARBIANA. Lettera a una professoressa. Firenze: Libreria Editrice Fiorentina, 1996. WALSH, Catherine. Introducion - (Re) pensamiento crítico y (de) colonialidad. In: WALSH, Catherine. (Orgs.). Pensamiento crítico y matriz (de)colonial. Reflexiones latinoamericanas. Quito: Ediciones Abya-yala, 2005, p. 13-35.

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O ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE: ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE O DIREITO À EDUCAÇÃO Renato dos Santos Gomes57 Lucília Augusta Lino de Paula58 Resumo Tratar-se-á nesse artigo da Lei 8.069/90 - Estatuto da Criança e do Adolescente, não apenas como um ordenamento jurídico, mas também como um ordenamento jurídico- pedagógico, ou seja, um instrumento do direito e daeducação. Buscar-se-á assim demonstrar as conquistas desse instrumento em um país com desigualdades sociais profundas, que apenas recentemente começam a ser alvo de políticas públicas e que apontam para o enorme desafio a ser enfrentado. Além disso, a funcionalidade do ECA nas escolas do campo também será abordada, considerando a diversidade dos movimentos sociais do campo e da cidade, e suas relações com a educação do campo no que se refere a garantia do direito a educação das crianças e adolescentes das comunidade rurais de Nova Iguaçu. Palavras-chave: Estatuto da Criança e do Adolescente; Educação do campo; Direito à educação.

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Graduado em Geografia e Mestre pelo PPGEA – Programa de Pós-Graduação em Educação Agrícola. UFRRJ – Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. Endereço eletrônico: [email protected]

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Professora da UFRRJ – Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. Endereço eletrônico: [email protected] RETTA, Vol. VIII, nº 11, jan.-jun./2015

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THE STATUTE OF CHILDREN AND ADOLESCENTS: SOME CONSIDERATIONS ON THE RIGHT TO EDUCATION Abstract Treat yourselfwilling this articleof the Law 8.069 /90 - Statute of Children and Adolescents, not only as alegal system,but also asa pedagogical juridical system, an instrumentof law andeducation.It willthusseekto demonstratethe achievementsof this instrumentin a country withdeep socialinequalities, which only recentlybegan to betargeted bypublic policies and pointing to thehugechallenge to be faced. In addition, the functionality of ACEin field ofschoolswill also be addressed, considering the diversity of social movements in the countrysideand the city,andits relations with theeducationfieldas regardsthe guaranteeof the right toeducation of children andadolescents fromruralcommunity ofNova Iguaçu. Keywords: The Statute of Children and Adolescents; The rural education; The right to education;

Introdução O Estatuto da Criança e do adolescente (ECA) completou em 19 de julho de 2015, 25 anos de implementação em nosso país. Um instrumento jurídico que consolidou a concepção da criança como um “sujeito político,” “sujeito de direitos”. O Estatuto da Criança e do Adolescente ao substituir o Código de Menores, de 1979, introduziu uma série de transformações nas políticas públicas de atendimento a crianças e adolescentes. A população infanto-juvenil passa agora a ser preocupação de todos. A Lei 8.069/90, que dispõem sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente, em seu Artigo 4º (BRASIL, 1990) determina: 200

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RETTA – Revista de Educação Técnica e Tecnológica em Ciências Agrícolas É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do Poder Público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária. (grifo nosso).

Com o sanção do ECA, a criança “desvalida”, alvo de uma legislação moralizante e excludente no período monárquico, transforma-se na criança sujeito de direitos, com possibilidade de construir sua própria história. Nesse longo e lento processo de reconhecimento legal dos direitos de crianças e adolescentes no Brasil, que culminou com a lei 8.069/90 destacamos dois fatos importantes: A Constituição da República Federativa do Brasil, de 1988, Art. 227 que estabelece: Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma e negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão59.

A Convenção Internacional das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança de 1989, em seus artigos 1 e 3, considera criança todo ser humano menor de 18 anos e alerta para que todas as decisões relativas às crianças, sejam realizadas por instituições públicas ou privadas de proteção social, por tribunais, autoridades administrativas ou órgãos legislativos e devem orientar-se pelo interesse superior da criança60.

A partir da edição da Lei 8.069/90, a criança e o adolescente passam a fazer parte do cenário nacional não mais como coadjuvante, mas agora como protagonistas. O Estatuto da Criança e do Adolescente, que nasce desses instrumentos jurídicos, visando o bem-estar da população infanto-juvenil em todos os seus estágios de desenvolvimento, determina que a proteção agora seja integral. Muda-se o modelo de proteção jurídico-social. 59

http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.html

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https://www.unicef.pt/docs/pdf_publicacoes/convencao_direitos_crianca2004.pdf RETTA, Vol. VIII, nº 11, jan.-jun./2015

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A Lei 8.069/90: avanços e críticas O Estatuto da Criança e do Adolescente representa não somente um salto qualitativo no sentido de garantir e zelar o cumprimento e a proteção dos direitos da infância, mas normatiza o atendimento de crianças e adolescentes pelas instituições que desenvolvem trabalhos educacionais, preventivos e de proteção e não mais punitivos. E essa é a característica essencial do ECA, de proteção e prevenção, diferentemente dos Códigos anteriores que possuíam um caráter conservador e discriminatório à medida que os menores eram vistos sob um olhar criminal. Em seu art.3º, o ECA atribui à criança e ao adolescente as características que citamos acima, quando estabelece que ambas gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana.

Art. 3º. A criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei, assegurando-se-lhes, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade.

Esta nova concepção de direitos se consolida no Brasil a partir do processo de redemocratização na década de 1980, como uma das principais características deste processo que marca o fim do regime militar no país, com a ampla organização e participação dos movimentos sociais da sociedade civil. Podemos considerar que as discussões e reivindicações dos diversos setores sociais fortaleceram e fizeram surgir a lei 8.069/90. Ao contrário dos códigos de menores elaborados por experts, o novo texto legal incorpora a ação de um movimento social. Na segunda metade dos anos 1980, impulsionados pela necessidade de mudanças, fim da censura e consequentes denúncias da ineficácia da ação de órgãos como Funabem ou Febem, redemocratização do país e do processo constituinte de 1988, a sociedade brasileira vislumbrou um sonho. Era uma utopia ou um desejo que colocava a infância como portadora de direitos, quando se criticava o descaso, a omissão. Do ponto de vista conceitual o Estatuto abandona o paradigma da “infância em situação irregular” e adota o princípio de “proteção integral à infância”. (BASÍLIO, 2008, p 20-21). 202

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O Estatuto da Criança e do Adolescente tem características peculiares do ponto de vista legislativo. Traz em seu bojo concepções de proteção de direito, de deveres, a indicação de quem deve proteger e as penalidades se não o fizerem e, ainda, punições de cunho claramente penal, para adolescentes infratores. É um ordenamento completo em uma só lei. Mas, saindo do foco da peculiaridade, o ponto de maior importância é a essência conceitual implícita na norma: a proteção integral. Tudo se orienta por essa premissa. Desde a conceituação de criança e adolescente, até o que e quem deve prestar assistência. Tudo parte do princípio da Proteção Integral ao ser em desenvolvimento. (MATTOS & GONÇALVES, 2008).

O Estatuto da Criança e do Adolescente ao reconhecer a liberdade, o respeito e a dignidade humana de crianças e adolescentes, representou uma nova perspectiva de transformação em busca de uma efetiva concepção garantidora de direitos. Porém, a implementação desses preceitos necessita da articulação de organismos públicos e privados, em todos os níveis de governo e dos poderes constituídos no que se convencionou denominar, no caso brasileiro, de Sistema de Garantia dos Direitos. Os órgãos públicos e as organizações da sociedade civil, que integram esse Sistema deverão exercer suas funções, em rede, a partir de três eixos de ação: Defesa dos Direitos Humanos, Promoção dos Direitos e Controle da Efetivação dos Direitos Humanos. É a partir destes eixos que o ECA é visto por alguns autores como contraditório e recebe algumas críticas. Demo (1995) critica o ECA no sentido de que a política por ele instituída é voltada para a cidadania assistida, não resolvendo um problema crucial que é o da pobreza da população. Assim, a legislação torna as políticas sociais setoriais voltando-se para a prática apenas da educação e assistência. Os direitos da criança são prioridades no Estatuto, mas a garantia de assistência às famílias não. O autor defende que o ECA deveria assegurar a garantia e o direito ao desenvolvimento integral da criança e do adolescente e não apenas propor proteção assistencial. Segundo Cruz (2005), o ECA tem contradições no sentido de que há uma compreensão compensatória no referente às crianças e adolescentes considerados pobres, pois acabam sendo compreendidos como carentes e em situação de risco. Os fins protetores da lei devem ser para RETTA, Vol. VIII, nº 11, jan.-jun./2015

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todas as crianças, porém apenas as crianças pobres acabam no Conselho Tutelar, vítimas de maus-tratos, violência e negligência. Muitas vezes a solução é o acolhimento ou um tutelamento que acaba indo na contramão da emancipação do sujeito. Avançando na crítica, Scheinvar (2001) afirma que o ECA apresenta uma contradição com as condições de socialização tradicionais da sociedade brasileira. Por um lado, historicamente, a família emerge como responsável por oferecer condições de cidadania para seus filhos, em nome do livre acesso à propriedade privada. Por outro, reconhecendo as condições de pobreza do Brasil, o Estatuto chama à mobilização da sociedade civil através dos Conselhos, no sentido de que sejam garantidos os direitos que conferem a condição de cidadania. Transparece, então, o caráter contraditório da “liberdade” enquanto garantia de cidadania e torna-se evidente a relação direta entre propriedade privada e exclusão social. Outra crítica feita ao ECA é a penalização das famílias pelas instituições que deveriam promovê-las. Muitas vezes, as famílias são rotuladas como “desestruturadas” e lhes é atribuída à responsabilidade por “falharem no desempenho das funções de cuidado e proteção de seus membros”. Um dos pilares da construção dos processos de assistência às famílias é que elas devem ser capazes de proteger e cuidar de seus membros. Assim, as que não conseguem são consideradas incapazes e, por isso, merecedoras de ajuda pública. Esta compreensão equivocada serve de “pano de fundo” também para a organização das políticas e serviços sociais. Segundo Mioto (2006, p. 54):

No âmbito das propostas políticas relacionadas às famílias, a ideia da falência e incapacidade também está presente. Ela pode ser observada através da tônica de muitos programas destinados à solução dos problemas da infância no Brasil. Estes colocam o destino dos recursos financeiros atrelados a determinada condição relacionada às crianças e, muitas vezes, a uma única criança. Com isso podemos efetuar a seguinte leitura: Não são os pais que necessitam de recursos para cuidarem de seus filhos, mas são os filhos que necessitam de recursos, uma vez que seus pais são incapazes de protegê-los e educá-los.

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Há uma discussão bastante acalorada sobre o ECA e os consequentes direitos garantidos às crianças e adolescentes, sendo que essa discussão em geral se amplia quando há ocorrência de alguma infração grave envolvendo a população infanto-juvenil e eles recebem a proteção garantida no Estatuto. Esta é, sem dúvida, a crítica feita com maior veemência pelos diversos segmentos de nossa sociedade. Segundo esses críticos, é difundida a ideia de que o Estatuto atribui a crianças e adolescentes direitos ilimitados, para uma aludida inexistência de deveres e imunidade às sanções previstas em lei. Os direitos garantidos no Estatuto possuem “mão dupla” e o seu desconhecimento fragiliza as ações daqueles que trabalham com a população infanto-juvenil, em especial nas escolas e estabelecimentos de ensino. O direito ao respeito deve ser exercido em “mão dupla”, ou seja, não é devido somente às crianças e adolescentes, mas também aos educadores, professores, diretores e outros profissionais da educação, que devem ser respeitados pelos alunos. A conduta desrespeitosa do aluno, dependendo do caso, pode configurar um ato infracional, nos termos do art. 103 do ECA – como, por exemplo, a injúria. (LIBERATI, 2004, p 243 -245)

É possível visualizarmos essa concepção nos discursos de professores e gestores no cotidiano escolar. Muitas vezes,julgam que foram retirados deles qualquer poder disciplinador sobre seus alunos, crianças e adolescentes, no que tange ao cumprimento das normas escolares, o que não é verdade. Certamente o poder do Estatuto não é capaz de resolver todos os problemas encontrados em um cenário social tão complexo como é o cenário brasileiro. De qualquer forma, ele é uma referência legal que pode auxiliar o trabalho dos profissionais que atuam com crianças e adolescentes. O ECA trabalha sob a perspectiva da descentralização. Transfere para os municípios grande parte da responsabilidade pelas políticas sociais. Através da municipalização a sociedade pode ter um poder maior de fiscalização e controle dessas políticas. É inegável que por trás da construção do ECA, há toda uma preocupação acerca do que fazer diante de um mundo que cada vez mais produz desigualdades sociais, que por consequência atingem negativamente a vida de crianças e adolescentes. RETTA, Vol. VIII, nº 11, jan.-jun./2015

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Acreditamos que o Estatuto da Criança e do Adolescente deve se constituir em instrumento da luta emancipatória contra a soberania do adulto em relação à criança, em direção a uma relação mais democrática entre ambos, avançando cada vez mais na visão de proteção integral, na garantia de prioridade no atendimento, na formulação e na execução das políticas sociais públicas dentre outras. Isso não significa que foi retirada do adulto a sua responsabilidade com a educação das crianças e adolescentes sob a sua guarda, sejam eles pais ou educadores, no que tange a formação de hábitos e atitudes valorizadas socialmente, e necessários ao convívio em sociedade.

Para que o Estado cumpra sua obrigação constitucional e institucional de prestar proteção e assistência, é necessário um alto grau de organização e compreensão dos direitos plenos da criança e do adolescente. É necessário, ainda, o conhecimento do Estatuto da Criança e do Adolescente pelo profissional que atua com a população infanto-juvenil, para o correto desenvolvimento de sua atividade e o fortalecimento desse profissional para exigir do Estado recursos e condições satisfatórias para essas atividades.

A Educação do campo e o direito à educação Pensando o Estatuto da Criança e do Adolescente como instrumento legal que garante o direito à educação de crianças e adolescentes e considerando que a população rural tem sido historicamente excluída do acesso à educação escolarizada, verificamos a situação de cumprimento do ECA nas escolas do campo de Nova Iguaçu, considerando a diversidade dos movimentos sociais do campo e da cidade, e suas relações com a educação do campo no que se refere a garantia do direito a educação das crianças e adolescentes das comunidade rurais de Nova Iguaçu.

Assim, neste estudo sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente articulado à educação do campo em Nova Iguaçu, percebemos o quanto seria relevante envolvermo-nos com a história de luta pela terra nessa região, os acampamentos e assentamentos da Reforma Agrária. Porém os limites 206

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deste estudo, premido pelo tempo, não permitiu a realização desse anseio. Entretanto, acreditamos que temos no processo investigativo a possibilidade de elaborarmos coletivamente propostas que contemplem a formação crítica e emancipadora de educadores e educandos, principalmente, os que lecionam nas escolas do campo. (BENJAMIN & CALDART, 2000). Acreditamos no potencial libertador do conhecimento, e, assim, julgamos que este trabalho pode chamar a atenção para a importância do corpo docente das escolas do campo conhecer e se envolver com a realidade das comunidades onde trabalham, favorecendo uma maior proximidade com as crianças e adolescentes, que são os seus alunos. Assim, neste trabalho, vimos a possibilidade de não somente ampliarmos nossos conhecimentos sobre a realidade investigada, como também, permitirmos, dentro da perspectiva processual da pesquisa, um maior envolvimento com a exploração, as reflexões e as análises do conhecimento dos professores sobre o ECA nas escolas do campo. Portanto, a busca na formação dos educadores deve ser enfatizada na unidade teoria e prática dessas propostas, o que infelizmente não é a realidade das escolas investigadas. A contribuição científica deve estar atrelada à necessidade de pensar a atualidade das escolas do campo envolvida, principalmente, com suas demandas e questões, os movimentos sociais, educadores/as e trabalhadores/as rural. Mesmo com a publicação do ECA e a conquista pelos movimentos sociais do campo de inúmeras legislações nos Estados acerca da educação do campo, como por exemplo, o Decreto presidencial de 04 de novembro de 201061 e o PRONACAMPO62, ainda é possível perceber uma carência de formação de professores, inicial e continuada, para a atuação nas escolas do campo. A formação que encontramos, segundo Bicalho (2008), são cursos aligeirados, formação de educadores e educandos preocupados apenas com a lógica do mercado, conteudistas, superficiais, currículos improvisados ao ensino fundamental tradicional urbanocêntrico, entre Decreto nº 7.352/2010, de 4 de novembro de 2010, dispõesobre a política de educação do campo e o Programa Nacional de Educação naReformaAgrária (PRONERA).

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PRONACAMPO – Programa Nacional de Educação do Campo, lançado no dia 20 de março de 2002 pelo MEC – Ministério da Educação.

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outras contradições, como, por exemplo, as dificuldades de assegurar o acesso e permanência desses jovens, a evasão escolar, espaço físico inapropriado, fechamento de escolas do campo, turmas multisseriadas e estrutura inadequada. (BICALHO, 2008) Diante de tantos problemas, nosso referencial teórico considera os sujeitos políticos e sociais que atuam como suporte nos encaminhamentos, discussões e debates que fomentam a formação do educador na perspectiva dialógica. (FRIGOTTO & GENTILI, 2001).

A Educação do Campo surge através das lutas pela territorialização do direito e cultivo da memória e das histórias das populações do campo. Caracteriza-se assim como um movimento de resistência. É consensual entre vários autores que, tanto a escola do campo, quanto a educação do campo só tem a possibilidade de ter a sua história preservada, na medida em que, os educadores conheçam a realidade local, tratando-a com respeito. Somente assim é possível elaborar, de forma participativa, um projeto político pedagógico emancipador que atenda às necessidades da realidade da comunidade rural, tendo essa própria comunidade sua voz e seus anseios ouvidos e discutidos coletivamente. O conceito de educação do campo, segundo Feliciano: Visa garantir ao trabalhador/a do campo o direito de educarse de acordo com as suas próprias particularidades culturais e especificidades de vida e de luta. Corresponde ao reconhecimento de que historicamente o Estado negou a educação deste teor à população do campo (FELICIANO, 2011, p. 2).

Constatamos a permanência desta negação, quando ao realizar as atividades de campo nas escolas, observamos que nos Projetos Políticos Pedagógicos não constam as diretrizes da história do campo. Além disso, também notamos que os livros didáticos adotados não correspondiam com a realidade da comunidade, e sim a realidade do mundo urbano. Frente a todo esse debate, observamos que os docentes conhecem pouco as características que fazem das escolas investigadas, uma escola do campo, uma vez que não têm a devida orientação nem acompanhamento, por parte dos gestores das unidades escolares. A falta de material didáticopedagógico específico e de uma política que crie melhores condições 208

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de carreira e formação para os docentes dificulta o olhar mais bem direcionado para educação do campo, perante a realidade vivenciada. No entanto, consideramos, de acordo com Gonçalves, que:

É importante enfatizar que a incorporação das universidades como parceiras das Secretarias Estaduais e Municipais de Educação na formação dos professores provocará a elaboração de pesquisas, artigos e debates, que certamente contribuirá para uma maior movimentação nas reflexões de conceitos, princípios, procedimentos e resultados do programa (GONÇALVES, ROCHA & RIBEIRO, 2010, p.56).

Um exemplo dessa parceria entre universidades e escolas é a realizada pela equipe da Licenciatura em Educação do Campo63 da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), que elaborou, no ano de 2011, o livro: Campo Alegre: memórias em movimentos e as gerações em luta64, que retrata a realidade de uma comunidade rural, enfatizando sua história. Esse material foi utilizado, em algumas ocasiões, numa escola do campo de Nova Iguaçu. Por conta disso, professores e gestores passaram a ter uma referência em termos de livro didático para a colaboração e montagem do Projeto Político Pedagógico, atendendo às reivindicações da educação do campo. O artigo 28º da LDB (BRASIL, 1996) deixa clara a necessidade de adequação do currículo escolar ao cotidiano da população rural. Vejamos:

Art. 28º. Na oferta de educação básica para a população rural, os sistemas de ensino promoverão as adaptações necessárias à sua adequação às peculiaridades da vida rural e de cada região, especialmente:

Com duração de 4 anos, o curso tem 3520horas formando o egresso para atuaçãonaárea de CiênciasSociais e Humanidades (Sociologia e História). Alémdessaformação para a Educação Básica, o estudante tem disciplinasnasáreas de: AGROECOLOGIA, QUESTÕES AMBIENTAIS, DIVERSIDADE E DIREITOS HUMANOS. Estes eixos se justificamporconta da importância da Agroecologia no contextoatual do Brasil e do mundo no que se refere à qualidadeambiental, à estruturafundiária, à produção de alimentossaudáveis e aodesenvolvimento local.

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O livrotrabalhou com duasvertentes: Bloco 1: Eu, meus colegas e minhaescola – resgate e registro da história da Escola Municipalizada Campo Alegre, desde o momento da ocupaçãonadécada de 80 atéosdiasatuais. Bloco 2: Agroecologia – inserção de práticas / reflexõesagroecológicas no interior da escola no diálogo com osmoradoreslocais, ouvindoosmais antigos, dentro e fora do espaço escolar.

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RETTA – Revista de Educação Técnica e Tecnológica em Ciências Agrícolas I - conteúdos curriculares e metodologias apropriadas às reais necessidades e interesses dos alunos da zona rural; II - organização escolar própria, incluindo adequação do calendário escolar às fases do ciclo agrícola e às condições climáticas; III - adequação à natureza do trabalho na zona rural.

Este artigo da LDB dá os primeiros passos para um debate inicial sobre o conceito de educação do campo, defendido no ano seguinte, em 1997, no I ENERA – Encontro Nacional de Educadores da Reforma Agrária. Assim, consideramos importante uma formação de professores que contemple a especificidade da educação do campo para os professores e equipe pedagógica que atuam nas escolas do campo, instrumentalizando-os para uma atuação pedagógica contextualizada em conformidade com as Diretrizes Operacionais Por Uma Educação do Campo (BRASIL, 2002) e demais orientações curriculares. Consideramos ainda importante nesse processo formativo as parcerias entre universidades-escola-comunidade para a efetivação dos direitos adquiridos em relação à educação do/nocampo e a ampliação dos saberes docentes. De acordo com Bobbio (1996), não há direito sem obrigação e não há nem direito nem obrigação sem uma norma de conduta. Isso reforça a necessidade de atendimento às diretrizes e bases da educação brasileira e da legislação subsequente relativa à educação do campo e como é importante seu cumprimento, assim como o conhecimento sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente (BRASIL, 1990).

Sabemos que há uma enorme carência na formação de professores, em especial, os que atuam nas escolas do campo e contemple maiores conhecimentos e informações sobre o ECA, assim como, os pressupostos, diretrizes e propostas da educação do campo. Essa falta de formação, sem sombra de dúvidas, impacta a qualidade da educação e do ensino nas escolas do campo. Julgamos, nesse sentido, que a breve revisão de literatura efetuada, ainda que superficial, sobre as duas temáticas – ECA e Educação do Campo - foi extremamente necessária. No entanto, convidamos os leitores/as dessa revista para somarmos forças e ampliarmos o debate de tais temáticas. 210

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Referências BICALHO, Ramofly dos Santos. Projeto Político Pedagógico do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra: trajetória de educadores e lideranças. Campinas: Editora Komedi, 2008. BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Rio de Janeiro: Editora Campus, 1996. BRASIL. Constituição Federal. Brasília, DF, Congresso Nacional, 1988.

______ .Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Brasília, DF, Congresso Nacional, 1996.

______ .Estatuto da Criança e do Adolescente: promulgado em 13 de julho de 1990. .

Lei 10.172, de 09 de Janeiro de 2001, que estabelece o Plano Nacional de Educação decênio 2001 – 2010 ______ . Resolução CNE/CEB ºn 01 de 03 de abril de 2002. Diretrizes Operacionais para a Educação Básica nas Escolas do Campo. Brasília, DF, MEC/CNE, 2002. Edição atualizada, Brasília, DF, Congresso Nacional, 2010

_______. Decreto nº 7.352/2010. Dispõe sobre a política de educação do campo e o Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária, de 4 de novembro de 2010. Brasília, DF, PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA-CASA CIVIL/SUB-CHEFIA PARA ASSUNTOS JURÍDICOS, 2010.

_______. Resolução Nº 2, de 28 de abril de 2008: Estabelece diretrizes complementares, normas e princípios para o desenvolvimento de políticas públicas de atendimento da Educação Básica do Campo CALDART, Roseli Salete; Pedagogia do Movimento Sem Terra: escola é mais do que escola. Petrópolis, RJ: Vozes, 2000. RETTA, Vol. VIII, nº 11, jan.-jun./2015

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________, ARROYO, Miguel Gonzáles & MOLINA, Mônica Castagna (organizadores). Por uma Educação do Campo. Petrópolis, RJ: Vozes, 2004.

FERREIRA, Luís. O Estatuto da Criança e do Adolescente e o professor: reflexos na sua formação e atuação. Dissertação em educação. Presidente Prudente, Unesp, 2004 FERREIRA, Luís. O Estatuto da Criança e do Adolescente e o professor: reflexos na sua formação e atuação. Dissertação em educação. Presidente Prudente, Unesp, 2004

MATTOS, L. M. B., GONÇALVES, S. R. Estatuto da Criança e do Adolescente: modelo de proteção integral para formação do cidadão completo. Anais: VI Semana Acadêmica de Pedagogia e III Jornada de Estudos Pedagógicos: Pedagogia dos Direitos Humanos: Discutindo a especificidade da Educação Escolar na construção de uma sociedade não excludente. Unioeste/ Campus de Foz do Iguaçu, 2008.

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CONTRARIANDO AS EXPECTATIVAS A EXPERIÊNCIA DO PRONERA NO ESTADO DO PARÁ65 Iranilde de Oliveira Silva66 Sandra Barros Sanchez67 Ramofly Bicalho dos Santos68 Resumo O presente artigo tem por objetivo apresentar parte da pesquisa realizada na Dissertação de Mestrado “Juventude e Agroecologia: Caminhos que se encontraram na Escola Agrotécnica Federal de Castanhal – Pará”, destacando a importância que o curso, via PRONERA, pode proporcionar para os sujeitos do campo no Estado do Pará. Palavra Chaves: Educação do Campo, Agroecologia, Juventude, Ensino Técnico Profissionalizante.

Baseado na Dissertação titulada: “Juventude e Agroecologia: Caminhos que se encontraram na Escola Agrotécnica Federal de Castanhal – Pará”. Agradeço ao CNPq pelo financiamento da pesquisa através de bolsa. Ao PPGEA – Programa de Pós-Graduação em Educação Agrícola/UFRRJ. A todos as famílias dos Egressos, ao IF- Campus Castanhal. As organizações Sociais do Campo no Pará, em especial, MORIVA e MST. A todos os lutadores do Povo em busca de uma educação de qualidade. E obrigada à minha orientadora:Profª Dra. Sandra Barros Sanchez por acreditar na proposta, a quem dedico, em memoria póstuma.

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Mestre em Educação Agrícola pelo PPGEA/UFRRJ. Doutoranda no Programa de Pós Graduação em Ciência Tecnologia e Inovação Agropecuária da UFRRJ. Endereço eletrônico: [email protected]

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Professora da UFRRJ – Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. (In Memoriam).

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Doutor em Educação (UNICAMP). Professor do Curso de Licenciatura em Educação do Campo e do PPGEA – Programa de Pós-Graduação em Educação Agrícola, ambos da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. Endereço eletrônico: [email protected]

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CONTRARY TO EXPECTATIONS A COURSE VIA PRONERA AHEAD Abstract This article aims to present part of the survey conducted for Master’s thesis “Youth and Agroecology: Paths who met at the Federal Agrotechnical School of Castanhal - Pará”, highlighting the importance of the course, via PRONERA, can provide to the subject field in State of Para. Key word: Rural Education; Agroecology; Youth; Technical Vocational Education

Introdução O presente artigo tem como base a Dissertação de Mestrado intitulada: “Juventude e Agroecologia: Caminhos que se encontraram na Escola Agrotécnica Federal de Castanhal – Pará”. Nosso objetivo é apresentar parte da pesquisa realizada, destacando a importância que o curso, via PRONERA, proporcionou para os sujeitos do campo no Estado do Pará. O mundo rural no Estado do Pará é habitado por diversas populações do campo, das florestas e das águas. Dentre elas, temos: Indígenas, Quilombolas, Ribeirinhos, Extrativistas, Agricultores Familiares e Assentados da Reforma Agrária que traçam a resistência nesse espaço de disputa permanente que o é Campo. Nessa resistência e na luta dos camponeses e sem terra, Fernandes & Molina (2005) apontam alternativas para democratização da terra e garantia do direito a vida digna:

A luta pela terra e na terra tem promovido uma revalorização do campo como espaço de vida. A construção do modelo de desenvolvimento capaz de garantir aos brasileiros dignas condições de vida passa pelo campo. Encontrar alternativas para democratizar a distribuição de renda - indispensável à retomada do crescimento econômico - exige sistemático esforço e investimentos em estudo e pesquisa das possibilidades que o campo representa em potencialidade de geração de empregos, renda, espaço de moradia, serviços. (FERNANDES; MOLINA, 2005:26)

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As mobilizações sociais do campo protagonizam mudanças na estrutura agrária que vêm sendo preconizadas pelo agronegócio, pela exploração e desigualdade social empregada às populações do campo. É indispensável, na atualidade, ao se referir aos aspectos da reforma agrária, dar ênfase à educação do campo. Uma educação como prática das organizações sociais que vislumbre o campo para além da produção agrícola. Que valorize suas culturas e saberes. Uma educação que contribua para o empoderamento dos sujeitos e seus direitos.

De acordo com Molina (2006:8) a base fundamental da educação do campo é que o território camponês seja compreendido para além do espaço agrícola. O campo é território de produção da vida, de produção das novas relações sociais, das novas relações entre homens e natureza, rural e urbano. O campo é um território de produção da história, de culturas, de lutas e de resistências dos sujeitos, individuais e coletivos, que ali vivem. A educação do campo no contexto da região amazônica, em especial, no Estado do Pará, dialoga com os movimentos sociais do campo, propondo uma formação na qual os sujeitos camponeses sejam os protagonistas desse processo de construção. Souza (2011:24) aponta que essa luta é na perspectiva de mudar o cenário constituído de sujeitos à margem de seus direitos. É nesse sentido que os movimentos sociais se articulam na luta por reforma agrária, pela permanência dos povos em suas localidades e, principalmente, por uma educação do campo que promova o desenvolvimento dos sujeitos em seus espaços de formação. Não podemos apontar que somente a escola ou sua péssima estrutura têm contribuído para afastar os jovens e adultos do campo. As estradas intransitáveis, o avanço do agronegócio, o pouco investimento público em relação à agricultura familiar, entre outros aspectos, vem contribuindo para que os jovens camponeses saiam do campo em busca de melhorias de vida. Freire e Castro (2007: 231) abordam que a cidade para os jovens é vislumbrada como espaço social, sobretudo, de oportunidades de formação e qualificação profissional, de acesso à informática e internet, reconhecidos como elementos formativos indispensáveis na atualidade. RETTA, Vol. VIII, nº 11, jan.-jun./2015

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Há um conjunto de fatores que levam as organizações sociais do campo a lutarem e tecerem expectativas acerca da educação na formação dos sujeitos camponeses. Elas pertencem a um contexto onde as escolas rurais, geralmente, ofertam apenas o ensino fundamental (1º ao 5º ano). Para dar continuidade aos seus estudos, essas crianças precisam se deslocar para as cidades mais próximas, na perspectiva de concluir o ensino fundamental e médio, tendo possibilidades de fazer uma graduação.

É a partir dessa realidade que os movimentos sociais dialogam com as instituições de ensino, na perspectiva de avançar, por exemplo, no processo de educação profissional dos sujeitos do campo, defendendo estratégias de desenvolvimento rural sustentáveis, em contraposição à valorização exagerada do capital, a exploração e degradação ambiental. Importante registrar que esta formação profissional não pode estar desarticulada do debate e da construção de um novo modelo de produção no campo, que considere a agricultura familiar, orgânica e agroecológica. Caso contrário, estaremos desconsiderando a própria resistência do homem do campo. Assim alerta Caldart:

A ideia fundamental da compreensão da perspectiva desta proposição é de que não se trata de pensar uma educação profissional em separado para o campo, específica para os sujeitos e fragmentada do debate geral (isso seria desastroso em relação aos objetivos de transformação social e de emancipação humana que nos orientam), mas sim trazer para o debate geral da concepção e de políticas de educação profissional questões que têm sido formuladas desde a realidade, esta sim específica, do trabalho no campo, dos embates de projetos de desenvolvimento, de modos de fazer agricultura e das experiências de formação profissionais dos seus sujeitos. (CALDART, 2011:230)

É nesse contexto que o Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (PRONERA), criado em 1998 para atender a educação formal de jovens e adultos assentados da reforma agrária, possibilita acesso e ampliação da formação básica à pós-graduação. Nessa conjuntura,as escolas agrotécnicas, os colégios técnicos das universidades e os recentes institutos federais trabalham na expectativa de oferecer uma educação profissional do campo que contribua na formação de técnicos sensíveis às demandas produtivas agroecológicas. 216

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Em função das articulações entre as organizações sociais do campo e a Escola Agrotécnica Federal de Castanhal – Pará (EAFC-PA), surge o Curso Técnico em Agropecuária, com ênfase em Agroecologia (TAA), abrangendo os municípios de Abaetetuba, Castanhal, Acará e Belém do Pará. O curso foi oferecido nos anos de 2006 a 2009 e atendeu 40 jovens e adultos das seguintes organizações sociais: Federação dos Trabalhadores da Agricultura Familiar (FETRAF), Movimento dos Ribeirinhos e Ribeirinhas das Ilhas e Várzeas de Abaetetuba (MORIVA) e Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST).

Os jovens e adultos que participaram desse curso técnico, desde sua formação básica, vem enfrentando condições demasiadamente difíceis para se manterem no processo de formação. Acredita-se ainda que esta experiência de formação pelo PRONERA, com foco na agroecologia e na pedagogia da alternância, tenha contribuído na mudança de postura e olhar crítico desses sujeitos, não apenas relacionados aos aspectos de produção do conhecimento, ao processo educativo e à formação técnica, mas também ao desenvolvimento da consciência dos egressos, a sua visão de mundo e de sociedade, às questões familiares, ambientais, de gênero e geração. Dialogamos com a metodologia da pesquisa qualitativa descrita da seguinte forma por Silva (2001:20): “sendo qualitativa quando dizem que essa metodologia compreende que há uma relação dinâmica entre o mundo real e o sujeito, isto é, um vínculo indissociável entre o mundo objetivo e a subjetividade do sujeito que não pode ser traduzida em número.” Trabalhamos ainda com Oliveira (2008:16) que descreve a pesquisa qualitativa como o estudo do fenômeno em seu ambiente natural, analisando o problema processualmente.

Os instrumentos selecionados para o desenvolvimento da pesquisa foram primordiais. Debruçamos sobre o estudo das características da localidade, antes de iniciarmos as atividades de campo. Nesse sentido, a coleta de dados ocorreu sem perda dos elementos essenciais para o desfecho da pesquisa. Utilizamos os seguintes instrumentos metodológicos: pesquisa documental e entrevistas, com apoio de um roteiro semiestruturado; fotografias e gravação em áudio; visitas à instituição de ensino RETTA, Vol. VIII, nº 11, jan.-jun./2015

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e às comunidades dos egressos; relatos informais e caderno de campo/ diário, importante para memória da pesquisa.

A pesquisa documental foi além de um levantamento bibliográfico apenas, obviamente, essencial no processo de investigação. Ela foi realizada para contribuir na elaboração das etapas de pesquisa, possibilitando reflexões acerca do estudo. Segundo Godoy (1995) nem sempre o documento se constitui em amostra representativa do fenômeno em estudo. Nesse sentido, a escolha foi em função de propósitos, ideias e hipóteses e os três aspectos a seguir considerados: a escolha do documento, o acesso a eles e sua análise. Nessa conjuntura, buscamos documentos que, de fato, contribuíram para o processo de elaboração da nossa pesquisa.

A realização das entrevistas foi um dos momentos fundamentais da pesquisa. Estávamos preparados para essa ocasião e munidos das informações básicas. Segundo Thompson (1992:254) existem algumas características que o bom entrevistador deve possuir: interesse pelos sujeitos da pesquisa, capacidade de demonstrar respeito pela opinião relatada e ter disposição para escutar. É importante lembrar que o pesquisador, nessa ocasião, está à procura de informações.

A pesquisa ocorreu no estado do Pará, com egressos do Curso Técnico em Agropecuária, com ênfase em Agroecologia, no período de 2006 a 2009, na Escola Agrotécnica Federal de Castanhal – Pará (EAFC - PA). Este curso atendeu a demanda da educação profissional do campo em articulação com os movimentos sociais, sendo financiado pelo Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária – PRONERA. Para realização das atividades de identificação documental, utilizamos as entrevistas e visitas durante as quatro viagens de campo ao Estado do Pará. A primeira foi realizada em Janeiro de 2012. A segunda em Junho/Julho de 2012. A terceira em dezembro de 2012. Por último, em fevereiro de 2013, quando finalizamos as atividades de campo. Iniciamos as visitas e entrevistas nos municípios de Castanhal e Abaetetuba nas ilhas: Campompema, Capim, Xingu, Palmar e Guajarazinho. Essas eram as localidades com a maior concentração de egressos. Continuando as visitas, chegamos até o município de Cametá, para encontrar 218

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uma egressa da Ilha de Sapucajuba / Abaetetuba. Saindo das Ilhas fomos para o município de Acará e, logo em seguida, para Belém, em direção ao distrito Mosqueiro e no município Santa Bárbara.

As visitas prévias contribuíram para conhecer melhor os territórios / localidades, os movimentos sociais e as instituições envolvidas na pesquisa. Conseguimos entrevistar 21 egressos, sendo 10 mulheres e 11 homens, e 01 representante do movimento social. Importante novamente registrar que, em função desses encontros, das entrevistas e histórias narradas, foi possível desenvolver nossa Dissertação de Mestrado.

A Realidade – com a voz os Egressos Historicamente, a educação oferecida ao homem e a mulher do campo, em sua grande maioria, foi descontextualizada da sua realidade, desconectada dos territórios onde a agricultura familiar e a preservação do meio ambiente fazem parte do cotidiano de vida e manutenção desses sujeitos no campo. As desigualdades no sistema educacional se dão pela própria descentralização de tal sistema na sua forma e estratégia de gestão. No entanto, essa descentralização para o meio rural foi ainda mais desigual, desde os gastos com professores e a péssima estrutura física e didática das escolas, desencadeando um atendimento muito ruim às crianças, aos jovens e adultos do meio rural.

A educação do campo, de acordo com Fernandes & Molina (2005: 9) concebe o campo como espaço de vida e resistência, onde camponeses lutam por acesso e permanência na terra para edificar e garantir um Modus vivendi que respeite as diferenças quanto à relação com a natureza, o trabalho, a cultura e suas relações sociais. Esta concepção educacional não está sendo construída para os trabalhadores rurais, mas sim, por e com eles. Tem a preocupação de atentar ao processo de formação de sujeitos a partir da sua realidade, considerando os valores e culturas locais dos camponeses. Vejamos a realidade do Egresso Florivaldo Amaral Baia. O acesso à educação nas áreas rurais foi somente em uma fase do ensino fundamental, RETTA, Vol. VIII, nº 11, jan.-jun./2015

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até o 5º ano. Ele é morador de uma Ilha e a família vive da agricultura de verão e do extrativismo, basicamente, do Açaí e da Pesca. Em períodos bem longos sua contribuição é pequena no processo de manutenção da família. Florivaldo precisa se deslocar e morar na cidade até terminar os estudos. A continuidade desses estudos é um desejo dos pais. Querem que os filhos tenham uma educação melhor. Nasci e me criei na ilha do Xingu, estudei lá até a 4ª serie, lá na escola não tinha até a 4ª série, aí quando terminei lá tive que vir para cidade, eu vim com uns 11 anos, acho!. Eu estudava na cidade e ficava durante a semana e final de semana ia pra ilha, e lá ajudava meu pai na roça, e nas férias eu ficava todas as férias em casa. Meu pai tinha um ditado “se não quer estudar, vem para roça”. (...) Mas o sonho dele era de todos nós estudarmos, minhas irmãs mais velhas já tinham terminado, feito faculdade se formaram e todas são professoras, ele queria o mesmo pra mim, que eu ficasse aqui, fizesse cursinho aqui em Abaeté. Construiu uma casa de madeira na cidade para os filhos poderem estudar. (Florivaldo Amaral Baia, Ilha Xingu/Abaetetuba, egresso Pronera)

Ademir Mendes Vinagre, morador do Assentamento Santa Maria II, localizado no Município de Acará/PA, ficou ausente da escola por dificuldades de transporte e acesso à escola, além de trabalhar com a produção agrícola que gera renda à família. Geralmente a determinação é o que os leva a concluir o ensino fundamental e a teimosia os leva a enfrentar e terminar o ensino médio. Bom, eu pra para falar a verdade, devido eu morar na zona rural, a dificuldade ao acesso a educação, né? Agente sempre encontrou sempre, esbarrou em algumas barreiras e teve principalmente na falta pra terminado o ensino, principalmente para terminar o ensino fundamental. Quando terminei, ensinava e até hoje ensina 1ª a 4ª série, foi no ano de 2000, daí fiquei 3 anos parado, voltando para 2003-2004, passei estes 3 anos parados porque não tinha para onde eu ir. Daí quando comecei de novo, em Nova Aliança que é 11 km. A minha jornada de trabalho para ajudar a família, que era até 11h30 da manhã, e 12h que saía para estudar, aí isso foi da 5ª a 8ª série. (Ademir Mendes Vinagre, Acará, Egresso PRONERA) 220

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Essas são histórias verdadeiras de dificuldades no acesso à educação no meio rural. Uma educação dissociada e distante da realidade local, sem estrutura e com inúmeras dificuldades de deslocamento. Como então educar o homem e a mulher do campo nessa conjuntura tão adversa? É essa questão que move o debate e traz avanços na implementação de uma educação do campo que dialogue com os movimentos sociais, a pedagogia da alternância, a agricultura familiar, orgânica e agroecológica.

Contrariando as expectativas a experiência do PRONERA no Estado do Pará Quando eu terminei até a 4ª serie, eu tinha muita vontade de estudar, e pedi para estudar novamente a partir da 2ª série e refiz até a 4ª série de novo, encostada mas ia estudar. Daí depois fiz a SOME (sistema modular de ensino), comecei a fazer a 5ª série até o final do ensino médio, bem ao lado de casa, e com isso eu pude estudar, por que eu não teria ido para estudar na cidade por diversos motivos familiares. Somos 9 irmãos, só quem estudou foi eu e meu irmão mais novo. Os meninos iam com o pai pescar, e as meninas ficavam em casa para ajudar na casa e fazer o matapi. (Patrícia Matias dos Passos, Ilha Sapucajuba, Abaetetuba/PA).

O Curso voltado à formação técnica, com ênfase em agroecologia, surge como demanda das organizações sociais do campo, na perspectiva de que os jovens tenham acesso e avancem no seu processo educacional, além de resolver problemas relacionados à assistência técnica. Assistência que contribua, a partir da realidade local, com os projetos sustentáveis de desenvolvimento dos assentamentos agroextrativistas e rurais. A egressa Patrícia Matias, destaca como foi difícil para muitos jovens terem acesso à educação básica: “ter acesso há um curso técnico para muitos era muito distante ou nem tinham chegado a idealizar até mesmo pelo desconhecimento”. A Turma PRONERA foi organizada em conjunto com a Escola Agrotécnica Federal de Castanhal - EAFC e os movimentos sociais do campo. O gráfico 1 destaca como os egressos ficaram sabendo da organização RETTA, Vol. VIII, nº 11, jan.-jun./2015

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desse curso, demonstrando a movimentação dos atores na mobilização dos educandos para a composição da turma. Gráfico 1: Como os egressos ficaram sabendo do curso.

Fonte: Silva, 2014

Durante a pesquisa, os egressos, ao serem questionados sobre as expectativas que os levaram a cursar o TAA, relataram que seria a oportunidade de voltar a estudar e iniciarem um curso técnico profissionalizante. Contudo, também apresentaram o anseio de contribuir com a comunidade e a família. Apresento as três falas: 1: gostaria de atuar na minha comunidade, pois há uma demanda muito grande para realizar demarcação de terra, escrever projetos, e os técnicos que vem aqui geralmente não entendem a nossa realidade.

2: gostaria de atuar na minha comunidade, ser contratado como um técnico, remunerado. 3: vi uma oportunidade de continuar estudando, ter acesso a uma boa educação, educação de qualidade.

Ao final dos três anos de curso e com inúmeras dificuldades enfrentadas, seja de cunho econômico ou burocrático, de vivência e de convivência 222

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pelas partes envolvidas (movimentos sociais, instituição de ensino, PRONERA e os próprios educandos), 32 estudantes concluíram o curso técnico, sendo 11 mulheres e 21 homens. (Gráfico 02). Esse é o quadro da primeira turma de técnico em agropecuária, com ênfase em agroecologia, formados pelo PRONERA no estado do Pará. Embora o curso tenha se realizado pela pedagogia da alternância, o que possibilita a permanência e a atuação na comunidade durante as atividades do curso, muitos dos educandos tiveram dificuldades para permanência nele. Gráfico 02: Número de formados e a relação por sexo ao final do curso



Fonte: Silva, 2014

Identificamos que muitos dos egressos a partir da participação no curso continuaram a estudar e todos relataram que a experiência pode ampliar os horizontes e mostrar outras oportunidades de formação continuada, atuando, inclusive, como técnicos extensionistas. No Quadro 01, a sistematização mostra o que os egressos estavam fazendo no ano de 2013.

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Quadro 01: Onde e como os egressos estão atuando. Número de Egressos

O que estavam fazendo?

01

Cursando Engenharia agronômica no IFPA – Campus Castanhal

01

Cursando Matemática no campus da Universidade Estadual (UEPA), em Cametá.

02 01 01 01 01 01 01 01 02 08

Fonte: Silva, 2014

Cursando licenciatura em educação do campo no campus da Universidade Federal do Pará, em Abaetetuba. Cursando biologia na UEPA, em Cametá.

Cursando tecnólogo em floresta pela Escola Técnica Juscelino Kubistchek Iniciando engenharia civil na Faculdade da Amazônia – FAMAZ

Atuação técnica na Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural – Emater/PA. Contrato temporário na Ilha do Marajó/PA. Atuação técnica. Projetos pela prefeitura municipal de Abaetetuba/ PA no Pró-Campo.

Atuando de forma voluntária no projeto Vaga Lume na Escola do Assentamento João Batista I.

Técnica em Extensão Rural em uma Cooperativa de Assessoria Técnica, localizada em Castanhal Pará. Técnico de Empresa que comercializa ordenha mecânica. Atuando no lote. Envolvidos em organização social.



Os impactos ocasionados na vida de cada egresso são, sem dúvidas, imensuráveis. Não apenas pelos dados demonstrados, mas por contrariar as expectativas idealizadas por esses sujeitos. Todo esse processo envolveu os familiares, a comunidade e as organizações sociais. As expectativas apontam para que outros jovens tenham a possibilidade de realizar também um curso técnico, colaborando na construção de outras áreas e espaços de formação. O Sr. Domingos Trindade, com a percepção de ser uma 224

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liderança do MORIVA, ainda no campo dos impactos observados, destaca a importância que foi a participação dos jovens neste curso, caracterizando os egressos que residem nas ilhas e os que estão atuando fora:

Vários técnicos estão trabalhando, estudando, isso prova que nos temos talento, que não por ser o cara lá do campo que não tem conhecimento, que não tem talento, mas falta mais incentivo do governo. Nós temos vários deles fazendo faculdade, tão seguindo careira (...) então é assim, tão fazendo faculdade, tão crescendo. A dificuldade que eles tão desempregado, e a gente não tem a mão de obra na nossa comunidade que a gente queria ter. Temos mais de 7 mil família assentada e 20 projeto de assentamento agroextrativista. Tudo na região de ilhas, então nós precisa mais do que nunca, a terra do nosso provo é pouca, para trabalhar com açaizal e nem todo mundo vai para pesca e os peixes estão também tá acabando, então a gente precisa desenvolver novas técnicas que é pra assumir a população que tá chegando e que não vai ter como viver somente dos recurso naturais, só com que a natureza oferece é?, então vai ter que oferecer novas possibilidade, novas técnicas, inclusive com nossos frutos nativos da nossa região. (Sr. Domingues Trindade, MORIVA)

Considerações Finais O debate acerca da reforma agrária e a educação do campo no Brasil, em especial, no estado do Pará e nas regiões onde residem os egressos são reais e presentes. A luta por direitos é permanente e os sujeitos do campo encontram-se em espaços agrários constituídos, ou forjados pelo tempo, no caso dos assentamentos extrativistas das áreas ribeirinhas. Uma realidade surpreendente e constituída por lutas cotidianas e pelo direito herdado. Manter-se nesses territórios forjados nas lutas das organizações sociais, tem se dado através de mudanças e adequações às práticas cotidianas do processo produtivo que, geralmente, desencadeia expropriação do agricultor familiar. Essa é uma luta pela permanência dos jovens no campo e a necessidade em mudar suas expectativas de vida e produção. Nesse campo, a atuação dos jovens que lutam pelo acesso à educação contribui para vislumbrar e percorrer outros caminhos. O curso oferecido pelo PRONERA trouxe o desejo de emancipação dos RETTA, Vol. VIII, nº 11, jan.-jun./2015

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sujeitos, proporcionou trocas e geração de conhecimentos, incentivando o direto a uma educação voltada, entre outros aspectos, para realidade dos assentados da reforma agrária.

A base agroecológica, antes pouco percebida, agora faz parte da dinâmica e do cotidiano prático dos sujeitos, possibilitando um conjunto de ações que vão além da sua localidade. Ações que envolvem, inclusive, os trabalhadores residentes nos grandes centros urbanos. Nessa conjuntura, defende-se uma agricultura sustentável que contribua para o desenvolvimento social e econômico no campo e na cidade. A agroecologia é estratégica no fortalecimento dessa identidade. Este curso vinculado ao PRONERA deixou um grande legado para as comunidades, familiares, organizações sociais e instituição de ensino. Foram perceptíveis as mudanças estruturais e curriculares e a apropriação da pedagogia da alternância, visando ampliar o acesso dos filhos de agricultores aos cursos técnicos ofertados pela instituição. O curso contribuiu na idealização e consolidação das expectativas dos jovens e adultos presentes na formação.

Referências

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FREIRE, Jacqueline Serra.; CASTRO, Edna. Juventude na Amazônia paraense: identidade e cotidiano de jovens assentados da reforma agrária. In: Juventude Rural em perspectiva/ organizadoras Maria José Carneiro, Elisa Guaraná Castro. – Rio de Janeiro: Mauad X, 2007. ISBN 879-85-7478-240-9. 226

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GODOY, Arilda Schimidt. Pesquisa documental. In: Pesquisa Qualitativa: Tipos fundamentais. Revista de Administração de Empresas. São Paulo, V. 35. Nº 3. p 20-20. Mai/Jun 1995. MOLINA, Mônica Castagna. Prefácio – Como se forma os sujeitos do campo? Idosos, Adultos, Jovens, Crianças e Educadores/ organizadores, Roseli Salete Caldart, Conceição Paludo, JohannesDoll – Brasília: PRONERA: NEAD, 2006. OLIVEIRA, Cristiano Lessa.Um apanhado teórico-conceitual sobre a pesquisa qualitativa: tipos, técnicas e características. Revista Travessias – e-revista.unioeste.br, vol. 2. Nº 3, 2008.

SOUZA, Dayana Viviane Silva de. Currículo e Saberes culturais das comunidades dos discentes Ribeirinhos do curso de Pedagogia das Águas de Abaetetuba – Pará. Dissertação de Mestrado. Mestrado em Educação do Programa de Pós- graduação em Educação do Instituto de Ciências da Educação, Universidade Federal do Pará. 2011. SILVA, Edna Lúcia da, Metodologia da pesquisa e elaboração de dissertação /organização: Edna Lúcia da Silva, Estera Muszkat Menezes. – 3. ed. rev. atual. – Florianópolis: Laboratório de Ensino a Distância da UFSC, 2001.121p. SILVA, Iranilde de Oliveira. Juventude e Agroecologia: caminhos que se encontraram na Escola Agrotécnica Federal de Castanhal-Pará. Dissertação Mestrado – Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, curso de Pós Graduação em Educação Agrícola, 2014. THOMPSON, Paul. A entrevista In: A Voz do Passado: História Oral. Editora Paz e Terra, RJ. 1992.

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PROEJA INDÍGENA: UM DIREITO, UMA CONQUISTA Cinara dos Santos Costa69 Ramofly Bicalho dos Santos70 Resumo O tema apresentado nesse artigo é parte de uma pesquisa em andamento que aborda questões sobre a contextualização histórica da Educação de Jovens e Adultos (EJA) no país, e o Programa de Integração da Educação Profissional Técnica de Nível Médio ao Ensino Médio na Modalidade de Educação de Jovens e Adultos (Proeja). Outra questão abordada neste artigo é a Educação Escolar Indígena, vista como um direito, uma conquista. As reivindicações dos indígenas por uma educação diferenciada que contemple a diversidade cultural vêm de longo tempo, dos movimentos indígenas postos na Constituição federal de 1988 e demais legislações que trazem uma nova concepção da escola indígena, caracterizada como comunitária, intercultural, bilíngue/ multilíngue, específica e diferenciada. Trabalhar com uma educação diferenciada é nosso maior dos desafios. Como vincular o conhecimento tácito ao conhecimento formal? Como lidar com as diferentes metodologias de trabalho e pesquisa? Questionamentos que sofreram significativas mudanças, com o objetivo de atender às necessidades de infraestrutura e às especificidades locais, inclusive climáticas. Os indígenas da etnia Tikuna, segundo pesquisas, são maioria na região e considerados um povo indígena marcado por reivindicarem, através de organizações, seus direitos perante o governo, exigindo políticas públicas adequadas, inclusive por uma educação diferenciada. A metodologia inicialmente aplicada, Pedagogia da Alternância, foi um grande desafio à equipe gestora e quadro docente, devido à complexidade da proposta que exige um estudo mais aprofundado acerca da teoria e da prática no processo de ensino-aprendizagem. Relacionar a experiência com o trabalho, o conhecimento empírico vinculado ao conhecimento formal, é um processo contínuo de ação-reflexão-ação, onde o protagonista é o educando e o educador é o mediador desse aprendizado. Por fim, importante repensar a prática cotidiana, considerar que a aprendizagem precisa ser construída de forma significativa e, educadores e educandos, sujeitos capazes de intervir ativamente na transformação social do meio em que vivem. Pedagoga, graduada pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul - PUCRS, Esp. Psicopedagogia/Gestão e Docência em EAD. Coordenadora Geral de Ensino no Instituto Federal do Amazonas-IFAM. E-mail: [email protected]

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Doutor em Educação (UNICAMP). Professor do Curso de Licenciatura em Educação do Campo e do PPGEA – Programa de Pós-Graduação em Educação Agrícola, ambos da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. Endereço eletrônico: [email protected]

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RETTA – Revista de Educação Técnica e Tecnológica em Ciências Agrícolas Palavras chave: educação escolar indígena; proeja indígena; formação profissional

INDIGENOUS PROEJA: A RIGHT, A VICTORY Abstract The topic presented in this article is a part of a research in progress which deals with aspects about a historical contextualization of the Adult Education (EJA) in the country and the Integration Programme of Technical and Vocational Education for students in higher secondary in the form of Adult Education(Proeja).Other issue raised in this article is the Indigenous School Education, seen as a right, a victory. The indigenous people asks for a differentiated approach which consider the cultural diversity from the indigenous movements placed in the Federal Constitution (1988) and remaining national regulations which brings a new conception of indigenous school, characterized as a common, intercultural, multilingual, particular and differentiated education. To work with a particular kind of education is a greater challenge. How to connect the tacit knowledge to formal knowledge? How to deal with the different work and research methodologies? These questions changed significantly during the implantation of the Higher Secondary Agricultural Technical Course in the form of Indigenous Proeja which had the purpose to achieve the local particularities asked for the Tikuna’s community authorities. According to some researches the Tikunas, are the biggest group in this region and they are known to claim their rights along the government, asking for appropriate public policies including a specific kind of education. The first methodology used in the course was the Alternation Pedagogy which was a big challenge to the management team and to the teacher’s group because of the high complexity of the project that demands a deep study through the teaching-learning process theory and the practice. To relate the experience to the work and the empiric knowledge to the formal one, these relations are a continuous progress of action-reflection-action, where the protagonistsare the students and the teachers who have the role of mediators during the learning process. Finally, it is important to consider that the learn need to be built in a significant way where students and teachers can be seen as subjects able to interfere actively in the social transformation where they live71. Translationmadeby Flávia L. V. de Aguiar Furtado – CI-IFAM CampusTabatinga

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RETTA – Revista de Educação Técnica e Tecnológica em Ciências Agrícolas Keywords: Indigenous School Education; indigenous Proeja; Technical and Vocational Education

Introdução A Educação de Jovens e Adultos – EJA vem sendo alvo de debates nos Congressos, Seminários e Encontros Pedagógicos e nas diversas instituições de ensino como tema de alta relevância. Vários estudos mostram a relação entre o analfabetismo e a faixa etária, bem como a baixa qualidade de vida. Sabe-se que o analfabetismo no Brasil traz à tona a necessidade de políticas públicas consistentes aliadas a outras estratégias de desenvolvimento social, econômico e cultural. Este artigo tem como objetivo abordar questões sobre a contextualização histórica da EJA no país e o Programa de Integração da Educação Profissional Técnica de Nível Médio ao Ensino Médio na Modalidade de Educação de Jovens e Adultos (Proeja) e refletir sobre importância da formação e qualificação profissional de jovens e adultos, de modo a construir/reconstruir alternativas de melhorias pessoais e profissionais.

Outra questão a ser abordada neste artigo é a Educação Escolar Indígena, vista como direito e conquista. Os povos indígenas do Brasil lutam pela efetivação dos seus direitos educacionais, conquistados por meio das reivindicações do movimento indígena na Constituição Federal de 1988, na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), de 1996, e no Plano Nacional de Educação (PNE), 2001. Essas legislações trazem uma nova concepção da escola indígena, caracterizada como escola comunitária, intercultural, bilíngue / multilíngue, específica e diferenciada.

O Documento-Base do Proeja, elaborado em 2007 pela Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade – SECAD e Secretaria de Educação Profissional e Tecnológica – SETEC, tem como objetivo fornecer referenciais para a construção de uma proposta integradora entre a Educação Profissional e Tecnológica e a Educação Escolar Indígena. Neste sentido, diz o “Documento-Base (2007, p. 7)” que: RETTA, Vol. VIII, nº 11, jan.-jun./2015

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RETTA – Revista de Educação Técnica e Tecnológica em Ciências Agrícolas as concepções que regem as políticas de educação indígena e de educação profissional e tecnológica, permitem, hoje, a aproximação dessas duas modalidades em direção ao atendimento de uma demanda de longa data apresentada pelos povos indígenas e seus representantes a este Ministério. Da confluência dos princípios e direitos da educação indígena – traduzidos no respeito à sociodiversidade; na interculturalidade; no direito de uso de suas línguas maternas e de processos próprios de aprendizagem – com os princípios da formação integral, visando a atuação cidadã no mundo do trabalho, da sustentabilidade socioambiental e do respeito à diversidade dos sujeitos, da educação profissional e tecnológica surge a possibilidade de uma educação profissional indígena que possa contribuir para a reflexão e construção de alternativas de autogestão, de sustentação econômica, de gestão territorial, de saúde, de atendimento às necessidades cotidianas, entre outros.

A Educação Profissional e Tecnológica integrada a Educação Escolar Indígena é uma proposta à luz de reivindicações apresentadas ao Ministério da Educação pelos povos indígenas. Dessa forma, segundo o DOCUMENTO-BASE (2007, p.12) em questão, essa integração somente torna-se possível pela significativa mudança na concepção de educação profissional que visa “a formação integral aliando a formação profissional à formação de base propedêutica, numa perspectiva histórico-crítica, de modo a possibilitar a autonomia do sujeito”. Além dos aspectos históricos, estarão contemplados neste artigo outros dois aspectos: a legislação vigente da EJA/Proeja e a trajetória dessa modalidade de ensino voltada especificamente aos indígenas da etnia Tikuna do Instituto Federal de Ciência e Tecnologia do Amazonas – IFAM/ Campus Tabatinga.

Legislação Atual e Contextualização do Proeja A educação está prevista na Constituição Federal de 1988 e no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) como base fundamental para que todos tenham acesso à vida em sociedade de maneira justa e igualitária, respeitando as diversidades e garantindo acesso aos direitos sociais, econômicos, políticos, etc. 232

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Uma série de debates, reuniões, seminários e estudos promovidos pelos órgãos do Ministério da Educação – MEC, com a participação de várias entidades representativas dos sistemas de ensino, foram realizados a fim de subsidiar as atualizações das Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN), aprovadas em abril de 2010. O Presidente do Conselho Nacional de Educação (CNE), José Fernandes de Lima, diz (DCN 2013, p.5):

É nossa expectativa que essas diretrizes possam inspirar as instituições educacionais e os sistemas de educação na elaboração de suas políticas de gestão, bem como de seus projetos políticopedagógicos com vistas a garantir o acesso, a permanência e o sucesso dos alunos resultante de uma educação de qualidade social que contribua decisivamente para construção de uma sociedade mais justa e mais fraterna.

São estas diretrizes que orientam a organização, a articulação, o desenvolvimento e a avaliação das propostas pedagógicas dos sistemas de ensino. Asseguram ainda uma maior participação da sociedade no aperfeiçoamento do ensino, no intuito de oportunizar que o maior número de pessoas tenha acesso aos saberes e à educação.

Como pano de fundo às reflexões acerca da Educação de Jovens e Adultos – EJA, torna-se interessante situá-la no contexto histórico e legal da educação. O direito à educação dos jovens e adultos teve destaque na Constituição de 1988 onde foi atribuído direito do cidadão e dever do Estado, não só direito social, mas civil e político. Assim, a Lei de Diretrizes72 e Bases da Educação Nacional – LDB (Lei nº 9.394/96) no § 1º do art. 37 diz que “os sistemas de ensino assegurarão gratuitamente aos jovens e aos adultos, que não puderam efetuar os estudos na idade regular, oportunidades educacionais apropriadas”. Neste mesmo art. 37 §3º faz referência à articulação da Educação de Jovens e Adultos (EJA) com a Educação Profissional, regulamentada pela Lei nº 11.741, de 16/7/2008. No art. 38 diz que “os sistemas de ensino manterão cursos e exames supletivos, que compreenderão a base nacional comum do currículo, habilitando ao prosseguimento de estudos em caráter regular”. Conforme a resolução CNE/CEB nº 2/98, conjunto de definições doutrinárias sobre princípios, fundamentos e procedimentosna Educação Básica (…)

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A LDB foi promulgada em 20 de dezembro de 1996 e, desde então, vem regulamentando os mais diversos níveis de ensino: educação infantil, ensino fundamental, ensino médio e técnico, ensino superior, educação especial, educação indígena, educação do campo e ensino a distância. Nela estão contemplados os princípios e as finalidades da educação, os recursos financeiros, a formação e as diretrizes para a carreira dos profissionais da educação. Enfim, é uma lei que se renova de acordo com as demandas e com o contexto social. Cabe ressaltar que, garantir o direito do cidadão a uma educação escolar de qualidade é garantir um bem maior, ou seja, dar condições de desenvolvimento do ser humano como um indivíduo capaz de participar plenamente na vida social, política e cultural do meio em que vive.

A inclusão da EJA como alternativa de oferta na Educação Profissional Técnica de nível médio integrado ao Ensino Médio foi posta pelo Decreto nº 5.154/2004. Contudo, no Decreto nº 5.840/2006 dispõe em seu art. 1º: Fica instituído, no âmbito federal, o Programa Nacional de Integração da Educação Profissional à Educação Básica na modalidade de Educação de Jovens e Adultos – PROEJA, conforme as diretrizes estabelecidas neste Decreto. A oferta do Proeja nos Institutos Federais de Educação, instituído pelo Decreto supracitado, buscou ampliar a qualificação profissional e, consequentemente, as possibilidades de progresso local, contribuindo na construção de currículos voltados às especificidades locais, pois o sentimento de pertencimento territorial corrobora para aprendizagens mais significativas. A modalidade EJA representa uma nova concepção de ensino, um novo modelo pedagógico debatido e consolidado nos Projetos Políticos Pedagógicos (PPP) das instituições de ensino. O PPP é um documento legal previsto na LDB, que revela as identidades, concepções, anseios e expectativas das Instituições de ensino. Define o compromisso da instituição em relação ao processo de ensino-aprendizagem, o papel socioeducativo, político, cultural e ambiental, nos quais todos são protagonistas e responsáveis por uma educação de qualidade. Esse documento deve ser 234

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construído nas instituições de ensino, com a participação coletiva, representada pela comunidade escolar: gestão, docentes, discentes, servidores da instituição, pais, enfim, todos os segmentos.

A construção do PPP deve contemplar a trajetória histórica da instituição, o currículo a ser estudado pelos discentes à luz das especificidades locais, as concepções pedagógicas, a matriz curricular, além de subsidiar o Regimento Escolar e a Proposta Pedagógica, documentos balizadores da instituição de ensino. A atualização das Diretrizes Curriculares Nacionais passou também pelo reexame do parecer do Conselho Nacional de Educação/Câmara de Educação Básica - CNE/CEB 23/2008, que institui Diretrizes Curriculares para a Educação de Jovens e Adultos – EJA, no que se refere à idade mínima e duração dos cursos, assim como faz referência a esta modalidade por intermédio da educação à distância. As significativas modificações na LDB sob o decreto nº 5.154/2004 e sob a Lei nº 11.741/2008, redimensionaram, institucionalizaram e integraram as ações da Educação Profissional Técnica de Nível Médio, da Educação de Jovens e Adultos e da Educação Profissional e Tecnológica.

No intuito de expandir e interiorizar a oferta de Educação Profissional e Tecnológica (EPT) da população brasileira foi sancionado, sob a Lei nº 12.513/2011, o Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego (PRONATEC), constituído a partir de subprogramas, projetos e ações de assistência técnica e financeira.

A Portaria nº 1.569/2011, que fixa as diretrizes para a execução da Bolsa-Formação73, é outra ação do PRONATEC. Vai além das redes públicas e inclui as unidades de serviços nacionais de aprendizagem, o chamado “sistema S”, como o Serviço Nacional do Comércio (SENAC) e o Serviço Nacional de Indústria (SENAI). Os beneficiários da Bolsa-Formação (BRASIL/MEC/PRONATEC, 2012) “terão direito a cursos gratuitos e de qualidade, a alimentação, o transporte e a todos os materiais escolares necessários que possibilitarão a posterior inserção profissional”

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A ligação entre a Educação Profissional e o Ensino Médio, etapa final da educação básica, está explicitada no art.40 da LDB quando diz “que a educação profissional é articulada com o ensino regular”, onde se entende que, sejam ofertados aos adolescentes, na chamada idade própria, assim como, para jovens e adultos na modalidade Educação de Jovens e Adultos (EJA). Na década de 90 foi extinta a Fundação Educar, que foi o último programa de educação básica de jovens e adultos coordenado pelo Ministério da Educação. Enquanto isso, outros ministérios e organismos federais ingressaram nesse campo. Foram três os programas federais implementados a partir de 1995: o Plano Nacional de Formação do Trabalhador (Planfor), coordenado pela Secretaria de Formação e Desenvolvimento Profissional do Ministério do Trabalho (Sefor/MT), iniciado em 1996; o Programa Alfabetização Solidária (PAS), coordenado pelo Conselho da Comunidade Solidária, vinculado à Presidência da República, implementado a partir de 1997; e o Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (PRONERA), coordenado pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), vinculado ao Ministério Extraordinário da Política Fundiária (MEPF), iniciando suas operações a partir de 1998.

As políticas públicas voltadas para EJA e a Educação Profissional vêm se expandindo juntamente com o desenvolvimento de ações voltadas para a vida em sociedade, cidadania, respeito à diversidade cultural e sustentabilidade. A profissionalização dos trabalhadores dialoga com as possibilidades de aproveitamento de estudos, conhecimentos, saberes e competências profissionais contínuos e articulados que, segundo as Diretrizes (DCN 2013, p.210): os habilitem efetivamente para analisar, questionar e entender os fatos do dia a dia com mais propriedade, dotando-os, também, de capacidade investigativa diante da vida, de forma mais criativa e crítica, tornando-os mais aptos para identificar necessidades e oportunidades de melhorias para si, suas famílias e a sociedade na qual vivem e atuam como cidadãos.

A proposta da educação profissional articulada a EJA amplia debates intercultural, interdisciplinar e interinstitucional para formação do 236

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“aluno-cidadão” capaz de reivindicar seus direitos, lutar por melhorias na sua comunidade e na sociedade em que vive, ou seja, ser um sujeito autônomo e crítico.

Educação Profissional e Proeja Indígena: um direito Sabe-se que o direito à educação diferenciada está garantido pela Constituição Federal de 1988. No entanto, muitos impasses e contradições entre os direitos indígenas garantidos e as dificuldades de implementação de programas de educação diferenciada no país já foram amplamente discutidos. Segundo o Documento-Base – Proeja Indígena (2007, p.19), é objetivo do Programa de Educação Profissional Integrada à Educação Escolar Indígena “a formação profissional em consonância com os contextos, significados e necessidades indígenas”. Trata-se da oferta de uma formação integral que prepare para o exercício profissional indígena na comunidade indígena.

No entanto, o processo histórico da relação do governo com os povos indígenas foi marcado pelo caráter autoritário e repressivo, o que gerou reações pouco pacificadoras, pois as reivindicações foram contrárias a “política de emancipação dos povos indígenas”, anunciadas pelo governo brasileiro na década de 70. Trata-se, conforme o documento-base do Proeja (2007, p.25), de graus de integração dos indígenas, escalonados entre “isolados”, com “contato intermitente”, com “contato permanente” e “integrados”. Neste período, houve também muitas lutas indígenas nas demarcações de suas terras, assim como na melhoria das condições de vida na comunidade. A partir de então, assembleias e conferências indígenas foram constantes em diferentes locais e regiões do país, intensificadas na década de 1980.

Na região norte do país não foi diferente. A mesorregião do Alto Solimões, localizada na Amazônia, compõe-se de nove Municípios (figura1). A cidade de Tabatinga faz parte da Tríplice Fronteira (Brasil-Peru-Colômbia). RETTA, Vol. VIII, nº 11, jan.-jun./2015

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A importância geopolítica se dá pela sua biodiversidade, sociodiversidade e suas reservas minerais. Figura 1- Mapa da Mesorregião Alto Solimões

Fonte: Adaptado de www.mesoaltosolimoes.com.br

A localização geográfica dessa Tríplice Fronteira, na qual Tabatinga representa o Brasil, está em destaque, pois além de apresentar um percentual de população elevada em relação aos demais municípios da mesorregião, traz uma importante contribuição no setor comercial, uma vez que funciona como polo socioeconômico. A privilegiada localização, como se observa no mapa acima (figura 1), serve de escoamento de produtos às margens do rio Solimões.

Dessa forma, a cidade de Tabatinga vem se desenvolvendo de forma acelerada, atraindo a migração regional, pois se transformou em um importante centro administrativo, econômico, comercial e financeiro. É onde se concentram as principais instituições e órgãos públicos, assim como alguns serviços fundamentais para o desenvolvimento da mesorregião. 238

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Destaca-se ainda a pluralidade etnocultural dos povos indígenas que habitam nesta área. Neste contexto, não deixam de ser um patrimônio nacional, além da peculiar convivência com peruanos e colombianos, pois a fronteira com a Colômbia se faz pela cidade de Letícia e são separadas somente por uma avenida onde se posiciona a guarda nacional dos dois países. A fronteira com o Peru é feita pela cidade de Santa Rosa, separada pelo rio Solimões.

No Plano Territorial de Desenvolvimento Rural Sustentável (PTDRS), considerado um importante instrumento construído de forma participativa envolvendo gestores, lideranças comunitárias, agricultores, entre outros, estão contidas as diretrizes estratégicas, a fim de nortear os rumos do desenvolvimento sustentável do território para o Desenvolvimento Agro Sustentável do Alto Solimões – Manaus (AGROSOL, 2011, p.1):

É uma região de grande importância estratégica para o Brasil, em face de sua inserção na faixa de fronteira internacional com o Peru e a Colômbia. Essa imensa região é, também, um dos maiores patrimônios de florestas e rios do planeta Terra, que se tem constituído tanto em fator de esperança para grande parcela da humanidade como de preocupação,pela crescente ameaça da exploração predatória desses recursos naturais. Bem no centro geográfico desse quase continente que está situado o estado do Amazonas.

Esta é uma região que representa estrategicamente o Brasil. Nesse sentido, diversas ações estão voltadas para a pesquisa nas áreas da diversidade biológica e dos recursos naturais, assim como ações de incentivo às áreas dos transportes, comunicações, turismo, educação e cultura. No entanto, a exploração constante dos recursos naturais, como o desmatamento predatório, ou seja, a extração ilegal da madeira e a pecuária predatória se mostram como atividades fundamentais que, como uma reação em cadeia, induzem uma série de outros processos degenerativos, como a diminuição da qualidade de vida e o aumento da violência.

Neste contexto geográfico e social se deu a implantação e a consolidação do Instituto Federal de Educação do Amazonas – Campus Tabatinga. A oferta de cursos profissionalizantes voltados para a biodiversidade, RETTA, Vol. VIII, nº 11, jan.-jun./2015

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a sociodiversidade e a pluralidade etnocultural, seriam de alta relevância para o crescimento local e regional. No intuito de atender as especificidades locais e regionais, diversos cursos foram ofertados. O Proeja foi instituído com matrícula exclusivamente para os indígenas Tikuna. Dessa forma, criou-se no Campus a “Comissão Diversidade Educacional Etnocultural do IFAM – Campus Tabatinga”, denominada pela portaria nº 11 GAB/IFAM/TBT. A Comissão foi composta por profissionais de diversas áreas do conhecimento, com a missão de conduzirem os trabalhos de consulta junto às lideranças indígenas e comunidade docente indígena Tikuna. Os pontos principais de debate foram: a oferta do curso, os critérios de ingresso, a metodologia e perfil docente orientados a partir do Documento – Base do PROEJA Indígena e das necessidades da Comunidade Indígena de Umariaçu I e II.

Iniciaram-se as audiências públicas, onde participaram gestores, equipe técnica, a Comissão Etnocultural, lideranças indígenas e a população em geral da Comunidade Indígena de Umariaçu I e II. A definição dos cursos a serem ofertados foi pautada no interesse da população e no perfil dos Institutos Federais (IF), com base na legislação vigente. A Comunidade de Umariaçu foi fundada em 1943, localizada na zona urbana do município de Tabatinga, no Amazonas. Foi dividida em Umariaçu I e II por questões de ordem política e religiosa, porém seus habitantes convivem de forma harmoniosa e enfrentam as mesmas problemáticas, tais como: educação, sustentabilidade, cultura, etc. A proposta do Curso Técnico em Agropecuária, com ênfase em Agroecologia na modalidade EJA/PROEJA Indígena, foi demanda apresentada pelos indígenas (tabela 1), segundo os debates, por características econômicas de sustentabilidade social e ambiental.

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Tabela 1 - Demanda por Cursos Técnicos Comunidades Indígenas de Umariaçu I e II No

ÁREA

%

1

Agropecuária

26,0

3

Recursos Pesqueiros

17,0

5

Gestão de Negócios

2 4 6 7

Artes

Recursos Florestais Comércio

Zootecnia

Fonte: I e II SLEPDEE (IFAM-TBT) /2010

26,0 13,0 7,0 7,0 4,0

Conforme o Plano de Curso em Agropecuária do IFAM- Campus Tabatinga (2010, p.6) “a Pedagogia da Alternância é uma alternativa para a educação indígena, já que o ensino tradicional não contempla as especificidades e as necessidades da população indígena que vive nas aldeias”. Contudo, as limitações ainda eram muitas. Uma das dificuldades foi o reduzido quadro técnico e docente, sem experiências em educação escolar indígena. O trabalho com a educação diferenciada seria o maior dos desafios. Como vincular o conhecimento tácito ao conhecimento formal? A metodologia a ser utilizada seria a mais adequada? Enfim, muitos questionamentos que, no decorrer do curso, sofreram significativas mudanças, com o objetivo de atender às necessidades de infraestrutura e às especificidades locais, inclusive climáticas.

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Sabe-se que a Pedagogia da Alternância74 surgiu em 1937, na França, por um grupo de famílias do meio rural. Abordá-la no processo de ensino-aprendizagem é fazer referência a Pedagogia Libertadora de Paulo freire. “Ação e reflexão se dão simultaneamente” (FREIRE, 1987, p.125). Nesse sentido, o trabalho com alternância, pelo viés formativo, exige dos sujeitos envolvidos a relação com o trabalho, a produção e a vida fora dos “muros” da escola. Segundo PINHO (2007, p.5): A Pedagogia da Alternância é criada com o objetivo de que em tempos e espaços alternados o jovem tenha condições e acesso à escolarização e ao conhecimento e valores familiares e comunitários. Ao alternar períodos na escola e períodos em seu meio de vivência, o jovem pode construir seus conhecimentos no diálogo entre o saber cotidiano, fomentado na prática e no trabalho que é passado de gerações a gerações e o saber escolarizado que possibilita a apropriação do conhecimento historicamente construído e o acesso às técnicas cientificamente comprovadas.

Nesse sentido, o jovem é o protagonista de seu aprendizado. A estreita relação entre ação-reflexão-ação oferece o suporte necessário para aprendizagens significativas, utilizando o conhecimento empírico e formal.

Educação Escolar Indígena: uma conquista No campo da educação, percebe-se que, nos currículos escolares construídos nas instituições de ensino, primeiramente se obedece a uma legislação, um documento norteador que equaliza o processo de ensino-aprendizagem. No entanto, sabe-se que as especificidades locais e regionais também estão previstas na legislação como critério a ser contemplado, a fim de garantir que as diversidades e culturas locais não sejam

Alternância de tempo e de local de formação, ou seja, de períodos em situação sócio profissional e em situação escolar; [...] uma outra maneira de aprender, de se formar, associando teoria e prática, ação e reflexão, o empreender e o aprender dentro de um mesmo processo. A Alternância significa uma maneira de aprender pela vida, partindo da própria vida cotidiana, dos momentos de experiências colocando assim a experiência antes do conceito. Gimonet (1999, p. 44-45).

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esquecidas. “Selecionar é uma operação de poder. Privilegiar um tipo de conhecimento [em detrimento de outro] é uma operação de poder” (SILVA, 1999, p. 16). As reivindicações feitas pelos povos indígenas foram pautadas em uma educação escolar que contemplasse os interesses, as especificidades e as dificuldades enfrentadas na própria aldeia. Por não se constituírem como uma classe dominante na sociedade brasileira, a representação da cultura indígena é vista como diferente, exótica, primitiva e atrasada. Contrapõe-se à “cultura dominante”, civilizada, branca. A cultura dita “normal”.

O direito à diferença, previsto na Constituição de 1988, reforça e garante legalmente aos povos indígenas o respeito à sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, além do direito a uma educação específica e diferenciada, reconhecendo o uso de línguas maternas e processos próprios de aprendizagem (Art. 231 e Art. 210, § 2º, BRASIL, 1988). No Artigo 215, incube o Estado de proteger as manifestações das culturas populares, indígenas, afro-brasileiras e demais grupos étnicos. Somente em 1991, as escolas indígenas, até então vinculadas a Fundação Nacional do Índio – FUNAI75, passaram para o Ministério da Educação, desencadeando um forte movimento de afirmação da educação escolar indígena. Obteve-se com isso um aparato legal, garantindo uma educação diferenciada: a LDB, em seu art. 78, diz que é dever dos sistemas de Ensino da União a oferta da educação escolar bilíngue e intercultural por intermédio de programas de ensino e pesquisa. Assegura também a recuperação de suas memórias históricas, reafirmação de suas identidades étnicas, valorização de suas línguas e ciências. Contempla ainda no art. 79 a articulação dos sistemas de ensino para elaborar programas de pesquisa com a participação das comunidades indígenas.

A Fundação Nacional do Índio (FUNAI), criada em 1967 para substituir o SPI, em linhas gerais manteve a mesma política indigenista que visava assimilar as populações indígenas à sociedade nacional (CUNHA, 2009; LIMA, 1995; BERGAMASCHI, 2005a).

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O Referencial Curricular Nacional para as Escolas Indígenas, a Resolução nº. 003 do Conselho Nacional de Educação76 e o Plano Nacional de Educação77 asseguram o tratamento diferenciado da Educação Escolar Indígena. Ainda na lei nº 11.645, de 10 de março de 2008, que garante a inclusão no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena. Com base neste contexto de educação escolar indígena, faz-se necessário conhecer os aspectos dessa educação, numa reflexão que extrapole a escola. Ou seja, conhecer os espaços de educação cotidiana e os processos educativos utilizados pelos povos indígenas no ensinamento de atividades, complexas e corriqueiras. Segundo (MAHER, 2006):

A escola é todo o espaço físico da comunidade [...]. Na Educação Indígena, não existe a figura do “professor”. São vários os professores da criança. A mãe ensina; ela é professora. O pai é professor, o velho é professor, o tio é professor, o irmão mais velho é professor... e todo mundo é aluno. Não há, como em nossa sociedade um único “detentor do saber” autorizado por uma instituição para educar as crianças e os jovens (Op. cit., p. 18).

Desse modo, todos da comunidade utilizam os diversos saberes para educar, ainda que informais. A educação, nesse sentido, ocorre de modo espontâneo. Ensina e aprende, sem necessitar de espaço (escola) e sujeito específico (professor).

Conclusão

Percebe-se que a educação indígena é um processo de ensino aprendizagem que se dá ao longo da vida, com experiências passando de geração a geração. É uma ação coletiva onde cada sujeito é responsável por aquilo que ensina e contribui para a preservação da cultura. A educação escolar Instrumentos que instituíram as diretrizes curriculares nacionais para a educação escolar indígena (BRASIL, 1999).

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Este plano dedicou um capítulo específico à educação escolar indígena, prevendo a criação da categoria oficial de “escola indígena” e fixando determinadas ações. (BRASIL, 2001).

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indígena foi marcada por reivindicações no sentido de manter a cultura a partir de aprendizagens que envolvam os conhecimentos anteriores. Ou seja, “pensar e buscar um modelo de educação que respeite seus saberes tradicionais, a diversidade étnica e cultural existente entre eles”. (SANTOS E LOPES, 2009, P. 31)

Com base nessa concepção, a legislação tem se consolidado como norteadora nas instituições de ensino, intensificando os debates em torno das reivindicações dos povos indígenas. No entanto, se faz necessário repensar muitas ações para que nossa prática na educação considere as diversidades e saberes trazidos pelos educandos. O processo de ensino-aprendizagem pode ser construído na junção de conhecimentos prévios, onde a ação-reflexão-ação esteja presente no cotidiano escolar e a aprendizagem tenha significados para educadores e educandos. Que tais sujeitos se vejam inseridos num processo de transformação e intervenção na realidade, preservando identidades, histórias, memórias, gestos, símbolos e sonhos.

Referências Câmara de Educação Básica – CEB. Parecer n. 14/1999a. Disponível em: http://portal.mec.gov.br/cne/arquivos/pdf/1999/pceb014_99.pdf . Câmara de Educação Básica – CEB. Resolução n. 3/1999b. Disponível em: http://portal.mec.gov.br/cne/arquivos/pdf/rceb03_99.pdf . CANTO, A. C. (org.). PTDRS - Plano Territorial de Desenvolvimento Rural Sustentável da Mesorregião Alto Solimões. Amazonas - Manaus: Associação para o Desenvolvimento Agro Sustentável do Alto Solimões – AGROSOL, 2011. [172-] 1

Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituiçao.htm.

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Diretrizes Curriculares Nacionais Gerais da Educação Básica, Ministério da Educação. Secretaria de Educação Básica. Diretoria de Currículos e Educação Integral. Decreto nº 5.840/2006. Inst. o Programa Nacional de Integração da Educação Profissional à Educação Básica na modalidade de Educação de Jovens e Adultos – PROEJA. Documento Base - Proeja. Currículos e Programas em Educação. Profissional, no Ensino Médio e na EJA. Freire, Paulo. Pedagogia do Oprimido. 17. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.

GIMONET, Jean-Claude. Nascimento e desenvolvimento de um movimento educativo: as casas familiares rurais de educação e orientação. In: Pedagogia da alternância: alternância e desenvolvimento. Brasília: União Nacional das Escolas Famílias Agrícolas do Brasil, 1999. Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Disponível em: http://www. planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L9394.htm.

Lei nº11.741, de 16/7/2008. Inst. e integra ações da Educação Profissional Técnica do Ensino Médio a Educação de Jovens e Adultos e a Educação Profissional Técnica e Tecnológica. Lei nº 12.513/2011. Inst. o Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego PRONATEC.

MAHER, Terezinha Machado. Formação de professores indígenas: uma discussão introdutória. In: GRUPIONI, Luiz Donisete Benzi (Org.). Formação de professores indígenas: repensando trajetórias. Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade, 2006. cap. 1, p. 11-37. Plano do Curso Técnico de Ensino Médio em Agropecuária na Forma Integrada, Modalidade EJA: PROEJA- Indígena. Instituto Federal do Amazonas, 2010. 246

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Neto, Antônio Simplicio Almeida. A História Indígena a ser ensinada nos Currículos Oficiais Brasileiros. Pinho, Marcélia Amorim Cardoso, Pedagogia da Alternância e Formação sobre Educação do Campo em Nova Iguaçu: Relato de uma experiência, 2007.

Santos, Jânio Ribeiro dos. Lopes, Edinéia Tavares. A Educação Indígena como Ponto de Partida para Educação Escolar Indígena. Ano 3, Volume 6 | jul-dez de 2009 Silva, T. T. da. A produção social da identidade e da diferença. In: SILVA, T. T. da (org.). Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais. Petrópolis, RJ: Vozes, 2012. p. 73-102.

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Diretrizes para Autores A revista aceita colaborações inéditas em português, espanhol ou inglês, dos seguintes tipos: 1. Ensaios: Produção textual de amplo alcance teórico e analítico, não conclusivo e não exaustivo.

2. Artigos: Apresentação de resultado de pesquisa científica de natureza empírica ou teórica.

3. Comunicações Científicas: Descrição sucinta de trajetórias investigativas em andamento ou concluídas há menos de dois anos, onde devem constar os seguintes itens: a) introdução; b) problema da pesquisa; c) objetivos; d) Procedimentos Metodológicos; e) resultados e discussão; f) conclusões; g) referências. 4. Resenhas: Crítica de livros nacionais e internacionais publicados ou traduzidos nos últimos dois anos.

Programação editorial

A RETTA publica dois números anuais, com intervalos semestrais, e cada número poderá conter as seguintes seções: dossiê temático; artigos e ensaios diversos; comunicações científicas; resenhas; documentos sobre ensino técnico e tecnológico. A RETTA trabalha com fluxo contínuo RETTA, Vol. VIII, nº 11, jan.-jun./2015

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de recepção de colaborações. Os colaboradores poderão enviar artigos e ensaios relacionados ou não ao Dossiê Temático, pois haverá em cada número da RETTA espaço para publicação dessas colaborações na seção de Artigos e Ensaios.

Apresentação do manuscrito

Colaborações devem ser submetidas por meio eletrônico acessandose o sítio da RETTA na internet e procedendo-se o cadastro como “Autor”. A partir deste cadastro, é possível submeter todos os tipos de colaborações e acompanhar o processo avaliativo, bem como estabelecer comunicação direta com a Comissão Editorial. As colaborações devem se enquadrar em alguma das categorias abaixo, de acordo com as respectivas exigências descritas: • Artigos Científicos ou Ensaios devem conter: 1) título conciso e representativo do conteúdo do texto de até 200 caracteres (com espaço); 2) nome(s) do(s) autor(es) com nota de rodapé indicando titulação, vínculo institucional e endereço eletrônico; 3) Se o original for em português: resumo em vernáculo de parágrafo único, com no mínimo 750 e no máximo 1500 caracteres com espaço, acompanhado de no mínimo 03 e no máximo 06 palavras-chave; 4) tradução do título, do resumo e das palavras-chave para o inglês ou espanhol, com mesma formatação do resumo em português. Tamanho do texto: mínimo de 20.000 e máximo de 50.000 caracteres (com espaço), incluindo título, resumo, palavras-chave, referências bibliográficas, figuras, notas e anexos. Se o texto original for em espanhol ou inglês, deve conter resumo na língua original, seguindo as orientações especificadas no item 3) e resumo em português, seguindo as orientações especificadas no item 4). • Comunicações Científicas devem conter: 1) título conciso e representativo do conteúdo do texto de até 200 caracteres (com espaço); 2) nome(s) do(s) autor(es), com nota de rodapé indicando titulação, vínculo institucional, natureza da investigação (Monografia, Dissertação, Tese, projeto de pesquisa etc.) e endereço eletrônico; 3) resumo em vernáculo de parágrafo único, 250

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com no mínimo 750 e no máximo 1500 caracteres com espaço, acompanhado de no mínimo 03 e no máximo 06 palavras-chave; 4) tradução do título, do resumo e das palavras-chave para o inglês. Tamanho: mínimo de 6.000 e máximo de 12.000 caracteres (com espaço), incluindo título, resumo, palavras-chave, referências bibliográficas, figuras, notas e anexos. Se o texto original estiver em espanhol ou inglês, deve conter resumo na língua original, seguindo as orientações especificadas no item 3) e resumo em português, seguindo as orientações especificadas no item 4).

• Resenhas devem conter: 1) Referência Bibliográfica da obra resenhada, conforme norma da ABNT (NBR 6013 de 2002); 2) nome do autor da resenha, com nota de rodapé indicando titulação, vínculo institucional e endereço eletrônico. Tamanho: mínimo de 5.000 e máximo de 12.000 caracteres (com espaço), incluindo referências bibliográficas e notas.

Formatação do texto

Todos os manuscritos enviados para a RETTA devem vir em arquivos de texto em Word for Windows (docx), OpenOffice ou RTF (desde que não ultrapassem 2MB) de acordo com a seguinte formatação:

• CONFIGURAÇÃO DE PÁGINAS: Tamanho do Papel: A4; Tamanho das margens: superiores e esquerda de 3,0 cm e margens direita e inferiores de 2,5 cm. A NUMERAÇÃO DE PÁGINA deve vir no fim da página, sem formatação nem ênfase, alinhada à direita. • O TÍTULO em fonte Cambria, tamanho 14 pts, em negrito e caixa alta; parágrafo com espaço entre linhas de 1,0 pts, com alinhamento centralizado. Se tiver subtítulo, este deve vir imediatamente após o título, separado por dois pontos, seguindo a mesma formatação do título, porém em caixa baixa.

• O NOME DO AUTOR em fonte Cambria, tamanho 12 pts, em negrito e itálico, com iniciais maiúsculas; parágrafo com espaço entre linhas de 1,0 pts, com alinhamento à direita. É oportuno o registro RETTA, Vol. VIII, nº 11, jan.-jun./2015

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de nota de rodapé com indicações biográficas do(s) autor(as): com nota de rodapé indicando titulação, vínculo institucional e endereço eletrônico.

• O RESUMO em fonte Garamond 10 pts, espaço entre linhas 1,15 pts e recuos de 2,0 cm à esquerda e à direita, com alinhamento justificado, seguido de palavras-chave separadas por ponto e vírgula.

• O ABSTRACT ou RESUMEN segue exatamente a mesma formatação do Resumo, mas deve conter o título em inglês ou espanhol em negrito e caixa alta.

• O CORPO DE PARÁGRAFO em fonte Cambria, tamanho 12 pts, espaço 1,5, com recuos de 1,25cm na primeira linha do parágrafo, com alinhamento justificado.

• AS CITAÇÕES devem seguir a norma da ABNT (NBR 10520 de 2002). Aquelas citações diretas que possuírem até 03 linhas devem constar do corpo do texto, entre aspas duplas, com sobrenome do autor em caixa-alta, ano e página entre parênteses. Já aquelas com mais de três linhas devem vir em parágrafo destacado do corpo do texto, em fonte Garamond 11, espaço 1,15 e recuos de 4cm à esquerda e 0,5cm à direita, com alinhamento justificado. Nesse caso, não é necessário colocar aspas duplas nem recuo na primeira linha do parágrafo. • AS NOTAS devem ter caráter meramente explicativo, numeradas e posicionadas no rodapé da página, em fonte Garamond 10, espaço simples, com alinhamento justificado.

Todas as citações, diretas ou indiretas, devem conter referências à obra citada. Quando o autor estiver incluído no texto devem vir “Gramsci (1991, p. 23)”; quando o autor não estiver incluído no texto será (MÉSZÁROS, 2001, p. 535); quando forem mais de três autores, deve constar somente o sobrenome do primeiro, seguido da expressão “et alli”, por exemplo: (ANTUNES et alli, 2008, p. 67). Citações de citações devem ser evitadas (uso de “apud”), salvo quando for difícil o acesso à obra citada por outros autores. Nesses casos muito específicos, usar a seguinte forma: (ANTUNES, 2000, apud SOUZA, 2005, p. 153). 252

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Para elaboração de referências, deve-se seguir a norma da ABNT (NBR 6023 de 2002). Todas as referências citadas, inclusive nas notas de rodapé, nos quadros e nas figuras, deverão compor a lista de referências ao fim do texto, em ordem alfabética, sem numeração de entrada e sem espaço entre as mesmas. Diferentes títulos de um mesmo autor publicados no mesmo ano deverão ser diferenciados, adicionando-se uma letra (a, b, c...) em minúscula após a data, tanto nas citações no corpo do texto quanto na lista de referências. Tabelas, quadros, diagramas, fotografias, gráficos e ilustrações devem ser apresentados no corpo do texto. O número de figuras, junto com o de anexos, não deve ultrapassar o máximo de seis por artigo. Todas as figuras, exceto fotografias, devem ser numeradas e ter título. Todas as figuras deverão estar em escala cinza ou em preto e branco. Solicita-se a não utilização de sublinhados e negritos. As aspas simples podem ser usadas para chamar a atenção para um item particular do texto. Palavras em língua estrangeira devem vir em itálico, assim como títulos de obras mencionadas.

Avaliação

As contribuições encaminhadas à revista são, primeiramente, avaliadas pela Comissão Editorial da RETTA, que julga a adequação da contribuição à linha editorial da Revista e, posteriormente, é encaminhada a dois membros do Conselho Editorial. Nomes dos autores e avaliadores de cada original são de conhecimento exclusivo da Comissão Editorial. Ao ser encaminhado para parecer por parte de membro do Conselho Editorial, os originais terão a indicação de autoria omitida. As Colaborações apresentadas à RETTA não devem ter sido publicadas e não devem ser submetidas simultaneamente a outras revistas. Originais submetidos à RETTA não devem ser retirados depois de iniciado o processo de avaliação sob nenhuma hipótese.

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Direitos autorais Exceto nos casos em que estiver indicado o contrário, o ato de submissão de colaboração à RETTA configura a concessão dos direitos autorais do documento e, quando publicados, não podem ser reproduzidos sem autorização expressa dos editores, em forma idêntica, resumida ou modificada, em português ou qualquer outro idioma. Os colaboradores manterão o direito de reutilizar o material publicado em futuras coletâneas ou obra de sua autoria sem o pagamento de taxas à revista, desde que seja formalmente comunicado. A permissão para reedição ou tradução por terceiros do material publicado não será feita sem o consentimento do autor. A revista não se obriga a devolver os originais das colaborações enviadas. Os textos assinados são de responsabilidade dos autores.

Benefício dos autores

Após a publicação, os autores recebem três exemplares do número da revista no qual o texto foi publicado.

Endereço para envio

Os manuscritos devem ser submetidos para avaliação por meio do sítio da RETTA: http://www.ufrrj.br/SEER/index.php/retta

Dúvidas podem ser sanadas por correio eletrônico: [email protected].

SECRETARIA DO PPGEA: Programa de Pós-Graduação em Educação Agrícola da UFRRJ RETTA – Revista de Educação Técnica e Tecnológica em Ciências Agrícolas BR 465, Km 07 – Instituto de Agronomia CEP 23.890-000 – Seropédica – RJ 254

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