E, no entanto, o sujeito: estrutura e estruturalismo em Lacan

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E, no entanto, o sujeito... Estruturalismo e Estrutura em Lacan

Gilson Iannini1

É por isso que a Psicanálise como ciência será estruturalista até o ponto de reconhecer na ciência a recusa do sujeito (Lacan)

O estruturalismo não é uma bandeira Quando do lançamento dos Écrits, e do surpreendente sucesso editorial que teve um volume com cerca de 900 páginas cuja leitura é indiscutivelmente difícil, Jacques Lacan (1901-1981) daria algumas entrevistas importantes. A 26 de novembro de 1966, Pierre Daix lhe pergunta o que ele pensa do estruturalismo e faz uma referência a uma “conspiração estrutural conduzida por Lévi-Strauss, Foucault...”. Sem deixar o entrevistador completar a pergunta, Lacan emenda de pronto “...Althusser, Barthes e eu” 2. No ano farol do estruturalismo, no auge de seu sucesso e início simultâneo de seu refluxo, não faltam anedotas e conversas de bastidor acerca dos ‘estruturalistas’. Mas é curioso notar algumas datas que passam, no mais das vezes, desapercebidas. Em 1966, a obra capital que transpõe o modelo linguístico para as ciência humanas

Professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Ouro Preto. Psicanalista. Doutor em Filosofia (USP); Mestre em Psicanálise (Universidade Paris 8). Autor de “Estilo e verdade em Jacques Lacan” (Autêntica). 1

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LACAN, J., Entrevista a Pierre Daix, p. 51.

e que, neste gesto, funda o estruturalismo, as Estruturas elementares do Parentesco, de Claude Lévi-Strauss está quase atingindo a maioridade, está quase completando 18 anos; o Discurso de Roma, texto fundamental que marca, por sua vez, a entrada de Lacan neste cenário, estaria completando treze anos. Pelo menos para Lévi-Strauss e Lacan, e talvez também para Roland Barthes (1915-1980), as bases de seus pensamentos já foram lançadas há mais de uma década e já estão, desde há muito, consolidadas. Lévi-Strauss publica as Estruturas elementares do parentesco em 1949; o Discurso de Roma de Lacan e O grau zero da escritura de Barthes são de 1953. Mais de uma década separam estes momentos fundantes do que poderíamos chamar de boom estruturalista. No caso de Lacan, suas preocupações já são outras: sem abandonar as conquistas oriundas da estrutura, aprofunda seus estudos de lógica e de matemática. Aliás, a índole que o impulsiona em direção ao matema e à topologia é, fundamentalmente, a mesma que o levara alguns anos antes à vertente da estrutura: aproximar, pela vertente da linguagem, ou melhor, do significante e da letra, a Psicanálise das matemáticas e, conseqüentemente, da Ciência, ou do que, na esteira de Alexandre Koyré (1882-1964), esta geração entendia por ciência. Deriva daí a preocupação de Lacan em marcar seu território. Pouco antes do lançamento de seus Escritos, entre os dias 18-21 de outubro de 1966, em Baltimore (EUA), onde teve lugar um simpósio internacional intitulado As linguagens da crítica e as ciências do homem, Lacan afirma “primeiramente, permitam-se fornecer alguns conselhos sobre estruturas, que é o tema deste nosso encontro. É possível que venham a ocorrer erros, confusão, usos cada vez mais aproximativos desta noção, e penso que logo vai haver um certo modismo em torno desta palavra. No meu caso é

diferente, pois emprego esse termo há muito tempo – desde o início de meu ensino”3. Um modismo, com efeito, é do que se trataria dentre em breve. No final dos anos sessenta, o sucesso dos estruturalistas é arrebatador, e Paris, capital mundial da moda, não deixaria de colocar nas passarelas mais alguns modelos, do prêt-à-porter ao prêt-à-penser, capazes de sufocar as mais variadas tendências até então dominantes. Não é, portanto, sem razão que Lacan parece se irritar com a assimilação de seu nome a uma suposta ‘conspiração estruturalista’ que teria como ‘inimigo’ o humanismo de Sartre. Nas palavras de Lacan, “por razões precisamente estruturais, o estruturalismo não é uma bandeira, como também não é nenhuma de suas formas de manchas que progridem por difusão. É por isto que sou finalmente oposto ao emprego deste termo, do qual nada garante que ele não será desviado para os usos do humanismo ‘pegajoso’” 4. O que não impede que, tomado dentro dos limites de uma teoria relativamente completa que dispõe de um conjunto de estratégias formais de pensamento, o ‘estruturalismo’ possa ter sido algo extremamente profícuo no interior de determinados campos do saber. É o caso da fonologia. É o caso da etnologia. E é, certamente, o caso de Lacan. Com certeza, como qualquer modismo, o ‘estruturalismo’ inflou e ultrapassou certos limites. O preço de sua expansão foi seu refluxo: ação e reação. A oração de Carlos Drummond de Andrade expressa bastante bem esta inflação causada pelo boom do estruturalismo. Cada estrofe de “Exorcismo” termina com o adágio: “Libera nos, Domine”. Leia-se, a seguinte:

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LACAN, J. Of structure as an inmixing..., p. 187. LACAN, J., Entrevista a Pierre Daix, p. 52.

Da semia Do sema, do semema, do semantema Do lexema Do classema, do mema, do sentema

Libera nos, Domine

Mas nos interessa o sentido do termo estruturalismo no interior do pensamento de Lacan. Importa aqui determinar o sentido da expressão “meu estruturalismo”, quando Lacan afirma, por exemplo, “acabei de dizer a quais estruturas qualificadas e verificáveis se refere o meu estruturalismo. Elas não são sem conexão com aquelas que motivam o estruturalismo de Claude Lévi-Strauss. Mas justamente, porque há ali referências, perfeitamente observáveis em sua distinção, é claro que Lévi-Strauss e eu nos reunimos apenas em posição puramente analógica, cada um em seu campo” 5. O estruturalismo, na visão de Lacan, ao contrário do que reza a vulgata, tem um sentido bastante estrito. E este sentido, precisamente, correlaciona-se à problemática definida por estes três termos e à sua interdependência: sujeito, ciência e linguagem. Nossa hipótese é que o eixo estrutura-sujeito é um lugar privilegiado para o exame das continuidades e rupturas de Lacan para com o estruturalismo toutcourt. Em outras palavras, a partir da problemática do sujeito será possível entrever a especificidade do estruturalismo lacaniano. Enquanto para o estruturalismo em geral o ponto de vista da estrutura é incompatível como uma teoria do sujeito, para Lacan tudo se passa diferentemente. É exatamente a partir da estrutura que Lacan pode formalizar uma teoria do sujeito. Para Lacan, o estruturalismo introduz “uma modalidade muito especial do sujeito”6, exatamente aquele que interessará à Psicanálise.

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LACAN, J., Entrevista a P. Daix, p. 52 LACAN, J., A ciência e a verdade, E: 875 [861].

Ao naturalismo e ao psicologismo, que eram vertentes que àquela altura ofereciam modelos epistemológicos para o inconsciente, Lacan irá opor uma teoria nãopsicologicista e não-naturalista do sujeito. E, para tanto, o aporte com a noção de estrutura é fundamental.

A solidão de Lacan no século Ainda que a importância de uma teoria do sujeito para a Psicanálise nos pareça, pelo menos depois de Lacan, bastante bem assentada, qual a relevância de uma teoria do sujeito no panorama da Filosofia do século XX? E mais, do ponto de vista da Filosofia, qual a relevância da teoria lacaniana do sujeito, oriunda de um campo de reflexões exterior à Filosofia? Para Alain Badiou (1937-)7, a Filosofia do século XX respondeu à questão acerca da necessidade de se pensar o sujeito de diversas maneiras. Responderam negativamente, isto é, não julgaram possível, desejável ou necessária uma teoria do sujeito, pelo menos Heidegger, o estruturalismo radical e Wittgenstein. Martin Heidegger (1889-1976) considera que a categoria de sujeito é metafísica e deve ser desconstruída junto dela; para Louis Althusser (1918-1990), o sujeito é uma categoria da ideologia e não um conceito científico; para Ludwig Wittgenstein (1889-1951), o sujeito está nos limites do mundo e acerca do que está fora da linguagem, deve-se calar. Mas houve quem respondesse positivamente à questão. A fenomenologia, de Edmond Husserl (1859-1938) por exemplo, que identifica sujeito e consciência e propõe uma descrição do sujeito com base nesta identificação. Há também a resposta de Gilles Deleuze (1925-1995), para quem o sujeito ‘é como uma dobra da exterioridade’, é um modo da totalidade. Um pensamento sobre o sujeito seria um 7

BADIOU, A. Onde estamos com a questão do sujeito?

modo do pensamento desta totalidade. Outra resposta positiva é a resposta do humanismo, onde o sujeito é o sujeito do direito, de inspiração kantiana. Finalmente, há a resposta de Lacan. Esta resposta mostra a absoluta solidão de Lacan no século. Sua teoria do sujeito é ímpar e coloca o problema em outros termos. Lacan concordaria com os fenomenólogos, com os humanistas e com Deleuze acerca da necessidade de uma teoria do sujeito. Mas sua teoria se contrapõe – ponto por ponto – a cada uma daquelas respostas. Badiou caracteriza a teoria lacaniana do sujeito a partir de quatro traços: (1) o sujeito lacaniano, porque inspirado em Freud, não é definido pela consciência, portanto não é fenomenológico; (2) o sujeito não é uma categoria normativa. Ela é teórico-clínica; (3) o sujeito lacaniano não se refere a uma totalidade, ao contrário, ele exige uma destotalização; (4) não há uma experiência do sujeito, inversamente, é o conceito de sujeito que permite pensar a experiência. Se, por outro lado, Lacan precisasse responder aos filósofos que não consideram a relevância de uma teoria do sujeito, talvez ele pudesse propor a Heidegger sua releitura do cogito cartesiano e a conseqüente postulação do sujeito da ciência como vazio de conteúdos e puro efeito de uma combinatória significante, que retira da subjetividadee seu caráter metafísico; a Althusser talvez pudesse apresentar este mesmo sujeito da ciência determinado pelo simbólico e condicionado pelo real, a fim de mostrar que o que é categoria da ideologia não é o sujeito, mas, ao contrário, o eu (moi), autônomo como quer a psicologia do eu, na verdade, profundamente alienado em sua estrutura narcísico-imaginária; a Wittgenstein talvez pudesse responder que concorda que o sujeito esteja no limite do mundo, isto é, no limite da linguagem. Mas estando nesse limite, nessa fronteira, ficaria em contato com duas

extremidades. Assim, por um lado, uma teoria do significante seria suficiente para descrever o sujeito em sua fronteira “interna”. Quanto ao que estaria fora dos limites do discurso, Lacan talvez pudesse apresentar a Wittgenstein a letra, a topologia e o matema como tentativas de formalizar aquilo que escapa à forma proposicional da linguagem. Mas é preciso mostrar que esta teoria do sujeito está fortemente relacionada à concepção lacaniana de estrutura. É preciso mostrar que o conceito lacaniano de estrutura está pressuposto, ou melhor, está em ação, como diria Jacques-Alain Miller, durante toda esta démarche. Na verdade, sem a estrutura talvez Lacan não pudesse formalizar a contento sua teoria do sujeito. É o que procuraremos mostrar com a análise do texto que Lacan escreveu para criticar a concepção de estrutura defendida pelo psicanalista Daniel Lagache (1903-1972).

O terceiro modo da estrutura e o sujeito A antinomia proposta por Lagache entre uma estrutura enquanto modelo teórico distante da experiência e uma estrutura aparente na superfície do fenômeno negligenciaria, segundo Lacan, um modo de estrutura que, “por ser terceiro, não deve ser excluído, ou seja, os efeitos que a combinatória pura e simples do significante determina na realidade em que se produz. Pois, é ou não o estruturalismo aquilo que nos permite situar nossa experiência como o campo em que isso fala? Em caso afirmativo, ‘a distância à experiência’ da estrutura desaparece, já que opera nela não como modelo teórico, mas como a máquina original que nela põe em cena o sujeito” 8.

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LACAN, J., Observação sobre o relatório de Lagache..., E: 655 [649].

A estrutura é, pois, definida por Lacan como “ efeito da combinatória pura e simples do significante na realidade onde ela se produz”. 9 No seminário sobre o Ato psicanalítico, Lacan afirma que é o que define o estruturalismo é “tomar por objeto o efeito da linguagem”10. Este “terceiro modo da estrutura” tenta responder à referida antinomia proposta por Lagache. Mas em que consistiria a antinomia lagacheana? Interessado em descrever a estrutura pessoal, Lagache apresenta em “A Psicanálise e a estrutura da personalidade” duas concepções básicas da estrutura: (i) uma primeira tomada como “conjunto hierarquizado de traços diretamente observáveis”, isto é, uma ‘estrutura aparente’ ou ‘empírica’; (ii) outra como “um sistema de relações entre formações que não são diretamente observáveis”, isto é, uma ‘estrutura como modelo’. Em outras palavras, Lagache opõe uma estrutura derivada da observação e classificação de componentes individuais, psicológicos ou somáticos que definem a personalidade a uma outra estrutura, ou melhor, a uma outra modalidade da estrutura vista como um modelo teórico que se impõe a formações não diretamente observáveis, mas às quais “a observação de certas regularidades confere uma realidade conceptual no interior de um modelo teórico” 11. O que este incansável defensor da ‘unidade da psicologia’ chama de “personologia psicanalítica” estaria mais conforme a esta última estrutura. Para Lagache, “Freud subordina o ponto de vista estrutural ao ponto de vista econômico-dinâmico”, o que implica a constatação de que “a teoria das pulsões é teoricamente mais fundamental do que a teoria do aparelho psíquico”. Isto tudo mostraria que “a concepção freudiana da estrutura pessoal” é “uma concepção não apenas psicanalítica, mas

Idem, ibid. LACAN, O ato psicanalítico, S: XV, 211 [13/03/1968]. 11 LAGACHE, D., “La psychanalyse et la structure de la personnalité”, Œuvres IV, p. 192. 9

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analítica no sentido mais amplo do termo e não uma construção puramente artificial”12. Mas uma interpretação personalista - como a que propõe Lagache - teria que superar duas outras maneiras de se compreender as tópicas freudianas: a visão antropomórfica e a concepção naturalista da personalidade. No entanto, Lagache não tem dificuldade em admitir que a primeira tópica freudiana seria mais naturalista, dada sua inspiração fisicalista; que conceitos tais como “excitação, inervação, descarga” mostrariam a verve fisiológica de Freud. Tampouco hesita em assinalar que a segunda tópica, com os conceitos de isso, eu e supereu, evocaria um certo antropomorfismo. Um antropomorfismo que pode ser exemplificado com experiências cotidianas tais como a seguinte: “acontece com cada um dialogar consigo mesmo, e estes diálogos se parecem com os do pai com o filho” 13. Não obstante, Lagache teria fortes reservas a interpretações naturalistas da segunda tópica: estariam estendendo inadvertidamente um modo de pensar que Freud teria superado quando, com os conceitos de isso, eu e supereu, vai além do ponto de vista fisiológico. Assim, seria preciso recusar qualquer interpretação que, por exemplo, pensasse o isso como um reservatório não-organizado de pulsões; um isso biológico, a exigir hipóteses de cunho filogenético para sua fundamentação; um isso como elemento, digamos, da natureza. Lagache recusa, com veemência este modelo: tratar-se-ia de um empobrecimento do isso. Todavia, Lagache também recusa a concepção antropomórfica. Uma visão que também deve ser recusada, porquanto implicaria numa certa ‘reificação’, numa ‘substantificação’ dos conceitos. Como se o

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Idem, pp. 192-193. Idem, p. 197-198.

eu pudesse ser suficientemente representado por um cavaleiro inexperiente e o isso pudesse ser comparado a um cavalo desgovernado. Para Lagache, a saída é o personalismo, ou seja, um modelo que sublinha “o papel das relações intersubjetivas na estruturação da personalidade” 14. Chega a dizer que a fecundidade do modelo psicanalítico depende de sua qualidade personalista. Donde a ênfase que Lagache encerra à intersubjetividade. As relações intersubjetivas serão o modelo para se entender, mutatis mutandis, as relações intra-subjetivas. Isto é, para se entender as relações entre o eu, o isso e o supereu, é preciso entender as relações entre as pessoas que fizeram ou fazem parte da história de um sujeito. Lagache chega a afirmar que “antes de existir nela mesma, por ela mesma e para ela mesma, a criança existe por e para os outros; ela já é um pólo de expectativas, de projetos, de atributos. (...) Isto é no fundo o que Freud nos legou dizendo que o Supereu se formaria não tanto pela identificação com os pais, mas pela identificação com a imagem idealizada pelos pais e com o supereu dos avós. O sistema supereuIdeal do Eu é, na origem, um modelo transcendente e o problema da humanização é, em grande parte, saber como este modelo se incorpora à existência individual” 15. Mas isso, na visão de Lacan, não passa de uma coleção de truísmos, se não se esclarece o meio por onde estas esperas e projetos se fazem presentes no inconsciente da criança. Para Lacan, e não é difícil adivinhar, este meio só pode ser a linguagem: “um pólo de atributos, eis o que é o sujeito antes de seu nascimento (...) de atributos, isto é, de significantes mais ou menos ligados num discurso” 16. O inconsciente, na visão de Lacan, é o discurso do Outro. Para o autor dos Écrits, o Idem, p. 199. Idem, p. 200. 16 LACAN, J., Observação..., E: 659 [652]. 14 15

fato de Lagache se apoiar na intersubjetividade mostra que “seu método não é suficientemente radical” 17. À intersubjetividade de Lagache, Lacan oporá a estrutura e a máquina. Quanto ao estatuto teórico da estrutura, Lacan recusa quer seja o ‘idealismo’ ou ‘externalismo’ de uma estrutura como ‘modelo teórico’ aplicado de fora a um objeto dado, quer seja um ‘empirismo’ que tomasse a estrutura como algo diretamente apreensível na superfície do fenômeno. Mas, ao mesmo tempo, recusa a saída lagacheana do personalismo. Em termos gerais, Lacan encontra, na figura da estrutura, vale insistir, uma saída seja ao naturalismo, seja ao psicologismo. Propõe então uma estrutura, melhor, um modo da estrutura, que opera como máquina. Uma estrutura como máquina original que põe em cena o sujeito. É esta estrutura que permite a formalização de uma teoria não-psicologicista e nãonaturalista do sujeito, fundada nos conceitos freudianos de inconsciente e de pulsão. Um modo muito especial do sujeito

Se o estruturalismo tout-court recusa a questão do sujeito porque ela não seria passível de tratamento científico, trata-se não apenas de um certo ‘estruturalismo’, mas também, e sobretudo, de um certo sujeito. Mas, para Lacan, a negação do sujeito não serve para definir o estruturalismo: “gostaria de salientar que, estruturalismo ou não, parece-me que não se trata de maneira alguma, no campo vagamente determinado por esta etiqueta, da negação do sujeito. Trata-se da dependência do sujeito, o que é extremamente diferente; e, particularmente, ao nível do retorno a Freud, da dependência do sujeito em relação a alguma coisa de verdadeiramente elementar, e que nós tentamos isolar sob o termo ‘significante’”. 17

LACAN, J., Observação..., E: 658 [652].

Ocorre não ser possível descrever cientificamente as qualidades do sujeito, tampouco sua consciência. É aí que intervém a novidade do autor dos Escritos: reinterpretando o estruturalismo, Lacan considera que, ao excluir o sujeito (definido como consciência de si e/ou sujeito de qualidades), o estruturalismo introduz o sujeito sem qualidades e sem consciência-de-si. Sem precisar cair no conceito de natureza, acrescentaríamos. Nas palavras de Lacan, o estruturalismo introduz “uma modalidade muito especial do sujeito”18. A reversibilidade da definição de significante seria suficiente para descrever o sujeito. Assim, “o sujeito é apenas o que um significante representa para outro significante”19. Mas o sujeito não é apenas isso. Para definir corretamente o sujeito não podemos negligenciar uma das mais vivas contribuições de Freud - a pulsão - e sua retomada por Lacan: o objeto a. O objeto a seria este objeto virtual, paradoxal que faz com que uma parcela de nosso desejo continue insatisfeito mesmo quando obtemos o objeto que imaginávamos desejar. É o que desejamos verdadeiramente quando buscamos um objeto empírico qualquer. É possível abordar a teoria lacaniana do sujeito a partir de diversos pontos de vista . Primeiramente, poderíamos dizer que o sujeito é aquilo que é subvertido pela introdução dos conceitos de inconsciente e de pulsão por Freud. Ao abordarmos a questão deste ponto de vista, estaríamos no registro do assim chamado ‘retorno a Freud’. Mas esta abordagem, apesar de necessária, não é suficiente. Não é suficiente porque não deixa perceber o tratamento propriamente lacaniano que a questão recebe. E é este tratamento, pela vertente da estrutura, que permite a formalização daquela teoria. Mas é necessária porque mostra, de uma maneira muito simples, que 18 19

LACAN, J., A ciência e a verdade, E: 875 [861] . MILNER, J-C., A obra clara, p. 86.

definir o sujeito simplesmente com a reversão da definição de significante não é suficiente para descrever o sujeito que interessa à Psicanálise. Aquele “modo muito especial do sujeito” de que nos fala Lacan em A ciência e a verdade comporta duas vertentes. Um sujeito definido, de um lado, por sua divisão e, de outro lado, pelo lugar fundamental que o desejo, ou seu resto, o objeto a vem ocupar nesta divisão. Dois matemas, elaborados bastante precocemente no ensino de Lacan, permitem abordar o problema do sujeito. Todos os dois se encontram já em Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente freudiano (1960). Um deles pode ser derivado, como faz Milner, da definição de significante: “um significante representa o sujeito para outro significante”. A reversão desta definição nos apresenta pelo menos uma vertente da teoria do sujeito. Vertente fundamental, porquanto explica a alienação do sujeito na linguagem. Mas isso não é tudo. Quando da castração, melhor, da entrada da criança na ordem simbólica, dar-se-ia a separação do sujeito e seu ser. Do ponto de vista teórico, esta separação decorre da intervenção do significante, da palavra, da linguagem. Dado que o significante só produz diferença e nunca identidade, não há identidade do sujeito pela via do significante. Como definir então o sujeito? É aí que entra em cena o matema do fantasma, isto é ($a). Nele o sujeito é definido em relação ao objeto a. É bastante conhecida a fórmula segundo a qual “o ser do sujeito é o objeto”. Em outras palavras, o ser do sujeito é aquilo que, estando fora da estrutura da linguagem, determina a série metonímica do desejo. O objeto a se vale da hiância causada no sujeito para instaurar-se: “O sujeito é um aparelho. Esse aparelho é algo de lacunar,

e é na lacuna que o sujeito instaura a função de um certo objeto, enquanto objeto perdido. É o estatuto do objeto a enquanto presente na pulsão” 20. Mas, afinal de contas, qual é a remarque, a observação, no singular, que Lacan quer fazer a Lagache? Qual é a observação que ele faz nessa longa crítica e que pode servir para nós, hoje? Talvez seja possível resumir mais ou menos assim o quadro: desconheça o conceito de estrutura em Psicanálise e você confundirá o sujeito com a persona, confundirá a linguagem com a fala,

o significante com a palavra, a

Psicanálise com a psicologia... Desconheça (1) que é a estrutura quem põe em cena o sujeito e (2) que quem fala pelo sujeito é o isso e você desconhecerá de onde isso fala. De onde isso fala? Do lugar do desejo, ou melhor, do lugar do objeto causa do desejo, o que se escreve: a (e que se não confunda o sujeito com sua máscara, para se não pensar que a designa o outro especular ou, até mesmo, o eu do analista). Uma posição ética.

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LACAN, J., Os quatro conceitos fundamentais, S: XI, 175.

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