\"É nóis na fita\" - Duas variáveis linguísticas numa vizinhança da periferia paulistana.

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1 UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas Departamento de Lingüística

É nóis na fita! Duas variáveis lingüísticas numa vizinhança da periferia paulistana. (O pronome de primeira pessoa do plural e a marcação do plural no verbo)

POR

Rafael Ferreira Coelho (FAPESP Processo 04/04313-4)

ORIENTADORES:

PROFa. DRa. Margarida Maria Taddoni Petter PROF. DR. Ronald Beline Mendes

MESTRADO EM LINGÜÍSTICA Agosto de 2006

2

ÍNDICE INTRODUÇÃO

1

CAPÍTULO I - PRESSUPOSTOS TEÓRICOS: LÍNGUA E SOCIEDADE

4

4

1. Variação e mudança 1.1 - Inovação, propagação e mudança na língua

4

1.2 – Sufixo –mos, licenciamento de sujeitos nulos e saliência fônica

6

1.3 – Saliência fônica, aprendizagem de formas lingüísticas e socialização

9

1.4 - A aprendizagem de –mos como afastamento do dialeto de origem

12

1.5 – A aprendizagem de a gente como afastamento do dialeto de origem

14

2. Modelo sociolingüístico e configuração social da periferia paulistana 2.1 – Comunidade de fala e amostra

19 19

2.2 – O princípio da hipótese curvilínea: polarização entre classe centrais e classes 23 dos extremos 2.3 – A interação entre as variáveis Classe social e Gênero/sexo 29 2.4 – Modelo sociolingüístico e diferenças de configuração social

31

2.5 – Configuração social paulistana e implicações para o modelo sociolingüístico

33

2.6 – A formação de um grupo de referência urbano: Os mano na periferia de São 36 Paulo 2.7 – O uso expressivo de “É nóis” no dialeto de mano 41

Figuras e tabelas do Capítulo I Tabela 1 – O efeito da Saliência Fônica na freqüência da variante –m/ Brazlândia e 13 Rio de Janeiro Figura 1 – Freqüência do uso da variante zero para a primeira pessoa do plural, 15 segundo a vogal tônica da forma padrão, entre falantes migrantes com baixo nível de escolaridade/ Brazlândia e Brasilândia (80) Figura 2 – O uso de a gente em tempo real de curta duração na comunidade 16 fluminense segundo os graus de saliência fônica.

3

CAPÍTULO II – O PRONOME DE PRIMEIRA PESSOA DO PLURAL E A MARCAÇÃO DO 45 PLURAL NO VERBO: DUAS VARIÁVEIS NUMA VIZINHANÇA DA PERIFERIA PAULISTANA

1. Mudança lingüística e mobilidade de classe

45

1.1 – Tipos de propagação de uma forma inovadora

46

1.2 – Considerações finais

53

2. As variáveis sociais

55

2.1 – Observação etnográfica

56

2.2 – A amostra Brasilândia

67

2.3 – Procedimentos para análise das variáveis sociais

69

3. As variáveis lingüísticas

75

3.1 – Funções lingüísticas da pessoa gramatical

75

3.2 - Função interacional

77

3.3 – Função coesiva

90

3.4 – Função gramatical

99

3.5 – Quadro resumo dos grupos de fatores lingüísticos

106

Tabelas do Capítulo II Tabela 2 – Marcação morfológica da primeira pessoa do plural no verbo, segundo os pares de saliência fônica/ Tabela 3 – Alternância pronominal entre nóis e a gente segundo os pares de saliência fônica/ Tabela 4 – Uso de a gente segundo o traço [+/- determinado] do referente/ Rio de Janeiro Tabela 5 – Amostra Brasilândia de acordo com grupos da vizinhança/classe social

68

Tabela 6 – Amostra para análise da variável Gênero/sexo

74

49 50 53

4

CAPÍTULO III – RESULTADOS DA ANÁLISE QUANTITATIVA. 112

1. NÓIS VS. A GENTE

114

1.1 – Variáveis sociais

115

1.2 – Restrições lingüísticas

119

1.3 – Tabulações cruzadas: Índice de Classe e restrições lingüísticas

120

1.4 – Interação entre as variáveis Quantidade e Qualidade dos referentes

122

Tabelas da seção 1 Tabela 7 – Nóis nas funções gramaticais

113

Tabela 8 – Comparação das rodadas com as variáveis sociais

114

Tabela 9 – Grupos Vicinais do bairro

115

Tabela 10 – Saliência Fônica vs. Grupos Vicinais

116

Tabela 11 – Índice de Classe

118

Tabela 12 – Gênero/sexo

118

Tabela 13 – Paralelismo de estruturas

119

Tabela 14 – Quantidade do referente

120

Tabela 15 – Índice de Classe vs. Formas isoladas ou primeiras de uma série

121

Tabela 16 – Índice de Classe vs. Quantidade do referente

122

Tabela 17 – Quantidade vs. Qualidade

123

2. NÓIS + V-ZERO VS. NÓIS + V-MOS

124

2.1 – Variáveis sociais

124

2.2 – Restrições lingüísticas

130

2.3 – Tabulações cruzadas: Índice de Classe e Saliência Fônica

133

1.4 – Preenchimento do sujeito e as propriedades do sufixo -mos

135

5

Figuras e tabelas da seção 2 Tabela 18 - Comparação das rodadas com as variáveis sociais

124

Tabela 19 – Grupos Vicinais do bairro

125

Tabela 20 – Comparação da freqüência de dois grupos mais jovens da vizinhança

127

a

128

a

Tabela 22 – Índice de Classe (2 . análise)

128

Tabela 23 – Gênero/sexo

129

Tabela 24 – Gênero/sexo em três comunidades

129

Tabela 25 – Paralelismo de estruturas

130

Tabela 26 – Saliência Fônica

132

Figura 3 – Emprego da variante zero em função de Saliência Fônica

132

Tabela 27 – Saliência Fônica vs. Índice de Classe

133

Tabela 28 – Preenchimento do sujeito

135

Tabela 29 – Preenchimento do Sujeito vs. Paralelismo

136

Tabela 30 – Preenchimento do Sujeito vs. Índice de Classe

140

3. A GENTE + V-MOS

141

Tabela 21 – Índice de Classe (1 . análise)

Tabelas da seção 3 Tabela 31 – Preenchimento do sujeito

141

Tabela 32 - Grupo de Fatores para a concordância com o pronome a gente.

142

CONCLUSÃO 145 Figuras Figura 5 – Diagrama combinatório das variantes: quatro comportamentos 146 lingüísticos Figura 6– Distribuição das variáveis sociais, no diagrama com quatro 148 comportamentos verbais.

6 ANEXO – ENTREVISTA DA AMOSTRA “BRASILÂNDIA” 152

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 175

7

INTRODUÇÃO

A literatura sobre o apagamento de marcas morfológicas nos verbos e a inserção de novos pronomes no sistema lingüístico, em diferentes análises e em diferentes dialetos do português no Brasil, é extensa. Sobre a perda das marcas morfológicas no verbo, podemos citar dois autores que, desde os anos 70, descrevem o fenômeno sob o enfoque da sociolingüística quantitativa: Naro (1981), Scherre (1989), Scherre & Naro (1992), Naro & Scherre (1999). Posteriormente, houve também contribuições acerca das variáveis de concordância verbal em estudos de variedades “rurbanas” (dialetos falados por migrantes pobres em grandes capitais do Brasil): mais especificamente Rodrigues (1987), na cidade de São Paulo, e Bortoni-Ricardo (1985), em Brasília. Uma outra linha de pesquisa pode ser descrita como aquela que se iniciou com as sistematizações propostas por Tarallo (1991) para explicar os padrões de mudança sintática observados em tempo real de longa duração no “português brasileiro”. Dessa análise, surgiram inúmeros trabalhos que de algum modo mantêm diálogo com a proposta do autor até os dias mais atuais. As explicações sistemáticas de propriedades sintáticas, em variedades brasileiras, deram molde a fenômenos antes descritos isoladamente (classificados apenas como “brasileirismos”, cf. Tarallo,1991:75-81). O trabalho seminal teve mais recentemente novas interpretações. Estes representam, por um lado, um aprofundamento formalista no estudo de fenômenos observados também por Tarallo (Kato et alli, 2001; Negrão& Viotti, 2001) e por outro representam possíveis aplicações de seus postulados a certas teorias sobre o fenômeno lingüístico chamado de gramaticalização (Zilles, 2002; Zilles, 2004; Ramos, 1997; e Vitral, 1996). A partir desses trabalhos de referência, a pesquisa que se apresenta inicia uma discussão de como as características observadas em variedades do português no Brasil estão relacionadas a significados sociais que identificam falantes estratificados e pertencentes a determinadas comunidades de fala (Labov, 2001; Milroy, 1980; Eckert, 1996). Já em Tarallo (1991:75-99) encontramos essa preocupação, quando descreve a “emergência” de uma gramática simultaneamente ao desenvolvimento de uma nova “noção de cidadania” na elite nacional.

8 Nesse quadro mais geral, a pesquisa enfoca a variação dos pronomes e da concordância verbal para a expressão de primeira pessoa do plural no dialeto falado por migrantes e filhos de migrantes, moradores de bairros de periferia da cidade de São Paulo. De modo mais específico, essa pesquisa mantém diálogo com dois estudos sobre os pronomes de primeira pessoa do plural (Omena, 2003; Zilles, 2005) e com dois outros estudos sobre a concordância verbal na fala de migrantes em cidades grandes (BortoniRicardo, 1985; Rodrigues, 1987). Nosso objetivo central é demonstrar que a variedade falada nos bairros de periferia em São Paulo apresenta duas tendências contrárias às outras variedades: (a) a gente não constitui necessariamente o pronome favorito na comunidade e (b) o fenômeno de perda de marca morfológica tende a generalizar-se para a expressão da primeira pessoa do plural no verbo (por exemplo, nóis é). A diferença observada no uso dos pronomes encontra motivação sobretudo no perfil sociolingüístico das comunidades em estudo: enquanto Omena (2003) e Zilles (2005) consideram falantes naturais de centros urbanos com distribuição social segundo a escolaridade, a atual pesquisa enfoca falantes moradores de bairros periféricos da cidade de São Paulo, muitos deles migrantes de zonas pobres do país, ou filhos destes. No caso do apagamento do sufixo -mos, vamos verificar que filhos paulistanos com perfis semelhantes aos daqueles estudados por Bortoni-Ricardo (1985) e por Rodrigues (1987) não se comportam, como era esperado, de acordo com o processo de urbanização de dialetos rurais. Para as duas autoras, esse processo se dá basicamente com o reconhecimento, por parte do migrante, de que seus hábitos lingüísticos são estigmatizados, e que portanto devem ser mudados. Nesses trabalhos, os falantes, que passaram por esse processo de mudança, somente demonstraram alterações no uso da variável de primeira pessoa do plural, se comparado à de terceira do plural. O corpus para análise foi constituído com um trabalho de campo realizado num sub-distrito, de origem favelada, do bairro Brasilândia (Jardim Paulistano - zona norte da cidade de São Paulo). Foram gravadas vinte e quatro entrevistas sociolingüísticas com falantes de diferentes grupos representativos do bairro (associação de moradores, cooperativa de costureiras, jovens assistidos por programas sociais, freqüentadores de quadras esportivas etc).

9 O trabalho de campo consistiu não apenas na gravação de entrevistas sociolingüísticas, mas também na observação etnográfica dos diferentes status sociais atribuídos aos diferentes grupos que freqüentam os espaços públicos do bairro (a praça, quadras esportivas, a creche, áreas de mananciais, igrejas). Os falantes mais jovens, cujos valores sociais são contrários à cultura legítima da “cidade grande” (incluindo a adoção de formas padrão), são aqueles que mais “exageram” no uso de construções como Nóis é. Os exemplos mais típicos desse exagero são representados pelos freqüentadores das quadras esportivas, que não se identificam com os valores institucionais preconizados pelos outros grupos do bairro. Os líderes no uso de construções como nóis é não possuem vínculo empregatício estável no mercado de trabalho e revelam práticas sociais discriminadas por outros setores da cidade (como uso de entorpecentes, e a freqüência a bares e locais de lazer com baixa reputação na vizinhança). Os padrões de produção lingüística observados entre esses falantes nas situações de entrevista também podem ser interpretados como seu afastamento (e não sua adequação) relativamente ao status institucional do próprio entrevistador.

10 Capítulo I – PRESSUPOSTOS TEÓRICOS : LÍNGUA E SOCIEDADE

1 - Variação e Mudança

1.1 - Inovação, propagação e mudança na língua

Mudanças lingüísticas pressupõem um estágio intermediário, em que uma forma antiga convive com uma forma nova tanto no nível na comunidade lingüística como na fala dos indivíduos. Inicialmente, ocorre uma inovação, ou seja, uma diferença entre um sistema lingüístico usado por um grupo social e aquele usado por outros, em algum setor da sociedade. Se uma inovação difunde-se de determinados contextos lingüísticos ou de alguns grupos sociais para outros, chamamos esse processo de propagação (Labov, 1994). Portanto, poderíamos dizer que uma mudança consolida-se a partir do momento em que a forma inovadora propaga-se amplamente e atinge todos os grupos sociais de uma comunidade e vai deixando de sofrer restrições lingüísticas. A freqüência de uso de uma variante inovadora em uma comunidade de fala cresce gradualmente no decorrer de décadas ou séculos (Labov, 1994; Kroch,1994; Guy, 1996). Isso pode ser observado na mudança da freqüência de emprego de uma variante em diferentes gerações, em tempo aparente ou em tempo real de curta duração, como também em textos escritos em épocas históricas diferentes (estudo em tempo real de longa duração). Exemplos do padrão gradual da mudança foram observados em dois grandes níveis da análise lingüística: a fonologia e a sintaxe. Na literatura sociolingüística de língua inglesa, um exemplo de mudança fonológica é o alçamento do /a/ breve que vem ocorrendo em diferentes comunidades do inglês há décadas (Labov, 1994). Para a sintaxe, a mudança de uma ordem OV para VO no inglês medieval durou centenas de anos (Kroch, 1994). Em cada estágio da mudança, a variabilidade num mesmo texto é observada, com um mesmo indivíduo utilizando tanto a variante OV como a VO. Nem toda variação termina em mudança. Assim, por exemplo, na fonologia inglesa, a variação entre o sufixo não-padrão –in (como em dancin’) e o padrão –ing (como em dancing) é datado por Labov (2001:90) “at least the beginning of the 19th century and probably to the begin of the 17th”. Na sintaxe, Naro & Scherre (1999) consideram que o

11 emprego variável da concordância verbal para a terceira pessoa do plural pode ser verificado já no período do português medieval1. De modo geral, há duas hipóteses que explicam a implementação de uma mudança antecedida por variação: uma que postula a coexistência de duas gramáticas (Kroch, 1989) e outra que concebe a variabilidade como inerente ao sistema (Guy, 1996). Cada uma delas concebe o processo de inovação e propagação de uma forma, nos contextos lingüísticos, de maneira diferente. Kroch (1989) postula a coexistência de duas gramáticas em competição e trabalha essencialmente com textos escritos em uma análise diacrônica. Para essa hipótese, as variantes expressas nos contextos superficiais são realizações que envolvem opções gramaticais divergentes que não podem ser descritas por uma única análise da estrutura subjacente2. A hipótese da variabilidade inerente, por outro lado, formula que nosso conhecimento lingüístico acomoda e gera variação e que a gramática possui regras quantitativas e não categóricas. A propagação da forma inovadora ocorre de contextos mais favoráveis a contextos menos favoráveis, eliminando suas restrições, até que ocorra sua consecução. Paiva & Duarte (2003:15) consideram que os dois padrões descritos em relação à propagação de uma forma inovadora pelos contextos lingüísticos podem ser entendidos como diferentes tipos de mudança: “mudanças que se processam através do aumento continuado do input, mantendo-se inalterado o efeito dos grupos de fatores; [e] mudanças que se processam através da reordenação dos fatores, sem alteração do input”3. No entanto, apesar da proposta das autoras não excluir nenhuma das hipóteses formuladas por Guy (1996) e por Kroch (1989), não se resolve a que teoria os fenômenos 1

No decorrer dos séculos, a variante apresentou os mesmos pesos relativos em relação às restrições lingüísticas, observando-se apenas o aumento do peso global da variante não-flexionada. 2 O autor ainda utiliza os conceitos de uma análise gerativa que não está mais em voga. Somente resumimos os pressupostos de Kroch (1989, 1994) sem fazer menção aos novos postulados da teoria gerativa, pois não é o que está em foco aqui. Na análise desenvolvida pelo autor, a coexistência de verbos flexionados e aqueles com o auxiliar suporte do demonstram duas gramáticas no inglês medieval que possuem estruturas diferentes em relação ao movimento do verbo para a categoria flexional da sentença (na segunda, o verbo temático não sobe, pois a gramática utiliza-se do auxiliar para checar o caso nominativo). A propagação de uma forma inovadora em diferentes contextos lingüísticos (por exemplo, matrizes vs. subordinadas, interrogativas vs. declarativas, etc) só ocorre no peso do input global, já que a taxa pela qual a forma mais nova substitui a antiga é a mesma em todos os contextos num dado período do processo de mudança. 3 [ ] acrescido.

12 variáveis observáveis estão submetidos: são as variantes manifestações de duas gramáticas diferentes ou são formas variantes de uma mesma gramática?

1.2 - Sufixo –mos, licenciamento de sujeitos nulos de primeira pessoa e saliência fônica

A pergunta acima, que ainda carece de uma resposta consensual entre os diversos pesquisadores que a ela se dedicam, remete a outras questões relevantes para a explicação e a interpretação dos resultados em relação às duas variáveis analisadas nesse trabalho: a variação entre -mos e morfema zero para a expressão morfológica da concordância de primeira pessoa do plural no verbo e a alternância pronominal entre nós e a gente. Segundo Negrão & Viotti (2000:110), no português brasileiro há assimetrias na distribuição de pronomes nulos e preenchidos na posição de sujeito. Uma dessas assimetrias pode ser observada nas sentenças abaixo (extraídas do texto das autoras citadas): a) A Lúcia conheceu alguns garotos i na festa e eles i acharam ela bonita. b) *A Lúcia conheceu alguns garotos i na festa e Ο i acharam ela bonita. Para Negrão & Viotti (2000:123), o uso de um “pronome nulo” é agramatical em (b) pois a categoria vazia precisa ser c-comandada pelo seu antecedente para que os sintagmas tenham o mesmo referente4. Somente o pronome eles refere-se ao grupo que satisfaz a descrição criada na sentença anterior com o sintagma alguns garotos. Entretanto, como podemos ver abaixo, o verbo com o sufixo de primeira pessoa expresso (seja no singular, seja no plural), diferentemente do que ocorre na terceira, permite que o sujeito nulo tenha a mesma referência do objeto da sentença anterior: c) A Lúcia me i conheceu na festa e eu i achei ela bonita. d) A Lúcia me i conheceu na festa e Ο i achei ela bonita. e) A Lúcia conheceu eu e alguns garotos i na festa e nós i achamos ela bonita. f) A Lúcia conheceu eu e alguns garotos i na festa e Ο i achamos ela bonita. 4

Apesar do conceito de “c-comando” usado pelas autoras, vamos, na análise que se segue, simplesmente dizer que se trata de um contexto em que o sujeito de uma oração precisa ser expresso para que ele seja coindexado ao objeto da oração coordenada anterior. Na análise das autoras, as sentenças demonstram que somente “pronomes preenchidos” possuem uma interpretação “E-type”, ou seja, somente esses pronomes são capazes de se referir ao grupo que satisfaz a descrição criada pela interpretação que contém o QuantP alguns garotos.

13

A assimetria proposta pelas autoras só ocorre com a terceira pessoa e faz parte de uma assimetria maior entre primeira e terceira pessoas. Pode-se dizer, de acordo com a teoria de duas gramáticas em competição, que as propriedades distintas presentes nas sentenças isoladas acima constituem um típico caso em que ao menos duas estruturas subjacentes podem ser postuladas (uma gramática que permite que os pronomes nulos sejam coindexados a um objeto de uma sentença coordenada anterior, e outra que não o permite). Acontece que, para o plural da primeira pessoa, estudos sociolingüísticos vêm registrando que o uso do sufixo –mos está em variação com o morfema zero e que a própria expressão de primeira pessoa do plural vem sendo substituída pelo pronome a gente, que ocorre preferencialmente com o morfema zero. Este é homônimo do morfema de terceira pessoa do singular, e eles têm um comportamento sintático igual quanto ao licenciamento de sujeitos nulos coindexados a objetos de sentenças anteriores, como os exemplos abaixo demonstram:

g) A Lúcia conheceu eu e alguns garotos i na festa e nós/a gente i achou ela bonita. h)*A Lúcia conheceu eu e alguns garotos i na festa e Ο i achou ela bonita. Isso nos leva a crer que esses fatos, em dialetos do português no Brasil - algo que podemos chamar de “expansão” das propriedades do morfema zero - contribuem para o uso de a estrutura em (g). Portanto, os processos que caracterizam a “expansão” dessas propriedades do morfema zero para todas as pessoas verbais em português podem ser agrupados em dois tipos: (1) o apagamento da marca morfológica no verbo para as pessoas do plural, e (2) a inserção de pronomes que favorecem o emprego do verbo com o morfema zero (você e a gente). Naro e diferentes colaboradores (Naro, 1981; Scherre,1989; Naro & Scherre,1999), desde os anos 70, têm proposto o princípio de Saliência Fônica como o fator estrutural chave na descrição da variação no sistema flexional dos nomes, dos verbos e dos particípios. De modo geral, o princípio pode ser descrito como uma tendência de, simultaneamente, reter-se os sufixos em alternâncias com formas mais salientes (do tipo

14 é/são) e favorecer o uso do morfema zero em alternâncias menos salientes (do tipo dança/dançam). Em outras palavras, um falante tenderia a usar mais construções como eles dança do que eles é, uma vez que, no primeiro exemplo, a diferença fonética entre a forma com o sufixo e a forma sem o sufixo é apenas uma nasal. Na nossa pesquisa, partiremos de uma noção de saliência fônica um pouco diferente daquela desses autores. Para eles, os graus de saliência fônica são somente definidos pela diferença fonética entre a forma com o sufixo e a forma sem o sufixo. Nessa pesquisa, os graus de saliência fônica são antes definidos por uma outra característica que opõem determinados paradigmas verbais a outros. A característica que estabelece a diferença entre os graus de saliência é aquela que divide os paradigmas verbais em dois: aqueles que também possuem sufixo para expressar a primeira pessoa do singular no verbo (achei/ acha/ achamos) e aqueles que não possuem esse sufixo (achava /achava/ achávamos). Nesse sentido, as formas do pretérito imperfeito no português são formas menos salientes em relação às formas do pretérito perfeito (forma temporal utilizada nos exemplos de (a) a (h) acima). Ao contrário de pares mais salientes, o pretérito imperfeito não possui morfologia específica para a primeira pessoa do singular. O efeito disso no licenciamento de pronomes nulos que podem ser coindexados a um objeto em uma sentença anterior é o mesmo, como podemos ver nas sentenças abaixo:

i) A Lúcia conversava comigo i na festa e eu i achava ela cada vez mais bonita. j) *A Lúcia conversava comigo i na festa e Ο i achava ela cada vez mais bonita. k) A Lúcia conversava comigo e alguns garotos i na festa e nós i achávamos ela cada vez mais bonita. l) A Lúcia conversava comigo e alguns garotos i na festa e Ο i achávamos ela cada vez mais bonita. Como podemos observar, a variação entre duas estruturas gramaticais com propriedades distintas (relativamente ao licenciamento de um sujeito nulo coindexado a um objeto de uma sentença anterior) está diretamente ligada à expressão morfológica da categoria pessoa no verbo. A estrutura com o morfema zero em todas as pessoas

15 gramaticais pressupõe um sujeito expresso nesse caso em específico, para que a sentença seja corretamente interpretada5. Seguindo o princípio da Saliência Fônica, as formas de plural para primeira pessoa são mais salientes do que para a terceira pessoa, já que, no primeiro caso há somente a inserção do traço de nasalidade (dança/dançam) enquanto que, no segundo caso, ocorre a inserção de um sílaba inteira (dança/dançamos), se comparados com a forma do morfema zero. Portanto, poderíamos resumir as conclusões sobre a aceitabilidade gramatical observada nas sentenças acima postulando que só os sufixos verbais que expressam primeira pessoa permitem essa propriedade de coindexação.

1.3 – Saliência fônica, aprendizagem de formas lingüísticas e socialização

O apagamento dos sufixos de número e pessoa nos verbos, que estamos preferindo chamar de “expansão do morfema zero”, inicia-se para a primeira pessoa do plural justamente nos tempos verbais em que as alternâncias fônicas entre as formas é menor (como no pretérito imperfeito acima)6. Para Naro (1981), o princípio de Saliência Fônica está associado à percepção do estigma de formas não-padrão por parte dos falantes. A mudança que se inicia nos pares menos salientes e se propaga para os mais salientes é chamada de natural ou espontânea, pois caracteriza um processo comum das línguas românicas no fenômeno conhecido como “perda das flexões”. O processo contrário de retenção dos sufixos, dos mais salientes para os menos salientes, seria uma mudança consciente, porque a aprendizagem deles ocorre em função do processo de escolarização. A concepção dos dois tipos de mudança na sua relação com Saliência Fônica parece fazer mais sentido quando se considera o papel da escolarização. Assim, nos pares menos salientes para a primeira pessoa do plural (dançava/dançávamos), ocorre que falantes muito distantes de um quadro completo de escolarização não possuem em sua gramática o sufixo 5

É importante observar que, nos exemplos de Negrão & Viotti (2000:110), a propriedade de não licenciar um sujeito nulo coindexado nesse contexto sintático em específico também diz respeito ao morfema expresso –m para a terceira pessoa do plural. Isso reforça que a propriedade de coindexação está atrelada à morfologia expressa de primeira pessoa (seja no singular, seja no plural). Independentemente do pronome, o sufixo –mos também funciona como um “pronome E-type”, ou seja, satisfaz a interpretação criada pelo sintagma [DP e DP] na sentença anterior. 6 Conforme atestam os resultados dos trabalhos de Bortoni-Ricardo (1985) e Rodrigues (1987) sobre o português não-padrão urbano, ver subseções 1.4 e 1.5 a seguir.

16 –mos, quase que categoricamente7. Isso significa dizer que os testes de gramaticalidade acima propostos podem ser somente aceitos numa gramática de pessoas com escolaridade alta e que, em falantes com escolaridade baixa, só podemos assumir uma única estrutura gramatical em relação à propriedade descrita (a necessidade de um sujeito expresso para a retomada do mesmo referente de um objeto em uma sentença anterior). Pode-se ainda afirmar que as formas menos salientes (dançávamos, dançássemos, dermos, darmos) são estilisticamente limitadas à língua escrita. Essas formas enquadrariam-se no que Kroch (1994) classifica como fenômenos artificiais da escrita, ou ainda como não pertencente à “Gramática I” (na terminologia de Chomsky 1986; apud Kroch, 1994:4)8. O grupo de fatores Saliência Fônica também relaciona-se com o efeito da aprendizagem do padrão escrito. Scherre (1989:302) reúne uma série de trabalhos sobre o efeito da Saliência na concordância nominal e conclui que “a escala da saliência é mais evidente nos falantes de classe média e média alta do que nos de classe baixa, embora ocorra nos três grupos ”. Essa última conclusão estendida para a primeira pessoa do plural no verbo, leva-nos a supor que o uso das formas padrão seria uma aprendizagem de uma forma mais antiga e mais influente do padrão escrito (como proposto por Kroch, 1994) numa direção definida de mudança consciente (na tipologia proposta por Naro, 1981). A escala da saliência mais evidente, das formas menos salientes às mais salientes observada no uso lingüístico de uma comunidade, é determinada pela Classe Social. Assim, essa escala mais evidente depende diretamente da maior escolaridade do falante. Somente entendendo a língua como parte de fenômenos sociais mais amplos poderemos abarcar a correlação entre um fato estrutural da morfologia e um fato social em relação à percepção de formas estigmatizadas. Desse modo, são acentuadas as diferenças entre aquisição e aprendizagem (esta última entendida como correlata lingüística de um processo mais amplo, que chamamos 7

Idem. Kroch argumenta que a distinção proposta (entre construções da gramática interna e da gramática externa) não deve ser considerada somente para se descartar determinados fenômenos que ocorrem e que não seriam interessantes para a representação de uma única estrutura gramatical em uma determinada língua. Assim, o autor define um conceito de conhecimento gramatical mais amplo que considera tanto os fenômenos “externos” como os “internos” à língua. Para essa discussão, considera a importância do locus sociolingüístico para concluir que, em textos históricos, uma competição entre estruturas gramaticais (incompatíveis com uma única análise estrutural) pode ser no mínimo entendida como uma gramática da língua falada de um determinado tempo e uma forma arcaica ainda influente no padrão literário. 8

17 aqui de socialização): a primeira, mais “natural”, e a segunda como um processo social determinado pelos valores e pelos grupos de referência dos falantes. A noção que diferencia a aquisição lingüística da socialização lingüística pode ser retomada no trabalho de Roberts & Cook-Gumperz (1982) sobre imigrantes sul-asiáticos no Reino Unido. Para as autoras, a socialização lingüística constitui-se num processo de aprendizagem a partir da qual um falante aprende os significados sociais das formas lingüísticas dentro de contextos discursivos específicos. Nas pesquisas sobre a aprendizagem de uma primeira língua, a perspectiva da aquisição é mais comum, mas as autoras citam que os aprendizes somente são ensinados a socializar seus recursos lingüísticos dentro de uma cultura em particular (Roberts & Cook-Gumperz, 1982:246)9. A aprendizagem de significados sociais não deve ser confundida com a escolarização (apesar de ser ela um tipo de aprendizagem). Em relação a falantes com escolaridade baixa que ocupam as posições mais baixas da população brasileira, BortoniRicardo (1985:13) considera que, dentro dos quadros de escolarização precária do país, aprender um estigma acontece mais apropriadamente através das relações informais do falante em sua vida social ou através de sua adesão a valores “oficiais” através do mercado de trabalho. No entanto, vamos considerar neste trabalho que a aprendizagem de significados sociais associados a formas lingüísticas não é somente aquela preconizada pelas normas padrão ou ideais do uso lingüístico: como as mais “corretas” ou como as mais “erradas”. Os processos de variação e mudança observados neste trabalho serão descritos a partir das trajetórias dos indivíduos através de sua vida social (também chamada aqui de socialização). Os valores lingüísticos correlatos a esses processos de variação e mudança nem sempre serão solidários com o padrão ou com a fala de setores mais prestigiados na hierarquia social.

9

As autoras (Roberts & Cook-Gumperz, 1982:244-246) primeiramente definem que o processo de socialização lingüística dos adultos sul-asiáticos não pode ser comparado com o processo de aprendizagem da língua materna pelas crianças britânicas. Os adultos asiáticos aprendem o inglês britânico em locais de trabalho e sob a pressão das etnias brancas que os circundam de preconceitos. Na situação de “aquisição” por parte das crianças britânicas, as autoras afirmam: “L1 [first language] acquisition usually takes place in small group interaction with family and peers, in an encouraging and relaxed environment. Breaches of social norms by unexpected or unacceptable language behavior provide an opportunity for children to learn from adults within their group without the unpleasant consequences that can affect the [South-Asian] adult learner” [] acrescido.

18 Um exemplo famoso na sociolingüística, que demonstra a adoção de outros valores que não são legitimados abertamente, é o prestígio encoberto na cultura vernácula dos negros nova-iorquinos (Labov, 1972b). Entre os membros dessa cultura, os falantes que adotam os usos da etnia branca são estigmatizados. Labov descreve (1972b: 255-292) que o termo “lame” do vernáculo afro-americano é uma categoria social que se refere às pessoas que não participam das atividades do dia-a-dia na rua, e por isso não possuem o “jogo de cintura” que se deve ter para vencer os desafios da vida. Vamos assim considerar que usos mais padrão de uma variável são motivados pelo afastamento do falante de sua cultura vernácula, na tentativa de se aproximar da cultura que é valorada como prestigiada pelo grupo dominante de uma sociedade. Labov (1972b:271) afirma que esse alinhamento em direção ao padrão comportamental dominante faz com que o falante reorganize a regra vernácula aprendida na vizinhança e em casa.

1.4– A aprendizagem de –mos como afastamento do dialeto de origem

Podemos visualizar a importância da Saliência Fônica em processos de variação lingüística, correlacionados a fatos de motivação social, nos estudos de Bortoni-Ricardo (1985) e Rodrigues (1987) sobre a variável “flexão de número e de pessoa” em dialetos não-padrão do português. Nos dois estudos, foram focalizados migrantes de zonas pobres do Brasil na periferia de duas grandes cidades: Brasília e São Paulo, respectivamente. Para as duas autoras, a urbanização dos dialetos rurais se dá basicamente com o reconhecimento, por parte do migrante, de que seus hábitos lingüísticos são estigmatizados, e que portanto deveriam ser mudados. Nesse sentido, ocorre um aumento na freqüência de uso da variante –mos causado pela socialização do migrante no espaço urbano. Nos dois estudos, o uso do sufixo para a terceira pessoa do plural não indicou inovação ou mudança (ou seja, uma reordenação de fatores) em relação ao dialeto de origem. Isso pode ser observado nos resultados encontrados por Bortoni-Ricardo em comparação com os encontrados por Naro (reproduzidos por Bortoni-Ricardo, 1985:206). O estudo da autora trata da fala de migrantes mineiros em Brazlândia – na periferia de Brasília. Já o estudo de Naro (apud Bortoni-Ricardo, 1985:206) trata da fala de falantes naturais da cidade do Rio de Janeiro.

19

Tabela 1 – O efeito da Saliência fônica na freqüência da variante –m (concordância morfologicamente realizada).

Grupo de fatores come/ comem fala/ falam faz/ fazem dá/ dão comeu/ comeram falou/ falaram

Rio de Janeiro % 14 30 36 65 72 80

Brazlândia % 16 16 15 44 31 56

Como podemos verificar, a escala de acordo com a freqüência de –m dos pares menos salientes (come/comem) para os mais salientes (falou/falaram) é mais evidente no comportamento dos falantes cariocas na análise de Naro. Para Bortoni-Ricardo (1985), isso significa que a variante -m não foi reordenada nos fatores de saliência na medida em que o migrante inseria-se no meio urbano. Em variedades rurais, a única oposição que parece operante no uso da variável é o acento das palavras: nos três pares mais salientes (dá/ dão, comeu/comeram e falou/falaram) há uma tendência maior de retenção da marca de concordância do que nos pares menos salientes, que possuem o acento no radical do verbo. O emprego da variante –mos foi estudado pelas duas autoras, e foi a variável gramatical que mais apresentou mudança em relação ao grau de integração do falante migrante ao meio urbano.O papel da Saliência Fônica em relação ao sufixo –mos é outro. Como o uso do sufixo mostrou-se sensível à integração do migrante no meio urbano, o emprego de –mos cresceu sobretudo em pares mais salientes (no presente e no pretérito perfeito10), difundindo-se pouco para os pares menos salientes (o pretérito imperfeito do indicativo e pretérito do subjuntivo), nos quais a inserção do sufixo não altera a sílaba com acento11. Nos tipos de mudança propostos por Naro (1981), a comunidade apresentou uma mudança consciente com o aumento da porcentagem geral da variante nos pares mais salientes. Assim, a inovação relativa ao dialeto de origem pode ser caracterizada mais

10 11

do presente: come/ comemos e é/somos; do pretérito perfeito: comeu/comemos e foi/fomos. do indicativo: cantávamos; do subjuntivo: cantássemos.

20 particularmente como o aumento da diferença entre o uso da variante –mos nos pares mais salientes em relação aos menos salientes. À mesma conclusão chega Rodrigues (1987:251), uma vez que verifica que o uso da variante zero é, em todos grupos de fatores, maior para a terceira pessoa do plural do que para a primeira, no português de favelados da cidade de São Paulo, muito deles migrantes. A autora ainda propõe que o padrão, observado na comparação das variáveis (-m vs. zero e –mos vs. zero), revela que “a oposição entre as pessoas gramaticais é mais perceptível, por parte do falante popular, do que a oposição singular/plural”. O fato estrutural (a saliência entre o sufixo –m e o sufixo –mos) desenvolve-se quando um falante entra contato com as variedades urbanas e causa o aumento do emprego de –mos nos pares mais salientes, numa tentativa de afastar-se do dialeto de origem.

1. 5 – A aprendizagem de a gente como afastamento do dialeto de origem

A reordenação, a partir da qual se verifica a oposição entre a primeira e a terceira pessoas gramaticais, no uso dos sufixos plurais em dialetos da periferia de grandes cidades brasileiras, representa a evidência lingüística da socialização pela qual um migrante passa ao se estabelecer no novo lar. No entanto, em relação às restrições lingüísticas operantes no uso da concordância de primeira pessoa do plural, pode-se afirmar que não há propriamente uma reordenação da Saliência Fônica no uso da variante -mos, mas um aumento da diferença entre as formas mais salientes e menos salientes. Isso significa que, já no dialeto de origem, os falantes possuíam a diferenciação entre os pares de Saliência Fônica para o uso do morfema –mos e quando entraram em contato com variedades de prestígio, houve um aumento do input global da variante, mantendo-se inalterado o quadro das restrições lingüísticas. O cancelamento de –mos nos pares menos salientes também está associado a um fenômeno variável em relação às proparoxítonas do português. Nos tempos do pretérito imperfeito e do pretérito do subjuntivo, o apagamento de -mos vincula-se ao processo geral da síncope em palavras proparoxítonas nas variedades não-padrão do português no Brasil12.

12

Bortoni-Ricardo (1985: 56-57)/ (Rodrigues, 1987:152-153): cócega/cosca, árvore/arvre/arve, fígado/figo, chácara/chácra e outras tantas.

21 Deste modo, entende-se a quase total ausência do sufixo –mos entre os migrantes mineiros e os favelados paulistanos, nestas formas verbais em específico (ver gráfico a seguir).

Figura 1 – Freqüência do uso da variante zero para a primeira pessoa do plural, segundo a vogal tônica da forma padrão, entre falantes migrantes com baixo nível de escolaridade.

morfema zero em %

100 80 60

paroxítona

40

proparoxítona

20 0 Brazlândia

Brasilândia1 localidades

A correlação social que se estabelece entre o uso variável –mos vs. zero por migrantes e a inserção do pronome a gente na fala de naturais de “cidades grandes” pode ser derivada a partir da comparação desses resultados com os de Omena (2003), acerca da propagação do pronome inovador pelos fatores do grupo Saliência Fônica, no dialeto fluminense (em tempo real de curta duração). Como podemos observar na tabela a seguir, a variante a gente é favorecida nos pares menos salientes, que igualmente favorecem a variante zero para a primeira pessoa do plural (em dialetos não-padrão do português, mais especificamente).

22 Figura 2 – O uso de ‘a gente’ em tempo real de curta duração na comunidade fluminense segundo os graus de saliência fônica (Omena, 2003) 1

(a gente ) em pesos relativos

0,9 0,8 0,7 0,6

RJ (80) RJ(00)

0,5 0,4 0,3 0,2 0,1

É/ SOMOS

VAI/ VAMOS

SAIU/ SAÍMOS

FALAR/ FALARMOS

FALA/ FALAMOS

FALAVA FALÁVAMOS

0

graus de saliência fônica

Na comunidade fluminense, a variante ‘a gente’ é justamente favorecida com verbos em que a oposição fônica é menor (Omena, 2003: 69). Ou seja, nos pares menos salientes; os migrantes usam pouco o sufixo –mos, enquanto que os naturais da cidade do Rio de Janeiro substituem mais freqüentemente nós por a gente. Nos resultados do estudo realizado no Rio de Janeiro, há não somente o favorecimento da variante inovadora em pares de menor saliência, mas também há uma a tal escala mais evidente. Essa escala é mais evidente ainda nos anos 80 (curva azul, no gráfico acima), cujo padrão observado é uma linha descendente do par menos saliente para o mais saliente. Seguindo a lógica dos padrões da Saliência Fônica observados diferentemente entres as Classes Sociais para o uso variável dos sufixos de plural, podemos dizer que entre falantes de classes mais baixas é de se esperar uma menor evidência dessa

23 gradação de pares mais salientes a menos salientes no emprego variável do pronome a gente. No estudo da variedade fluminense, a porcentagem da forma inovadora permaneceu a mesma e sua distribuição no grupo de fatores apresentou somente uma inovação na comunidade: o pico de a gente com o infinitivo flexionado e com o futuro do subjuntivo. Conforme tratamos anteriormente, a conjugação em número e pessoa das formas verbais menos salientes (pretérito imperfeito e pretérito do subjuntivo) não possui também marca morfológica para a primeira pessoa do singular. O infinitivo flexionado e o futuro do subjuntivo possuem o mesmo comportamento em relação a essas formas verbais: não há sufixo para a primeira pessoa do singular. Retomando a propriedade do sufixo –mos de licenciar sujeitos nulos coindexados a objetos de sentenças anteriores, conforme vimos anteriormente, podemos dizer que o desaparecimento da propriedade de coindexação via sufixo inicia-se nas formas que já não possuíam sufixos para primeira pessoa do singular. Ou seja, é dos tempos verbais sem marca morfológica para a primeira pessoa do singular que as propriedades do morfema zero se propagam para a primeira pessoa do plural. Outro exemplo da articulação entre formas sem marca morfológica para a primeira pessoa e a propriedade de coindexação é o da forma do infinito flexionado, como nos exemplos abaixo: (k) Os nossosi pais chegaram antes de Οi ligarmos pra eles. (l) *Os (seusi) pais (delesi) chegaram antes de Οi ligarem pra eles. (m) *Os meusi pais chegaram antes de Οi ligar pra eles. No entanto, mais uma vez observamos que a forma ligarmos (em (k) acima) é caracteristicamente do registro escrito. A restrição lingüística que opera no uso do sufixo – mos é mais atuante nas formas do pretérito imperfeito, do pretérito do subjuntivo, do infinitivo flexionado e do futuro do subjuntivo. Assim, a propriedade descrita em relação à coindexação do sujeito nulo nessas formas verbais tende cada vez mais ser restrita ao registro escrito, com a influência de formas mais conservadoras. Considerando que as mesmas restrições lingüísticas operam no cancelamento do sufixo -mos na comunidade fluminense (ou seja, as formas menos salientes usadas mais freqüentemente com a variante zero: nós se encontrava), a inserção do pronome inovador na comunidade é uma estratégia de se afastar de formas mais vernáculas. Por outro lado, a

24 forma a gente é também uma estratégia de afastamento de formas muito associadas ao padrão escrito (por exemplo, nós nos encontrávamos ou ligarmos). A questão que se coloca é até que ponto essas observações da comparação entre as duas variáveis em estudo podem ser utilizadas também para explicar os fenômenos em dialetos não-padrão do português. No estudo da comunidade fluminense, mesmo que alguns falantes tenham pouca escolaridade, todos são naturais de centros urbanos e não pertencem à classe mais baixa, como são os moradores de habitações precárias tais como favelas ou cortiços. Para entender como isso implica em resultados diferentes relativamente a variedades mais baixas, com origem rural, e características de bairros mais precários das grandes cidades brasileiras, devemos antes nos aprofundar no perfil da comunidade em foco. Para tanto, no próximo item, vamos utilizar de alguns conceitos da sociolingüística quantitativa com a finalidade de caracterizar mais apropriadamente a configuração social das camadas mais baixas da população urbana.

25 2 - Comunidade de fala e configuração social na periferia paulistana

2. 1- Comunidade de fala e amostra

Neste item, vamos discutir acerca das relações entre as diferentes concepções de comunidade de fala e a amostra a ser construída para análise. Assim, interessa-nos aqui apresentar alguns pressupostos teóricos subjacentes a basicamente duas metodologias da sociolingüística, que podemos chamar de demográfica e de etnográfica. Para tanto, vamos nos valer de alguns conceitos de três expoentes da sociolingüística: Labov (1972a), Milroy (1980) e Eckert (1996). Entendemos, por metodologia, duas questões relacionadas à construção de uma amostra, a saber: (1) Como identificar grupos sociais de uma comunidade de fala? (2) Como compor um corpus representativo desses grupos sociais identificados? Quando dizemos que há pelo menos duas metodologias para a construção de uma amostra – a demográfica e a etnográfica -, queremos dizer que as duas objetivizam representar grupos sociais de natureza diferente. Na metodologia demográfica, os informantes são classificados em categorias como “jovem”, “mulher”, “classe média baixa” e etc (Labov, 1972a). Na metodologia etnográfica, os informantes são classificados de acordo com categorias etnograficamente caracterizadas, para depois compor um determinado grupo a ser estudado (Milroy, 1980; Eckert, 1996) . Na metodologia demográfica, cujo maior expoente é Labov (com sua pesquisa sobre o sotaque de um bairro nova-iorquino - Lower East Side), um corpus representativo é aquele que deve permitir a estratificação dos grupos sociais na hierarquia sócio-econômica e o desenvolvimento de análises sobre o efeito da troca de estilos na produção do falante (tais como: narrativas com forte envolvimento pessoal vs. leitura em voz alta de histórias escritas vs. leitura de listas de palavras). A metodologia de Labov está totalmente baseada no seu conceito de comunidade de fala. O autor define comunidade de fala como o conjunto de pessoas que compartilham os mesmos valores em relação a determinadas variantes. Uma variante estigmatizada, por exemplo, será menos usada por qualquer grupo social em situações de leitura. Vulgarmente,

26 poderia se acreditar que uma variante estigmatizada fosse somente usada por falantes de classes mais baixas. No entanto, como Labov demonstra, uma variante estigmatizada é usada por todas as classes sociais indistintamente. Nesse caso, a diferença entre a produção lingüística de uma classe e de outra não está no uso de uma determinada variante em vez de outra, mas está na freqüência de uso de uma determinada variante em uma determinada classe. Dessa forma, os falantes fazem parte de uma mesma comunidade de fala, porque comportam-se semelhantemente quando aumentam o uso de variantes estigmatizadas em situações mais relaxadas (como é o caso de narrativas orais com forte envolvimento pessoal). Milroy (1980) critica essa pressuposta “unificação” entre os falantes de diferentes classes na concepção consensual de comunidade de fala, desenvolvida por Labov. Para Milroy, uma concepção consensual, como essa, pressupõe que os falantes com pouco poder social na cidade “compartilham” os mesmos valores do grupo dominante. Segundo Milroy, o mais apropriado seria afirmar que os valores dominantes são impostos aos falantes com pouco poder social na cidade (ou seja, não são compartilhados). Labov, por exemplo, nota que falantes da classe mais baixa chegam à porcentagem de 90% na pronúncia não-padrão da variável (th) em situações casuais, enquanto que a classe mais alta chega a 15%. Milroy questiona: isso significa que os dois grupos compartilham uma mesma avaliação em relação à variante, ou significa que a classe mais baixa não foi doutrinada pela ideologia do uso padrão? Essa questão caminha para uma reformulação do conceito de “comunidade-de-fala” e, conseqüentemente, da metodologia. Milroy conceitua comunidade de fala como uma rede social. Uma rede social caracteriza-se pelos laços sociais entre pessoas, tais como: parentes, amigos próximos, colegas de trabalho e vizinhos. Uma análise de redes sociais localiza as pessoas nas conexões de uma comunidade em que fica evidente o grau de integração de cada membro num determinado grupo. O conceito funciona também como um princípio metodológico subjacente às estratégias da pesquisa de campo. Milroy (1980) coloca como central a preocupação etnográfica para os estudos de vizinhança, ou seja, para ela é necessário que o pesquisador esteja na localidade em estudo por um período maior de tempo. Com esse procedimento torna-se possível a observação de conversas informais e a redução do efeito provocado pelo “observador de fora” nos dados. O contato com os informantes por parte do pesquisador deve ser baseado nesse conceito de rede social. Simplificadamente, podemos dizer que

27 Milroy utiliza o procedimento metodológico “amigo do amigo”, ou seja, a partir de um indivíduo, o pesquisador marca entrevistas com seus amigos, auto-denominando-se como conhecido do indivíduo primeiramente entrevistado. Assim, a permanência do pesquisador no local torna-o familiar aos membros da rede que foram contatados. Quando o pesquisador desempenha mais o papel de “observador” do que de “participante”, ele encontra a riqueza do repertório vernacular: desde narrativas de tópicos não estabelecidos pelo pesquisador, até modos lingüísticos de “pegar no pé de alguém”, “tirar um sarro”, “encher a paciência” etc. A descrição dessas “brincadeiras” lingüísticas e também de cumprimentos (que marcam a abertura e o fechamento de uma conversa) é possível graças a uma observação etnográfica que vai além da construção de uma amostra propriamente dita. Desse modo, a observação auxilia na análise das formas vernaculares, pois estas tornam-se mais freqüentes justamente nessas ocasiões em que a relação entre os interlocutores não se centra na transmissão de mensagens propriamente ditas, mas na própria constituição da relação interpessoal. Assim, Milroy (1980:100) observa que os falantes do vernáculo da classe trabalhadora, em Belfast, desenvolvem habilidades verbais centradas na oralidade, e que elas não seriam apreendidas a partir das técnicas desenvolvidas inicialmente por Labov. As habilidades verbais descritas no estudo que este autor fez no bairro de Nova Iorque incluem o estilo leitura, que possui como grupo de referência a norma das elites. No caso da classe trabalhadora de Belfast, o grupo de referência é outro, cujo estereótipo é a figura do queer gag (na nossa cultura, algo que corresponde ao “bom conversador/prosador”). Esse termo serve como forma de tratamento entre companheiros, mas também se refere a pessoas envolventes que fazem os ouvintes rir e não ver o tempo passar, enquanto contam longas histórias cheias de detalhes. Também se verifica essa mesma preocupação em inserir a pesquisa etnográfica na sociolingüística quantitativa no modelo de comunidades de práticas sociais, desenvolvido por Eckert (1996). Em sua proposta, buscam-se significados mais locais, em que as formas não-padrão são usadas como recursos simbólicos com conotação social. No entanto, o modelo de práticas sociais não pressupõe necessariamente o convívio regular entre os membros de uma “comunidade”, como na teoria das redes sociais de Milroy (1980).

28 Para Eckert, o pertencimento a uma comunidade é definido pelas práticas sociais que identificam um grupo em particular: usos de roupas, modos de andar, dançar, falar, apreciações musicais, perspectivas de vida etc. A idéia básica que define uma comunidade de prática é o agrupamento de pessoas que realizam atividades em comum no dia-a-dia. Assim, tais comunidades são caracterizadas por três aspectos: (1) seus membros interagem mais entre si do que com membros de outros grupos, na medida em que possuem práticas em comum, (2) seus membros possuem perspectivas de vida semelhantes e (3) desenvolvem um repertório comum de formas, estilos e scripts13 que expressam seu pertencimento ao grupo. Num de seus estudos, Eckert (1996) identifica etnograficamente dois grupos numa High School do subúrbio de Detroit - que são denominados e se auto-denominam como jocks e burnouts14. Para a autora, as práticas que definem estes grupos baseiam-se primeiramente na estrutura do mercado ocupacional da cidade, conjuntamente com os locais freqüentados para o lazer e com a estrutura das redes sociais dos grupos locais. Os jocks têm valores associados à cultura de classe média, possuem redes sociais limitadas à escola, pretendem desligar-se do subúrbio quando entrarem na faculdade e não freqüentam a área central da cidade, pois consideram-na perigosa. Já os burnouts associam-se à cultura de classe trabalhadora, possuem redes sociais fortes nos bairros de origem, pretendem voltar a eles após concluir a faculdade e freqüentam a área central de Detroit, pois consideram os adolescentes da área como “mais espertos” ou ainda “mais durões”. No mercado ocupacional, os jocks vão ocupar as posições profissionais da cidade (vão se tornar advogados, médicos, professores universitários etc.) ligadas ao mercado global, enquanto que os burnouts vão ocupar as profissões manuais especializadas ou nãoespecializadas do mercado local. Os burnouts orientam sua identidade social em favor da cidade de Detroit, representada pelo estereótipo do morador do centro com seu sotaque mais característico. 13

No estudo de Eckert (1986), scripts são formas rotineiras pelas quais os falantes praticam uma ação. Assim, por exemplo, ao encontrar um amigo, os indivíduos comportam-se de uma determinada maneira que guia a interação social: através de cumprimentos, de modos de iniciar uma conversa e etc. 14 Por se tratar de dois termos com significados particulares à cultura norte-americana, não propomos aqui uma tradução literal, nem aproximada. No resumo a seguir, caracterizaremos a que se refere cada um dos termos.

29 Dessa forma, para Eckert (1996), um corpus representativo identifica falantes com comportamentos mais característicos em relação aos estereótipos criados numa cidade. Assim, a caracterização de um estereótipo congrega tanto peculiaridades de gostos e de perspectiva de vida como também peculiaridades lingüísticas. Em sua análise, por representatividade, entende-se a possibilidade de correlacionar uma determinada variante lingüística a um estilo de vida em particular.

2. 2 – O princípio da hipótese curvilínea: polarização entre classes centrais e classes dos extremos

As diferentes concepções de comunidade de fala, sobre as quais discorremos brevemente acima, possuem relação com a amostra a ser construída para análise, mas também possuem relação com o fenômeno sociolingüístico, que um determinado autor procura explicar. Nesta subseção, veremos que as diferentes concepções de comunidade de fala também acarretam um enfoque de determinado autor para explicar ou uma mudança na língua ou a permanência de uma variação. Em geral, pesquisas com metodologia demográfica ligam-se ao fenômeno de mudança na língua e pesquisas com metodologia etnográfica ligam-se, por sua vez, ao fenômeno de permanência de uma variação. No entanto, veremos que os diferentes enfoques não são conflitantes entre si, se colocados num nível de maior abstração. Tal nível pode ser definido como o dos princípios gerais que regem os fenômenos de variação e mudança. Um exemplo de princípio geral poderia ser de que as mulheres lideram o processo de uma mudança na língua (Labov, 2001:274). Este princípio é geral na medida que não se refere às mulheres de uma determinada língua ou de uma determinada sociedade. A um conjunto de princípios gerais, tais como esse, daremos o nome de modelo sociolingüístico. Dentro de um modelo sociolingüístico, podemos dizer que há pelo menos dois enfoques dos fenômenos de variação e mudança: (1) aquele que objetiva explicar por quê e como as línguas mudam, e (2) aquele que objetiva explicar por quê e como variantes nãopadrão são conservadas e persistem, apesar da unificação lingüística. Os dois fenômenos objetivados podem ser descritos como processos concomitantes num outro princípio geral: a hipótese curvilínea.

30 O princípio da hipótese curvilínea é caracterizado pelo padrão observado de mudanças lingüísticas, de acordo com a variável Classe Social. Esse padrão pode ser descrito como a tendência dos grupos sociais centralmente localizados na hierarquia sócioeconômica a exagerar no uso da forma inovadora, como ilustra o esquema a seguir. Esquema da Hipótese Curvilínea 60 50

variante inovadora

40 30 20 10 0 classe alta

classe média

classe trabalhadora

classe baixa

Na perspectiva laboviana, o objetivo é explicar a mudança lingüística. Assim, quando Labov (2001:355) demonstra o papel das classes sociais na propagação de uma forma inovadora, o autor atenta para os processos que motivam a mudança. Para o entendimento do autor, tal correlação se explica pelo fato de que os falantes de classes centrais tiveram uma ascensão social. Milroy (1980), por outro lado, está interessada em explicar a permanência das variantes não-padrão na classe baixa. Essa permanência também explicaria por quê falantes da classe mais baixa não usam tanto a forma inovadora como as classes centrais. A hipótese de Milroy é a de que o conceito de mobilidade de classe não explica porque as classes mais baixas preferem as variantes não-padrão. Como vimos anteriormente, a autora parte do conceito de rede social: em grupos sociais com redes mais fechadas, a identidade social é formada no interior de uma comunidade local, não sendo assim uma identidade baseada na ascensão social. Para explicar a permanência de variantes

31 não-padrão, a autora postula que, nas classes mais baixas, predomina uma noção de comunidade construída localmente. Assim, Milroy defende uma noção de estrutura social que é baseada não na hierarquia sócio-econômica de uma cidade, mas sim na afiliação ao “time local”15. Para analisar as características estruturais das redes sociais, em três vizinhanças operárias de Belfast, a autora considerou os conceitos de densidade, agrupamento e multiplicidade de papéis. Uma rede é mais densa quando um grande número de pessoas conhecem umas às outras ou, em outras palavras, quando as pessoas que alguém conhece também se conhecem. Um agrupamento é um conjunto de pessoas que fazem parte de uma mesma associação, como por exemplo, quando freqüentam uma mesma igreja, quando são parentes, quando participam de uma gangue etc. Já o conceito de multiplicidade está fundamentado no número de agrupamentos de que um mesmo indivíduo participa em conjunto com outros indivíduos. Num relacionamento em que cada pessoa só possui um agrupamento correspondente com outra (por exemplo, quando são colegas de trabalho) o laço é único. Distintamente, num relacionamento em que há um acúmulo desses laços entre os mesmos indivíduos, há multiplicidade (por exemplo, quando são vizinhos, quando freqüentam a mesma igreja e o mesmo local para o lazer, quando são parentes etc.). Na comparação de três vizinhanças de Belfast – Clonard, Hammer e Ballymacarrett - é na última que as redes são mais densas. Nela, todos os homens trabalham como operários da indústria tradicional, compartilham relações de parentesco e freqüentam os mesmos lugares nas horas de lazer. Nas outras duas vizinhanças, as indústrias tradicionais (de tecido, particularmente) foram fechadas, fazendo com que os homens não possuíssem o mesmo trabalho, resultando em redes menos densas e menos múltiplas, em virtude do contato mais amplo deles quando são empregados do setor de serviços ou de comércio espalhados pela cidade. Labov (2001:325-328) contesta que a noção de comunidade localmente construída possa ser mais eficiente, para uma análise sociolingüística, do que fatores sociais como

15

Nas palavras de Milroy (1980:14) : “unlike the more abstract social classes, these group have strong territiorial basis”.

32 classe, por exemplo. Entretanto, ele não descarta a análise de redes como também explicativa das mudanças lingüísticas. Para Labov, a correlação entre a rede social dos líderes da mudança (pessoas que usam formas inovadoras com maior freqüência) e seu comportamento lingüístico só complementam o padrão observado da mudança em progresso nas cidades do nordeste dos Estados Unidos, a saber: as mulheres têm um papel significativo, os mais jovens são aqueles que mais aderem à forma inovadora, e as classes centralmente localizadas na hierarquia sócio-econômica (a classe trabalhadora alta e a classe média baixa) são aquelas que lideram uma inovação. No estudo realizado na Filadélfia, Labov (2001:355-356) caracteriza a líder das mudanças em progresso como uma mulher, moradora de um bairro de classe média baixa, que interage intensamente com seus vizinhos, mas que também revela um alto grau de integração com outros falantes espalhados por toda a cidade. Portanto, a líder é centralmente localizada na rede local, de tal forma que ela serve de canal entre dois ou mais grupos sociais: um grupo baseado nos relacionamentos vicinais e o outro baseado nos relacionamentos com outros setores da sociedade. Tal caracterização da líder da mudança em progresso (no caso, a falante Celeste S.) reforça a tese laboviana de que as variantes inovadoras propagam-se de um centro em direção a outros setores mais segregados da sociedade, incluindo-se aí setores da própria vizinhança. Como observamos, a distribuição da forma inovadora, em função da classe social, apresenta um padrão curvilíneo, ou seja, concentra-se na fala das classes centrais. A mudança progride quando, a partir dessas classes mais centrais da cidade, as formas inovadoras propagam-se às classes mais acima e mais abaixo da hierarquia sócioeconômica. O complemento que a análise de redes trouxe para o modelo sociolingüístico foi a possibilidade de entender como esse padrão de propagação – de setores mais centrais a setores mais marginais – ocorre também no âmbito da vizinhança. A falante líder da mudança não só é “líder” no sentido de que é aquela que mais exagera no uso das formas inovadoras, mas também porque ocupa o papel central de líder comunitária no bairro. O papel de líder torna-a referência para os vizinhos, ao mesmo tempo em que seu cargo promove seu contato com as mais diferentes classes da sociedade, que vão além da

33 vizinhança restrita. Labov (2001:364) resume seu postulado geral no conceito de centralidade expandida, que agrega tanto a difusão das formas inovadoras pelas classes sociais como pelas redes sociais dos indivíduos. Por outro lado, quando estuda o inglês afro-americano, Labov (1972b:257) atenta-se para os fatos que explicam a resistência à uma mudança lingüística nas extremidades da hierarquia sócio-econômica. Para descrever o controle exercido pelas gangues de jovens no Harlem (bairro de Nova Iorque) sobre o comportamento lingüístico, ele compara a pressão entre os membros dessas gangues com o controle exercido pelas escolas privadas de tradição britânica entre os jovens da classe mais alta. Portanto, redes densas e fechadas, mesmo que entre grupos bem distantes geográfica e socialmente, motivam a focalização de variantes prestigiadas, na parte alta da hierarquia, e de variantes não-padrão, na parte baixa da hierarquia. Apoiada nessa explicação de resistência à mudança (formulada por Labov), Milroy (1980:183-189) demonstra que, assim como as classes trabalhadoras mais baixas, os falantes britânicos, que ocupam as posições mais altas da hierarquia, não possuem mobilidade de classe (por razões diferentes), ocupam territórios bem estabelecidos, e são agrupados por redes múltiplas que incluem laços de parentesco e de amizade, assim como interesses e associações em comum. Segundo a autora, os esportes de caça da classe mais alta são os equivalentes funcionais dos “pubs” da classe trabalhadora (sendo que, nos dois casos, “pessoas de fora” nunca são bem-vindas). Nas extremidades da hierarquia, as redes densas e múltiplas são baseadas em trocas entre iguais, levando Milroy a afirmar que esse tipo de rede pode ser observada em qualquer nível da sociedade em que há igualdade de necessidades. Isso leva a autora a concluir que a negociação para preservar o privilégio de classe no alto da hierarquia utilizase das mesmas estratégias de controle inter-grupal usadas em posições mais abaixo da hierarquia, como em redes de ajuda mútua para casos de urgência (tais como falta de comida, roupa, tratamento hospitalar, etc.). Na interpretação de Milroy (1980:185), falantes que têm chance de mobilidade de classe perdem as condições necessárias para formar e para preservar as trocas entre iguais. Isso acontece porque a mobilidade ascendente pressupõe que o indivíduo rompa com sua classe de origem, de tal modo que se afaste de sua identidade de classe inicial. Nessa

34 perspectiva, a mudança lingüística é um fenômeno observado na fala de indivíduos que aspiram a uma mobilidade na hierarquia sócio-econômica. Lingüisticamente, o movimento do falante na hierarquia social correlaciona-se à sua tentativa de se afastar de formas estigmatizadas. Tal afastamento de formas estigmatizadas é semelhante àquela definida por Labov (1972b:180) para explicar o uso “lame” das variantes no inglês afro-americano: uma tentativa de esquivar-se da pronúncia vernacular de origem, com a adoção de normas do grupo dominante mesmo que de maneira não-completa (ou identificada com os estratos mais baixos do grupo dominante de etnia européia). No entanto, Milroy acrescenta que a mudança lingüística, observada nas classes centrais, não é só um afastamento em relação ao vernáculo de origem, mas também um afastamento em relação ao dialeto mais prestigiado. A vogal /a/ do inglês de Belfast, em palavras como bag (em Belfast pronuncia-se I

[ba g]) é um bom exemplo desse afastamento duplo. Observa-se uma pronúncia amplamente aceita como “mais correta” em que há a inserção de uma velar vozeada que não segue diretamente o RP (sigla para “received pronunciation”), cuja “precrição” é a pronúncia sem esse ditongo. Já na pronúncia estereotípica do vernáculo de Belfast, a inserção da velar também ocorre, mas a vogal no núcleo é relativamente mais elevada [bΕIg], e indica falantes de variedades locais amplamente estigmatizadas. O esquema abaixo ilustra o fenômeno.

Esquema: Pronúncias da palavra /bag/ em Belfast.

35

60 50

bΕ Ig

bag

40

baIg

30 20 10 0 classe alta

classe média

classe trabalhadora

classe baixa

A pronúncia mais amplamente aceita é aquela mais usada nas classes centrais. Essa pronúncia não tem uma influência direta do dialeto padrão, mas, ao mesmo tempo, evita uma associação da forma ao grupo estigmatizado. Este tipo de fenômeno foi caracterizado por Milroy como “not an imitation of a prestige norm on the one hand, nor an uncoscious adoption of a nonprestige norm on the other” (1980:188). Portanto, a correção da fala, produzida pelos indivíduos com mobilidade de classe, acontece como um afastamento duplo tanto em relação ao vernáculo de origem, quanto ao RP. 2. 3 – A interação entre as variáveis Classe Social e Gênero/sexo16

Ainda tratando de mudança lingüística, notamos que Labov (2001) observa o papel de liderança das mulheres. Já Milroy (1980), quando enfoca a preservação de variantes estigmatizadas, localiza os homens que trabalham numa mesma indústria tradicional como os mais conservadores. As mulheres, pode-se dizer, são mais conformistas pois lideram o uso de formas recém prestigiadas em virtude de mudanças em progresso e eliminam formas estigmatizadas em variações sociolingüísticas estáveis (Labov, 2001:274). Portanto, para 16

Utilizamos o termo “gênero/sexo” para distinguir diferenças sociais entre homens e mulheres. Também vamos nos referir a essa variável como “papéis de gênero”, mas empregamos esse termo quando é necessário salientar a construção de identidades sociais e culturais relativas a diferenças entre homens e mulheres na comunidade em estudo.

36 Labov, um meio de se verificar uma mudança é observar o aumento da freqüência de uso de uma variante em falas mais cuidadosas das mulheres da classe média baixa. Num nível de maior abstração, que estamos propondo para a caracterizar um modelo sociolingüístico, esse princípio de liderança das mulheres é importante pois demonstra a interação entre classes sociais e papéis de gênero. A razão por que as mulheres da classe média baixa adotam as formas prestigiadas pela comunidade pode ser explicada como um reflexo da pretensão, que uma mãe possui, de que seus filhos consigam ascender socialmente (Labov, 2001:278). Portanto, mães da classe média baixa são as mais preocupadas em adotar as formas mais prestigiadas na comunidade (Labov, 2001:276). Na leitura que Bourdieu (1997:37) faz dos padrões sociolingüísticos observados em relação ao gênero, o autor expõe que as mulheres estão condicionadas a uma postura de docilidade em relação aos usos prestigiados. Numa sociedade de dominação masculina, as mulheres que aspiram a ascender socialmente são levadas a adotar uma identidade submetida a valores dominantes, como por exemplo, a aceitação de serem mulheres “mais educadas”. Particularmente quanto à resistência dos homens de Nova Iorque em aceitar as normas legitimadas ou as mudanças em progresso, Bourdieu (1997:74) observa que o papel do conformismo em relação às normas legítimas integra-se a uma maneira de agir predominantemente feminina. O autor afirma: “Compreende-se então as razões pelas quais, da perspectiva das classes dominadas, a adoção do estilo dominante aparece como uma renegação da identidade social e da identidade sexual, ou melhor ainda, um repúdio dos valores viris constitutivos da pertinência de classe. É isso que faz com que as mulheres possam se identificar com a cultura dominante sem romperem com sua classe de maneira tão radical como os homens. “Abrir sua (enorme) boca” é o mesmo que recusar a se submeter (ou seja, a fechá-la), a manifestar os signos de docilidade que constituem a condição da mobilidade. Adotar o estilo dominante, e em particular um traço tão marcado quanto a pronúncia legítima, significa de alguma maneira renegar duplamente sua virilidade, porque o fato mesmo da aquisição requer a docilidade, disposição imposta à mulher pela divisão sexual do trabalho (e pela divisão do trabalho sexual), tendente a orientar no sentido de disposições elas próprias percebidas como afeminadas ” (Bourdieu, 1997:77) A adoção de formas legítimas está, para Bourdieu, totalmente atrelada à imposição de uma censura, que domestica até mesmo o corpo. Essa submissão de toda “hexis corporal” é mais atuante na educação das mulheres, pelo papel social atribuído a elas na

37 criação dos filhos. Essa domesticação age para que o corpo afaste-se de manifestações exageradas ou de demonstrações públicas de afetos e submeta-se a disciplinas de postura. A censura mais intensa e estereotipada em relação ao uso de “palavrões” que soam “pesados na boca de uma menina” no seio da “boa família” reflete a metáfora que diz serem as mulheres mais “delicadas” ou mais “dóceis”. Numa outra perspectiva, o desenvolvimento de uma nova imagem da mulher, no decorrer do século XX, explicaria sua liderança nos processos de implementação de uma mudança lingüística. Lopes (1995), Omena (1996) e Zilles (2002), por exemplo, sugerem que mulheres de classes sociais mais elevadas começaram a usar mais frequentemente a gente, durante as décadas de 60 e 70. No mesmo período, houve mudanças sociais em relação aos valores tradicionais da família e de outras instituições sociais (que culminarem com o processo de democratização do país nos anos 80). Foi nesse arcabouço de mudanças sociais que se deu uma maior integração das mulheres no mercado de trabalho (em posições antes ocupadas só por homens), sua entrada em universidades e o crescimento de idéias feministas. Zilles (2002:304) considera, portanto, que a difusão da forma inovadora correlaciona-se com essa nova identidade feminina17. Nota-se que, em outra afirmação sobre o uso de a gente, Zilles complementa: “By adopting the new pronoun, speakers are able to avoid the strong social stigma associated with lack of agreement between subject and verb”. Com isso, podemos supor que o uso da variante a gente se aproxima da estratégia do falante de se afastar de formas estigmatizadas. Como vimos, a interação observada entre Gênero/sexo e Classe Social acarreta no princípio que afirma ser as mulheres com ascensão social as líderes da mudança lingüística. Portanto, com base no trabalho de Zilles (2002), podemos dizer que os fatos sociais correlacionados à inserção de a gente enquadram-se em dois princípios gerais do modelo sociolingüístico: (1) o papel das mulheres e (2) a mobilidade de classe.

2. 4 – Modelo sociolingüístico e diferenças de configuração social

17

Nas palavras da autora: “perhaps the new form was taken up by women as a signal of their new identity”.

38 Até a sub-seção anterior, vimos tratando de dois princípios gerais do modelo sociolingüístico: a liderança das classes centrais da hierarquia sócio-econômica e a liderança das mulheres na propagação de uma mudança lingüística. Esses princípios podem ser observados num nível de maior abstração, que compõe o modelo sociolingüístico de variação e mudança. Na presente sub-seção, interassa-nos os pontos mais particulares em razão do contexto sócio-histórico no qual cada estudo foi empreendido. A esses pontos mais particulares de uma sociedade, em uma determinada época, chamaremos de configuração social. Nesse sentido, as diferenças mais chamativas entre os trabalhos de Labov (2001) e Milroy (1980) dizem respeito à configuração social particular dos grupos que foram estudados em uma determinada conjuntura histórica. No estudo das variantes em Belfast (Milroy, 1980), por exemplo, Trudgill (em um dos dois prefácios ao livro) lembra que a pesquisa foi realizada num momento de tensão, já que a Irlanda estava em estado de guerra, por sua independência. Desse modo, a norma lingüística de grupos da classe trabalhadora estava mais perceptível, e sua observação, portanto, pôde ser feita de modo mais direto. Labov (2001:322), por outro lado, localiza as origens das mudanças lingüísticas do sistema vocálico, na fala da etnia européia, no período entre as duas grandes guerras mundiais. É a partir desse momento que os Estados Unidos vão ganhando visibilidade como potência global. A interação entre Gênero/sexo e Classe Social, ocorre, sobretudo, com a promoção de variantes antes estigmatizadas em relação ao RP do padrão britânico. Tais variantes foram sendo valoradas no mercado lingüístico norte-americano, ao mesmo tempo em que o papel do país no mundo tornou-se mais significativo. Muitas vezes, portanto, determinadas configurações sociais ajudam a tornar evidentes determinados princípios do modelo sociolingüístico para a análise do uso da linguagem. Para Labov (1994:24), mesmo os postulados mais centrais, como a gradualidade da mudança, devem ser relativizados diante de uma configuração social determinada. Em outras palavras, apesar de incomuns, alterações abruptas e reversões em mudanças em progresso podem ser motivadas pelo próprio “quadro externo” de uma língua. Labov (2001:75) questiona qualquer tipo de “regularidade da mudança” (um pressuposto neogramático), uma vez que a língua é descontextualizada da sociedade. O autor deixa muito claro que seus “princípios da mudança lingüística” são apoiados em

39 estudos de grandes cidades (na Filadélfia, em Nova Iorque, em Norwich e em Panamá) e em estudos de outras “comunidades euro-americanas” do nordeste do país (2001:32). No entanto, não devemos entender que se trata unicamente de um contexto histórico restrito; ao contrário, trata-se de formulações sobre a mudança lingüística que criam um debate dentro de um modelo explicativo que pode ou não ser levado para outras comunidades com relativas semelhanças. Na perspectiva de Bortoni-Ricardo (1985), os estudos sociolingüísticos, no mundo, podem ser agrupados de acordo com os tipos de configuração social em foco: (1) comunidades multilíngües ou multidialetais (por exemplo, na Europa); (2) comunidades crioulas ou pós-crioulas (como na África e Ilhas Caribenhas); e (3) comunidades majoritariamente monolíngües, em que há variedades urbanas e/ou étnicas simultaneamente a um quadro geral de escolarização (como nos Estados Unidos). A autora não enquadra a situação lingüística do Brasil em nenhuma dessas configurações. Similarmente aos Estados Unidos, o Brasil é um país de grande extensão com uma população em sua maioria monolíngüe18. No entanto, diferentemente dos Estados Unidos, a escolarização brasileira não unifica os comportamentos lingüísticos e não há, como no caso do “inglês afro-americano”, o surgimento de uma identidade étnica de reafirmação de variantes amplamente discriminadas. Desse modo, Bortoni-Ricardo defende que a caracterização geral da “comunidade brasileira de fala” é peculiar em relação às outras. Na concepção da autora, o elemento caracterizador da diglossia no Brasil é unicamente a exclusão social. Ela argumenta que o monolingüismo aparente convive com um continuum entre variedades rurais (como o dialeto caipira) e variedades urbanas (associadas de alguma forma ao grupo social detentor do uso legítimo). Relativamente às variantes lingüísticas, Bortoni-Ricardo distingue aquelas com uma estratificação gradiente ao longo da escala dialetal e aquelas com distribuição descontínua (ou seja, comuns apenas em variedades sujeitas ao estigma). As variantes do primeiro tipo (como por exemplo, queda do r em infinitivos) são usadas por todos os falantes

18

Bortoni-Ricardo (1985:2-3) considera que os pequenos contingentes que exibem graus de bilingüismo variado no Brasil - tais como grupos indígenas e grupos descendentes de europeus e asiáticos - não comprometem a caracterização majoritária do país como monolíngüe (mas a existência dessas exceções não deve ser negligenciada).

40 indistintamente. Já as variantes descontínuas seriam “estereótipos” de falas de comunidades mais segregadas (geográfica e socialmente), com pouca escolarização e com raízes rurais (como por exemplo, a iodização do /lh/).

2 . 5 – Configuração social paulistana e implicações para o modelo sociolingüístico

Nas subseções anteriores, percorremos alguns princípios gerais do modelo sociolingüístico e iniciamos um debate sobre como esses princípios podem ter configurações sociais diversas. Descrever a configuração social de uma determinada comunidade implica em salientar o contexto sócio-histórico em que uma dada mudança lingüística ou uma dada variação ocorre. Nessa subseção, vamos nos deter mais especificamente às peculiaridades de comunidades localizadas na periferia de São Paulo. Dois fatos merecem destaque para a descrição do dialeto de comunidades como essas, nos dias de hoje: (1) a cidade deixou de ser um centro de atração migratória e (2) houve um agravamento de certos padrões demográficos no mercado ocupacional da cidade. Relativamente à migração, Pasternack (2002), estudando os padrões demográficos das favelas na periferia paulistana, conclui que a porcentagem de migrantes diminuiu nos últimos anos num padrão semelhante ao observado na metrópole como um todo. Isso não significa dizer que as favelas de periferia deixaram de concentrar o maior número de migrantes de zonas pobres do país (principalmente da zona rural nordestina) em comparação à cidade como um todo. O padrão demográfico indica que os migrantes são avôs e avós, pais e mães de gerações de novos paulistanos. Já em relação às mudanças no mercado ocupacional, há um grande debate entre cientistas sociais sobre se a expansão do setor terciário deve-se a uma etapa do desenvolvimento de atividades mais modernas ou um aumento da pobreza (Caldeira, 1999). Alguns argumentam que a expansão do setor é um reflexo do desenvolvimento de um tipo de produção mais flexível, em que muitas atividades antes registradas como produção industrial começaram a ser administradas como serviços, e em que o papel das tecnologias avançadas e de atividades financeiras se expandiu. Outros, no entanto, tentam relativizar essas asserções, mostrando que os setores do terciário que de fato se expandiram são muito precários – como, por exemplo, o comércio

41 ambulante e atividades não especializadas desenvolvidas sem contratos formais de trabalho. Nesse aspecto, São Paulo estaria inclusa entre as cidades chamadas “globais”, em que tanto o pólo mais “dinâmico” quanto o mais “precário” da economia se expandem simultaneamente, provocando formas agudas de desigualdade social. Assim, hoje em dia, no alto da hierarquia da cidade, temos um setor “dinâmico” da economia com diferentes graus de bilingüismo entre variedades do português culto e línguas importantes para o mercado lingüístico global (como o inglês de modo mais geral e o espanhol decorrente das relações com o Mercosul) e, na parte baixa da hierarquia, um setor com trabalhadores mais marginais como camelôs, perueiros, ajudantes de pedreiros etc., que não detêm nem mesmo uma aprendizagem completa das normas mais aceitas do português em São Paulo. A existência de variantes descontínuas, em dialetos não-padrão do português, e até ausência de bilingüismo são fatos impeditivos à ascensão social dos falantes dessas camadas mais marginalizadas. De modo geral, essas características apontadas reproduzem a polarização entre variedades mais baixas em relação a variedades mais altas no continuum dialetal proposto por Bortoni-Ricardo (1985), no Brasil. No entanto, hoje em dia, na cidade de São Paulo, a origem rural deve ser cada vez mais associada ao modo como “meus avós/ meus pais falam”. Para Bortoni-Ricardo (1985) e Rodrigues (1987), a configuração social do Brasil revela que as diferenças dialetais na fala de classes mais escolarizadas, comparada à fala de classes mais pobres da população, demonstram antes processos de exclusão do que propriamente a formação de uma identidade das classes trabalhadoras urbanas. Uma maneira de verificar isso é através do resultado encontrado nas análises das duas autoras de que são os homens das classes trabalhadoras que mais alteram seu comportamento lingüístico em direção aos valores da “cidade grande”19. Isso traz implicações teóricas importantes ao modelo sociolingüístico, pois não é característico dos padrões observados em outras cidades a aceitação fácil dos valores dominantes pelos homens da classe trabalhadora. Essa configuração particular (quanto à ausência de um grupo de referência contrário às normas prestigiadas entre os homens da classe trabalhadora) pode ser associada a algo 19

Essa questão será mais amplamente abordada no próximo capítulo.

42 que dois sociólogos (Oliveira, 2003; Kowarick, 1975) atribuem à peculiaridade da formação da classe trabalhadora urbana no Brasil. Oliveira (2003:130), quando analisa os efeitos da economia pós-industrial, conclui que o crescimento do que antes era chamado de “exército de reserva” nas cidades demonstra claramente como os setores de atividades informais não são (e nunca foram) “formas arcaicas” que a modernização do país iria gradativamente superar. Também é bem observado por Kowarick (1975) que a emergência rápida da necessidade de uma mão de obra barata e desqualificada, na industrialização dos anos 70, não criou gerações de famílias de trabalhadores urbanos no Brasil. A partir de uma leitura possível dos dois sociólogos, dois fenômenos podem ser considerados para explicar as peculiaridades da classe trabalhadora urbana no Brasil: (1) a “sensação” de mobilidade de classe, entre os migrantes com trabalho estável, em contraponto com o grande restante da classe popular desempregada e subremunerada; e (2) a falta de condições propícias à criação de uma tradição familiar através das gerações, na classe trabalhadora. Se comparamos esses dois fatos, que caracterizam essas classes urbanas paulistanas, com aqueles descritos por Milroy (ver sub-seção 2.2 acima) acerca de Belfast, podemos dizer que os parâmetros que caracterizam uma rede densa e múltipla, característica das classes trabalhadoras tradicionais do Reino Unido, nunca encontraram elementos favorecedores na conjuntura da cidade de São Paulo. Primeiro, porque a mobilidade de classe não é generalizada e, segundo, porque a estabilidade no emprego , em São Paulo, não acarreta a formação de redes densas e múltiplas na classe trabalhadora. Em São Paulo, grande parte dos pais de família com ocupação estável, moradores da periferia paulistana, são trabalhadores da construção civil, basicamente carpinteiros e mestres de obras (Pasternack, 2002). Junto com eles, numa situação relativamente mais estável no mercado ocupacional, é possível imaginar porteiros, garçons, atendentes, seguranças etc. característicos das classes populares em São Paulo. Em nenhuma dessas ocupações, observa-se a reunião de trabalhadores num mesmo bairro, por exemplo. Por outro lado, como eles são em sua maioria migrantes (Pasternack, 2002), não podemos dizer que há a formação de uma comunidade localmente construída.

43 Por essas razões, podemos descrever a entrada do migrante no mercado ocupacional como sua ascensão social. O contato dele com falantes de classe média articula-se com seu tipo de posição no mercado ocupacional da cidade. O motivo por que eles não manifestam valores contrários aos dominantes explica-se por sua ascensão social entre aqueles da classe trabalhadora urbana.

2. 6 - A formação de um grupo de referência urbano: Os mano na periferia de São Paulo

Um dos fenômenos culturais que mais chama à atenção na cidade de São Paulo, a partir dos anos 90, é a formação de um movimento social direcionado aos jovens de periferia. Trata-se do movimento hip hop que busca criar um ethos de auto-valorização dos jovens periféricos numa cidade de São Paulo que não é mais aquela terra de oportunidades como foi para seus pais. O movimento hip hop é composto por músicos, dançarinos, organizadores de eventos, grafiteiros e escritores de literatura marginal. Eles vão representar setores das camadas mais pobres da periferia que experimentaram uma certa mobilidade de classe, motivada pela formação de um mercado de consumo alternativo. No entanto, a mobilidade de classe dos artistas, ligados ao movimento hip hop paulistano, não rompe com a identidade de sua classe de origem. O grupo de referência do ethos desses jovens é denominado em uma categoria nativa20 “ mano”. Essa categoria é utilizada como forma de tratamento e também como forma de se referir a um indivíduo do gênero masculino. Nas letras de música do grupo Racionais MC’s, o tratamento por mano indica uma intenção de igualdade e solidariedade As letras, no geral, são apelos dramáticos ao irmão periférico (tais como “junte-se a nós”, “aumente nossa força”). Não querem, portanto, a criação de um fascínio verticalizante como aquele criado pelos artistas da grande mídia. Ao contrário, os músicos insistem na igualdade entre artistas e público: todos de origem pobre, filhos de nordestinos, vítimas da mesma discriminação na cidade e da mesma falta de oportunidades. A relevância de citar o movimento hip hop na atual pesquisa está no reforço dado ao estereótipo do mano. Esse reforço explicita um novo grupo de referência baseado em uma 20

O termo “categoria nativa” é empregada aqui tal como na antropologia cultural (Magnani & Torres, 2000).

44 identidade social característica da cidade de São Paulo. Na sociolingüística brasileira, falantes de dialetos não-padrão do português são definidos sempre pela negativa, ou seja, por não pertencer à classe média escolarizada das grandes cidades. A mídia, a escola e o trabalho são vistos como meios difusores de uma só língua que unifica os falantes num modelo que possui como referência a classe média. O movimento hip hop tenta, ao contrário, ter uma “atitude” reativa a esses valores impostos pelo grupo dominante. O grupo Racionais MC’s, por exemplo, recusam-se a apresentar-se em programas da grande mídia, posicionado-se contra os canais de transmissão com valores de classe média. A criação de um grupo de referência que tem contrapartida lingüística em São Paulo assemelha-se mais à resistência lingüística das comunidades afro-americanas descritas por Labov (ver seção 2.1): não apresentam os mesmos valores em relação às variantes do uso lingüístico. Essa semelhança pode ter sido motivada pelo processo de incorporação do rap norte-americano na cultura popular paulistana, principalmente entre os jovens de periferia. Duas fontes ligadas ao movimento hip hop paulistano nos serviram como inspiração para a caracterização esboçada: as letras de música do grupo Racionais MC’s e o romance de literatura marginal Capão Pecado - com autoria de Ferréz. Na observação dos processos de identificação, ficou em evidência que a categoria nativa mano, nas obras em análise, opõe-se enquanto orientação identitária a outras que fazem parte dos grupos de referência comuns na cidade de São Paulo. Nas orientações identitárias, que servem para formar as comunidades de práticas, segundo Eckert (1996), os adolescentes de etnia européia dos Estados Unidos tinham claramente a possibilidade de negociar e escolher a que grupo iriam alinhar-se. No caso de São Paulo, o boy, que identifica o adolescente de classe média do gênero masculino, não forma um grupo de referência com práticas sociais que um jovem de periferia quer ou pode adotar na formação de sua orientação identitária. Ainda que desenvolver uma orientação identitária contra aos valores impostos pelos grupos dominantes seja uma novidade, a identidade do mano ainda guarda fortemente o sentido de exclusão social que era o único fator responsável pela manutenção de formas estigmatizadas nos dialetos não-padrão do português no Brasil - como vimos na sub-seção anterior. As letras de música dos Racionais MC’s às vezes são formadas por diálogos entre dois manos que “trocam uma idéia”, ou possuem a figura de um cantor/narrador que se

45 dirige diretamente ao ouvinte, ora supondo que seja outro mano – e nesse caso, solidarizase e tenta chamá-lo à “consciência” -, ora supondo que seja um boy, um burga, uma perua – e então, ele confronta-se com eles e considera-os inimigos. No trecho a seguir, da música “Negro Drama”, o cantor/ narrador dirige-se às mães dos boys, consumidores de classe média, que curtem o som dos Racionais MC’s para se sentir parte da “bandidagem”:

Problema com escola Eu tenho mil fita Inacreditável, mãe, seu filho me imita, No meio de vocês Ele é o mais esperto Ginga e fala gíria, Gíria não, dialeto! Na letra, o modo de falar do mano, que “dá problema na escola”, é um dialeto com características que transcendem a sua classe social. O cantor/ narrador não se refere a um conjunto de “palavras-da-rua”, ou seja, “gírias” ou “palavrões”, mas a um estilo-de-vida em que o modo de falar é mais um dentre outros comportamentos característicos. Se alguém “imita” a ginga e o dialeto “dos mano” é por que se serve de um modelo, um estilo. Esse estilo, baseado na cultura popular da periferia paulistana, é referência também para o jovem de classe média, que mesmo com seu diploma de escola particular, ainda quer a ginga e o dialeto dos manos. Somada a essa reação contra o boy, a identidade do mano defendida pelo movimento também opõe-se a outros estereótipos criados em relação aos jovens de periferia em São Paulo: ao do traficante com sua maneira fácil de juntar dinheiro para satisfazer seu fascínios de consumo da classe média, e ao do peão, feliz com sua posição subalterna no mercado ocupacional da cidade. O traficante representa o caminho mais fácil para o jovem de periferia subir na vida, mas que “não está nem aí para ninguém”, que “só defende o dele” e que não tem escrúpulos de vender drogas à molecada. A outra orientação identitária é a do “Zé Povinho”, ou ainda do “peão”, a quem falta a postura ou a atitude, porque se ilude quando pensa que pode, pelo trabalho, destacar-se dos seus semelhantes, negando suas origens. No romance de Ferréz, Capão Pecado, as opções entre o crime e posições subalternas no mercado de trabalho aparecem como central na formação da personagem

46 principal e no desenrolar do enredo. A personagem principal é Rael, que, ao contrário de outros manos, sempre teve o gosto pela leitura e caiu no mundo do trabalho muito cedo:

“Seu aspecto sempre agradava as mães dos colegas: gordinho, cabelo todo encaracolado, e um óculos grande e preto que ele já usava há muito tempo. Tudo isso lhe conferia a aparência de um pequeno cdf ” (Cap.1:26).

O “cdf”, representado pela personagem Rael, é a versão adolescente do “Zé Povinho”, que está em consonância com os valores adultos da comunidade. No enredo, Rael apaixona-se e começa a ter um caso com a namorada de um amigo seu, que, ao contrário do protagonista, ficava o dia todo vagabundeando em casa em frente ao vídeo game. A “primeira lei da favela, parágrafo único: nunca cante a mina de um aliado, se não vai subir”21 é questionada por Rael justamente em razão de suas qualidades de bom trabalhador e em razão de suas boas intenções para com Paula, a então namorada do amigo. Com essas qualidades, que Rael acredita ser um destaque em relação aos outros, que estão deixando a vida passar por causa da vagabundagem, é que ele se arma contra a lei máxima de sua comunidade. No entanto, nenhuma tragédia acontece, uma vez que o amigo “vagabundo” perdoa Rael de maneira pacífica. Diz o amigo: “da trairagem nem Jesus se salvou”. O perdão do amigo é seguido pela promoção de Rael no seu emprego. A promoção é a recompensa que vem de fora, da metrópole dos patrões e da ética do trabalho. Sua saída do bairro, mesmo como zelador, coloca-o longe daquilo tudo: do inferno e das leis duras da favela. Ao final do enredo, Paula, já casada com Rael, foge com o patrão. Rael descobre a traição da esposa e une-se a um assassino em série para vingar sua honra ferida. Então Rael é preso junto com o assassino. O então bom trabalhador e o bandido têm um mesmo destino: a penitenciária. A isso soma-se o fato do amigo de Rael, que sempre acordava tarde e era vagabundo, ser descrito ao final como um proeminente figurão do tráfico. Em nossa leitura de Capão Pecado, podemos dizer que, na favela, o grupo de referência mais visível é o do bandido ou o do traficante de drogas, pois eles não mudam do

21

O verbo “subir” aqui é sinônimo de “morrer”.

47 bairro por ter subido na vida. Ao contrário, o bom trabalhador só volta ao bairro de origem quando fracassa, e resolve se envolver no crime pela honra ferida. As manifestações artísticas do movimento hip hop explicitam identidades sociais associadas a estereótipos comuns na periferia paulistana. Nesse sentido, podemos descrever duas orientações identitárias na realidade da periferia: o trabalhador e o bandido.

2. 7 - O uso expressivo de “É nóis” no dialeto de mano

Nesta subseção, daremos destaque a uma construção lingüística característica na canção e na escrita dos artistas ligados ao hip hop. Vamos nos deter mais particularmente no uso do pronome nóis com o verbo sem morfema de plural no par mais saliente: nóis é/nóis somos. A análise dessas construções emcontrou sua motivação na possibilidade do paralelo que pode ser feito delas com a elevação extrema da vogal a pelos burnouts, descrita por Eckert (1999:58). Sob uma perspectiva mais demográfica, as variantes inovadoras ou vernáculas são basicamente descritas como parte de um estilo de fala em que não há monitoramento lingüístico (como em situações relaxadas ou espontâneas). Eckert demonstra que, ao contrário daquela perspectiva, uma alternância entre variantes pode mostrar o uso da variante mais vernácula como recurso expressivo do falante na produção do texto. Os casos de elevação extrema na vogal ocorriam mais apropriadamente em tópicos que tratavam das práticas sociais comuns aos burnouts (como problemas com a escola, consumo de bebidas e drogas, passeios noturnos, envolvimento em brigas, etc.). É preciso entender que o falante identifica o uso dessa variante a uma determinada comunidade de práticas, de modo que ele possa se utilizar da variante como recurso estilístico para a produção de sentidos. Portanto, na análise da autora, o uso de variantes mais vernáculas estão também correlacionadas a usos mais ou menos intencionais, por parte do falante, com o objetivo de expressar uma determinada orientação identitária. Os exemplos de “É nóis” a seguir foram extraídos de letras de música dos Racionais MC’s e de um depoimento do romance Capão Pecado. Neles, o exagero no uso de

48 construções do tipo [Nóis + V-zero] indicam o uso deliberado de uma construção que delimita uma identidade social do mano, em São Paulo. Na passagem a seguir, um dos cantores mascara-se como um mano que “tira sarro” de outros manos mal vestidos que chegam a um local. Ele fala da roupa deles e do fato de chegarem todos juntos como se fossem um “bolinho”. A provocação é logo atacada pelo locutor, que responde falando dos seus gostos, da vizinhança de onde veio e termina com um “é nóis no pente” que se parafraseia em “estamos aí para o que der e vier”:

-

Ih! Esses manos aí De bombeta branca e vinho, agitando as festa, chega no bolinho. Respeita doidão! Aí não fala assim, bolinho pra você é família! Veja bem, escuta a natu, o espírito, sou loko da zona sul eu vivo a reali, vou superar a missão do sofredor ,é se adiantar é quente ah é... Quente vale das virtude, é nóis no pente! (1 Por Amor 2 Por Dinheiro, Racionais Mc's)

Logo adiante, a resposta às provocações é seguida de um discurso de valoração dos manos em ataque ao outro, que tira sarro deles por se vestirem mal e terem cara de ladrão. Mais uma vez para contrapor-se ao outro que tira sarro, o locutor evoca um “nóis é mato” com o sentido aproximado de “temos sim cara de ladrão, e daí?”:

Tem na mão, na mão. Vida loka é só quem é um guerreiro de fé Todo amor pros parceiro, nunca é tarde pro dinheiro, quem é quem? Diz que diz e buchicho não me faz feliz, vida alheia ora a bola a minha cota eu quero em dólar, você vale o que tem, minha cara, você vale o que tem, minha cara, minha cara, você vale o que tem, você vale o que tem, nóis é mato uhu-uhu. (1 Por Amor 2 Por Dinheiro, Racionais Mc's)

Em outra canção, o cantor dirige-se ao ouvinte, também um jovem de periferia como ele. Mais uma vez, nessa passagem, “É nóis” refere-se ao conjunto de manos e, nesse caso, serve para chamar os outros manos para a sua causa – a de não se afastarem da periferia:

Nego, O que é que tem, O importante é nóis aqui, Junto no que vem,

49 E o caminho Da felicidade ainda existi. (Vida loka (parte 2), Racionais Mc)

Na canção abaixo, os locutores estão personificados como bandidos atrás de um próximo assalto ou de um novo movimento no tráfico. Em uma dessas conversas, os manos estão na frente de um bar, começa a fazer frio e resolvem entrar. Lá dentro vêem trabalhadores (“Zé Povinho” e “motoboy”) que não são bandidos e espertos como eles, afinal “vagabundos” são eles: Só tem Zé Povinho, E os motoboy, Tá gelado, Vamo entrá, Vagabundo é nóis. (EU SOU 157, Racionais MC's)

O trecho a seguir é um excerto do livro Capão Pecado. A construção “É nóis” aparece ao final de uma dedicatória de Cascão, outra figura importante do movimento hip hop. Mesmo sendo da esfera da escrita, a expressão cristalizada é usada como forma de fechamento de um texto, que poderia ser parafraseada por “conte comigo para o que der e vier”: Mas aí, somos por amor, e por amor morremos abraçados ao Capão, pois somos + 1 DA SUL. Sobrevivência.É nóis, Trilha Sonora do Gueto, o crime do raciocínio, a revolução que embaça no preconceito. Cascão. (Capão Pecado, Ferréz, p. 56)

Conforme será oportunamente detalhado no Capítulo II, quando nos detivermos nas particulariedades do trabalho de campo desenvolvido para essa pesquisa, perguntamos aos informantes sobre o significado da expressão “É nóis na fita” para alguns dos informantes, muitos deles manos e minas da periferia. Nas respostas, ficou claro que a forma “É nóis” é utilizada como forma de despedida (como no exemplo acima) ou então de confirmação, por parte de quem enuncia a frase, de algum convite feito pelo interlocutor. Um mano, de 18 anos, filho de nordestinos, sem trabalho, já envolvido com o tráfico, disse em relação à “É nóis na fita”: “Os cara vão ino embora lá e eles diz tudo “é nóis”... “é nóis na fita” quando vão tudo embora”. Já uma mina de 17 anos, filha de mineiros, participante de um projeto para jovens, ressaltou em relação à expressão que: “sô

50 mais essa “É nóis na fita”... eu falo muito essa... que é ah: a/ quando tem uma festa, a pessoa convida, eu falo “Ah, é nóis na fita”, qué dizê, já é nóis nessa festa, nóis fala fita só por fala memo, mas... fita pra nóis significa otra coisa”. No entanto, ao perguntar sobre a expressão a uma mãe de 42 anos, baiana, dona de casa, e esposa do líder comunitário da vizinhança, a reação à construção foi outra:

Doc. Inf. Doc. Inf. Doc. Inf.

tá...e...vo/ você já ouviu “é nóis na fita”? ai meu deus! aí é com meus/ é... (eu vejo) meus minino falá tá desculpa falá prucê mais isso é: dos paulistano isso daí ... i mais pra bandido que usa essas coisa aí sei nóis na fita aí isso eu...eu já nu gosto dessas coisa aí não

As construções descritas, que servem como fórmulas de despedida e comprometimento com um convite, são cristalizações da expressão “É nóis na fita!”, que refere-se mais particularmente à junção do “eu” com os “manos” pela primeira pessoa do plural. Trata-se portanto de um uso intencional e delimitador de uma identidade social que acarreta o uso da variante como recurso de expressão. A construção também está associada a determinados grupos sociais, como podemos verificar no status atribuído a ela na fala da mãe acima. Na opinião dela, a construção está associada à identidade marginalizada do bandido, na periferia paulistana.

51 CAPÍTULO II – O PRONOME DE PRIMEIRA PESSOA DO PLURAL E A MARCAÇÃO DO PLURAL NO VERBO: DUAS VARIÁVEIS NUMA VIZINHANÇA DA PERIFERIA PAULISTANA 1 – Mudança lingüística e mobilidade de classe

Na pesquisa que apresentamos, buscamos entender por quê e como as construções [nóis+V-zero] são tão freqüentes na fala de certos jovens da periferia paulistana. O uso dessas variantes parece identificar um estereótipo do mano na cidade de São Paulo. Trata-se de um caso típico de resistência à mudança lingüística na camada de baixo da hierarquia social. Manifestações artísticas da cultura popular paulistana nos indicam que o uso dessas duas variantes (tal como em é nóis) correlaciona-se a um estilo de vida particular do jovem da periferia. A noção de comunidade de fala que adotaremos é aquela em que os membros de um sub-grupo não compartilham os mesmos valores do grupo dominante. Definir uma comunidade como essa implica dizer que a perspectiva de vida, os gostos e o modo de falar, característicos dos manos, não são os mesmos daqueles que almejam ascensão social. Os indivíduos que buscam experimentar ascensão social afastam-se da identidade originária de classe. O mano, pelo contrário, vai reforçar os índices que demonstram a que “time local” o indivíduo pertence. Nessa perspectiva, quando nos reportamos à mudança lingüística, não nos referimos somente a uma substituição de uma variante por outra numa comunidade por inteiro. A mudança lingüística deve também ser entendida como uma estratégia de afastamento, por parte do falante, de uma variante estigmatizada. Uma mudança como essa é aquela que ocorre na fala de homens, migrantes e da classe trabalhadora urbana do Brasil. Esses falantes substituem a variante zero pela variante –mos na marcação do plural no verbo em primeira pessoa, com a pretensão de falar de maneira “mais correta”. Como vimos no capítulo I, o princípio da hipótese curvilínea prediz que as classes centrais da hierarquia social são as líderes da mudança lingüística. Os falantes dessas classes centrais são aqueles que experimentam mobilidade de classe. Em outras palavras, ao passar de uma classe à outra, o falante rompe com sua classe de origem. Isso significa dizer que, quando o falante substitui uma variante por outra, ele está trocando de identidade social: muda suas perspectivas de vida, seus gostos e também seu modo de falar.

52 Conforme também tratamos anteriormente, a forma a gente pode ser definida como uma variante intermediária. Primeiro, porque as mulheres que experimentam ascensão social são as líderes no emprego desse pronome. Em seguida, porque seu uso afasta-se tanto do uso de formas cultas (como nós cantávamos) como do uso de formas estigmatizadas (como nóis vai). Mudanças que envolvem uma variante intermediária são um tipo especial de afastamento dialetal, visto que elas envolvem mais de uma norma polarizada na hierarquia social. Nessa subseção, interessa-nos verificar em que medida o exagero no uso de uma das variantes inovadoras é responsável pelas diferenças entre as variedades do português no Brasil. Para isso, vamos observar como se dá a propagação de uma variante inovadora nos contextos lingüísticos, em uma determinada variedade em comparação à outra.

1. 1 –Tipos de propagação de uma forma inovadora

Quando tratamos das hipóteses sobre a implementação de uma mudança, no capítulo I, explicitamos os diferentes tipos de propagação de uma forma inovadora pelos contextos lingüísticos. Conforme vimos na seção 1.1 do capítulo anterior, uma das hipóteses postula a coexistência de duas gramáticas (Kroch, 1989) e a outra é aquela que concebe a variabilidade como inerente ao sistema (Guy, 1996; entre outros). Na primeira hipótese (Kroch, 1989), as mudanças se processam através do aumento continuado do input da variante inovadora, ainda que o efeito dos grupos de fatores permaneça o mesmo. Na segunda hipótese (Guy, 1996), a propagação da forma inovadora ocorre de contextos mais favoráveis a contextos menos favoráveis, eliminando-se as restrições lingüísticas para seu emprego. Naquele momento, a observação dessas diferenças serviu para classificar diferentes tipos de mudança em diacronia. Aqui, vamos nos valer delas para caracterizar diferenças dialetais em sincronia. Isso se faz necessário para que entendamos como se dá quantitativamente a distinção de variedades do português no Brasil. Uma variedade pode ser distinta da outra em função somente do input global de uma variante, mantendo-se inalterado o efeito dos grupos de fatores. Ou, diferentemente, duas variedades se constituem como tais justamente porque os grupos de fatores têm efeito distinto sobre uma mesma variante.

53 1.1.1 – Nóis vai > Nóis vamo Bortoni-Ricardo (1985), numa cidade satélite de Brasília, e Rodrigues (1987), numa favela paulistana, chegam a conclusões semelhantes sobre o processo de assimilação lingüística do migrante na cidade grande: são os homens os líderes do processo de urbanização de dialetos rurais. Eles, de acordo com Bortoni-Ricardo (1985), constituem os falantes de variedades “rurbanas”, ou seja, pertencentes a comunidades urbanas de periferia onde predomina forte influência rural na cultura e na língua. A marcação morfológica de primeira pessoa do plural no verbo foi a variável gramatical que mais apresentou mudança conforme o migrante rural ia se integrando ao meio urbano. Nesse sentido, essa mudança lingüística está correlacionada à ascensão social dos homens migrantes que trabalham em empregos mais estáveis no mercado ocupacional urbano. Bortoni-Ricardo (1985) aplicou a teoria de redes ao grupo em questão e previu que alguns daqueles falantes vindos de comunidades rurais apresentariam padrões de comportamento mais fechados, por manter no meio urbano suas relações com conterrâneos e com parentes. Em seu trabalho, foram dois os índices para “medir” os graus de integração (estabelecimento de novos vínculos de amizade com falantes sem a mesma origem migratória e de diferentes classes sociais) e urbanização dos mineiros rurais em Brasília. O primeiro consistia em fazer um levantamento do tipo “Quais são os seus três melhores amigos dentro do grupo x?”, e o segundo era um índice que levasse em conta: o grau de escolaridade do falante, sua mobilidade social (se ascendente ou não), sua participação em eventos urbanos, sua exposição à mídia, e também sua informação política. Acerca da correlação entre estes índices e o controle da regra padrão de concordância da primeira pessoa do plural, a autora afirma (1985:215 [] acrescido): “In

sum, there is a reliable relationship between men’s network urbanization indices and their control of the SVA-1 rule [subject-verb agreement with first person plural]. The feature seems in fact to be a good indicator of dialect diffuseness for the men. As for the women, the process of acquisition of first person plural inflection is less advanced and the feature does not appear to have acquired a consistent significance as a marker of urbanization.” Os líderes da difusão e focalização dialetal configuram-se, portanto, em uma situação de transição rural-urbana, formando grupos com certa ascensão social dentro da periferia de

54 grandes capitais. A oposição entre homens e mulheres, para a autora, demonstra os diferentes processos de socialização deles no novo lugar: enquanto os homens se ajustam mais ao mercado de trabalho, com o estabelecimento de vínculos pessoais em variados níveis sociais, as mulheres se “confinam em casa”, preservando vínculos de parentesco, de mesma origem geográfica ou de vizinhança. Rodrigues (1987), por sua vez, considera que a aplicação da regra padrão em primeira pessoa plural está correlacionada ao seu significado social, uma vez que a construção nóis vai “identifica o falante de origem rural”(1987: 211). Na comparação entre os gêneros quanto à aplicação da regra padrão de concordância da primeira pessoa do plural, são as mulheres que favorecem o uso da variante não-padrão. Os motivos são parecidos com os da pesquisa feita em Brasília (1987:203): “os homens, em geral, não exercem suas atividades profissionais no próprio bairro em que residem; ao contrário, o bairro funciona apenas como dormitório para esses trabalhadores; (...) o baixo grau de coesão social dos falantes do sexo masculino [com os moradores do bairro] favorece maiores alterações no seu vernáculo pela incorporação das regras da língua da cidade grande.” (indicação entre colchetes [ ] acrescida) Por outro lado, quanto às mulheres, Rodrigues (1987: 203-204) afirma: “Elas não só mantêm maior contato com a comunidade do bairro através da escola, das atividades nas igrejas, da feira semanal, (...) como também poucas exercem atividade profissional fora do bairro (...). Em geral são donas de casa ou exercem atividades compatíveis com as que exercem em casa, pois são faxineiras ou empregadas domésticas.” Esta correlação entre as variáveis “socialização no espaço urbano” e “gênero/sexo” assegura que é o mercado ocupacional, para falantes com escolaridade baixa, o fator determinante para o processo de aprendizagem da variante padrão. Trata-se de um afastamento do dialeto de origem que se correlaciona com a ascensão social desses falantes. Dessa forma, a variante –mos é a forma inovadora na variedade rurbana. Entretanto, o aumento do uso da variante padrão, na variedade rurbana, ocorre somente nos pares de maior saliência fônica (vai/vamos). Na tabela que se segue, podemos ver a distribuição geral das variantes em duas variedades rurbanas (Bortoni-Ricardo,1985; Rodrigues, 1987) e em uma variedade urbana (da cidade de Porto Alegre - Zilles, 2004:28).

55 Tabela 2 – Marcação morfológica da primeira pessoa do plural no verbo, segundo os pares de saliência fônica

Pares de saliência fônica vai/ vamos cantava/cantávamos

NÓIS V-ZERO (%) Brasilândia (80)/ SP 27 99

Brazlândia (80) / DF 38 90

Porto Alegre (00) / RS 0 25

Primeiramente, nas variedades rurbanas, observamos que a variante –mos tende a ser mais freqüentemente usada somente nos pares de maior saliência fônica (vai/vamos). A mudança observada entre os homens com empregos estáveis, moradores da periferia urbana, correlaciona-se à adoção, por parte deles, dos valores da norma prestigiada. No entanto, trata-se de uma adoção “precária” da variante inovadora, visto que o seu uso está restringido pelo efeito da saliência fônica. Inserção do morfema –mos nos pares de maior saliência fônica em variedades rurbanas

variedade rural

variedade rurbana

nóis vai [V-zero]

nóis vamo [V-mo]

nóis cantava [V-zero]

mudança lingüística permanência

nóis cantava [V-zero]

Além disso, podemos também observar na tabela 2 que o uso mais freqüente de mos em pares mais salientes não é uma peculiaridade das variedades rurbanas. Como vimos no capítulo I, estamos chamando de “pares de maior saliência” as formas de primeira pessoa do plural que fazem parte dos paradigmas verbais com marca morfológica também para a primeira pessoa do singular (tais como eu sou/ ele é/ nós somos). Observa-se que, nesses pares, o uso da variante –mos é categórico entre os falantes de Porto Alegre. 1. 1. 2– Nós cantávamos vs. Nóis cantava > A gente cantava Como já tratamos no capítulo I, nos pares de menor saliência (ligava/ligávamos), as ocorrências verbais com a marca morfológica de primeira pessoa do plural (ligávamos e

56 ligarmos, por exemplo) são caracteristicamente do registro escrito. Por isso, podemos dizer que os falantes de variedades rurbanas nem mesmo tem consciência da existência de tais formas. Um outro trabalho (Omena, 2003) trata especificamente da inserção do pronome a gente na fala de naturais da cidade do Rio de Janeiro. Como mostra a tabela 3, tanto a variante a gente como a variante -mos (resultados de Zilles, 2004) são favorecidas nos pares de menor saliência. Tabela 3 – Alternância pronominal entre nóis e a gente segundo os pares de saliência fônica

Pares de saliência fônica

vai/ vamos cantava/cantávamos

NÓIS (%) NÓIS V-ZERO (%) Rio de Janeiro (80)/ SP 67 79

Rio de Janeiro (00) / RJ 71 78

Porto Alegre (00) / RS 0 25

A partir desses resultados, podemos afirmar que a variante a gente propaga-se dos pares de menor saliência para os pares de maior saliência. Na comparação entre as duas variáveis, podemos dizer que a forma a gente propaga-se dessa forma porque a inserção desse pronome funciona como uma esquiva de construções com a forma nós de normas polarizadas na hierarquia social. Inserção de a gente nos pares de menor saliência fônica, na variedade urbana

variante culta vs. variante estigmatizada

variante intermediária

nós cantávamos vs. nóis cantava

a gente cantava mudança lingüística

Nessa mudança, o falante encontra um modo de “falar mais corretamente”, sem, no entanto, passar por pedante. Para que isso ocorra, o falante deve conhecer os significados sociais das construções polarizadas (variante culta vs. variante estigmatizada). Nesse

57 sentido, não podemos afirmar que o falante de variedades urbanas desconhece o fato de que a variante “nós cantava” é estigmatizada. Portanto, para que o percurso da propagação de a gente se dê dos pares de menor saliência aos de maior saliência, é necessário compreender que o afastamento duplo de normas polarizadas acontece nos pares de saliência em que há a percepção do estigma por parte do falante. Nas variedades rurbanas, verificamos que a restrição lingüística que opera no emprego da variante –mos é a mesma que opera na variedade urbana de Porto Alegre. No caso de a gente, ao contrário do que acontece com a flexão, a propagação do pronome parece não ter o mesmo percurso de propagação nas variedades do português. Isso acontece porque a forma a gente somente se propagaria nos pares de saliência fônica em que a variante é percebida como estigmatizada pelo falante. Inserção de a gente nos pares de maior saliência fônica, nas variedades rurbanas

variante culta vs. variante estigmatizada

variante intermediária

nóis vamo vs. nóis vai

a gente vai mudança lingüística

A mobilidade ascendente dos falantes da classe trabalhadora urbana está correlacionada com a aprendizagem do sufixo –mos, nos pares de maior saliência. Dessa forma, é de se esperar que a inserção do novo pronome, na fala da classe trabalhadora, não ocorra a partir dos pares menos salientes, pois, nestes, o falante não tem noção clara do estigma.

1. 1. 3 – Nóis somo~semo~samo > Nóis é A construção Nóis é (do par de maior saliência fônica – é/somos) pode estar associada a um significado social, uma vez que serve a determinados falantes como recurso expressivo de identificação lingüística. Como já apontamos, o uso dessas variantes identifica o estereótipo do mano na cidade de São Paulo. No dialeto dos manos, não há a inserção do pronome a gente como estratégia de afastamento do vernáculo de origem. Pelo contrário, observamos uma resistência a essa mudança, da parte deles. No entanto, quanto à marcação morfológica da primeira pessoa do plural no verbo, podemos dizer que há uma inovação, já que o morfema zero é propagado em direção ao par de maior saliência fônica. Distintamente das outras variedades, a tendência de reter a

58 variante –mos nos pares de maior saliência fônica diminuiria no dialeto dos manos. Nesse sentido, não se trata somente de conservar variantes estigmatizadas, mas também de exagerar a antiga tendência lingüística de reduzir os sufixos dos paradigmas verbais, observada em variedades do português. No capítulo I, vimos que o processo de redução dos sufixos verbais, que também chamamos de “expansão do morfema zero”, subdivide-se em dois tipos: (1) o apagamento da marca morfológica no verbo para as pessoas do plural, e (2) a inserção de pronomes que favorecem o emprego do verbo com o morfema zero (a gente, por exemplo). No caso do dialeto dos manos, somente o primeiro tipo de processo é observado. 1. 1. 4 - A gente 1 > A gente 2 Conforme já vimos no capítulo anterior, Omena (2003) e Zilles (2005) tratam especificamente da inserção do pronome a gente na fala de naturais da cidade do Rio de Janeiro e de Porto Alegre, respectivamente. Nas duas variedades, referências mais indeterminadas favorecem o uso de a gente. Segundo as autoras, a explicação para isso está no fato de que a forma inovadora guarda traços de sua categoria gramatical de origem. No início de sua trajetória de gramaticalização, a forma a gente era um pronome indefinido, com um significado indeterminado e sem referência à primeira pessoa22. No estudo de Omena (2003) particularmente, a análise em tempo real de curta duração mostrou que, no que diz respeito ao grupo de fatores “graus de (in)determinação do pronome”, a variante a gente difundiu-se do contexto mais favorável (referências indeterminadas) para o contexto menos favorável (referências determinadas). Como podemos ver abaixo, a referência determinada deixou de ser uma restrição ao emprego do pronome. Tabela 4 - Uso de a gente segundo o traço [+/- determinado] do referente Rio de Janeiro (Omena, 2003:66)

Amostra anos 80 22

Amostra anos 00

Para essa interpretação, as autoras recorrem à análise desenvolvida por Lopes (2001) sobre o percurso de gramaticalização de a gente em tempo real de longa duração nas variedades européia e brasileira do português, desde o século XIII até o século XX. A transição do nome coletivo para o pronome está relacionada com a perda do pronome homem, mais específico do português arcaico, caracterizando o percurso de gramaticalização como se segue: NOME COLETIVO > PRONOME INDETERMINADO > PRONOME DE 1a. PESSOA DO PLURAL.

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determinado indeterminado

Aplicação 296/444 694/820

% 67 85

aplicação 286/358 482/610

% 80 79

Os resultados de Omena demonstram que, na variedade fluminense, a mudança pronominal está ocorrendo com a propagação da variante a gente a referentes mais determinados. Mais uma vez, a substituição de nós por a gente enquadra-se no tipo de mudança em que a forma inovadora se propaga de contextos menos favoráveis aos contextos mais favoráveis. Como veremos, entre os moradores de uma vizinhança da periferia paulistana que estudamos, é menor a tendência de empregar a gente, relativamente a nós. Sendo assim, parece razoável esperar que a variante inovadora, nos usos lingüísticos daquela comunidade, seja menos freqüente na expressão de referentes indeterminados.

1.2 – Considerações finais A variável Pronomes e a variável Concordância, na função de expressar primeira pessoa do plural, são diferentes em duas propriedades. A primeira diz respeito aos tipos de afastamento dialetal. A inserção de a gente envolve uma mudança lingüística em que o afastamento dialetal é duplo no sentido de que é uma esquiva diante de duas normas polarizadas nas extremidades da hierarquia social. Já a inserção de –mos envolve uma mudança em que o afastamento se dá como uma esquiva em relação a somente uma norma: aquela associada ao estigma. A segunda propriedade diz respeito aos tipos de propagação de uma forma inovadora pelos contextos lingüísticos, numa determinada variedade. Por exemplo, sugerimos que a Saliência Fônica têm efeito distinto sobre a inserção de a gente em cada variedade. Em variedades urbanas, a inserção desse pronome inicia-se nos pares de menor saliência fônica e propaga-se aos pares de maior saliência. Ao contrário do que ocorre nessas, nas variedades rurbanas a inserção de a gente ocorreria a partir dos pares de maior saliência fônica. Por isso, podemos afirmar que a inserção de a gente difere da inserção de -mos quanto ao efeito da saliência fônica. Enquanto a variante a gente propaga-se de um contexto mais favorável a um menos favorável - num sentido que depende da variedade em questão -, a variante –mos é mais freqüentemente usada num mesmo contexto nas duas variedades, alterando-se somente seu input global. No dialeto dos manos, a especificidade em relação às outras variedades está no fato de que a variante -mos deixa de ocorrer mais freqüentemente nos pares de maior saliência. Nesse sentido, a diferença entre o dialeto dos manos e outras variedades do português do Brasil estaria no pronome empregado, e não no fenômeno de redução dos sufixos verbais.

60 Em outras palavras, a expansão do morfema zero acontece tanto nas variedades que substituem nós por a gente quanto no dialeto dos manos, que conserva nóis.

61 2. As variáveis sociais A observação etnográfica23 da comunidade que elegemos foi desenvolvida com base na relação entre variáveis lingüísticas e a construção de uma identidade social, mais especificamente a dos jovens de bairros periféricos da cidade (onde todos são no mínimo conhecidos), pois essa é a esfera que mais recebe atenção no desenvolvimento de metodologias dentro do modelo da sociolingüística quantitativa, conforme vimos no capítulo anterior. Para o desenvolvimento da coleta de dados lingüísticos, a partir da observação etnográfica das pessoas que vivem num bairro de periferia, optou-se por “representar”, na amostra, grupos sociais bem definidos na esfera da vizinhança. A amostra para análise foi constituída, então, a partir: (1) do estabelecimento de parâmetros sociais, observados no campo, que são relevantes para identificação dos grupos na vizinhança; (2) do caráter “vernáculo” ou “não vernáculo” dos dados coletados em entrevista sociolingüística; Nas seções 2.1 e 2.2 a seguir, tratamos dos pontos relativos a (1). Em 2.3, tratamos daqueles relativos a (2). Posteriormente, em 2.4, comentaremos quais são os procedimentos mais específicos da constituição da amostra, ou seja, quais são as variáveis sociais da análise quantitativa. O trabalho de campo foi realizado em duas etapas24. Na primeira, foram feitas caminhadas pelo bairro, a fim de se observar os limites da vizinhança, as pessoas nas ruas, e os espaços físicos da paisagem (locais centrais, áreas mais comerciais, áreas com mais barracos, pontos de ônibus, campos de futebol etc.). Numa segunda etapa, a partir de categorias sociais relevantes para a análise sociolingüística (redes, valores e práticas, conforme vimos no capítulo I), observamos pessoas que freqüentam uma praça local da vizinhança. Tal praça fixa constitui um 23

Desenvolvida de setembro a dezembro de 2004. Vale mencionar que, para a utilização de métodos etnográficos na identificação de grupos sociais, foi imprescindível a orientação dada por antropólogos da etnografia urbana. Citamos aqui o trabalho de referência organizado pelos professores José Guilherme C. Magnani e a pela professora Lílian de Lucca Torres, do Departamento de Antropologia da USP. Magnani & Torres (2000) reúnem diferentes etnografias sobre grupos sociais diversos na cidade de São Paulo.

24

62 “cenário” e um conjunto de “atores” que orientaram a nossa observação. Nesse “cenário”, observam-se as práticas cotidianas daqueles que de forma semelhante ou de forma contrastiva utilizam-se desse mesmo espaço público. Os usos semelhantes permitem agrupar pessoas em determinados sub-grupos da comunidade. Os procedimentos da observação etnográfica contribuíram para resolver o chamado paradoxo da amostra, elaborado por Labov. Nas palavras deles “the more confident we are that a sample represents a population, the less confident we are that the sample can explain the behavior of that population” (2001:40). Uma amostra ampla e estratificada é capaz de captar macro-estruturas sociolingüísticas ligadas não só à propagação geral de uma variante, mas também à correlação da variável dependente com tipos sociais de natureza demográfica: tipo de trabalho, de moradia, grupo étnico etc. O déficit desse tipo de amostra está relacionado à falta de informações diretas sobre os significados locais das variantes lingüísticas e sobre as redes de relacionamento dos diferentes falantes. Dados os objetivos de nossa análise – que são algo distintos daqueles de Labov (2001) – foi necessário uma amostra que levasse em conta também esse tipo de “informação”. Nesse sentido, nossa resolução do referido paradoxo apresenta algumas diferenças em relação à proposta laboviana. mas com algumas diferenças, por se ter objetos distintos de análise. Não foram realizados, por exemplo, estudos em vizinhanças diversas na cidade. Por outro lado, assim como na resolução de Labov, optou-se por partir de informantes que são membros de uma esfera política do bairro (a associação de moradores). Os membros dessa associação de moradores figuras centrais para a propagação de formas mais legitimadas em setores mais marginais da vizinhança.

2. 1 - Observação etnográfica

2.1.1 - A praça e os grupos sociais na vizinhança Nesta subseção, relatamos as observações etnográficas realizadas na Praça Divino Pai Eterno, no centro do sub-distrito Jardim Paulistano II, no bairro da Brasilândia – zona norte da capital. Nessa localidade, pôde-se observar o comportamento geral de certas pessoas que freqüentam a praça para interagir, publicamente, com outras pessoas da vizinhança. A observação de seus usuários permitiu notar a relação da praça com outros locais do bairro.

63 A observação também permitiu observar as diferenças de usos da praça por parte de cada grupo social. Num primeiro momento, foi feito um contato com informantes que utilizam a praça durante a semana e o fim-de-semana. Inicialmente, foram identificados grupos ligados à associação de moradores, tais como os membros da associação, as mulheres que trabalham para eles numa creche, as meninas amparadas pelo projeto “Jovens na cidade” e as participantes da cooperativa de costureiras. Num segundo momento, foram identificados, por um lado, o grupo de jovens que costuma jogar bola na quadrinha da praça e, por outro, os filhos, sobrinhos e cônjuges dos membros da associação de moradores e das trabalhadoras da creche. Os jogadores de bola vivem perambulando pela praça. Já os filhos e os sobrinhos foram contatados somente em suas casas familiares, com a intermediação dos pais. Em 2003, nessa mesma vizinhança, conhecida por moradores da região como “Buraco da Erundina”, houve uma cerimônia de inauguração da Praça Divino Pai Eterno. A cerimônia, acompanhada por políticos importantes na esfera municipal, marcava uma nova fase na vida dos moradores ao seu redor. Ali, antes funcionava um campo de futebol improvisado, freqüentado por homens com baixa reputação: “traficantes”, “marginais” ou ainda “bandidos” sem trabalho. A predominância era de barracos empilhados sobre uma lama deslizante. A própria falta de acessibilidade ao local era aproveitada pelos “traficantes” e “bandidos” para a demarcação desse território como “sua área”. A polícia não entrava, o ônibus não tinha como passar por ali e os taxistas se recusavam a entrar no local. Para os vizinhos ao redor, dos conjuntos habitacionais ou de outros pontos já “urbanizados” do bairro, os moradores da então favela Buraco da Erundina eram uns “pés de barro” – identificados pelo marrom dos sapatos e nas bainhas das calças. No entanto, tudo isso já é relatado pelos moradores do local como um passado comum. Os membros da associação são os grandes narradores desta “transformação”, o que se liga ao costume de seus participantes de reforçar o nome de “Vila Nova” contra outros, tais como “favela” ou “buraco”. A criação da praça foi a espacialização última da tomada de poder destes moradores, precedida pela substituição dos barracos por casas de alvenaria, pelo asfaltamento das ruas e pela ligação aos sistemas de água, luz, lixo e telefone. Os barracos se abriam em direção oposta ao campinho de futebol, mas as casas de alvenaria se voltam para a praça, muitas

64 vezes com o aproveitamento de sua área frontal para a criação de pontos comerciais. Ao contrário das praças comuns das “cidadezinhas” brasileiras, o equipamento central25 não é a igreja, mas a creche da associação de moradores. Como as igrejas dessas cidades, a creche é a ponta de uma das extremidades da praça, enquanto que as outras dão para ruas. No outro lado dessas ruas que circundam a praça, há uma concentração do comércio local e o acesso às outras ruas que conduzem à parte mais residencial da “Vila Nova”. A creche tem como centro administrativo a “Associação de Moradores Vila Nova”, que conta inclusive com um cargo de “líder comunitário”. O prédio - totalmente fechado pelos quatro cantos e trancado com cadeados enormes - só pode ser acessado com o pedido prévio das chaves aos seus membros, às mulheres que trabalham na creche, e às coordenadoras do projeto “Jovens na cidade”. A predominância feminina nessas instituições faz com que os olhos da creche se projetem para a praça, com um alto grau de policiamento por parte delas - como se fossem “mães de todos”. A associação se reúne aos domingos, pois seus membros trabalham fora do bairro, o que impossibilita encontros durante a semana. A associação é composta essencialmente por homens. A rotina deles é semelhante entre si, e pode ser chamada de rotina de “trabalhadô”: saem cedo de casa, levando sua marmita, e chegam tarde em casa para jantar, conversar com os filhos e ir dormir para, no dia seguinte, começar tudo de novo. São trabalhadores com carteira assinada e todos contam sua trajetória pessoal como uma vitória, que começa no sofrimento da vida na roça e termina com os videogames dos filhos. São eles os maiores defensores dos “valores comunitários” entre os moradores do local, principalmente em suas reuniões, que, ironicamente, se davam nas mesinhas projetadas para as crianças da creche. A creche é mantida por mulheres de diferentes idades, moradoras da vizinhança, muitas delas com seus próprios filhos ali matriculados. Elas fazem a faxina e preparam a merenda para a criançada. As professoras trabalham como voluntárias; são prestigiadas pelas mulheres do bairro como “pessoas estudadas” e recebem grande respeito e cortesia dos outros moradores. O “líder comunitário” é responsável pela relação da associação com ONGs internacionais e projetos sociais financiados por empresas, sendo essa intermediação o principal definidor de seu papel de liderança. A relação entre o líder e as trabalhadoras 25 O termo “equipamento urbano” é prórprio da área de conhecimento “Arquitetura e Urbanismo”, e refere-se aos locais de utilização pública caracteristicamente oferecidos em centros urbanos, tais como escolas, hospitais, creches e etc. (Bonduki, 2002).

65 para a manutenção da creche não se dá como forma de trabalho, mas define-se sobretudo como uma relação de amizade. Estão na mão deles os critérios para o oferecimento de vagas e as chaves que trancam os equipamentos. A creche também funciona como porta de entrada para o circuito escolar do bairro, com a inscrição garantida das crianças no ensino primário da escola pública mais próxima. Os membros da associação são casados com mulheres de mesma origem migratória, pois se conheceram através de parentes ou de amigos que mantinham relações de amizade espalhadas pela cidade. Suas esposas, ao contrário das mães solteiras, não trabalham fora e não precisam matricular seus filhos na creche, pois elas têm tempo para se dedicar a eles. Elas são as donas de casa que deixaram de trabalhar fora por ter o marido num emprego estável e mais rendoso. Suas relações com outras mulheres se dão nas cabeleireiras e nas igrejas que freqüentam no bairro, mas tais mulheres são sobretudo ligadas a suas redes familiares, que transcendem o bairro e até mesmo o estado onde moram. Para estes pais e mães de mesma origem migratória, os filhos tiveram tudo o que eles não tiveram. Numa entrevista, um membro da associação, ao olhar um brinquedo que fazia barulho e ligava luzinhas, exclamou “imagina se meu pai se preocupava em me dá um negócio desse!”. Os integrantes do projeto “Jovens na cidade” se reúnem às tardes da semana, e são na sua maioria garotas, muitas delas mães precoces. As coordenadoras são mulheres do próprio bairro que terminaram o ensino fundamental ou estão em vias de ingressar em uma faculdade. O projeto fornece dinheiro às amparadas, que funciona como “mesada” para as meninas – tanto para comprar roupinhas ou fraldas para seus filhos, quanto para ir ao shopping ou a centros comerciais maiores e comprar “roupas de grife”. No plano da sua proposta, esse projeto tem como objetivo desenvolver “atividades de intervenção social” no bairro, com a criação de espaços de lazer administrados pelas próprias jovens. Entretanto, a concentração maciça de pessoas próximas faz do projeto um grande local de intimidade, onde se compartilham confissões ou fofocas sobre os outros moradores do bairro. Suas participantes são muitas vezes parentes, que além do projeto freqüentam as igrejas locais, as cabeleireiras, as manicures e os mercadinhos ao redor da praça. O projeto também promove reuniões maiores, onde se encontram participantes do projeto provenientes de outros bairros de periferia, de outras zonas da capital.

66 A cooperativa de costureiras é um grupo de velhinhas evangélicas que se uniram para trabalhar de modo autônomo para empresas que ficam fora do bairro. Essas empresas foram contatadas pelo líder comunitário. Elas ocupam o segundo andar da creche durante a semana, onde existe uma janela que dá direto para a praça. Eram costureiras que faziam serviços como “barra da calça” para os vizinhos por um preço informalmente negociado. Levaram as máquinas de costura que utilizavam em casa para o local, cedido pela associação de moradores, e criaram um local comum para suas atividades, que mantém o serviço da barra da calça aos vizinhos, mas agora com um preço único. Entre uma confecção e outra, a atenção das costureiras está voltada para a praça, um olho nos moleques que ali freqüentam e outro nas meninas que “não se dão o valor de mulheres de respeito”. Deveriam elas, na opinião das costureiras, ficar em casa ajudando a mãe e não se assanhando para cima daqueles moleques, algo que acabaria, como em outros tantos casos na vizinhança, numa gravidez prematura. Esses “moleques” são “os mano” que freqüentam a praça durante toda a semana, como ponto de encontro e paquera, mas principalmente durante o fim de semana, quando a praça funciona como ponto de partida de suas “baladas”. Eles pedem para uma faxineira da creche a chave da quadra para ir jogar suas partidas de futebol. O tamanho da quadra projetada para crianças em idades de creche faz dela, na verdade, ideal para o gol-a-gol, em que os times são no máximo uma dupla, que tem o objetivo de fazer gol no adversário sem passar da linha de meio de campo. Jogos de “pelada” maiores se dão em campinhos improvisados não centralizados na “Vila Nova” – entre jovens de diferentes vizinhanças (conjuntos habitacionais ou outras áreas com favelas “urbanizadas”). Nesses campinhos distantes, e em esconderijos no meio do mato da área de manancial que faz fronteira com a vizinhança, fogem dos olhos atentos dos freqüentadores mais velhos da praça. Lá fumam maconha, bebem garrafas de refrigerante completadas por pinga ou vodka, o que constitui, muitas vezes, o ponto inicial de suas baladas fora do bairro. No entanto, para namorar, querem as meninas que passam pela praça nos fins de semana acompanhadas dos pais em direção às igrejas evangélicas do bairro - e não “as mina” que vivem na rua, muitas delas com um filho de um ex-namorado.

67 2. 1. 2 – OS LOCAIS PÚBLICOS E AS REDES DE FAMÍLIAS PRÓSPERAS. Como mencionamos anteriormente, a observação etnográfica delimitou-se aos diferentes freqüentadores da creche, que é o equipamento central da praça. No entanto, com as informações fornecidas pelos próprios freqüentadores, pode-se descrever também os usos dos outros equipamentos do entorno, tais como botecos, mercadinhos, lanchonetes, igrejas, cabeleireiros e até as áreas de mananciais próximas à vizinhança. A partir dessas observações, pode-se notar que freqüentar um determinado local da vizinhança corresponde a demonstrar publicamente para que grupo social um determinado ator orienta sua identidade. Assim, a associação de moradores tem uma preferência pelas “lanchonetes” que, como os botecos de baixo prestígio, vendiam bebidas alcoólicas, mas ali “o pessoal não enche cara, somente toma uma cervejinha”. Nessas lanchonetes, observa-se que as crianças dos membros comem e brincam com os filhos de seus compadres e suas comadres, muitos deles também membros da associação. Segundo “os mano” do gol a gol, essas lanchonetes localizadas na praça central, perto da creche, são mais rigorosas quanto à venda de bebidas alcoólicas a menores de idade, ao contrário dos botecos improvisados, localizados perto de um córrego que faz fronteira com áreas vizinhas ao Jardim Paulistano II. Nesses botecos, vende-se sobretudo pinga, uma vez que falta eletricidade para gelar bebidas como cerveja. Empenhados em se divertir na “balada”, os jovens compram uma coca-cola de dois litros num mercadinho – que conta com um enorme freezer, - para misturar com a pinga barata e sem restrições destes botecos improvisados. Para a associação, qualquer esfera do bairro que lembre a origem mais precária da vizinhança, quando ainda era o “Buraco da Erundina”, é vista como uma ameaça ao status adquirido por eles no processo de urbanização da localidade. Um exemplo disso é algo que ocorreu no córrego que faz divisa da vizinhança com outras. Às margens desse córrego, mais recentemente, houve um aumento de novos barracos. Junto com os bares de baixa reputação e os campos de futebol mais afastados do centro do bairro, as casas com materiais mais precários são também mal vistas. O aumento continuado da presença desses novos barracos atingiu parte de uma área de mananciais com que o Jardim Paulistano faz outra de suas fronteiras. Os membros da associação encararam a entrada desses novos moradores como uma invasão, dando um

68 prazo para que eles se retirassem do local. Em seguida, os homens da associação reuniramse num final de semana, e utilizando-se de seus conhecimentos de trabalhadores da construção civil, demarcaram a área com uma cerca de pau e arame, com o objetivo de construir ali, posteriormente, um centro recreativo que não prejudicasse a mata local. Essa falta de compaixão dos membros da associação para com as pessoas que estão numa situação em que eles já estiveram está totalmente relacionada à formação de uma rede vicinal de famílias prósperas da vizinhança, no processo de urbanização do bairro. Elas formam um grupo social que desenvolveu uma identidade coletiva e que buscou afastar a imagem de bairro “precário” ou “de periferia” de sua vizinhança. Agripina26, esposa de um dos membros da associação, por exemplo, não se considera como exemplo daquilo que avalia ser característico das “pessoas de periferia”: ... periferia tem um pessoal muito folgado... não é nem preconceito... é assim você ... se você fala alguma coisa eles acha que você não tem que falar nada... só eles tão certos... mas eu digo... a gente andou por uns bairro por aí... tipo no na Freguesia... tipo nesses tipo de bairro a gente não vê isso...monte gente na rua... é menina... pessoal de regata... todo mundo fala que é da periferia... mas não é porque você mora na periferia que você vai ser um rato que não pode falar nada... que você já é ignorante... Essa moradora não apenas não se considera como alguém da periferia, mas também se identifica como membro da associação de moradores. Como tal, ela quer contribuir para que o bairro não seja como os outros “bairros de periferia”. Essa identidade do “bairro” associa-se a um sistema de valores e de crenças que quer demonstrar aos “outros” o próprio processo de emancipação da vizinhança, a partir de uma categoria avaliada como inferior.

2. 1. 3 – Os jovens em Brasilândia “Os mano” são os mais freqüentemente vistos na praça Divino Pai Eterno, e ali permanecem até tarde da noite quando não possuem nenhum outro plano de lazer para fora do bairro. Para atividades ilícitas, os jovens vão a lugares mais escondidos, longe do controle exercido pelas redes vicinais apoiadas nas famílias mais prósperas. São em sua maioria filhos de “mães solteiras”, que trabalham o dia todo fora do bairro. Por passar o dia todo trabalhando, essas mães não mantêm relações mais próximas com seus vizinhos.

26

Utilizamos os primeiros nomes com a autorização dos informantes. Os nomes guardam “gostos” antroponímicos, do mesmo modo que formas de tratamento como Dona.

69 Assim, esses jovens ficam na vizinhança “por conta própria”, sem que os vizinhos se intrometam diretamente na vida deles. “Os mano” do gol a gol parecem não fazer outra coisa a não ser ficar circulando à toa pelas ruas e vielas da vizinhança. A creche, mesmo com a falta de vagas, pretende agir de modo corretivo sobre os mais novos, principalmente sobre esses filhos de “mães solteiras”. Os jogadores de gol a gol são os jovens que não foram à creche, quando menores, pela falta de vagas. Por isso, não fazem parte das “panelinhas” de outros jovens ligados aos setores mais prósperos da vizinhança e, para muitos dos moradores, são reconhecidos só de vista. Os filhos dos membros da associação e das coordenadoras da creche, ao contrário, são sempre identificados como tais: “Aleanderson, o filho de Adauto”, “a filha de Dona Lúcia da creche” etc. Por qualquer infração às normas estabelecidas pelos vizinhos mais prósperos, esses jovens correm o risco de receber um “Pare com isso! senão vou contar pra sua mãe!”. Eles são muito pouco vistos andando pelos espaços públicos da vizinhança e estão na maioria das vezes acompanhados pelos mais velhos. Os filhos dos membros têm uma vida social centrada nos adultos. Os membros da associação reforçam para seus filhos a história de vida deles, vindos da vida miserável no campo e que conseguiram, com muito trabalho, chegar onde chegaram. No depoimento de Jeanete, esposa do líder comunitário, vemos em que termos esses pais contam sua história de vida a seus filhos: ...o que eu nu tive, eu quero dá pra eles...porque o que eu nu tive foi estudo.. “eu nunca na minha idade”...aí eu falo pra eles “eu nunca calcei um chinelo...eu nunca visti uma ropa boa...eu calçava chinelo era todo (costurado) com a tira de pano e vocês dois têm sapato do bom e do melhor...e ropa (também)...o que o pai pode faze...o que eu faço...faiz... então, gente, vamo estudá que o estudo é importante!” Esses pais preocupam-se com a imagem e a conduta dos filhos e por isso impõem a eles as normas que consideram mais corretas. A pressão exercida sobre os filhos dessas famílias prósperas é mais severa do que se exerce sobre os jovens que não têm um histórico familiar de ascensão social. Da pressão que transcende a fronteira da casa para a vizinhança é mais difícil de fugir, pois ela é mais firme e mais constante no modo como é exercida sobre eles. O controle dos adultos sobre esses jovens é demonstrado mais explicitamente com o rígido controle sobre os locais para lazer dos filhos e os horários para chegar em casa, que se restringe às dez horas da noite ou meia noite (nesse último caso, somente para pais mais liberais). Adauto, líder comunitário, vindo da pobre terra de Irecê, Bahia, assim avalia seu filho positivamente:

70 eu por exemplo tenho um filho aí... esse meu moleque tem dezesseis anos de idade... agora ele tá meio assim... tá mei... pescoço meio duro... mas mesmo assim... ele num fica na rua aí até meia noite... nunca foi num baile... num fica aí na rua até meia noite até amanhecer do dia... não, tá sempre em casa... tem namorada aí... mas na hora que tá namorando por aqui é aqui mesmo na rua... num sai pra zoeira com os outro... Quem são os outros? Provavelmente a molecada que não sai da praça dia e noite, ou então se saem, vão para bailes, botecos, festas em outras partes da cidade. Um “dos mano” do gol a gol, Arlei, mora sozinho com o irmão num “barraquinho”, localizado numa área mais residencial do bairro. A ausência de adultos na casa faz com que vários jovens do bairro, tentando fugir dos olhos de pais e de vizinhos, vão para lá para se divertir. Em uma dessas reuniões, Arlei conta que ali apareceu o Sillas, filho do porteiro da creche, causando surpresa a todos, uma vez que dificilmente Sillas é visto na rua, ainda mais naquele horário. Foi então que a mãe apareceu: quando a mãe dele chega teve que saí... é um moleque grandão... maior do que eu... forte pra caramba... só que a mãe dele vendo ele beber ali.. ele apanhou no meio da rua lá em casa memo... ( ) ela foi lá dentro... buscá ele lá... ele tava lá... viu que ele tava bebenu... chegou/ ele tava fazenu/ foi catá ele lá dentro pra levá pra casa... Os pais ligados aos setores mais privilegiados da vizinhança buscam afastar seus filhos de atividades ligadas a estereótipos criados na cidade em relação aos jovens de periferia, do mesmo modo que o fazem em relação à imagem do bairro. A opinião dos jovens que ficam ali na praça, acerca dessa tentativa de destacar o bairro em geral e os filhos pode ser, particularmente, resumida com a afirmação de Edinho, outro jogador: “Aqui tem um pessoalzinho que acha que é mais que os otro”. Ao contrário da busca de um “destaque em relação aos outros”, os jovens que ficam ali na praça buscam grupos de referência que não são impostos pelos pais e por isso querem, como força contrária, igualarse a multidões de jovens periféricos como eles. Os filhos dos membros da associação vestem-se de modo “normal”: calça jeans, uma saia talvez para as meninas e bermudas para os meninos, e camisas com uma única cor. “Os mano” vestem “bermudões”, boné, blusas largas com dizeres em inglês ou do tipo “100% Negro” e óculos escuros. Um dos mano, Jonathan, certa vez foi vender roupa na vizinhança. Ele conseguiu esse “trampo” com seu cunhado. O cunhado mora e trabalha na Lapa, e foi ele que ofereceu a Jonathan o serviço. Como seu irmão também estava desempregado, Jonathan chamou-o para trabalhar junto. No entanto, não foi muito boa a apresentação dos dois aos vizinhos, pois eles o “criticavam”.

71

Doc.

Criticava? Como assim? Elas... as pessoas chega e ficaram falando/ [ Inf. não... as pessoas na rua mesmo... nóis dess/... nóis vendia ropa na rua entendeu?... que... aí eu arranjei o serviço né?... e... pensei que era bom né?... porque meu cunhado falô que era bom tal... aí eu falei... “ah! Já que-é bom então vô tentá botá ele [o irmão] porque ele tá parado também”... aí coloquei ele né?... e eu vi que num era nada bom... nóis chegava falano dum jeito... as mulé já olhava assim... falava das ropa... elas xingava reclamava pra caramba... Doc. É memo? Inf. Vixe!... reclamava bastante… “dexa de sê vagabundo num sei o que” Doc. Mas no jeito que cê falava? Inf. Ah… sei lá… talveiz pode sê até pelo jeito que nóis se vestia né?... nem sei... porque nóis curti umas ropa assim meia larga né?... meia forgada... daí... sei lá... vai vê até por isso...daí... uma veiz lá um tio daí pegô... nóis chegô na...na... na rua de baxo ali no no.... nóis tava com umas ropa lá... (ele) chegô e ficô bravo... “Dexa de sê vagabundo... cê passa todo dia aqui!”. Vestimentas e modos de falar servem como códigos que remetem à identidade “dos mano”. Esses outros códigos compõem, com a prática de freqüentar locais com baixa reputação na vizinhança, a orientação identitária desses jovens. Entretanto, se a orientação identitária “dos mano” permite o reconhecimento entre iguais, ela também permite a criação de um estereótipo que outros grupos sociais avaliam negativamente. Os setores mais privilegiados querem afastar a imagem do bairro da noção geral que possuem sobre “violência”. O aparência de um “mano” para eles é de um “vagabundo”, um “trombadinha” ou, simplesmente, um “maconheiro”. Dessa maneira, os mesmos códigos que estabelecem o reconhecimento dos manos entre si são também usados por outros grupos para identificar um “mau exemplo” do qual querem se afastar. Na vizinhança, a reiterada ânsia dos jovens na rua em desafiar abertamente o controle exercido pelos pais e pela comunidade em favor de “uma boa imagem”, não é nada além de uma reação à imagem que estes últimos lhes impõe. No entanto, ao agir a partir desse sentimento de rebeldia, “os mano” ajudam a reproduzir a própria situação de que tentavam lutar contra: serem os “maus exemplos” para os filhos “bons exemplos” das famílias mais prósperas. A violência é o motivo para os pais não deixarem os filhos na rua, pois junto com o tráfico, é um dos temas mais associados ao estereótipo depreciativo dos bairros de periferia em São Paulo. Por isso, os moradores adultos controlam a vida de seus filhos para que eles não ajudem a reforçar ainda mais essa imagem depreciativa do bairro, e também porque se preocupam intensamente com a vida dos filhos. A imagem depreciativa da periferia não está nos jornais ou na tevê, está ali na vizinhança, próxima a seus tão queridos filhos. No depoimento de Dona Lúcia, respeitada coordenadora da creche, isso fica evidente: porque eu nunca fiquei tranquila numa noite pra dormir sabendo que um filho meu tá na rua... porque nós criamos esse ato de responsabilidade... principalmente pela

72 paúria que se vive em São Paulo... porque em cada bairro que eu morei foi diferente... foi... no Guarani eu vi gente matar e botar fogo... na Brasilândia... quantas vezes a gente não viu falar assim... a pessoa tá falando aqui com a gente... outro dia tá morta bem do lado da casa entendeu? As frustrações dos filhos expostos ao controle da vizinhança, vindo dos mais velhos, tem como recompensa uma maior possibilidade de ascensão social. Assim, a pressão dos pais aceita pelos filhos ocorre como uma troca, já que há em contrapartida a garantia de estabilidade e segurança para aumentar a escolaridade (depois de concluir o ensino médio, alguns filhos dos moradores fazem cursos de computação, por exemplo). “Os mano” que vivem perambulando pelos locais públicos não são necessariamente uns “vagabundos baderneiros” que os setores mais privilegiados da vizinhança fazem crer. No entanto, eles todos, quando completam o ensino médio, não possuem perspectivas reais no mercado de trabalho. Vão ser, em grande parte, ajudantes de pedreiro que trabalham informalmente para cunhados ou irmãos pedreiros, ou então vendedores ambulantes. As possibilidades profissionais não estão de acordo com a formação escolar, pois são conseguidas através de contatos familiares ou por iniciativa própria.

2. 2 – A amostra “Brasilândia”

A amostra – o corpus lingüístico para a análise – foi constituída de modo que ficassem lingüisticamente bem representados os grupos sociais que caracterizamos etnograficamente nos itens acima. Referimo-nos a esse corpus como “amostra Brasilândia”. Conforme vimos anteriormente, esses grupos têm a praça como seu cenário mais característico. Vimos também que a praça é um local público em que os atores se articulam em arranjos convergentes e divergentes. Nesse sentido, podemos observar e analisar a constituição de identidades dialetais. No capítulo I, lembramos que tanto Labov (1972a, 2001) como Milroy (1980) privilegiam um estudo de vizinhança centrado nas moradias de um quarteirão, com alguns pontos de interação social – tais como esquinas ou centros comerciais. De maneira similar,

73 a constituição de nossa amostra privilegiou a praça e seus equipamentos urbanos (creche, botecos, cabeleireiros, mercadinhos, igrejas etc.) e selecionou como informantes moradores que não necessariamente compartilham o mesmo estilo de vida. Há, por exemplo, claras diferenças entre “os mano” que jogam o gol-a-gol na creche e as costureiras evangélicas: seus estilos de vida são divergentes e podem ser caracterizados até mesmo como conflitantes. Esses estilos de vida não se diferenciam somente pela faixa etária e pelas práticas na vizinhança, mas também por diferenças na formação escolar e no status sócioeconômico.

Desse

modo,

conforme evidencia nossa

descrição

etnográfica,

as

coordenadoras do projeto para as jovens, por exemplo, são as mais escolarizadas, e a associação de moradores é exemplo daquilo que a sociolingüística chama de classe trabalhadora mais alta. A partir da observação etnográfica, foram estabelecidas categorias de grupos sociais em que se agrupam atores de acordo com a imagem conferida a eles, tanto pelos outros e quanto por si próprios. Os grupos sociais tem como parâmetro o papel que cada um possui na opinião pública dos outros. Desse modo, por exemplo, o grupo “jogadores de futebol” é um papel localizado, que personifica o conjunto de jovens que vivem na praça em oposição aos outros que não vivem.

Tabela 5 - Amostra Brasilândia de acordo com os grupos da vizinhança

mais velhos mais novos

>50 25 a ‘ente). A formulação de Zilles dialoga com a interpretação de Kato et alii (2001:55-73), que consideram os pronomes na posição de sujeito como formas fracas, em oposição aos

82 pronomes na posição de objeto, considerados formas fortes em variedades do português do Brasil. Zilles (2004) também mantém diálogo com os trabalhos de Vitral (1996) e Ramos (1997), que consideram a expansão do morfema zero como desencadeadora da cliticização do pronome sujeito (principalmente no caso da segunda pessoa, com a seguinte redução fonética no dialeto mineiro: você > ocê > cê). Está fora do escopo desta pesquisa discutir mais amplamente acerca dos processos de redução fonética dos pronomes na posição de sujeito, no contexto de sua morfologização. O que nos interessa aqui é o fato de que essas morfologias compartilham propriedades a partir das quais podemos, interessantemente, estabelecer nossos grupos de fatores lingüísticos – ou, em outras palavras, nossas hipóteses sobre o uso variável dos pronomes de primeira pessoa do plural, bem como sobre a concordância variável entre as formas verbais e tais pronomes. Já apontamos, acima, que essas possibilidades morfológicas desempenham uma mesma função lingüística, baseada em sua natureza fórica. De acordo com Ilari et alii (1996), essa relação entre forma e função pode ser observada em três níveis de análise lingüística. Especificamente, as possibilidades morfológicas que exemplificamos mais acima: (1) representam, no enunciado, as pessoas do discurso (propriedade exofórica ou dêitica); (2) contribuem para a coesão textual, permitindo que se remeta a informações dadas anteriormente, no texto (propriedade endofórica ou anafórica); (3) representam superficialmente as relações dos constituintes com o predicado, tais como a diferença entre pronomes sujeitos e pronomes objetos (Ilari et alii, 1996). Essas funções28 vão nos guiar, nas subseções a seguir, no estabelecimento dos grupos de fatores lingüísticos que incluímos na análise quantitativa dos dados. Vamos chamar a primeira das funções acima de interacional, e trataremos dela na subseção 3.2, a seguir, discutindo a pluralização dos pronomes e a impessoalização do sujeito como estratégias de polidez29. A segunda função chamaremos de coesiva e trataremos dos grupos de fatores referentes à ela na seção 3.3. Por fim, a terceira função, 28

Cf. Teoria das “meta-funções”, seguida por Ilari et alii (1996:79-168) e descrita por Neves (1997:58-74) a partir das propostas de Haliiday (1985, apud). 29 Conceitos de “estratégias de polidez” são propostos por Brown & Levinson (1994:127-128; 198-203).

83 que podemos mais especificamente chamar de “gramatical”30, será abordada na subseção 3.4. Nessa, trataremos dos grupos de fatores relativos aos tipos de objetos verbais, à saliência fônica e ao preenchimento do sujeito.

3. 2 – Função interacional. 3. 2. 1 – Referentes determinados da primeira pessoa do plural. Da perspectiva interacional, as formas pronominais e os nomes constituem escolhas dos interlocutores em processos de referência ou não-referência aos participantes e ao contexto de uma dada interação (Neves, 1997:58-74). Nesse sentido, escolher um nome para ocupar a posição de sujeito, por exemplo, implica não se referir aos participantes da interação. Nessa proposta, a enunciação de determinado termo constitui uma escolha num paradigma de palavras. Dentro desse paradigma geral, temos o conjunto de pronomes e sufixos flexionais de pessoa que expressam os participantes da interação. Seguindo essa caracterização geral da relação paradigmática dos pronomes (e dos sufixos verbais), Ilari et alii (1996) propõem a divisão da categoria “pronomes” do português culto de acordo com o traço [+/- PESSOA]. Sua proposta é baseada emBenveniste (1964, apud), que considera o sistema pronominal e verbal das línguas como bipartite: elementos da categoria pessoa e elementos da categoria não-pessoa. O traço [+ PESSOA] é definido pelas formas que são passíveis de intercâmbio na interação (eu:você) e subdividese em dois outros traços: [+/- EGO] e [+/- TU]. A partir desses traços, podemos propor o seguinte esquema para as formas do singular:

[+ EGO, - TU] [+ PESSOA] [- EGO, + TU]

[- PESSOA]

[ -EGO, - TU]

eu, -ou, -ei ,zero me meu tu/você,-s, -ste,-zero te/você teu/seu ele, ela, se, zero ele/o, ela/a dele/seu, dela/sua

30 Reconhecemos que existe uma “gramática” nos três níveis a que nos referimos aqui. Entretanto, empregamos o termo “gramatical” no último dos casos no sentido de que a terceira dessas propriedades diz respeito especificamente à frase e seus constituintes.

84

Para o plural das pessoas do discurso, o esquema não é tão simples, já que a própria noção de pluralidade consiste numa “reunião” de diferentes referentes com traços do tipo [+EGO,+TU], por exemplo. Nos trechos abaixo, as formas contêm traços [+EGO,+TU], ou seja, expressam o sentido inclusivo da primeira pessoa do plural: (1) [ Doc. liga o gravador e registra o momento em que a Inf. escolhe um lugar para a entrevista] Doc. Inf. Doc. Inf.

nu sei como é que/...dexeu...bom cê quizé a gente pode ficá mais pro canto vamo sentá aqui ó vamo ficá aqui... vamo ficá escondidinho pode fica aí ... não se incomode 31 vamo ficá aqui escondidinho...pronto (Berenice 60)

(2) [a Inf. despede-se da amiga (Inf. A), e pergunta ao Doc. do que estavam falando] Inf.

(vai lá vai lá) nas panela... (vai lá) ( ) ((simultaneidade de vozes)) Inf.A nem tem comida lá eu acho Inf. será que tem? ... tomara que num tem... tchau... agora já esqueci...onde é que nóis tava? ((risos)) Doc. não... é assim eu perguntei como é que é/ como que era assim na na Bahia a terra já era de vocêis? (D. Joaninha 78)

(3) [ o Inf. ao comentar sobre as diferenças de vida na cidade grande em relação à cidade pequena, utiliza um exemplo vivenciado pelo próprio Doc. para ilustrar seus argumentos] e numa cidade grande que tem dez mil habitantes , seja ela São Paulo, seja Rio de Janeiro, qualquer uma , você num conhece ninguém... então é um lugar que você sempre deve confiá desconfiando.. é aquilo que a gente falamu naquela reunião lá né?... você achou um jeito de fazer seu trabalho aqui através da associação que seria mais fácil que você saí de porta em porta batendo tentando falar com alguém... (Adauto 39)

Casos como estes são raros nas entrevistas sociolingüísticas. O que ocorre é que grande parte das ocorrências expressa o sentido exclusivo (que é a combinação dos traços 31

As passagens são etiquetadas segundo o primeiro nome do informante e sua idade no ano em que ocorreu a entrevista sociolingüística.

85 [+EGO, - TU]. A razão para que as ocorrências com sentido exclusivo sejam mais freqüentes do que aquelas com sentido inclusivo é motivado pelos procedimentos para as entrevistas sociolingüísticas da nossa pesquisa: boa parte dos tópicos incluía atividades dos informantes com seus amigos, familiares, colegas de trabalho etc. Como podemos ver nos exemplos abaixo, esses tópicos eram introduzidos a partir de perguntas feitas em segunda pessoa do plural: (4) [As formas plurais de primeira e segunda pessoas referem-se à Inf. e ao seu marido] Doc. Inf.

A casa que vocêis moram cêis já construíram? Não... porque nóis tá construindo no quintal da minha sogra...porque nóis vai construir no quintal atrás... porque nóis já comprou o material e mês que vem nóis vamo construir... no quintal atrás... (Luciene 20)

(5) [As formas plurais de primeira e de segunda pessoas referem-se ao Inf. e a dois amigos dele na vizinhança] Doc. Inf.

se elas deixam vocêis sair assim aqui no bairro né? ... elas não deixam vocêis sair de casa quando vocêis querem ou dão limite? não... até que ela deixa assim... mas depende da hora que as/ as mães dos amigos deixam porque a gente brinca assim quando a rua é em frente da nossa casa...(Erick 8)

3. 2. 2 – “Falsos plurais” de primeira pessoa Entretanto, nem sempre a pergunta dirigida em segunda pessoa do plural garantia de que a resposta viesse em primeira pessoa do plural. O exemplo abaixo ilustra um caso em que o informante responde no singular: (6) [O Doc. refere-se ao Inf. e aos seus irmãos no momento em que chegaram a São Paulo. No entanto, o Inf. escolhe enfatizar, na primeira pessoa do singular, a falta de “surpresa” que teve quando chegou em São Paulo. Nesse caso, não fica claro se seus irmãos agiram de modo semelhante ou não.] Doc. Inf.

E assim quando cêis chegaru em São Paulo vocêis sentiru uma coisa assim muito diferente? Levaru um susto? Não porque eu já tinha costume de andá nas outras cidades... cidades grandes... então eu não tive esse susto esse ....apavoramento que uma pessoa geralmente... nem só eu, mas como todas as pessoas quando chegam num lugar... pra início

86 fica... acha uma coisa estranha né? eu num tinha porque já conhecia outras cidade... (Jean 31)

O mesmo acontece com o inverso, ou seja, perguntas dirigidas em segunda pessoa do singular tiveram respostas em primeira pessoa do plural. Podemos verificar, no exemplo (7) a seguir, que o uso da primeira pessoa do plural constitui uma “falsa pluralização”, já que a informante refere-se basicamente a si mesma. (7) Doc. Inf.

éh me dá um exemplo assim que... você sentiu isso assim um preconceito... cê tem algum exemplo pra me dá? assim... ás vez a gente passar pelo tipo de coisa que a gente passa porque eles pensa que talvez pensa que a gente num é daqui né? as vez alguém encontra dificuldade pra conversar pelo... num é da terra que a gente mora...num é do lugar da gente... mesmo aqui no meio dos parente né?... sempre a gente sente um pouquinho isso aí né?... eu moro no meio de uma família ... acontece várias coisa que se não tivesse que acontecê talveiz no meio de uma família num aconteceria entendeu? ... e a gente fica naquele pensamento... aí eu num sei se realmente a questão é essa ou se é porque a gente às vez pensa né? que sempre a gente pensa... eu acho um pouco que eu faço alguma coisa aqui porque sei lá eu num tô no meio da família num moro no meu lugar ... (Marilene 25)

O mesmo tópico também dirigido em forma singular a outro falante, em (8), produziu uma resposta em primeira pessoa do singular. (8) Doc. - ... cê acha que já sofreu ou sofre algum tipo de preconceito por não ser daqui? Inf. - Bom, eu acho que não... eu nunca tive preconceito nenhum, alguém teve comigo... tem um dizê aí que o pessoal fala “baiano, baiano!” ... isso pra mim num... atinge, isso quando a pessoa fala pra mim “ó o baianão ali num sei o que”... eu pra mim... aí eu sinto até orgulhoso... quando a pessoa fala pra mim... quando a pessoa fala “um baiano”... eu penso assim... porque baiano? A primeira capital do país foi a Bahia, foi na Bahia... se você chegar no exterior e falar da Bahia ... o pessoal... muita gente pode conhecer a Bahia e São Paulo ninguém conhece... algumas pessoas não conhecem... então eu tenho até orgulho de ser de lá... tenho orgulho de ouvi falar que sou baiano... (Adauto 39)

Como as duas últimas passagens sugerem, parece haver uma possibilidade, por parte de quem fala, de se referir a si próprio de forma direta, por meio de formas singulares de primeira pessoa, ou indireta, por meio das formas plurais de primeira pessoa. Em (7), esse “falso plural” da primeira pessoa é bem evidente na medida em que a informante usa alternadamente a forma do singular e a forma do plural.

87 As escolhas da informante em (7) (formas plurais para se referir a si mesma) e do informante em (8) (formas singulares) ligam-se à opinião deles sobre o preconceito que sofrem por ser baianos. Como podemos verificar, enquanto a falante em (7) trata o preconceito como um tópico “delicado”, pois ela já passou por maus bocados em razão disso, o falante em (8) tem uma postura de auto-afirmação. Podemos, portanto, dizer que a escolha entre formas plurais e singulares da primeira pessoa, nesses casos, articula-se com estratégias de polidez. A fim de descrever a estratégia de polidez envolvida o uso do plural da primeira pessoa tal como em (7), vamos antes verificar enunciados com falsos plurais de primeira pessoa no português culto, descritos por Ilari et alii (1996:94-97). Para esses autores, os exemplos de usos da primeira pessoa do plural, que não incluem ninguém além da própria “pessoa” que fala, são demonstrações claras das definições estabelecidas por Benveniste, que considera essas formas como um “eu-ampliado”: nós, a gente e -mos “são mais do que simples plurais de eu” (Ilari et alii, 1996:94). Os exemplos dados por eles são, basicamente32: (9) agora nós vamos passar para o nosso outro assunto... o outro assunto... é a região mediastínica... então nós vamos começar a nossa região mediastínica... em uma proposição... eu vou dizer pra vocês... e vocês vão copiar... (NURC - Elocuções Formais – Salvador)

(10) .. então tudo o que a gente vai dizer a respeito desse período... é baseado em pesquisas arqueológicas... (NURC - Elocuções Formais – São Paulo)

As passagens de aulas dadas em universidades de grandes capitais do país (nos casos, Salvador e São Paulo) são “elocuções formais” de professores. Ilari et alii (1996) consideram que esses usos são ambíguos quanto ao traço [+/- TU]: entre uma leitura inclusiva [+TU] do “plural de modéstia” ou uma leitura exclusiva [-TU] do “plural majestático”. A estratégia do “plural de modéstia” é uma polidez de face positiva, pois o falante, com algum tipo de poder maior sobre os ouvintes (no caso, o poder intelectual do professor em relação aos alunos), tenta amenizar a assimetria com o sentido inclusivo da primeira

32

Extraídos de Ilari et alii (1996) - exemplos 96 e 97, respectivamente.

88 pessoa do plural. Já numa interpretação dos exemplos como usos de “plural majestático”, a estratégia é uma polidez de face negativa, uma vez que o falante inclui-se como pertencente a um conjunto de pessoas, que possuem um poder sobre um domínio (no caso, os professores ou estudiosos do assunto). Nesse último caso, o sentido exclusivo ressaltaria a assimetria entre os interlocutores33. Numa comparação dos exemplos em (10) com o exemplo em (7), vemos claramente que as condições pragmáticas determinam os sentidos dos “falsos plurais” da primeira pessoa na interação. Na entrevista sociolingüística, em que ocorreu a passagem em (7), não havia uma maior autoridade da falante em relação ao ouvinte, ou mais especificamente, ao pesquisador. O parâmetro pragmático, mais relevante para a instanciação de a gente como “falso plural”, pela informante em (7), é aquele da relação de distância social (tanto em relação à classe social, como em relação à falta de intimidade) entre ela e o pesquisador. Os tópicos dos professores são assuntos que compõem o poder intelectual deles sobre os alunos, enquanto que o “preconceito” sofrido pela informante é um assunto muito pessoal ou íntimo para se tratar com um estranho. A informante usa um “falso plural” para marcar a distância em relação ao ouvinte num assunto, que iria ameaçar sua face. Outros exemplos do uso de “falsos plurais” para a primeira pessoa em outras passagens das entrevistas sociolingüísticas gravadas são ilustrados a seguir. Na passagem em (11), a falante, em discurso direto, conta como “delicadamente” pediu para a pessoa no orelhão se apressar na ligação, pois ela tinha que fazer uma ligação com urgência.

(11) ... já vi ele[o filho dela] me pegando assim me botô lá... no caminho eu lembrei de perguntá do telefone... “vou falá o telefone aqui pra você... cê tem papel e lápis?”... falô... “pode falá”... aí ele falou ... e e (fui) mais é (lógico) quando chego no hospital ... a moça veio usá

33

Brown & Gilman (1972:254) consideram que a pluralidade dos pronomes pessoais do latim sempre foi uma boa metáfora para a esfera semântica do poder e da assimetria entre os interlocutores. Segundo os autores, o uso do nos para se referir exclusivamente ao falante desenvolveu-se paralelamente ao uso de vos para se referir exclusivamente ao ouvinte, em situações mais polidas. Desde o princípio, o uso metafórico de nos possuía um leitura ambígua quanto à inclusão ou à exclusão dos ouvintes. Segundo os autores, a metáfora com sentido exclusivo de nos (= eu+ele(s)) originou-se provavelmente na época em que o império romano foi dividido em dois centros administrativos – Roma e Constantinopla, no século IV – com um imperador em cada sede. Vos era endereçada a um imperador que, ao responder, usava nos. As formas usadas podiam se referir aos dois imperadores romanos (um sentido exclusivo) ou podiam se referir ao imperador e seus súditos (um sentido inclusivo).

89 o telefone... falei a mesma coisa “é que nóis vamo ligá pra lá pra dá a notícia”... (D. Joaninha 78)

Nas passagens seguintes, os falantes falam de gostos e opiniões pessoais, e pela distância social com o ouvinte, o assunto é tratado com mais “reserva” através da primeira pessoa do plural. (12) ... nóis curti de tudo um pôco, axé, funk, pagode... samba, forró... eu gosto de forró... (ouço de) final de semana, assim de vez em quando, eu vô dançá um forró ((risos)) (Cibélie 17)

... Doc. Inf.

que que cê ouve em rádio? nóis gosta muito de ouvir aqui é... ah nem sei a rádio...(Marilene 25)

Doc. Inf.

a maioria é palmeirense... e aí vocês se reúnem pra ficar vendo jogo junto? não não...só nóis memu gosta muito de jogo... tem gente que nem gosta de jogo... domingo eu vejo em casa sozinho o jogo...(Eumequias 17) ... Ah tá... e... você tem uma relação boa com seus vizinhos? Tenho... tem um mais ou menos assim que nóis num gosta... mas fora isso.... eu nem dou muita trela pra vizinho... muito raro eu ficá na casa dos outro assim... vou mais pro curso, eu vou pra casa... pra igreja pronto...(Luciene 20)

...

Doc. Inf.

Já nas passagens em (13), as perguntas feitas pelo Doc. não possuem respostas esperadas, de tal modo que há uma “quebra de expectativa”. As formas plurais de primeira pessoa atenuam esse efeito. (13) Doc. Inf. Doc. Inf.

Doc. Inf. Doc. Inf.

Doc. Inf. Doc. Inf.

Éh... você fez escola até quando? Tá fazendo ainda? Fiz até a Sexta aí parei... Pra trabaiá? Pra trabaiá mas num tem emprego... tê tem.. mas a gente num arruma ((risos))...(Weder, 17) ... você gosta daqui do bairro? Não. Não gosta? por que? ((risos)) porque acho, não sei, nóis nunca pensou nisso, não desde quando eu cheguei eu não gosto... (Vera Lúcia, 55) ... você... você costu/ balada assim no bairro você costuma faz/ í um na casa do outro né? Não… nóis fica aqui na praça memo… Ah tá...mas nem í na casa de amigos daqui você vai? nóis num é de freqüentá muito a casa dos amigo também não...(Jonathan18)

90

Os casos de “falsos plurais” acima listados são diferentes daqueles com sentido de “plural de modéstia” ou “plural majestático” do português culto. Uma definição mais apropriada seria “plural de delicadeza”, por dois motivos. Primeiramente, falta a esses falantes a autoridade que se subentende no plural de modéstia ou no plural majestático. O papel do plural de delicadeza parece atenuar o modo como assuntos mais pessoais e íntimos são tratados na frente de estranhos. As falas de Cibélie em (12), de Weder e de Vera Lúcia em (13) são acompanhadas de anotações da transcrição sobre o comportamento não verbal dos informantes, como “risos”. O “riso” é mais ou menos polido em cada passagem das entrevistas, podendo ter o sentido de “risadas nervosas” ou “risadas envergonhadas”, que acompanham a inteção do falante em marcar a distância entre o assunto pessoal tratado e o ouvinte. Um segundo motivo é que não há leitura ambígua quanto à inclusão ou à exclusão do ouvinte, como nos casos descritos por Ilari et alii (1986), na medida em que fica evidente a falta de intimidade entre os interlocutores. Portanto, a leitura do plural de delicadeza é somente exclusiva, ou seja, [+EGO, - TU].

3. 2. 3 - Pluralidade e indeterminação. Ilari et alii (1986) ainda consideram uma outra oposição semântica que separa a “não-pessoa” determinada (ele/ ela) da “não-pessoa” indeterminada (se). No entanto, essa caracterização da indeterminação de um referente como intrínseca ao pronome se somente pode ser postulada como caso mais prototípico, uma vez que essa propriedade pode estar presente também em os outros pronomes, principalmente nas formas plurais (Ilari et alii, 1986:99). Os autores fornecem exemplos que demonstram como até mesmo as formas singulares de primeira e de segunda pessoas expressam referentes menos determinados. Essa questão não será discutida aqui de maneira aprofundada. Vamos restringi-la a fim de relacionar a indeterminação com o traço de pluralidade, principalmente para a primeira pessoa. O traço de pluralidade é uma forma de indeterminar outros pronomes da categoria não-pessoa: como é o caso de formas verbais na terceira pessoa do plural sem sujeito antecedente, para expressar uma indeterminação semelhante ao pronome se. No caso dos pronomes pessoais, a indeterminação da terceira pessoa “contaminaria” as formas plurais

91 de primeira e de segunda, pois a pluralização deles implica a união de elementos da categoria pessoa com outros elementos da categoria não-pessoa. Os exemplos em (14) possuem enunciados com “nós”, “-mos” e “a gente”, com referentes relativamente mais amplos (eu + você + eles). (14) pra trabalhar e dar comida pra essas pessoas lá sem fazer nada... sem que/ nós num temos ninguém no nosso país que faça nada de bom pra botar as pessoa pra trabalhar...(Adauto 39) ... Até hoje eu recebo ligação do banco de estágio, foi:: ... cadastramento que eu fiz, em quando?... em dois mil e um... Aí nóis tamo em dois mil e quatro, o pessoal ainda liga, chamando, tudo, diz que tá precisando... mais:: eu não:: / eu não larguei ainda não...(Cibélie 17)

Nos exemplos acima, as formas grifadas recebem uma interpretação mais abrangente ou menos determinada. Essa abrangência está motivada por um “enquadre” espacial, no primeiro, e temporal, no segundo. Esse “enquadre” é responsável pela referência a um conjunto geral de indivíduos que inclui o falante, o ouvinte e todos os outros que moram no país ou são contemporâneos ao ano em que foi gravado a entrevista. Já nos exemplos a seguir, os informantes utilizam as formas plurais de primeira pessoa para se referir a um conjunto mais genérico. A inclusão do ouvinte opera-se apenas secundariamente, uma vez que nessa construção uma “inclusão universal” abrange o grau máximo de eles como todo mundo, de tal modo que abrange também a segunda pessoa. (15) esses pequenos detalhes... que a gente não pode deixar passar... na vida da gente entendeu? (D. Lúcia 42) ... Porque tem que tê o respeito também né? Se os otru te respeitá... nóis tem que respeitá eles também... e é assim... (Jonathan 18)

O primeira passagem ilustra um caso típico em que poderíamos alternar a forma plural a gente com o clítico indeterminado se. Kato et alii (2001:59-60) propõem que exemplos como esses são subtipos de sentenças com sujeito arbitrário, como nas construções reformuladas abaixo: (15’) ...pequenos detalhes que você não pode deixar passar na vida... ...pequenos detalhes que a gente/nós não pode/podemos deixar passar na vida...

92 ...pequenos detalhes que não se pode deixar passar na vida... ...pequenos detalhes que não Ο pode deixar passar na vida... .... se os outros te respeitam, você tem que respeitar eles também... ... se os outros te respeitam, a gente/ nós tem/ temos que respeitar eles também... ...se os outros respeitam, tem que (?se) respeitar eles também... ... se os outros respeitam, é preciso respeitar eles também... No primeiro conjunto, temos construções que criam um paradigma que inclui você, a gente, nós, se e o verbo sem sufixo ou pronome expresso (o zero morfológico). No segundo conjunto, não é tão clara a alternância com se, e a construção poderia ser substituída por outra, com um verbo de sujeito oracional “é preciso”. Para explicar as diferenças semânticas entre as sentenças com sujeitos arbitrários, Ilari et alii (1996:99) propõem um princípio icônico: quanto menor o número de formas expressas com o verbo (pronomes ou sufixos), há um maior grau de indeterminação. Por exemplo, acerca da diferença entre um verbo sem sufixo e sem pronome expresso e um verbo com o sufixo plural de não-pessoa, os autores comentam : “o enunciado “queijo pode fazer” generaliza não apenas a terceira pessoa, ou não-pessoa, mas também, potencialmente, para as duas pessoas do discurso, enquanto um enunciado como “queijo podem fazer” implicaria a exclusão dos interlocutores” (1996:106). Em outras palavras, quanto mais “preenchida”, maior o grau de determinação que se quer dar a uma sentença com “sujeitos arbitrários”. Nessas sentenças, a relação paradigmática entre formas mais impessoais e formas mais pessoais pode revelar escolhas do falante que também são motivadas por estratégias de polidez. Quando o falante usa a “inclusão universal” – que nos referimos anteriormente, quer fazer crer que suas generalidades são aceitas por todos (incluído aí o ouvinte). Dessa maneira, o falante pressupõe que não há qualquer tipo de expectativa contrária à sua afirmação. Nesse caso, o uso das formas plurais de primeira pessoa configura uma estratégia de polidez, na medida em que elas funcionam como formas lingüísticas pelas quais o falante tenta igualar suas crenças a uma opinião potencialmente verdadeira para todos (a inclusão universal).

93 3. 2. 4 – Grupos de fatores semântico-pragmáticos Nas subseções anteriores, apresentamos a função dêitica ou exofórica das formas plurais de primeira pessoa. Nesta, vamos aventar algumas hipóteses a respeito do emprego das variantes das variáveis em foco, na sua relação como aquelas propriedades. No quadro abaixo, apresenta-se um resumo das questões tratadas anteriormente. Observa-se que há duas esferas semântico-pragmáticas que se interseccionam – quantidade e qualidade.

quantidade referentes mais determinados qualidade plurais “literais”

plurais figurados

referentes menos determinados

grupos mais ou menos contáveis grupos mais amplos ou menos (=eu+você/s) (=eu+ele/ela/s) contáveis (=eu+os brasileiros) plural de delicadeza genérico (=“eu”) (=eu + todo mundo)

A esfera da quantidade (primeira linha do quadro acima) diz respeito ao número de indivíduos contido no conjunto referido pelo pronome de primeira pessoa do plural. Em outras palavras, temos aqui nosso primeiro grupo de fatores lingüísticos, cuja justificativa se dá pela discussão anteriormente desenvolvida acerca das funções interacionai9s da morfologia de número e pessoa. Como vimos anteriormente na seção 1 do capítulo II, o pronome a gente parece ser mais favorecido quando a quantidade de indivíduos a que a forma se refere é menos determinada. Como o pronome a gente não é tão freqüentemente empregado na comunidade em estudo, espera-se que a propagação do pronome seja menor nos casos de referências mais determinadas. A esfera da qualidade (primeira coluna do quadro acima) fornece-nos os fatores de outro grupo de natureza lingüística: deve haver alguma correlação entre o “tipo de plural” expresso pela morfologia de número/ pessoa e a escolha da variante pronominal. Além disso, essa hipótese relativa à esfera da qualidade justifica-se na medida em que as variantes pronominais de primeira pessoa podem ter seu emprego correlacionado a contextos em que sejam atestadas estratégias de polidez, do modo como vimos na discussão nas subseções anteriores.

94 Ainda acerca do emprego de formas plurais de primeira pessoa com função interacional, devemos lembrar que certas ocorrências não permitem variação (em outras palavras, não configuram um “contexto variável”) e, por isso, não foram incluídas na análise quantitativa. Nessas ocorrências, observa-se especificamente o emprego de “vamo”, como nos exemplos abaixo. Neles, a presença de um pronome plural de primeira pessoa alteraria o sentido do enunciado, e não seria possível substituir tal formapelo seu equivalente com o morfema zero “vai” (pois, nessa última possibilidade, a interpretação seria de uma segunda pessoa do singular) :

(16) aí deus me feiz uma transformação que as colega chegava em casa falava assim “vamo pa boite Berê?” “ah eu nu tô com vontade”...(Berenice 60) ... ... só mesmo quando você conhece os muleques assim lá do outro bairro aí você fala “vamo marcar um contra do meu time contra o seu?”... aí sim (Thiago 17) ... que nem nóis tem uma casa lá em Amadouro nem... nu tem nada de gado nu tem nem açúcar... ele fala “ah vamo lá buscá banana?”... eu digo “ai” ((ri)) (Jeanete 42) ... Aí eu falei “vamo... vamo conhecer lá?”... cheguei lá... arrumei um barraquinho... levei ela... ela também não queria... mas era o jeito... (Jean 31) ... pessoas que a gente acaba de conhecê, a gente liga “ah, vamo se encontrá no West/ no West Plaza?”, aí vai todo mundo pra lá, fica lá sentado na pracinha de lá do shopping, fica conversando... (Cibélie 17) ... ...sabe aquele parquinho que tem...aí eu falei “ai! eu vô lá dá umas balançada, Lurdinha, você/” eu lembro da minina até hoje... “você deixa eu í balançá na sua balança?”...ela falô “vamo!”...(Berenice 60)

Em todos os exemplos acima há um discurso reportado num formato do tipo CONVITE

-

ACEITAÇÃO/ RECUSA:

“- Vamo sair?” “- Vamo!”. Em (16’), observamos que

somente o par com vamo implica um ato pragmático de convite. Os outros dois pares implicam somente um ato pragmático mais geral, do tipo PERGUNTA – RESPOSTA. (16’) -Vamo sair? - Vamo!

- Nós/a gente vamo/vai sair? - Vai sair? - Vamo! - Vamo!

95 Além do par

CONVITE

-

ACEITAÇÃO/ RECUSA,

a forma vamo em afirmações ou

exclamações pode configurar outra estratégia de polidez. Nessa situação, o falante não não se refere a si mesmo, mas sim ao ouvinte - outro caso de “falso plural”: (17) ...(então) aí eu falo “mãe, oh! tal di/ tal domingo eu vô apresenta teatro lá na igreja, vamo lá assistí e tudo.” ela vai... (Cibélie 17) ... “eu calçava chinelo era todo costurado e vocês dois[os filhos] têm sapato do bom e do melhor...e ropa (também)”... “então gente, vamo estudá que o estudo é importante” que hoje eu tô venu que o o que o estudo faiz... (Jeanete 42) ... principalmente as mulher, tem que tê consciência do que tá fazendo... se não qué ficá grávida, vamo evitá, vamo fazê alguma coisa... agora, nada de ficá grávida e tirá, abortá. (Cibélie 17) ... quando eu nu tava aguentando aquela agonia caquele sol caquela dor e aquela zuada ... não esperei mais... aí eu disse “vamo terminá!” ela logo “não... espera mais um bocado”... “mais tá demorando”... quando eu vejo o bocado eu nem vi a hora que veio (D. Joaninha 60) ... “ô gente, se unam, lutam, sabe?... tentam se a gente conseguiu tirar dezesseis pra quadra, vocês conseguem tirar dezesseis casa pra fazer uma quadra aqui pra vocês pra fazer uma escola sei lá alguma coisa... vai ficar em casa? esperando?...(Dona Lúcia 42).

Os três primeiros exemplos acima ilustram outro tipo de ocorrências em que a variação não é possível. A última passagem demonstra que, no mesmo contexto em que as informantes anteriores usaram vamo, a informante usa a segunda pessoa do plural. O ato pragmático implícito nos primeiros casos é de que o falante está dando um conselho ou uma obrigação ao seu interlocutor e utiliza o plural de primeira pessoa para minimizar a ameaça à face dele (algo que não ocorre quando se usa a segunda pessoa do plural, por exemplo34). Mais uma vez, ocorrências como essas não não foram incluídas na análise quantitativa, pois a alternância entre as variantes das variáveis em foco não é possível nesse contexto.

34 Trata-se de usos semelhantes aos da forma cristalizada “Let´s” do inglês, como nos exemplos de Brown & Levinson (1994:127): (i) Let´s get on with dinner, eh? (=you); (ii) Let´s stop for a bite. (=I want a bite, so let´s stop!).

96 3. 3 – Função coesiva

3. 3. 1 – Diferença entre dêiticos e anafóricos PARA ILARI

ET ALII

DESEMPENHAM O PAPEL DE

(1996:120),

SOMENTE OS PRONOMES DE NÃO-PESSOA

“VERDADEIROS”

RELACIONAR PARTES DE UM TEXTO.

NO

ANAFÓRICOS, OU SEJA, O PAPEL DE

CASO DOS PRONOMES PESSOAIS, A FUNÇÃO

ANAFÓRICA CONFUNDE-SE COM A PRÓPRIA FUNÇÃO DÊITICA, UMA VEZ QUE A REFERÊNCIA AOS PARTICIPANTES DE UMA INTERAÇÃO NÃO CRIA A NECESSIDADE DE SE REMETER A PARTES ANTERIORES DO TEXTO.

OS AUTORES CONSIDERAM QUE SOMENTE EM DUAS SITUAÇÕES ESSA OPOSIÇÃO NÃO É VERIFICADA EM RELAÇÃO À CATEGORIA DE PESSOA GRAMATICAL: PESSOA É INDICADA OSTENSIVAMENTE

(PARA

(1)

QUANDO A TERCEIRA

SE REFERIR A ALGUÉM RELATIVAMENTE

PRÓXIMO AOS INTERLOCUTORES), E (2) QUANDO OS FALANTES USAM OS PRONOMES PESSOAIS NO DISCURSO DIRETO. AS PASSAGENS ABAIXO SÃO DO SEGUNDO TIPO:

(18) a minina... subiu chorano lá... aí... eu nem... ela num dexô eu nem me explicá... já veio chorando... tacô a carta ni mim... eu (ia) catá nela assim... aí ela pegô... queria me batê... aí eu disse “vixe... eu vô embora... depois que você tivé mais calma a gente conversa”.... aí setembro foi quano nóis voltamu ao normal assim e...(Jonathan 18) ... ...mas o Luizão falou “pode mandar, pode mandar... manda embora e nós põe o Jean entrar no lugar dele”...(Jean 31)

Na instanciação de discursos diretos, parece mais apropriado considerar que pronomes pessoais retomam partes anteriores do texto: eu, você, nós e a gente referem-se aos “personagens” da narração e não aos participantes da interação propriamente dita. Um contra-exemplo possível é a ocorrência de nós na segunda passagem, pois a forma não se refere nem à pessoa que fala. Com exceção de casos como esse, os autores propõem a oposição entre pronomes dêiticos (os pessoais) e pronomes anafóricos (os de terceira pessoa ou não-pessoa). No nosso trabalho, relativizamos tal oposição, de modo semelhante às que fazem Ilari et alii (1996), mas em relação à função interacional da morfologia de primeira pessoa do plural: já que as formas plurais de primeira pessoa pressupõem elementos da categoria não-pessoa, elas também possuem propriedades anafóricas. Dessa maneira, as propriedades

97 anafóricas da não-pessoa seriam utilizadas conjuntamente com as propriedades dêiticas da primeira pessoa por meio da pluralização. Em (19), temos um exemplo em que a forma plural a gente instancia uma propriedade dêitica de tal modo que “quebra” a progressão referencial: há a introdução de um conjunto mais ou menos definido de pessoas que moram/moraram no interior, tal como a informante. A introdução desse conjunto acompanha uma mudança no plano discursivo do tipo “figura-fundo” ou “fato-comentário”: o enunciado é um comentário metalingüístico sobre um termo usado no desenvolvimento do tópico sobre “a qualidade da comida na cidade em comparação com a qualidade da comida no campo”.

(19) ...então já vem posto uma química pra num carunchá pa nu estragá...depois quando chega pra ensacá dus/ da saca de sessenta litros que a gente fala “litros” né? lá no interior...pra passá pra os de kilos é otra química que põe...cê entendeu? (Berenice 60)

Nos exemplos abaixo, entretanto, os pronomes de primeira pessoa do plural só podem ser interpretados a partir do eu dêitico combinado com um ele anafórico, em (20), e com um ele catafórico, em (21). O último trecho em (20), traz um tópico com um elemento nãopessoa que é retomado pelo pronome de primeira pessoa do plural na posição de sujeito.

(20) ...dividia o banco com os mendigo ali... era eu e um colega meu... a gente tava na mesma situação... (Jean 31) .. ...eu e meu irmão, a gente brigava muito né....(Arlei 16) ... aí veio eu e meu irmão pra cá... ela [a mãe] continou lá... eu falei pra ela continuar morando com ele... não tinha nada que vim praqui...era... quando a gente veio pra casa a gente veio pra vim morar na casa... (Arlei 16) Aí o grupo de jovens, a gente acolhe o pessoal que já fez catequese... tem o crisma também, só que o crisma, eu não fiz ainda e nu vô fazê... (Cibélie 17)

(21) faço de tudo bolo, arroz, feijão, bife... lá nóis faz... eu e meu primo ali nóis que cozinha... (Eumequias 17) ...

98 nóis ia pra Morato... eu e meu irmão... nóis lá em Morato num tem mulé né?.. aí nóis cozinhava...(Jonathan 18)

Os exemplos em (21) são mais apropriadamente “catafóricos”. Nessas ocorrências, o pronome de primeira pessoa do plural em pregado antes da estrutura eu+ele, demonstra que o falante quis tirar a ambigüidade da “referência” de ele/a(s) (“não-pessoa”). Assim, a propriedade dêitica implícita das formas plurais de primeira pessoa não necessita de partes anteriores do texto para ser identificada, diferentemente de sua propriedade anafórica. Quando comparamos o significado de “nós/a gente, eu e ele” com o significado de “eu e ele, nós/a gente”, dentro de uma mesma frase, observamos que as diferenças de significado são motivadas pelas estruturas dos enunciados: (20’) eu e meu irmão, a gente/nós brigava/brigávamos muito né a gente/nós, eu e meu irmão, brigava/brigávamos muito né Como as vírgulas indicam, enquanto a primeira frase em (20’) possui uma estrutura do tipo “tópico-comentário”, a segunda possui uma estrutura do tipo “sujeito-aposto”. Na segunda, o constituinte entre vírgulas realiza uma “restrição” à classe de referentes expressa na posição de sujeito (semelhantemente ao que ocorre com as orações relativas). Novamente, a operação de “restrição” do referente é articulada somente com os traços [EGO,-TU]

que compõem um dos elementos referidos na forma plural de primeira pessoa

(eu+eles), como nos casos de catáfora.

3. 3. 2 - Propriedades anafóricas e paralelismo Naro & Scherre (1991) constatam um efeito de paralelismo na concordância verbal de terceira pessoa do plural e na concordância dos predicativos, confirmando resultados já encontrados por Scherre (1988, apud) para as marcas de concordância no sintagma nominal. Ali, a autora propõe o “princípio de processamento paralelo” de acordo com o qual os falantes tendem a repetir formas pronunciadas em seqüências de enunciados com um mesmo referente. A regra do paralelismo para os sufixos verbais diz que marca leva a marca, e zero leva a zero. A partir da descrição das propriedades anafóricas das formas plurais de primeira pessoa, podemos interpretar o paralelismo como a repetição de uma mesma estrutura, para que as partes do texto se articulem de tal modo que garantam a coesão.

99 Especificamente sobre a variável pronominal, Omena (2003) e Zilles (2004) reforçam o princípio do paralelismo quando demonstram a tendência de se repetir o mesmo pronome em seqüências de enunciados. Omena (2003:72-73) ressalta que a variante a gente vai ser mais favorecida quando o antecedente também for a gente, e sua referência for a mesma. Nessa subseção, interessa-nos inicialmente observar em que medida o paralelismo pode ser descrito como uma propriedade anafórica relativa à porção do conjunto de indivíduos referenciados pelos pronomes de primeira pessoa do plural. Em (23), nenhuma propriedade anafórica propriamente dita parece ser observada: no primeiro trecho, as formas plurais de primeira pessoa vão se repetindo continuadamente numa enumeração de situações simultâneas; e, no segundo trecho, as formas numa série são intercaladas com as trocas de turno entre os interlocutores.

(23) nóis pede ...prus preso nóis pede pus hospi/ pa infermo nóis pede pu... pus que tá na rua e desabrigado nóis pede pra tudo nóis pede pra: :: Deus pô o braço dele na frente pra violência...(Jeanete) ... Doc. ah então tinha uma galera que não ia pra escola... Inf. tinha... aí... nóis fingia que... falava lá pra minha mãe quando tava indo e eu nem ligava... e eu repeti... repeti... Doc. vocês costumam só fazer coisa aqui ou vocês vão ...? Inf. não... nóis passeia de vez em quando... quando tem quando nóis tem dinheiro nóis sai... fazer uma coisa diferente né? Doc. tipo o que? Inf. tipo rodízio playcenter ali ... nóis ia direto né? agora num dá... Doc. rodízio? Inf. rodízio de pizza que a gente ia é em outro lugar (Jonathan 18)

Já em (24), as formas plurais de primeira pessoa referem-se a um conjunto dentro do tópico “quando x trabalhava com y na z”. (24) nesse tempo a gente terminou o prédio..a gente foi fazer uma academi/ porque nesse tempo também a academia tava fazendo... a gente fazia um/ trabalhava dois dia no prédio... daí o Djavan tava tomando conta da Companhia Atlética... já depois a gente suou... (Jean 31)

Nesse caso, as formas plurais de primeira pessoa não interrompem a progressão referencial, uma vez que elas são “retomadas” de indivíduos já referidos dentro do tópico

100 maior. Na última frase em (24), a forma plural soma ao referente anterior a primeira pessoa, de modo que não há mudança abrupta do referente. Em (24’), podemos verificar que o uso de estruturas paralelas nessa passagem do texto não ocorre somente por repetição, mas também para melhor especificar o número de referentes numa dada situação descrita no enunciado, e que não se restringe ao referente da situação descrita no enunciado anterior. (24’) daí o Djavan tava tomando conta da Companhia Atlética... já depois a gentei suou... [i = eu + ele] daí o Djavan tava tomando conta da Companhia Atlética... já depois Ο i suou... [i = o Djavan] Como podemos observar, há um processo de seleção de diferentes elementos num mesmo conjunto através da propriedade anafórica do pronome de primeira pessoa do plural. Isso demonstra que suas propriedades anafóricas vão além de retomar referentes do texto (não-participantes) combinados com a primeira pessoa, pois também desempenham o papel de opor determinadas seleções que não mudam totalmente os referentes na progressão dos enunciados. Em (25), temos um exemplo da retomada de elementos mais ou menos pertencentes a um mesmo conjunto (“moradores do bairro”), através da progressão referencial. Nesse sentido, devemos considerar a retomada de “termos” num sentido mais amplo. (25) ...aí era tudo terra trilho de uma casa pra otra nu era rua era trilha viela assim de trilho e passava duas pessoa só...ah: :: nessa época aí veio a polícia tirô nós... nós tudo apavorado subimos pra cima um ficô no campo otro fi/ foi procurá um pedacinho de terra pa se encostá e fazê o barraco né? e assim nós fomos fomo ficando aí...eu consegui com esse coordenador... eu consegui aonde eu moro...um terreno de cinco por quatorze... (Berenice 60)

Primeiramente a expressão quantificada “duas pessoas” refere-se a quaisquer pessoas que moram no bairro e que poderiam passar juntas pela viela. Em seguida, o conjunto “eu+moradores do bairro” é inicialmente referido por nós, e depois há separação do “eles” implícito na forma anterior (ou seja, o conjunto “moradores do bairro” sem incluir o “eu”). Em seguida o “eu” volta a ser referido com o conjunto, através do pronome nós, e depois é isolado, sem indicar o grupo, através da forma eu.

101 Essas retomadas de um mesmo referente através da seleção diferenciada de indivíduos de um mesmo conjunto (“qualquer (dois moradores)”, “eu+moradores”, “moradores”, “um dos moradores”, “eu”) relaciona-se com a construção do tópico discursivo. Ou seja, a manutenção de um mesmo referente, através da progressão textual, indica uma continuidade de um mesmo tópico. Isso também nos mostra que as formas dêiticas também acumulam informações contidas em passagens anteriores do texto. Nesse caso, não há alteração do plano discursivo como em (23) mais acima, mas o processo de retomada dos referentes, ao longo do texto, seleciona quantos elementos de um conjunto, mais ou menos definível, são escolhidos pelo falante num dado enunciado. Esse exemplo mostra mais uma vez como propriedades anafóricas dos pronomes de não-pessoa podem se somar às propriedades dêiticas dos pronomes pessoais. Dessa forma, mesmo que a referência à primeira pessoa instancie repetidamente os participantes da interação no texto, ela também instancia elementos da categoria não-pessoa contidos no texto.

3. 3. 3 – Grupo de fatores “Paralelismo de estruturas” Os grupos de fatores que sintetizam nossas hipóteses acerca do papel do paralelismo são diferentes para cada uma das variáveis dependentes. Com isso, tenta-se analisar o paralelismo entre formas de mesma natureza (sufixos vs. pronomes). O quadro a seguir resume o grupo de fatores relativos ao “Paralelismo”para cada uma das variáveis dependentes:

a) forma isolada (sem forma anterior ou posterior) eu acho que dificilmente se você chega na minha casa que não fosse aquele dia que eu mesmo me ofereci a ir no trabalho com você... vim na minha casa hoje, a gente marcamo hoje... se você chega e chega na minha casa sozinho aí eu nem sei se eu teria tempo de te atender... (Adauto39)

b) primeira forma de uma série (sem forma anterior) VARIÁVEL “PRONOMES

...ás vez a gente passar pelo tipo de coisa que a gente passa porque eles pensa que talvez pensa que a gente num é daqui né? (Marilene 25)

102 DE PRIMEIRA PESSOA DO PLURAL” NÓIS VS. A GENTE

c) depois de pronome sujeito/ objeto nóis ... É por que... aperto/ aperto toda/ né?... a maioria das família passa né? ...mas graças a Deus ela nunca/... nunca faltou nada pra ela não... nem pra nóis também... o que nóis qué... nóis vai lá e compra... graças a Deus... sei lá... (Jonathan 18)

d) depois de pronome sujeito/ objeto a gente ...ah nóis ... o pastor prega... a gente observa o que ele prega... a gente ora... tem uma uma hora de oração de joelho no chão orando pedindo pra deus... (Jeanete 42) e) depois de sujeito nulo ...ela nu comia arroiz nóis comia farinha... fejão com farinha e um prato de arroiz... botava uma mididinha assim pra dá um ( ) arroiz pa mistura (e tudo assim) porque adespois no dia que nóis queria.. (D. Joaninha 78)

a) forma isolada (sem forma anterior ou posterior) primeira forma de uma série (sem forma anterior) VARIÁVEL “MARCAÇÃO DO PLURAL DE PRIMEIRA PESSOA NO

(i) ...o meu sofrimento queu tive pra criá eles sem pai...trabalhando (difícil muito pa criá) pagá aluguel pagá os estudo...muitos pararu na metade do caminho não deu...que a gente é pobre né? mais hoje eles tem uma (situ/) estrutura e eu também sô feliz porque vejo eles feliz...(Berenice 60) (ii) ... me deu uma lona de caminhão ...aí fizemos uma parede do lado da mata fizemos cum lona cubrimos com telha e um pedaço com lona né? porque a telha que nóis tinha tamém nu dava... (Berenice 60)

VERBO” (OU CONCORDÂNCIA)

NÓIS+ V-ZERO VS.

NÓIS + V-MOS

b) depois de V-zero ...eu ouço lá em casa eu ponho eu ouço aqui cas minina ...rádio evange/ tem dia que nóis põe na rádio de música que nóis ouve também é cento e cinco cento (Fátima43)

c) depois de V-mos ... porque minha mãe não / comprou um terreno pro lado de cá aí fomo morar lá no Penteado... aí depois a minha mãe comprou um terreno aqui... então nóis morava de aluguel, mas ela ganhava / ganha bem... (Lady Daiana 20)

De modo geral, consideramos como uma série de formas, seja ela de concordância, seja ela de pronomes, as ocorrências, com o mesmo referente, num mesmo turno

103 conversacional, ou interrompidas por alguns enunciados (com referentes diversos na posição de sujeito) ou por turnos pequenos por parte do interlocutor. Algumas considerações devem ser feitas em relação às ocorrências com o sujeito nulo. O pertencimento de um sujeito nulo a uma variante pronominal ou a outra foi definido a partir da propriedade anafórica. Assim, ocorrências com –mos sem preenchimento do sujeito foram interpretadas como a variante a gente, em alguns casos: quando o único pronome plural de primeira pessoa expresso anteriormente foi esse, como no exemplo a seguir: (26) e a gente tamo aí confeccionando agora jaqueta de homi confeccionamos de criança...passamus por brusas pur calças comprida pur bermudas...passamu por vários tipos de confecção...agora estamos com essas jaquetas aí há já treis meses...(Berenice 60)

Já as formas sem nenhum pronome antecedente de primeira pessoa, com o sujeito nulo, marcadas ou não marcadas morfologicamente por –mos, foram codificadas de acordo com o pronome da forma subseqüente (ou seja, recebeu uma interpretação catafórica na análise), como nos exemplos abaixo: (27) Doc. Vocêis balada assim faiz por aqui? Você e seus amigos fazem o que assim? Inf. Na verdade zoua... com essas música nóis num sabe dançá nóis fica zuano pulando lá no meio de todo mundo derrubano, jogano bebida um no outro é assim...(Weder 17) ... ... o marido quando chegava... (desde cedo) ele já ia lá e depois eu.... cortava o milho... aqueles fejão enorme do milho com as espiga e tudo... jogava ali... nóis tratava de coxa de madera... e nisso ficô...mais ele morreu e eu ia continuá com a mema vida... nóis trabalhava... quando viajando e limpando a roça toda... tava ali esperando pra prantá... quando ela chega pra me buscá...(D.Joaninha 78)

Entretanto, não houve como estender essas propriedades coesivas para a interpretação da ocorrência em (28), em que não há pronomes antecedentes nem subseqüentes. Assim, quando formas verbais com –mos sem sujeitos expressos são construções isoladas, a única pista formal para interpretar a ocorrência como forma plural de primeira pessoa é o sufixo (sendo impossível saber qual pronome estaria na “mente” do falante). Portanto, ocorrências desse tipo não foram incluídas na análise quantitativa da variável Pronomes.

104 (28) ... porque í lá no interiorzão lá pelo meio do meio do mato... eu num vou pro mato... ele qué í... porque lá é barato né?... os parente dele já tem ( ) lá... cabra, gado, porco, peru... tudo essas coisa aí... aí vamu levando a vida né?... seja o que Deus quisé. (Agripina 34)

Não incluir essa ocorrência na análise quantitativa parece bastante justificável no caso da variável Pronomes, mas também não incluímos na análise da variável Concordância por razões teórico-metodológicas. Para incluí-las nessa análise seria necessário supor que ocorrências como essa poderiam aparecer também com a variante zero. Sendo assim, perguntamos: como considerar uma ocorrência (zero V-zero) isolada como forma de primeira pessoa do plural? Ora, nada naquela em tal ocorrência permite dizer que se trata de um exemplo da variável em estudo. Guy (1996:221-252) chama essas ocorrências de zeros perdidos. Para esse autor, os falantes às vezes produzem enunciados sem nenhum tipo de marcação expressa de uma determinada categoria, ainda que tivesse “intenção” de marca-las. Isso gera um mal entendido: um falante pode querer a noção de plural, mas o ouvinte teve acesso a uma forma singular. Nesse sentido, as ocorrências em que o sufixo –mos é a única pista para interpretar a forma como plural de primeira pessoa não têm sua contraparte com o morfema zero, isto é, não podemos considerar que a alternância com a outra variante é possível nesses casos. Por isso, casos como esses também não foram incluídos na análise quantitativa.

3.3.4 – Paralelismo e variáveis sociais Os fatores “formas isoladas” ou “primeiras de uma série” para as duas variáveis dependentes tem capital importância, na medida em que podem revelar mais apropriadamente o peso relativo de uma variante dentro de um determinado grupo social. O uso das ocorrências isoladas ou primeiras de uma série, para comparar grupos sociais, vem de outro estudo realizado por Scherre & Naro (1992:1-13). Nele, os autores examinam os efeitos da variável Escolaridade no grupo de fatores Paralelismo de estruturas. Eles concluem que o efeito da Escolaridade só possui significância estatística quando, na análise, só são consideradas as formas isoladas e as primeiras de uma série. Assim, qualquer que fosse o efeito da repetição de formas, a escolaridade tinha um papel menor em relação a uma variável. Isso significa dizer que as diferenças entre os usos de

105 grupos sociais distintos está basicamente concentrada nessas formas isoladas ou nas que iniciam (e desencadeiam) uma série.

3. 4. – Função gramatical

3. 4. 1– Pronome sujeito e pares de saliência fônica No capítulo I e na primeira parte do capítulo II, já discutimos a hipótese da Saliência fônica na sua correlação com o emprego das variantes das duas variáveis em estudo. Primeiramente, é possível que haja um favorecimento de a gente em pares mais salientes. Quanto à variável Concordância, é possível que o sufixo –mos seja mais frequente também nos pares mais salientes. Nessa subseção, estabelecemos os fatores que compõem o grupo Saliência Fônica, em função de duas características dos paradigmas verbais de tempo em português:

(1) a divisão entre paradigmas com sufixo de primeira pessoa do singular e paradigmas sem esse sufixo;

(2) entre os paradigmas com sufixos de primeira pessoa do singular, destacam-se aqueles com homonímia entre a forma do presente e a do pretérito perfeito para as formas de primeira pessoa do plural;

A classificação dos pares de saliência para o uso variável das formas plurais de primeira pessoa tem como critério mais importante, em nossa proposta, a oposição entre os paradigmas que possuem o sufixo para a primeira pessoa do singular e os paradigmas que não o possuem. Nenhum estudo na literatura propõe quando a “expansão do morfema zero” atingiu a expressão de primeira pessoa do plural35. No entanto, os resultados de Zilles (2005) permitem-nos verificar que o efeito da Saliência Fônica na concordância variável é 35

Para a terceira pessoa do plural, Naro & Scherre (1999:8) verificam que, no português medieval, a dimensão mais forte dos pares de saliência – o acento - tem o mesmo efeito geral observado na fala de analfabetos e na fala de escolarizados, naturais do Rio de Janeiro: pares menos salientes, em que nenhuma das formas do par possui acento no morfema, favorecem o apagamento do sufixo -m. O efeito de fatores nessa dimensão mais forte na restrição de cancelamento do sufixo é a mesma em todas as variedades, mudando apenas a freqüência geral da variante zero.

106 o mesmo na fala de naturais de Porto Alegre e na fala dos moradores de periferia estudados por Bortoni-Ricardo (1985) e Rodrigues (1980): são os pares de paradigmas sem sufixos de primeira pessoa do singular que favorecem o seu apagamento. Fundamentada nessa comparação, a hipótese é a de que a expansão do morfema zero é uma tendência geral do português de eliminar morfemas de primeira pessoa em determinados paradigmas temporais (dependendo do dialeto em questão). Tal tendência pode ser equiparada ao processo em que ocorreu o apagamento do sufixo de primeira pessoa do singular na passagem do “latim clássico” para o “latim vulgar”, mantido no “português clássico”, como o quadro a seguir sugere para os paradigmas temporais do pretérito imperfeito (em negrito)36.

NÚMERO

PESSOA

SINGULAR

1A. 2A. 3A.

PLURAL

1A. 2A. 3A.

Presente do Indicativo Latim Português Clássico Clássico canto canto cantas cantas cantat canta cantamus cantatis cantant

cantamos cantais cantam

Pretérito Imperfeito Latim Português Clássico Clássico cantabam cantava cantabas cantavas cantabat cantava cantabámus cantabátis cantabant

cantávamos cantáveis cantavam

Já no outro quadro a seguir, colocamos as formas possivelmente mais freqüentes na fala de naturais de cidades grandes, e as formas mais freqüentes na fala de migrantes. No geral, observamos a inserção de a gente no imperfeito, nas variedades urbanas, e a inserção de a gente no presente do indicativo, nas variedades rurbanas (de acordo com a discussão desenvolvida no início do capítulo II).

36

Serviram de fontes para o quadro proposto Maurer Jr. (1959) e Mattos e Silva (1994).

107 Presente do Indicativo variedades variedades NÚMERO PESSOA urbanas rurbanas A eu-canto eu canto 1. SINGULAR 3A. ele canta eles canta

PLURAL

1A. 3A.

nós cantamus eles cantam

a gente canta eles canta

Pretérito Imperfeito variedades variedades urbanas rurbanas eu cantava eu cantava ele cantava ele cantava a gente cantava eles cantava(m)

nóis cantava eles cantava

Dessa forma, a inserção de a gente parece ser uma mudança “mais artificial” do que o apagamento do sufixo –mos, já que sua implementação no quadro de paradigmas temporais é iniciada no par fônico em que o falante “percebe” o uso da forma não-padrão (os menos salientes para as variedades urbanas e os mais salientes para as variedades rurbanas). Um segundo critério, que serviu para classificar as formas temporais dos paradigmas com morfema de primeira pessoa do plural, foi a presença ou ausência de formas homônimas para o presente e o pretérito perfeito (como no quadro abaixo, em negrito).

Número

Pessoa

Presente

singular

1ª 2 ª/ 3 a 1a 2 ª/ 3 ª

amo ama amamos amam

plural

Número

Pessoa

Presente

singular

1ª 2 ª/ 3 a 1a 2 ª/ 3 ª

sou é somos são

plural

amar Pretérito Perfeito amei amou amamos amaram

Presente dou dá damos dão

ser ~ for ~ ir Pretérito Presente Perfeito fui vou foi vai fomos vamos foram vão

dar ~ der Pretérito Perfeito dei deu demos deram

Pretérito Perfeito fui foi fomos foram

Naro (1982) detectou que, entre as crianças cariocas com menos de 10 anos, o sufixo -mos tendia a ser realizado tanto com pronome o nós como com o pronome a gente

108 no pretérito perfeito, e ser apagado com as duas formas no presente. Os morfemas destes tempos do indicativo são as mesmos para primeira pessoa do plural, na forma padrão, como vimos no quadro acima. Nessa situação, o sufixo –mos tenderia a ser mais favorecido pelo pretérito perfeito para eliminar a homonímia entre as formas temporais. O último quadro, a seguir, resume os critérios morfológicos que serviram de base para o estabelecimento dos fatores do grupo Saliência Fônica:

paradigmas verbais com morfema de primeira pessoa do singular Presente Pretérito perfeito com homonímia fala/falamos

sem homonímia da/damos é/somos

com homonímia falou/falamos

sem homonímia deu/demos foi/fomos

paradigmas verbais sem morfema de primeira pessoa do singular Pretérito imperfeito Pretérito do subjuntivo Infinitivo flexionado Futuro do subjuntivo falava/falávamos falasse/falássemos dar/darmos der/dermos

Todas as ocorrências, na nossa amostra, puderam ser interpretadas de acordo com os fatores acima exemplificados. A única ocorrência que não incluímos na análise, por se tratar do único caso no presente do subjuntivo, foi a seguinte: ...se você qué arrumá um:: namorado, que seja um namorado que a gente conheça... aí esse negócio de:::: namorá em casa, (do lado)/ o pai e a mãe do lado, não dá certo? (Cibélie20)

3. 4. 2 - Pronome objeto Na análise da variável Pronomes, incluíam-se as ocorrências de objeto no corpus. Tais ocorrências foram pouco numerosas, mas procuramos verificar se as hipóteses sobre a inserção de a gente, como estratégia intermediária, também valiam para os usos não-padrão de nós como objeto. Assim, a forma com a gente é mais informal do que conosco e menos estigmatizado do que com nóis, por exemplo. A seguir, propomos um gradiente que vai de construções impossíveis com o pronome tônico nós na posição de objeto (à esquerda); passando por aquelas em que o pronome tônico alterna com um clítico ou uma forma “especial” (conosco), no dialeto padrão; até aquelas em que o pronome tônico é a única alternativa, mesmo no dialeto padrão.

109

GENITIVO ACUSATIVO

DATIVO

COMPANHIA

BENEFACTIVO

OBLÍQUOS

nosso

nos viu

nos deu

foi conosco

pensou em nós

*de nós

viu nóis

deu pa nóis

foi cu’nóis

trabalhou para nós trabalhou pa nóis trabalhou pa gente

da gente

viu a gente deu pa gente

foi cu’a gente

pensou em/ni nóis pensou na gente

Nenhuma ocorrência com o clítico nos apareceu nas entrevistas que compõem a nossa amostra. Assim, não pudemos postular necessariamente como se propagou o uso do pronome tônico nas diferentes posições de objeto. No entanto, para todos os tipos de objeto, a variante a gente alterna com nóis. Os fatores desse grupo, com exemplos de cada tipo de objeto, seguem abaixo. A hipótese é que a forma a gente é difundida a partir dos objetos verbais “tônicos” (benefactivos e oblíquos) em direção a objetos verbais “átonos” do dialeto padrão (nos e conosco), e é menos favorecida nos complementos nominais.

(a)

GENITIVO.

... sem que nós num temos ninguém no nosso país que faça nada ruim pra botar as pessoa pra trabalhar...(Adauto 39) ...esses pequenos detalhes que a gente não pode deixar passá na vida da gente entendeu? (D. Lúcia 42) (b) i - ACUSATIVO, ii - DATIVO e iii-

COMPANHIA.

(i) ...Não, ela veio pra trabalhar ...e ela falou pra minha vó que pra minha vó ficar com nóis quando ela arrumasse dinheiro ela trazia nóis. (Lady Daiana 23) ... aí depois que ele conseguiu um emprego... comprá uma casa aqui... aí ele mandou buscar a gente... (Arlei 16) ... (ii)...é com a Dona Lúcia... ela que sabe… ela que ensina pa nóis (Edinho 20) ...pegano ropa de firma nu é a primera firma que a gente pega já é a várias várias firma já deu serviço pra gente...(Berenice 60) ... (iii) Não, ela veio pra trabalhar. E ela falou pra minha vó que pra minha vó ficar com nóis quando ela arrumasse dinheiro ela trazia nóis. (Lady Daiana 23)

110 ... acho porque ele não falou nada com a gente de zueira... cê entendeu? porque aqui a gente fala assim e ele vê que aqui em São Paulo os negócios são muito a sério e lá na Bahia não...(Thiago 17) (c) i - BENEFACTIVO, ii - OBLÍQUO e iii- DATIVO ÉTICO e MAIS DO QUE..., ENTRE..., TER MEDO DE...)

expressões “oblíquas” (IGUAL (A)...,

(i) ...cabô as violência... cabô... asfaltô a rua... tem luz pra nóis... (Edinho 20) aí montamo tudo...já tamo com o projeto pronto.. só é colocá em ação pra funcioná... a gente trabalha no projeto mesmo, a gente trabalha pra gente mesmo (Cibélie 17) ... (ii) minha mãe criava de um jeito meu pai de outro... minha mãe falava dez coisa... tanto que ela batia na gente... a gente num atendia ela... (Jean 31) ...i fiquei assim desnorteada meu marido bebia judiava de nós di mim das criança dos enteado...(Berenice 60) e a mãe dele também é muito legal... fica lá conversando com a gente... não reclama da gente...(Arlei 16) ... (iii) ...nóis fala fita só por falá mesmo, mas... fita pra nóis significa otra coisa. (Cibélie 17) ...porque tipo... os cara que faz um rap... ele é igual nóis assim da periferia aí eles tenta passá pra todo mundo o que passa na periferia...(Aleanderson 15) ...tem umas que sim... mas tem outras que não... outras quer curtir mais do que nóis... (Eumequias 17) ... então eu acho assim sempre nós criamos essa rotina entre nós...(D. Lúcia 42) ...mulher só de vez em quando... porque é difícil... tem muito medo da gente...(Arlei 16)

3. 4. 5 – O preenchimento do sujeito NESTA FATORES

ÚLTIMA SUBSEÇÃO, VAMOS POSTULAR A HIPÓTESE ACERCA DO GRUPO DE

PREENCHIMENTO DO SUJEITO PARA AS

PESQUISA.

NO

TRABALHO DE

ZILLES (2004),

DUAS VARIÁVEIS DEPENDENTES DA ATUAL

O GRUPO DE FATORES

PREENCHIMENTO

DO

SUJEITO FOI SELECIONADO COMO ESTATISTICAMENTE SIGNIFICATIVO NO USO DA VARIÁVEL

PRONOMES,

UMA VEZ QUE O PRONOME NÓS VINHA QUASE SEMPRE ACOMPANHADO DO

SUFIXO –MOS.

111 NO

ESTUDO DA AUTORA,

–MOS

GENTE, ENQUANTO OCORREU EM

96%

OCORREU SOMENTE UMA VEZ COM O PRONOME A DOS CASOS COM O PRONOME NÓS. ISSO SIGNIFICA

QUE, EM VARIEDADES URBANAS, HÁ UM NÚMERO REDUZIDO DE CONSTRUÇÕES COM O PRONOME NÓS E QUE ELE VEM PREFERENCIALMENTE COM O SUFIXO REALIZADO.

NAS

VARIEDADES RURBANAS, EM QUE AS TAXAS DE APAGAMENTO DO SUFIXO –MOS SÃO MAIORES, ESPERA-SE QUE A FREQÜÊNCIA DA VARIANTE NÓS EXPRESSA NA POSIÇÃO DE SUJEITO AUMENTE PARA COMPENSAR O APAGAMENTO DO MORFEMA.

OU SEJA, UM AUMENTO DO USO

DA “MORFOLOGIA PRÉ-FIXAL”.

Quanto à correlação entre –mos e a variável Preenchimento do Sujeito, Rodrigues (1987) verifica essa compensação, mas na comparação entre a concordância plural para a primeira e a terceira pessoa no português popular (especificamente, de moradores de favelas na cidade de São Paulo). A autora considera “evidente” a relação entre preenchimento do sujeito e ausência do sufixo. Ela acrescenta que a retenção da concordância e o preenchimento da função de sujeito são mais freqüentes com a primeira pessoa, uma vez que é resultado de uma saliência entre as categorias de concordância no verbo: a oposição gramatical entre pessoas [+/-PESSOA] seria mais saliente do que a entre números [+/- PLURAL].

112

3. 5 – Quadro resumo dos grupos de fatores lingüísticos

3.5.1 - Grupos de fatores lingüísticos para a variável Pronomes Nóis vs. A gente a) referentes determinados (=eu+ele) Doc. A casa que vocêis moram cêis já construíram? Inf. Não... porque nóis tá construindo no quintal da minha sogra...porque nóis vai construir no quintal atrás... porque nóis já comprou o material e mês que vem nóis vamo construir... no quintal atrás... (Luciene 20)

QUANTIDADE REFERENTE

DO

(=eu) Doc. você gosta daqui do bairro? Inf. Não. Doc. Não gosta? por que? Inf. ((risos)) porque acho, não sei, nóis nunca pensou nisso, não desde quando eu cheguei eu não gosto... (Vera Lúcia, 55)

b) referentes indeterminados (=eu+os brasileiros) pra trabalhar e dar comida pra essas pessoas lá sem fazer nada... sem que/ nós num temos ninguém no nosso país que faça nada de bom pra botar as pessoa pra trabalhar...(Adauto 39) (=eu + todo mundo) esses pequenos detalhes... que a gente não pode deixar passar... na vida da gente entendeu? (D. Lúcia 42)

113 a) referentes “literais” (=eu+ele) Doc. A casa que vocêis moram cêis já construíram? Inf. Não... porque nóis tá construindo no quintal da minha sogra...porque nóis vai construir no quintal atrás... porque nóis já comprou o material e mês que vem nóis vamo construir... no quintal atrás... (Luciene 20)

QUALIDADE

DO

REFERENTE

(=eu+os brasileiros) pra trabalhar e dar comida pra essas pessoas lá sem fazer nada... sem que/ nós num temos ninguém no nosso país que faça nada de bom pra botar as pessoa pra trabalhar...(Adauto 39)

b) referentes metafóricos (=eu) Doc. você gosta daqui do bairro? Inf. Não. Doc. Não gosta? por que? Inf. ((risos)) porque acho, não sei, nóis nunca pensou nisso, não desde quando eu cheguei eu não gosto... (Vera Lúcia, 55) (=eu + todo mundo) esses pequenos detalhes... que a gente não pode deixar passar... na vida da gente entendeu? (D. Lúcia 42)

a) forma isolada (sem forma anterior ou posterior) eu acho que dificilmente se você chega na minha casa que não fosse aquele dia que eu mesmo me ofereci a ir no trabalho com você... vim na minha casa hoje, a gente marcamo hoje... se você chega e chega na minha casa sozinho aí eu nem sei se eu teria tempo de te atender... (Adauto39)

b) primeira forma de uma série (sem forma anterior) ...ás vez a gente passar pelo tipo de coisa que a gente passa porque eles pensa que talvez pensa que a gente num é daqui né? (Marilene 25)

c) depois de pronome sujeito/ objeto nóis PARALELISMO ESTRUTURAS

DE

... É por que... aperto/ aperto toda/ né?... a maioria das família passa né? ...mas graças a Deus ela nunca/... nunca faltou nada pra ela não... nem pra nóis também... o que nóis qué... nóis vai lá e compra... graças a Deus... sei lá... (Jonathan 18)

114 d) depois de pronome sujeito/ objeto a gente ...ah nóis ... o pastor prega... a gente observa o que ele prega... a gente ora... tem uma uma hora de oração de joelho no chão orando pedindo pra deus... (Jeanete 42)

e) depois de sujeito nulo ...ela nu comia arroiz nóis comia farinha... fejão com farinha e um prato de arroiz... botava uma mididinha assim pra dá um ( ) arroiz pa mistura (e tudo assim) porque adespois no dia que nóis queria.. (D. Joaninha 78)

paradigmas

presente

verbais com SALIÊNCIA FÔNICA

sufixos para

(a) falo/fala/falamos (b) tenho/tem/temos

perfeito

(c) falei/falou/falamos

a

1 .p.sg.

(d) tive/teve/tivemos

paradigmas verbais sem sufixos (e) falava/ falava/falávamos para 1a.p.sg. a) sujeito TIPO DE

falar/ falar/falarmos nóis/ a gente foi.

b) objeto direto/ dativo/ companhia encontrou nóis/a gente

ARGUMENTO

deu um presente pra nóis/pra gente

VERBAL

passou com nóis/com a gente

c) oblíquos

gostou de nóis/da gente pensou em nóis/ na gente tem medi de nóis/da gente

d) genitivo

nossa casa/ a casa da gente

PREENCHIMENTO a) sujeito nulo DO SUJEITO

...ela nu comia arroiz nóis comia farinha... fejão com farinha e um prato de arroiz... botava uma mididinha assim pra dá um (D. Joaninha 78)

b) sujeito preenchido botava uma mididinha assim pra dá um ( ) arroiz pa mistura (e tudo assim) porque adespois no dia que nóis queria.. (D. Joaninha 78)

115

3.5.1 - Grupos de fatores lingüísticos para a variável Concordância Nóis V-zero vs. Nóis V-mos a) referentes determinados (=eu+ele) Doc. A casa que vocêis moram cêis já construíram? Inf. Não... porque nóis tá construindo no quintal da minha sogra...porque nóis vai construir no quintal atrás... porque nóis já comprou o material e mês que vem nóis vamo construir... no quintal atrás... (Luciene 20)

QUANTIDADE REFERENTE

DO

(=eu) Doc. você gosta daqui do bairro? Inf. Não. Doc. Não gosta? por que? Inf. ((risos)) porque acho, não sei, nóis nunca pensou nisso, não desde quando eu cheguei eu não gosto... (Vera Lúcia, 55)

b) referentes indeterminados (=eu+os brasileiros) pra trabalhar e dar comida pra essas pessoas lá sem fazer nada... sem que/ nós num temos ninguém no nosso país que faça nada de bom pra botar as pessoa pra trabalhar...(Adauto 39) (=eu + todo mundo) esses pequenos detalhes... que a gente não pode deixar passar... na vida da gente entendeu? (D. Lúcia 42)

116 a) referentes “literais” (=eu+ele) Doc. A casa que vocêis moram cêis já construíram? Inf. Não... porque nóis tá construindo no quintal da minha sogra...porque nóis vai construir no quintal atrás... porque nóis já comprou o material e mês que vem nóis vamo construir... no quintal atrás... (Luciene 20)

QUALIDADE

DO

REFERENTE

(=eu+os brasileiros) pra trabalhar e dar comida pra essas pessoas lá sem fazer nada... sem que/ nós num temos ninguém no nosso país que faça nada de bom pra botar as pessoa pra trabalhar...(Adauto 39)

b) referentes metafóricos (=eu) Doc. você gosta daqui do bairro? Inf. Não. Doc. Não gosta? por que? Inf. ((risos)) porque acho, não sei, nóis nunca pensou nisso, não desde quando eu cheguei eu não gosto... (Vera Lúcia, 55) (=eu + todo mundo) esses pequenos detalhes... que a gente não pode deixar passar... na vida da gente entendeu? (D. Lúcia 42)

a) forma isolada (sem forma anterior ou posterior) primeira forma de uma série (sem forma anterior) (i) ...o meu sofrimento queu tive pra criá eles sem pai...trabalhando (difícil muito pa criá) pagá aluguel pagá os estudo...muitos pararu na metade do caminho não deu...que a gente é pobre né? mais hoje eles tem uma (situ/) estrutura e eu também sô feliz porque vejo eles feliz...(Berenice 60)

PARALELISMO ESTRUTURAS

DE

(ii) ... me deu uma lona de caminhão ...aí fizemos uma parede do lado da mata fizemos cum lona cubrimos com telha e um pedaço com lona né? porque a telha que nóis tinha tamém nu dava... (Berenice 60)

b) depois de V-zero ...eu ouço lá em casa eu ponho eu ouço aqui cas minina ...rádio evange/ tem dia que nóis põe na rádio de música que nóis ouve também é cento e cinco cento (Fátima43)

117 c) depois de V-mos ... porque minha mãe não / comprou um terreno pro lado de cá aí fomo morar lá no Penteado... aí depois a minha mãe comprou um terreno aqui... então nóis morava de aluguel, mas ela ganhava / ganha bem... (Lady Daiana 20)

paradigmas

presente

verbais com SALIÊNCIA FÔNICA

sufixos para

a) falo/fala/falamos b) tenho/tem/temos

perfeito

c) falei/falou/falamos

a

1 .p.sg.

d) tive/teve/tivemos

paradigmas verbais sem sufixos e) falava/ falava/falávamos para 1a.p.sg.

falar/ falar/falarmos

a) sujeito nulo PREENCHIMENTO ...ela nu comia arroiz nóis comia farinha... fejão com farinha e um prato de arroiz... botava uma mididinha assim pra dá um (D. Joaninha 78) DO SUJEITO

b) sujeito preenchido botava uma mididinha assim pra dá um ( ) arroiz pa mistura (e tudo assim) porque adespois no dia que nóis queria.. (D. Joaninha 78)

118 CAPÍTULO III – RESULTADOS DA ANÁLISE QUANTITATIVA. 1 - Apresentação das análises quantitativas.

Nesta subseção, apresentamos os resultados da análise quantitativa das variáveis dependentes dessa pesquisa. Abordamos, especificamente, o uso variável dos pronomes a gente e nós, como nos exemplos em (1), e a alternância na concordância para a primeira pessoa do plural, como nos exemplos em (2):

(1) ...também trabalhá pra ele assim... tipo assim... que nóis tava sem dinhero... aí a gente trabalhava pra ele... (Jonathan 18) (2) ...aí fizemos uma parede do lado da mata fizemos cum lona cubrimos com telha e um pedaço com lona né? porque a telha que nóis tinha tamém nu dava... (Berenice60) Conforme tratamos no capítulo II, os dados aqui analisados são provenientes da fala de 24 informantes da amostra “Brasilândia”. O total de dados para a variável dependente Pronomes soma 792 ocorrências, sendo 732 (93% do corpus total) com a função gramatical de sujeito e 60 (7%) com a função de objeto. Das 732 ocorrências de pronome sujeito, 345 ocorrências são com o pronome nóis (47%) e 387 com o a gente (53%). Já para a análise da variável Concordância, foram consideradas as 345 ocorrências de nóis na posição de sujeito. Desse total, observamos a alta freqüência com que não se emprega o sufixo -mos entre esses falantes: 245 ocorrências sem a marca morfológica (70%) e 103 com a marca (30%). Corpus 1

Função (7%) Gramatical (nóis/a gente) 792 (93%)

Objeto 60/792

Corpus 2 a gente 387/732 (53%)

Sujeito 732/792 nóis 345/732 (47%)

Corpus 3 Sufixos

zero 242/345 (70%)

nóis + (V-0/V-mos)) 345 -mos 103/345 (30%)

119

Numa primeira análise quantitativa, limitamo-nos, inicialmente, a essas 792 ocorrências da variável Pronomes, buscando verificar o papel da função gramatical para o uso de uma determinada forma pronominal. No entanto, a única função gramatical que favorece o emprego do pronome nós é a função de genitivo (nosso). Nas outras funções gramaticais, a distribuição dos pronomes é equilibrada: em todas as funções gramaticais a freqüência no emprego das variantes flutuam entre 40% e 60%. NÓIS Tabela 7 – Nóis nas funções gramaticais.

No./Total

%

sujeito

345/732

47

objeto direto/ dativo/ companhia

18/32

56

oblíquo(s)

8/14

57

genitivo

9/14

64

Total

48

Os resultados são mostrados conforme a nossa hipótese de que o pronome Nóis é a forma do vernáculo na comunidade, valores acima de 60%, por exemplo, constituem contextos que favorecem este pronome. Na tabela acima, vemos também que a distribuição geral dos pronomes na comunidade não é um exagero no emprego nem de um nem de outro pronome. Assim, fatores ou grupos sociais que tiverem um peso relativo acima de 0,60 na análise serão considerados fatores que favorecem o emprego do pronome nóis. Conseqüentemente, fatores com peso relativo abaixo de 0,40 (peso relativo) serão considerados como aqueles que favorecem o pronome a gente. Em cada subseção a seguir, vamos analisar os grupos de fatores que atuam no emprego do pronome nóis e que atuam no uso variável de Concordância, respectivamente. Na conclusão, faremos análises em conjunto das variáveis em estudo, propondo comportamentos distintos, que são resultantes da combinação das duas variáveis (como por exemplo, Nóis + V-zero). Nela, também trataremos da construção A gente + V-mos.

120

2. NÓIS VS. A GENTE.

Como já adiantamos, foi feita uma análise em separado para cada variável social junto com as variáveis lingüísticas, visto que a amostra não possui distribuição equilibrada quando os grupos de fatores sociais são cruzados37. Para a análise das variáveis Grupos Vicinais e Índice de Classe, todos os 24 falantes foram incluídos, e para análise da variável Gênero/sexo, somente 16 desses falantes foram incluídos. A tabela a seguir apresenta a comparação dos pesos relativos e das significâncias estatísticas de cada rodada para a variável Pronomes. À direita, temos os grupos de fatores lingüísticos que não tiveram significância estatística para o emprego das variantes38. Tabela 8 – Comparação das rodadas com as variáveis sociais39. grupos vicinais (SUJEITO)

Índice de classe (SUJEITO)

GÊNERO/SEXO (SUJEITO) 8 M/ 8 H

INPUT

NÓIS

valores 0,453

SIGNIFICÂNCIA 0,023 INPUT

0,453

SIGNIFICÂNCIA 0,008 INPUT

0,400

SIGNIFICÂNCIA 0,000

grupos sem significância estatística saliência fônica qualidade do referente preenchimento do sujeito saliência fônica qualidade do referente preenchimento do sujeito saliência fônica qualidade do referente preenchimento do sujeito

Em relação ao input, percebemos que a tendência de uma distribuição equilibrada das variantes se mantém, com exceção da rodada com Gênero/sexo, em que há um relativo aumento no emprego do pronome a gente. Já quanto à comparação das significâncias, pode-se verificar que a análise com a variável Gênero/sexo é a que mais se mostra

37

Como vimos na subseção 2.3 do Capítulo II. A análise quantitativa realiza uma seleção de um conjunto de variáveis independentes que possuem um determinado fator estatisticamente significativo para o uso de uma variante. A significância estatística é mais excelente quanto mais o valor de significância se aproxima de 0,000. Quanto mais próximo de 0,000, a análise indica que o conjunto de variáveis afeta o processo de escolha de uma ou outra variante. Quando um grupo de fatores é eliminado, isso significa que os contextos lingüísticos hipoteticamente determinantes na escolha de uma variante, na verdade, possuem um peso neutro (ou seja, nenhum fator favorece ou desfavorece uma das variantes). 39 O valor de significância foi tirado da melhor rodada selecionada pela análise quantitativa no “step up”. 38

121 estatiscamente significativa para a análise da alternância pronominal. No entanto, por somente conter 16 dos falantes amostrados, vamos utilizar as freqüências das variáveis lingüísticas obtidas na rodada com a variável Índice de Classe (que possui o segundo maior valor em significância estatística).

2. 1– Variáveis sociais.

Na tabela 9 a seguir, observamos que só dois grupos da vizinhança comportam-se diferentemente da produção lingüística observada na comunidade como um todo: as professoras da creche e os jogadores do gol-a-gol (em negrito). Assim, a hipótese, de que todos os grupos vicinais ligados a setores mais privilegiados da vizinhança se afastariam da forma mais vernácula, somente é verificada na fala das professoras. Na fala das professoras, observamos um peso relativo similar aos verificados na fala de classes mais altas.

NÓIS

Tabela 9 – Grupos Vicinais do No./total bairro

%

peso

costureiras da cooperativa professoras da creche membros da associação filhos dos membros participantes do projeto jogadores de futebol

98/169

57

0,534

18/77

23

0,298

34/83

40

0,435

42/110

38

0,455

44/120

36

0,437

109/173

63

0,610

adultos

jovens

Na maioria dos fatores, há um peso neutro quanto à escolha de uma variante em razão da outra. O padrão geral observado na vizinhança e na maioria dos grupos de moradores é não haver um uso mais exagerado de nenhum pronome em especial. No entanto, notamos, pelas porcentagens, que entre os mais jovens há um maior adoção do pronome inovador pelos filhos dos membros e pelas moças participantes dos projetos sociais para jovens (em itálico). Entre os mais jovens, os jogadores de futebol são os únicos que favorecem de modo mais exagerado o emprego da forma pronominal mais vernácula.

122 Mesmo com essa distribuição equilibrada entre uma variante pronominal e outra, podemos verificar ainda que há uma diferença de uso pronominal quando o analisamos os grupos vicinais numa tabulação cruzada com Saliência Fônica. Como vimos anteriormente, o grupo de fatores Saliência Fônica não se mostrou condicionante para o uso de nenhuma das duas variantes. No entanto, conforme verificamos na tabulação cruzada abaixo, há uma distribuição diferenciada da forma vernácula entre os grupos da vizinhança quanto ao efeito da saliência fônica.

Tabela 10 Saliência Fônica vs. Grupos Vicinais

NÓIS COSTUREIRAS

Adultos

c/ sufixo para 1a. pessoa do singular falo/fala/ falamos s/ sufixo para 1a. pessoa do singular falava/ falávamos

No./ total 56/109

42/60

% (51)

No./ total 10/59

(70)

6/18

FILHOS DOS MEMBROS Jovens

PROFESSORAS DA CRECHE

DA ASSOCIAÇÃO

%

MEMBROS DA ASSOCIAÇÃO

(17)

No./ total 26/65

40

(33)

8/18

44

PARTICIPANTES DO PROJETO

%

JOGADORES DO GOL A GOL

No./ total

%

No./ total

%

No./ total

%

c/ sufixo para 1a. pessoa do singular fala/ falamos

38/83

46

37/102

36

75/118

63

s/ sufixo para 1a. pessoa do singular falava/ falávamos

4/27

15

7/18

38

34/55

61

Primeiramente, podemos observar que a mesma distribuição no uso de uma ou outra variante nos pares de saliência é somente verificada na fala de três grupos da vizinhança: os membros da associação, as moças participantes dos projetos, e os jogadores do gol a gol (em negrito). Numa análise que considera todos os Grupos da vizinhança, as diferenças de distribuição entre os grupos “participantes do projeto” e “membros da associação”, que

123 empregam mais o pronome a gente nos dois grandes pares de saliência, e os “jogadores do gol-a-gol”, que empregam mais nóis também nos dois pares, são obscurecidas. Estatiscamente falando, a média entre os valores de cada grupo (30%, 40%, 60%, respectivamente, para cada fator de saliência) chega a uma taxa de 43%, próxima ao valor do pronome nóis no uso da comunidade como um todo (47%). Em termos da análise quantitativa, isso significa dizer que o grupo Saliência Fônica interage com a variável Grupos Vicinais. Quanto aos adultos (costureiras e professoras) que apresentam uma distribuição diversa das formas segundo os graus de saliência fônica, a nossa hipótese inicial estava certa: a inserção do pronome a gente não ocorre a partir dos pares menos salientes (entre parênteses na tabela 10), mas ocorre a partir dos pares mais salientes. As professoras da creche, por exemplo, são aquelas que mais empregam a variante a gente, mas o exagero está relativamente maior nos pares mais salientes. O único grupo vicinal que usou mais freqüentemente o pronome a gente nos pares de menor saliência foi aquele composto pelos filhos dos membros da associação. Conforme vimos no capítulo II, esse uso mais freqüente de a gente nos pares menos salientes é aquele observado em variedades urbanas. Esse padrão está correlacionado com a ascensão social desses falantes. Entre os mais jovens, os filhos dos membros da associação são aqueles que mais possuem expectativa de ascensão social. Alguns deles, por exemplo, começaram a freqüentar “cursos” ligados à serviços de computação, serviços de telefonia, de atendentes e etc. Os filhos dos membros possuem o tempo para melhorar sua formação, em razão das melhores condições de vida dos seus pais. Por outro lado, na vizinhança de “Vila Nova”, o uso exagerado de Nóis em todos os pares de saliência (indistintamente) é um estereótipo lingüístico dos jovens que vivem pelas ruas e na praça da vizinhança e que possuem um status baixo na opinião dos outros moradores. São eles os “maus exemplos” dos “bons exemplos”. Dessa forma, o uso de nóis possui na vizinhança o significado local de fala dos jovens que vivem na rua, enquanto que, em termos demográficos, o significado social está associado ao uso de nóis pelas classes mais baixas. Na tabela 11, verificamos que a classe mais baixa é a líder no emprego de nóis.

124

NÓIS

Tabela 11 – Índice de Classe.

No./total

%

peso

classe trabalhadora alta classe trabalhadora baixa classe mais baixa

51/178 82/145 212/327

36 28 64

0,318 0,413 0,659

classes populares

Isso comprova que, no uso pronominal, há uma aceitação pela classe trabalhadora dos valores dominantes e uma separação dialetal deles em relação à fala da classe mais baixa. Os falantes da classe trabalhadora tem a mesma produção lingüística que os falantes de classes mais acima da hierarquia social da cidade (entre 70% e 80% de a gente). Em outras palavras, eles compõem grupos que participam da propagação dessa forma inovadora. Entre os papéis de gênero, os homens com trabalhos estáveis e mais bem remunerados da classe trabalhadora usam mais a forma a gente (Tabela 12, a seguir). Eles são na maioria os pais de “famílias estruturadas” com alto prestígio na vizinhança. As mulheres que não trabalham fora são dessas “famílias estruturadas”, por justamente possuir um marido com um emprego mais estável. Como podemos ver na tabela, elas usam mais freqüentemente o pronome do vernáculo. Elas são nordestinas que mantém laços fortes com seus familiares espalhados pela cidade ou residentes na sua cidade de origem. Os casais formados por homens empregados e por donas de casa (ou seja, as “famílias mais estruturadas”) são sempre visitados por parentes distantes. Eles são os parentes “mais privilegiados” e, por isso, dão amparo a seus familiares mais carentes. NÓIS

Tabela 12 – Gênero/sexo. homens casados com trabalho mulheres casadas e donas de casa homens solteiros e desempregados mães solteiras com trabalho

No./total

%

peso

8/80 44/87 76/92 40/142

10 50 82 28

0,128 0,634 0,884 0,361

As mulheres, que mais preferem o pronome a gente, são as mães solteiras que trabalham fora do bairro. Provavelmente, essas falantes começam a usar mais a gente por

125 causa do contato que possuem com falantes da classe média. Elas trabalham como faxineiras ou como empregadas domésticas. Portanto, o maior emprego de a gente ocorre somente na fala daqueles que trabalham fora do bairro e que possuem contatos com falantes de diferentes classes sociais. Os homens desempregados, que são os mais jovens, são aqueles que não alteram o uso pronominal mais característico dos bairros de periferia.

2. 2 – Restrições lingüísticas.

Vamos agora analisar os resultados dos grupos de fatores lingüísticos que se mostraram significativos para o emprego de uma determinada variante pronominal. Os grupos que restringem o emprego das variantes são: (1) Paralelismo de estruturas e (2) Quantidade do referente. Vamos apresentar os resultados de cada grupo a seguir. O paralelismo de estruturas teve o resultado esperado: nóis favorece nóis. Na tabela 13, observa-se também que os pronomes que são isolados, que iniciam uma série, ou que são catáforas de um sujeito nulo anterior, possuem uma distribuição equilibrada (entre 0,40 e 0,60 em pesos relativos).

Tabela 13 – Paralelismo de estruturas

NÓIS

No./total 43/81

% 53

peso 0,571

primeira forma da série (sem forma anterior)

73/147

49

0,534

depois de sujeito/objeto nóis

158/187

84

0,900

depois de sujeito/objeto a gente

36/265

13

0,105

depois de sujeito nulo

38/53

71

0,529

forma isolada (sem forma anterior ou posterior)

126

Se considerarmos o fator “primeira forma da série” e o fator “depois de sujeito nulo”, podemos dizer que os pronomes são usados indistintamente para iniciar uma série e para realizar a catáfora depois de enunciados sem sujeito expresso. Portanto, nenhum dos pronomes é mais favorecido nas extremidades de uma série. Conforme vimos no Capítulo II, a restrição de expressar referentes indeterminados com a variante a gente é verificada em dialetos em que a forma inovadora não é a preferida. Nesse sentido, os resultados abaixo mostram que o pronome a gente ainda possui como restrição a expressão de referentes mais indeterminados ou mais amplos na fala dos moradores de “Vila Nova”.

Tabela 14 – Quantidade do referente determinado indeterminado

NÓIS

No./total 301/600

% 50

peso 0,530

44/132

33

0,380

Também podemos concluir que não são os referentes mais determinados que favorecem o emprego de uma ou de outra variante, mas são os referentes indeterminados que favorecem o emprego de a gente. Os resultados apontam mais uma vez para a restrição semântica atuante no uso de a gente quanto aos graus de (in)determinação dos referentes.

2.3 - Tabulações cruzadas: Índice de Classe e restrições lingüísticas. A razão para cruzar Paralelismo com Índice de classe é verificar até que ponto todas as classes sociais apresentam o mesmo comportamento observado anteriormente de preferir uma determinada variante40. Dessa forma, fez-se uma sub-rodada só com as ocorrências isoladas ou primeiras de uma série, para verificar o seu efeito na variável social Índice de Classe. Os resultados estão na tabela 15, a seguir.

40

De acordo com o que comentamos acerca do trabalho de Scherre & Naro na subseção 3.3.3 do capítulo II.

127

NÓIS

Tabela 15 – Índice de Classe vs. Formas isoladas ou primeiras de uma série. classes populares

classe trabalhadora alta classe trabalhadora baixa classe mais baixa

No./total

%

peso

21/63 19/60 73/104

33 33 70

0,328 0,323 0,703

Podemos concluir que a análise que somente levou em conta as formas isoladas ou primeiras de uma série não alterou as diferenças de uso da forma nóis, como observado anteriormente, entre as classes populares. No geral, as tendências observadas na tabela 15 são as mesmas: a gente na fala da classe trabalhadora e nóis na fala da classe mais baixa. Por outro lado, houve algumas mudanças em relação ao input de cada fator social na medida que as tendências para a classe trabalhadora baixa e a classe mais baixa aumentaram. O exagero maior no uso dessas classes demonstra que, em formas isoladas ou primeiras de uma série, o uso da variante a gente é uma variante descontínua na fala da classe

popular

urbana:

com as

classes

trabalhadoras

empregando

a

variante

semelhantemente ao padrão observado na fala de naturais de centros urbanos(entre 70% e 80% para a gente), por um lado; e com a classe mais baixa tendo um padrão simetricamente oposto em relação às outras variedades (com um emprego de 70% da variante nóis), por outro. A variante mais vernácula está ligada, portanto, aos falantes mais jovens com situação ocupacional instável, em que até mesmo o tráfico de drogas é uma possibilidade de “trabalho”. Claramente o que os resultados revelam é que há uma estratificação social entre as classes populares. Enquanto as classes trabalhadoras preferem a variante a gente, como as classes mais alta da hierarquia social, a classe mais baixa prefere a variante nóis. Mais especificamente, os resultados demonstram que são os homens mais jovens, que participam da cultura de rua em vizinhanças de periferia, que exageram no uso do pronome nóis. Outra análise foi feita com intuito de verificar qual é efeito da restrição “referentes indeterminados” no uso de a gente na fala de cada classe popular. Para tanto, comparamos os resultados de duas sub-rodadas que só tiveram como dados a fala da classe trabalhadora (alta e baixa), por um lado, e a fala da classe mais baixa, por outro. O grupo de fatores

128 Quantidade do referente não foi selecionado como uma restrição lingüística para o uso de a gente na fala da classe trabalhadora. Os resultados estão reunidos na tabela 16, a seguir: NÓIS

Tabela 16 – Índice de quantidade determinada Classe vs. Quantidade do No./total % peso referente classe trabalhadora classe mais baixa

105/337 189/250

31 76

-0,559

quantidade indeterminada No./total

%

peso

28/68 23/77

41 30

-0,301

Na fala da classe mais baixa, a restrição lingüística é a mesma observada na comunidade: não é a referência mais determinada que favorece a variante nóis, mas é a referência mais indeterminada que favorece a variante a gente. Portanto, em dialetos com alta freqüência de nóis, podemos dizer que há uma restrição semântica que condiciona o emprego da variante a gente. Sendo assim, referentes indeterminados são contextos da onde a variante inovadora inicia sua propagação até eliminar a restrição lingüística que determinava o seu uso, como podemos ver na comparação entre os dialetos num recorte sincrônico acima. Verificamos no Capítulo II que o mesmo ocorreu em um dialeto numa passagem de um período a outro, num recorte diacrônico41.

2. 4 - Interação entre as variáveis Quantidade e Qualidade dos referentes.

O grupo de fatores, que divide os referentes dos pronomes em relação às estratégias de polidez, não foi selecionado como um grupo significativo no emprego de nenhuma das variantes. No entanto, no cruzamento entre as variáveis Quantidade e Qualidade, podemos observar que a gente é o pronome preferido para expressar três tipos de referência e que nóis não é favorecido por nenhum.

41

Vimos no capítulo II- subseção 1. 1. 4, que a eliminação dessa restrição também ocorre na substituição de nós por a gente em tempo real de curta duração, na variedade fluminense (Omena, 2003).

129 Tabela 17 Quantidade vs.Qualidade

referentes mais determinados

referentes menos determinados

No./total

%

No./total

%

plurais “literais”

274/532

52

39/101

39

plurais figurados

referentes mais ou menos contáveis (=eu+você) (=eu+ele/ela) 20/55 36

referentes mais amplos ou menos contáveis (=eu+os brasileiros) 12/44 27

plural de delicadeza (=eu)

genérico (=eu + todo mundo)

Os referentes mais ou menos contáveis possuem uma freqüência entre 60% e 40%, que é a mesma para os fatores que não demonstram efeito no uso de uma variante. Portanto, na fala da comunidade, o uso de a gente é favorecido em contextos de natureza semânticapragmática que não se referem a grupos relativamente contáveis e “literais”.

3 – Nóis V-ZERO VS. NÓIS V–MOS.

Como podemos ver na tabela 18 a seguir, o uso variável da concordância da primeira pessoa plural também teve sua significância estatística maior quando analisado com a variável Gênero/sexo. E mais uma vez também, a variável Índice de Classe aproximou-se mais do grau de significância excelente do que a variável Grupos Vicinais. Desse modo, a significância estatística das variáveis sociais tiveram o mesmo papel no uso da variante zero e no uso da variante nóis (anteriormente analisado).

V-ZERO

Tabela 18 – Comparação das rodadas com as valores variáveis sociais INPUT 0,796 GRUPOS VICINAIS

Índice de classe

grupo(s) sem significância estatística quantidade do referente qualidade do referente

SIGNIFICÂNCIA 0,043 INPUT 0,743

quantidade do referente qualidade do referente

130 SIGNIFICÂNCIA 0,034

INPUT 0,876 GÊNERO/SEXO SIGNIFICÂNCIA 0,005 (8 M/ 8 H)

quantidade do referente qualidade do referente preenchimento do sujeito

No entanto, enquanto na comparação das significâncias das variáveis sociais, na variável Pronomes, o grupo de fatores Gênero/sexo teve o peso do input geral diminuído quando aplicado a nóis; na variável Concordância, a mesma variável social, ao contrário, fez subir o peso do input da variante zero na comunidade.

3. 1 – Variáveis sociais.

Na tabela 19 a seguir, vemos que, ao contrário da variável Pronomes que teve uma distribuição equilibrada na maioria dos grupos vicinais, a variante zero é usada mais freqüentemente por todos os mais jovens da vizinhança. Assim, numa comparação, a comunidade no geral não prefere nenhuma das variantes pronominais, mas os jovens usam mais a variante zero para expressar a primeira pessoa do plural no verbo, indistintamente. Nesse sentido, podemos dizer que o uso do pronome nóis indica mais apropriadamente a estratificação interna na comunidade, motivada por diferenças de status dos grupos sociais na vizinhança de “Vila Nova”, do que a variante zero.

131

Tabela 19 – Grupos Vicinais do bairro

adultos

jovens

costureiras da cooperativa professoras da creche membros da associação filhos dos membros participantes do projeto jogadores de futebol

No./total

V-ZERO %

peso

49/98

50

0,277

5/18

27

0,036

21/34

61

0,351

39/42

92

0,863

36/44

81

0,615

92/109

84

0,658

Primeiramente, notamos que, mesmo com um número pequeno de ocorrências com nóis, as professoras são aquelas que mais empregam o sufixo –mos. Conforme verificamos anteriormente, as professoras da creche são as únicas que demonstram uma adoção maior da variante a gente, e isso explica o número reduzido de ocorrências da variável Concordância na célula representativa desse grupo social. Depois, as costureiras usam mais freqüentemente –mos sem que haja um número reduzido de ocorrências da variável Concordância, fato que observamos na fala das professoras. Somente no grupo das costureiras, verificamos de modo mais apropriado a adoção de –mos como estratégia de afastamento da construção estigmatizada [Nóis +Vzero]. Essas falantes tem uma idade acima de 50 anos. Dessa maneira, uma forma para explicar a tendência das costureiras de usar mais freqüentemente construções como [Nóis +V-mos] seria a idade mais avançada. A escolaridade não explicaria, uma vez que as costureiras possuem o menor tempo de escolarização (todas com menos de quatro anos de escolarização, e somente uma com cinco anos). A polarização entre a fala das costureiras e a fala dos mais jovens demonstra mais uma vez que a escolaridade não é necessariamente o fator determinante para o emprego mais freqüente de –mos. Os falantes mais jovens são mais escolarizados do que as costureiras e são os líderes no uso da variante zero.

132 O uso de –mos, em um estudo de tempo aparente, poderia confirmar o padrão observado, demonstrando que o uso do sufixo aumenta na fala da classe popular conforme a idade. Trata-se do tipo de mudança que Labov (2001:76) chama de “age-grading”, ou seja, os indivíduos mudam o seu comportamento conforme vão envelhecendo, mas no geral o emprego de uma determinada variante continua o mesmo na comunidade. Portanto, podemos concluir que a diferença entre as produções lingüísticas dos diferentes grupos sociais está condicionada pela faixa etária do falante: os mais velhos empregam mais o sufixo –mos do que os mais jovens. Dessa maneira, enquanto o uso da variante nóis está correlacionado à reputação de cada grupo social na vizinhança; o uso da variante zero está correlacionado às diferenças de idade. Diante disso, podemos explicar a disparidade da liderança dos filhos dos membros da associação de moradores no uso da variante zero com aquilo que vínhamos afirmando sobre esse grupo social. Conforme dissemos anteriormente, esse grupo social demonstra um uso da variante a gente parecido com o uso observado em grupos sociais mais privilegiados. No entanto, quanto ao uso da variante zero, os filhos dos membros da associação possuem uma produção lingüística semelhante àquela observada entre os mais jovens da vizinhança. Trata-se, portanto, de uma disparidade. Podemos resolver a disparidade, se comparamos o número de ocorrências da variável Concordância desse grupo social com o grupo “jogadores do gol a gol”. Na tabela 20 a seguir, vemos que, no grupo “filhos dos membros”, há menos ocorrências da variável Concordância, uma vez que esse grupo usa menos o pronome nóis do que o grupo “jogadores do gol a gol”. Tabela 20 – Comparação da freqüência de dois grupos mais jovens da vizinhança. filhos dos membros jogadores do gol a gol

NÓIS

V-ZERO

No./total

%

No./total

%

42/110 109/173

38 63

39/42 92/109

92 84

Na comparação da tabela 20, observamos que quando um grupo social usa mais a gente do que nóis, há uma redução do número de ocorrências da variável Concordância na célula representativa desse grupo social. No caso dos filhos dos membros da associação,

133 podemos dizer que eles usam mais freqüentemente o pronome a gente e quando usam o pronome nóis, este pronome vem acompanhado mais freqüentemente com a variante zero, no verbo. Dessa forma, a expectativa de ascensão social dos filhos dos membros da associação correlaciona-se mais à substituição de nóis por a gente do que a adoção da variante –mos. Isso nos leva a concluir que, entre os mais jovens, a ascensão social leva o falante a usar mais freqüentemente o pronome a gente e não necessariamente o morfema –mos. Portanto, quando um falante mais novo dessa comunidade deseja se afastar do modo como seus iguais falam, eles substituem somente a forma pronominal, ou seja, não adotam a variante –mos. Nesse sentido, a disparidade anteriormente observada resolve-se se levarmos em conta que o uso mais freqüente de –mos é condicionado pela faixa etária do falante e não pelo seu status social. Entre os falantes mais jovens, diferenças de status estão correlacionadas somente ao uso pronominal. Na tabela 21, os resultados mostram que o uso da variante zero está polarizado na classe trabalhadora alta e na classe mais baixa. Entretanto, o exagero no uso de –mos na fala da classe trabalhadora baixa é explicado pela concentração das costureiras nesse fator social.

Tabela 21 – Índice de Classe (1a. análise). classes populares

classe trabalhadora alta classe trabalhadora baixa classe mais baixa

No./total

V-ZERO %

peso

57/68 46/109 139/168

83 28 82

0,683 0,262 0,589

Como vimos, as costureiras são de um dos grupos que mais empregam a variante mos. Além das costureiras, os outros falantes que compunham esse mesmo fator social usavam mais freqüentemente o pronome a gente. Em outras palavras, as ocorrências, na célula representativa da classe trabalhadora baixa, são provenientes da produção lingüística das costureiras, já que os outros falantes que compunham a célula usam pouco a variante nóis. Da mesma forma que dissemos anteriormente, podemos dizer que a variante zero para

134 a primeira pessoa do plural não se distribui pela estratificação das classes populares42, uma vez que seu emprego parece estratificado conforme a faixa etária do falante. Outra maneira de comprovar se as classes sociais não se diferenciam realmente em relação ao uso da variante zero foi fazer uma sub-rodada somente com os fatores “formas isoladas” e “primeiras de uma série”, sem levar em consideração as ocorrências do grupo “costureiras”. Nessa análise, o grupo de fatores Índice de Classe não foi selecionado como estatisticamente significativo no emprego das variantes. Isso comprova que não há grandes diferenças de uso para a variante zero entre as classes populares, pelo menos quando eliminamos a interação que a análise revelou entre o uso de –mos e as falantes mais idosas da vizinhança.

V-ZERO a

Tabela 22 – Índice de Classe (2 . análise) (só formas isoladas/primeiras de uma série e sem “costureiras”) classes classe trabalhadora populares classe mais baixa

No./total

%

16/21 59/73

76 80

Como podemos observar na tabela 23, o emprego do sufixo –mos também mostrouse relevante para a diferenciação dos papéis de gênero na comunidade. A variante -mos está concentrada na fala de pais de “famílias estruturadas”, com um emprego estável no mercado do trabalho, e na fala de donas de casa, que possuem um marido com um salário mais rendoso.

Tabela 23 – Gênero/sexo. homens com trabalho mulheres casadas e donas de casa homens desempregados mães solteiras com trabalho

42

No./total

V-ZERO %

peso

3/8 29/44 67/76 33/40

37 65 88 82

0,005 0,333 0,621 0,601

A variável Concordância deve ter uma estratificação na faixa etária, no entanto, como dissemos, o corpus não possui distribuição equilibrada dos grupos sociais de acordo com faixa etária, para que, portanto, possamos fazer uma análise em tempo aparente.

135

O interessante é observar que os padrões em relação aos pais de famílias “mais estruturadas” repete os resultados encontrados por Bortoni-Ricardo (1985:212) e por Rodrigues (1987:200) em relação à variável Gênero/sexo, como a tabela a seguir sugere.

Tabela 24 – Gênero/sexo em três comunidades.

Brazlândia (80)

Brasilândia (80)

Brasilândia (00)

V-ZERO No./total %

peso

homens

246/719

37

--

mulheres

293/505

54

--

homens

114/310

34

0,530

mulheres

207/383

58

0,470

homens

3/8

37

0,005

mulheres

29/44

65

0,333

Na atual amostra, os dados e os informantes ainda são poucos para se afirmar que o padrão observado em variedades rurbanas continua o mesmo ou, ainda, representou uma mudança consciente em direção ao padrão lingüístico. Ademais, o padrão observado pelas autoras se repete, uma vez que os informantes que compõem as células em questão são nordestinos e, mais particularmente, nascidos em zonas rurais. Os homens pela posição que ocupam no mercado ocupacional da cidade usam –mos quase que categoricamente, mesmo com um número reduzido de ocorrências (isso significa, de novo, que usam mais a forma a gente, por outro lado). E as esposas, donas de casas, e por isso com redes restritas à esfera do bairro e à esfera da família, favorecem mais a variante zero em relação ao uso dos seus maridos. Entretanto, a mudança consciente observada na fala das famílias “mais estruturadas” e, especificamente, na fala dos homens com emprego estável no mercado de trabalho pode ter seu efeito diminuído se levarmos em conta que há uma polarização desses em relação

136 aos homens mais jovens sem trabalho e às mães solteiras que trabalham fora do bairro. Tanto as mães solteiras como os homens desempregados são mais jovens que os pais e as mães de famílias “mais estruturadas”. Dessa forma, o uso de -mos liga-se mais uma vez a fala de grupos mais idosos da vizinhança.

3. 2 – Restrições lingüísticas.

Na fala da comunidade, o uso de –mos está condicionado por duas restrições lingüísticas. A primeira diz respeito ao contexto numa seqüência paralela de formas e o segundo aos pares de saliência fônica. Primeiramente, quanto à variável Paralelismo, a primeira grande restrição é a repetição de uma mesma forma numa série. Ou seja, zero é seguido por zero e –mos é seguido por – mos. Tabela 26 – Paralelismo de estruturas. forma isolada ou primeira forma da série

No./total 75/123

V-ZERO % 61

peso 0,409

depois de zero

141/160

88

0,715

depois de -mos

14/62

22

0,162

Depois, o peso das formas isoladas e primeiras de uma série não são neutros, pelo contrário, demonstram que os fatores favorecem o uso de –mos, bem abaixo do valor do input global da variante (0,786). Isso pode demonstrar que o –mos possui a restrição de vir expresso em formas isoladas e primeiras de uma série para se contrapor a elementos da categoria não-pessoa de enunciados subseqüentes. Nesse sentido, nas formas isoladas e nas primeiras formas de uma série há, hipoteticamente, um maior uso de duplicação morfológica (nóis + V-mos). Acerca do papel da saliência fônica na variável, todas as hipóteses confirmam-se. Podemos estabelecer uma hierarquia entre as restrições que condicionam uma variante da seguinte maneira: (1) o uso quase categórico de –mos nos pares regulares do perfeito (falou/falamos), em que a forma com o sufixo é homônima à forma dos pares regulares do presente (fala/falamos), está como a restrição mais atuante, atingindo um peso de 0,106;

137

(2) os pares mais salientes (ou seja, as formas irregulares do presente: é/somos e vai/vamos) favorecem mais freqüentemente a variante –mos, enquanto que os pares menos salientes (falava/falávamos e falar/falamos) favorecem o emprego da variante zero num freqüência pouco acima de 90%;

(3) As formas regulares do presente são menos salientes que as formas irregulares do perfeito. Sendo assim, há um continuum gradual dos pares menos salientes aos mais salientes. Tabela 27 Saliência fônica

presente

perfeito tempos verbais sem sufixo para a 1a.p.sg.

V-ZERO No./total %

peso

fala/falamos tem/temos é/somos

81/98 51/83

82 61

0,565 0,278

falou/falamos tive/tivemos foi/fomos falava/falávamos falar/falarmos

9/40 9/23

22 39

0,106 0,305

92/101

91

0,825

O gráfico a seguir mostra que, na comunidade em estudo, há uma escala mais detalhada que vai dos pares de menor saliência fônica aos pares de maior saliência. Mesmo que não fizemos a análise da variante zero para terceira pessoa do plural, podemos supor que o padrão observado é um segundo momento no processo de urbanização de dialetos rurais. De acordo com o que dissemos no Capítulo I, a reordenação dos fatores de saliência numa escala mais detalhada como essa indica uma maior aproximação da comunidade a normas de prestígio.

Figura 4 – Continuum gradual no emprego da variante zero em função da Saliência Fônica.

138

1 0,9 0,8 0,7 0,6 0,5 0,4 0,3 0,2 0,1 0 os lo u/ fa la m os

i/f om fo

fa

fa

la / fa la m os

Nóis

graus de saliência fônica

Confirma-se também que os pares, que já não possuem um sufixo para a primeira pessoa do singular, tendem também a não ter essa característica para a primeira pessoa do plural. Entretanto, na fala da comunidade, a restrição mais atuante é quanto ao uso mais freqüente de -mos no perfeito. Dessa maneira, podemos dizer que, nas classes populares, o sufixo –mos tende a ser categórico como forma de primeira pessoa do plural somente no pretérito perfeito. Essa restrição acarreta uma “desambigüização” temporal, uma vez que as formas com –mos mais freqüentemente usadas no perfeito se diferenciam de suas formas homônimas do presente. 3. 3 – Tabulações cruzadas: Saliência Fônica e Índice de Classe. Nessa sub-seção, vamos observar como o uso variável de –mos de acordo com os pares de saliência fônica é diferente em cada classe popular. Primeiramente, todas as classes possuem um emprego mais freqüente de zero nos pares menos salientes. Ou seja, o emprego da variante zero nas formas regulares do presente e nas formas dos paradigmas verbais sem sufixo para a primeira pessoa do singular não diferenciam a fala das classes populares. Tabela 27 – Saliência Fônica vs. Classes

V-ZERO CLASSE MAIS BAIXA

No./ total

%

CLASSSE TRABALHADORA BAIXA

No./ total

%

CLASSE TRABALHADORA ALTA

No./ total

%

139 falava/falávamos falar/falarmos

64/66

97

17/23

74

(11/12)

92

fala/falamos

38/43

88

20/30

67

(23/25)

92

tive/tivemos foi/fomos

2/18

88

1/13

8

(1/2)

50

falou/falamos

7/88

18

3/21

14

(4/8)

50

vai/vamos é/somos

28/40

70

5/22

23

(11/12)

(92)

De novo, devemos fazer menção ao número reduzido de ocorrências das variantes nas células representativas da classe trabalhadora mais alta (entre parênteses): isso é causado pela preferência desses falantes de usar o pronome a gente. Portanto, justifica-se o emprego mais freqüente da variante zero no par mais saliente do presente (é/somos), na fala dessa classe, da seguinte forma: os falantes da classe trabalhadora mais alta tendem a usar mais a gente, mas nas poucas vezes que usam nóis, o pronome tende a vir acompanhado da variante zero. Na fala da classe trabalhadora baixa, o emprego de –mos é maior do que nas outras classes. Como dissemos, a motivação para esse resultado é que a maioria das ocorrências deste fator social é proveniente da fala de duas costureiras acima dos cinqüenta anos. Foi também esse grupo da vizinhança que mais empregou o sufixo, depois das professoras da creche. Nas falas das classes mais baixas, a restrição no emprego de –mos é a mesma daquela observada na comunidade como um todo: a retenção do sufixo nas formas do perfeito (em negrito). Podemos postular, a partir dessa observação, que o sufixo -mos quase que se cristaliza no tempo perfeito, no sentido de que expressa PESSOA, mas também começa a expressar TEMPO (como com a forma “amo”, por exemplo, em que o morfema –o expressa primeira pessoa do singular, mas também modo indicativo e tempo presente). Quanto à tendência da variante zero ser empregada mais freqüentemente nos pares de maior saliência fônica pela classe mais baixa, podemos dizer que a propagação do morfema zero está atingindo todos os tempos (com exceção do perfeito). Na comparação entre a fala da classe mais baixa e a fala da classe trabalhadora baixa, vemos que a primeira classe exagera no uso da variante zero justamente nos pares que a segunda classe retém o sufixo –mos. É necessário frisar que tal comportamento de usar mais freqüentemente o sufixo na fala da classe trabalhadora baixa advém do fato de que as ocorrências dessa variável, nesse fator social, são provenientes da entrevista de duas costureiras, que são as mais velhas na comunidade. Nesse sentido, mais uma vez a diferença de distribuição das formas de acordo com os pares de saliência fônica revela uma diferença de faixa etária e não necessariamente uma diferença de classe social.

140

3.4 – Preenchimento do sujeito e as propriedades do sufixo –mos. Na fala da comunidade, a variante -mos ocorre mais freqüentemente com o sujeito nulo. Também podemos dizer o contrário: a variante zero ocorre mais freqüentemente com o sujeito preenchido. NÓIS+ V-ZERO

Tabela 28 – Preenchimento do sujeito preenchimento sujeito nulo do sujeito sujeito preenchido

No./total 52/114

% 45

peso 0,255

190/249

76

0,620

Para entendermos essa freqüência maior de –mos vir com sujeitos nulos, devemos verificar, primeiramente, qual é o papel estatístico do morfema para identificar sujeitos como primeira pessoa do plural e, depois, devemos verificar se é essa a tendência observada na fala das diferentes classe sociais. Vamos nos deter a essas questões neste item. Conforme discutimos no capítulo II, ocorrências como (1) abaixo são contextos em que o morfema –mos é a única pista formal para interpretarmos os sujeitos como primeira pessoa do plural. (1) forma isolada. (i) aí Ο i vamu levando a vida né? (Agripina 34) [i =1a.ppl.] Na construção, as variantes são formas isoladas. Em contextos como esse, não há pronomes ou verbos com marca de primeira pessoa do plural nem antes, nem depois do decorrer da progressão referencial. Como dissemos essa construção não foi para a análise da variável Pronomes uma vez que não havia maneira de se saber em qual variante pronominal a ocorrência se enquadrava. Conforme também já tratamos, essa construção não foi para a análise da variável Concordância, uma vez que sua versão com a variante zero é teoricamente impossível. Em outras palavras, para um ponto de vista de algo que chamamos de corpus de recepção, a ocorrência em (1i) não é variável. (ii) *aí Ο i vai levando a vida né? [i =1a.ppl.]

141 Esse fato demonstra que a variante –mos tem uma ligação direta com o sujeito nulo, já que forma sozinha indica que o sujeito da frase é de primeira pessoa do plural. No entanto, como podemos verificar na tabela 29, esse contexto é somente observado em uma ocorrência (entre parênteses). Ao lado das três “morfologias” que propomos no Capítulo II, postulamos uma quarta, na tabela 29, com o nome de “zero coindexado”. Esses contextos com “zeros coindexados” são construções com sujeitos nulos e com a variante zero de concordância. A natureza dessas construções é essencialmente endofórica, visto que essas construções necessitam de outra forma (-mos, a gente ou nóis), nos enunciados anteriores ou nos subseqüentes, para que o sujeito seja interpretado como primeira pessoa do plural. Se comparamos as porcentagens de cada “morfologia” no sentido horizontal da tabela 19 (valores em negrito), distribuídas de acordo com o contexto de formas isoladas, notamos que há uma clara preferência de usar a “morfologia pré-fixal” nesse contexto. Dessa forma, o papel do morfema –mos de ser a única forma que permite que o sujeito da construção seja interpretado como primeira pessoa do plural é menor estatiscamente em comparação com o papel do pronome expresso na posição de sujeito. A mesma comparação é válida em contextos que a forma é a primeira de uma série ou vem logo depois de um pronome objeto de primeira pessoa do plural. Tanto as primeiras formas de uma série como os pronomes sujeitos depois de pronomes objetos são contextos que favorecem o uso da morfologia pré-fixal. Nesses dois contextos, o “zero coindexado” Tabela 29 – Cruzamento Preenchimento do Sujeito vs. Índice de Classe

SUJEITO NULO

SUJEITO PREENCHIDO

Ο + V-ZERO

Ο + V-MOS

zero coindexado no. %

morfologia sufixal no. %

morfologia pré-fixal no. %

não variável

(1)

(2)

35

80

8

18

Nóis +V-zero NÓIS + V-MOS duplicação afixal no. %

isolada 44 depois de objeto/ corpus corpus 1a. de uma série 80 X Y depois de 0+V-zero 27 depois de 0+V-mos 31 depois de nóis+Vzero 136 depois de nóis+Vmos 31 Total Y: 305

3

4

7

9

49

61

21

26

10

32

2

7

14

52

1

4

2

6

18

58

5

16

6

19

36

26

5

4

84

62

11

8

4 52

13 17

11 43

35 14

3 155

10 51

13 52

42 17

Total X: 52 44 234 também não é variável, como podemos verificar nas construções a seguir:

60

142 (2) pronome sujeito coindexado ao pronome objeto do enunciado anterior. (i) ...nessa época aí veio a polícia tirô nóis cima... (Berenice 60)

i,

nóis i tudo apavorado subimos pra

(ii) *aí veio a polícia, tirou nóis i, Ο i tudo apavorado subiu para cima [i =1a.ppl.] (i) ...os iltaliano deu as máquinas os maquinários pra nós i e assim nóis i foi tendo trabalho... (Fátima) (ii) *os italiano deu as máquinas pra nós i e assim Ο i foi tendo trabalho... [i =1a.ppl.] (3) [Ο + V –zero] retomado por catáfora. (i)

(ii)

Na verdade Ο i zoa... com essas música nóis num sabe dançá nóis fica zuano (Weder 17) *Na verdade Ο i zoa, com essas música Ο i num sabe dançar Ο i fica zoando. [i =1a.ppl.]

A partir das construções em (2ii), podemos afirmar que o sujeito do enunciado subseqüente somente seria interpretado como coindexado ao pronome objeto do enunciado anterior se houvesse alguma forma indicando ao ouvinte que trata-se de um referente plural de primeira pessoa. Nesse sentido, as três ocorrências de [0 + V-ZERO] da tabela 29, no contexto de primeiras formas de uma série ou de sujeitos depois de pronomes objetos (valores em itálico), são somente casos de catáfora, como em (3). Caso contrário, as ocorrências não poderiam ser interpretadas como enunciados em que seus sujeitos são plurais de primeira pessoa. O uso do “zero coindexado” é mais restrito também se levarmos em conta o efeito do paralelismo. Em todos os contextos, a estrutura da construção tende a ter a mesma estrutura da construção subseqüente, com exceção da construção [0 + V-ZERO]. Em outras palavras, a estrutura [0 + V-ZERO] não é seguida mais freqüentemente de [0 + V-ZERO] (valores sublinhados na tabela 29). O motivo desse padrão pode ser explicado pela natureza essencialmente endofórica dos “zeros coindexados”, de tal modo que construções como essa necessitam de alguma forma mencionada para que o seu sujeito seja interpretado como primeira pessoa do plural.

143 Já o uso de construções como [0 + V-MOS] se difere quanto ao efeito geral do paralelismo por outro motivo. Como nos outros casos, essas construções são repetidas numa série. Além disso, a construção [0 + V-MOS] também ocorre em uma porcentagem relativamente alta quando antecedida pela construção [Nóis+ V-MOS] (valores em negrito e em itálico, na tabela 29). Nesse contexto, a estrutura do sujeito nulo com a variante –mos quase que se equipara percentualmente à estrutura do sujeito preenchido com a variante – mos. A partir dessas considerações acerca do efeito do paralelismo nas estruturas [0 + VMOS]

e [0 + V-ZERO], podemos postular as seguintes tendências observadas:

1o.

A estrutura [0 + V-ZERO] é seguida mais freqüentemente pela estrutura [NÓIS+ VZERO].

2o.

A estrutura [Nóis+ V-MOS] é seguida mais freqüentemente tanto pela estrutura [Nóis+ V-MOS] como pela estrutura [0+ V-MOS].

Essas duas tendências e a tendência de a morfologia pré-fixal ser a mais freqüente nos ajudam a entender um dos motivos da freqüência maior de –mos vir com sujeitos nulos: o papel estatístico do morfema para identificar sujeitos como primeira pessoa do plural. Por papel estatístico, entendemos a porcentagem geral do morfema vir expresso sozinho no enunciado (ou seja, sem um pronome expresso na posição de sujeito). Dessa forma, essa porcentagem geral calcula em quantas ocorrências o morfema -mos serve como única pista formal para que o sujeito seja interpretado como primeira pessoa do plural num enunciado. Nesse sentido, em formas isoladas, a morfologia sufixal é invariável, mas seu papel estatístico é mínimo: somente uma ocorrência. Até mesmo a duplicação afixal é usada mais freqüentemente do que a morfologia sufixal em formas isoladas. Portanto, nesses contextos, o papel estatístico do sufixo como única pista formal de primeira pessoa do plural é bem reduzido se comparado com o papel estatístico do pronome expresso (na morfologia préfixal). O papel estatístico da morfologia sufixal no paralelismo também é mínimo. A porcentagem de 35% nos contextos com estruturas [Nóis V-mos] seguidas por [0 V-mos] é

144 menor do que a porcentagem de 42% nos contextos com estruturas [Nóis V-mos] seguidas por [Nóis V-mos]. Com isso, podemos afirmar que o efeito de repetir a mesma estrutura entre formas paralelas é maior do que o efeito de uma primeira forma com duplicação morfológica ser paralela a outras formas sem pronome expresso. Dessa forma, o papel do morfema –mos de ser a única forma que permite que o sujeito da construção seja interpretado como primeira pessoa do plural é menor quantitativamente, na produção lingüística da comunidade como um todo. Entretanto, quando verificamos a distribuição dessas estruturas segundo a classe social do falante, notamos novamente a correlação entre as estruturas com o morfema –mos e fala da classe trabalhadora baixa43. Como dissemos, nessa célula social, as ocorrências das variáveis são basicamente da fala de duas costureiras. O restante das ocorrências são da fala de informantes com uso menos freqüente de nóis.

SUJEITO NULO

Tabela 31 – Cruzamento Preenchimento do Sujeito vs. Índice de Classe classe trabalhadora alta classe trabalhadora baixa classe mais baixa

SUJEITO PREENCHIDO

Ο + V-ZERO

Ο + V-MOS NÓIS+V-ZERO NÓIS+V-MOS

duplicação zero

morfologia sufixal

morfologia pré-fixal

no. 8 10 34

no. 4 25 14

no 23 11 121

% 67 29 71

% 33 71 29

% 82 25 90

duplicação morfológica no. 5 33 14

% 18 75 10

O gráfico a seguir, demonstra que a variante –mos, independentemente do pronome vir expresso ou não, é mais usada freqüentemente pela classe trabalhadora baixa.

43

Nas análises quantitativas que desenvolvemos até aqui, somente as construções isoladas com sujeito nulo não foram consideradas variantes das variáveis em estudo. Conforme dissemos, esse contexto é invariável para o ponto de vista do corpus de recepção. No entanto, numa análise que objetive comparar as porcentagens de cada uma das construções da tabela 29 (por exemplo, [0 + V-ZERO]), não devemos considerar contexto variável nenhuma das formas isoladas, seja com sujeitos nulos, seja com sujeitos preenchidos. Portanto, nessa análise, somente as ocorrências do corpus Y , mostrado na tabela 29, serão considerados.

145 Figura 5 – Tabulação cruzada: Preenchimento do Sujeito vs. Índice de Classe. 100

0 + V-zero

90

0 + V-mos

80

nóis + V-zero

70

nóis + V-mos

60 50 40 30 20 10 0 classe trab alta

classe trab baixa

classe mais baixa

Como vimos afirmando, a alternância da concordância de primeira pessoa do plural não é um indicador de diferenças quanto ao status dos grupos sociais na comunidade como um todo. A alternância da concordância está correlaciona à faixa etária do falante. O exemplo mais característico é uso da variante –mos pelas costureiras em sentido diametralmente oposto ao uso da variante zero pelos demais grupos sociais. A partir do gráfico, podemos acrescentar que o emprego maior de uma determinada estrutura num grupo etário está correlacionado somente à variável de concordância e não a variável Preenchimento do Sujeito. Em outras palavras, a produção lingüística dos grupos sociais não se diferencia num uso maior ou menor do sujeito preenchido, mas sim num uso maior ou menor do sufixo –mos. 4 – A construção lingüísticas.

A GENTE

+ V-MOS e conclusões sobre a atuação das restrições

Como na fala da comunidade, a taxa da variante zero atinge uma freqüência de 70%, formulamos a hipótese de que a restrição de contextos com sujeitos nulos favorecer a forma nós pela presença de -mos, não iria ter o mesmo efeito na variedade das classes populares. A hipótese se confirmou, uma vez que o fator “sujeito preenchido” não foi selecionado como condicionante no emprego dos pronomes. Portanto, na fala da comunidade, a restrição notada por Zilles (2004) numa variedade urbana não tem efeito. Tabela 30 –preenchimento do sujeito preenchimento do sujeito

sujeito nulo sujeito preenchido

NÓIS No./total 249/552 96/180

% 45 53

Mais uma vez, a alta freqüência no uso da variante zero com o pronome nóis explica a falta desse efeito. Como dissemos, os falantes usam mais freqüentemente uma variante pronominal em vez de outra conforme seu status na comunidade. Tirando as falantes mais idosas, os grupos sociais se diferenciam somente quanto ao uso de um ou outro pronome e

146 não quanto ao uso de uma ou outra variante de concordância verbal. Dessa maneira, diferentemente do que ocorre em variedades urbanas, o uso de nóis não representa necessariamente o uso mais freqüente de –mos. O interessante é observar que, mesmo com a baixa freqüência de construções do tipo [a gente+V-mos.], os contextos que condicionam seu emprego são semelhantes àqueles encontrados para [nós +V-mos.], a saber: (i) o sujeito nulo favorecido pelo morfema -mos, (ii) o efeito do paralelismo com a concordância antecedente, (iii) e o favorecimento de – mos no uso com pares mais salientes do presente e nos pares do pretérito perfeito. Entretanto, a única diferença é que construções como essa diferenciam as classes sociais, uma vez que (a gente + V-mos) é característico da fala das classes trabalhadoras.

Tabela 30 - Grupo de Fatores para a concordância com o pronome a gente.

(A GENTE + V+ZERO.) No./Apl. %

total geral

375/387

96

sujeito nulo sujeito preenchido

75/84 300/303

84 99

forma isolada, primeira da série antecedido por concordância de zero antecedido por concordância de -mos

127/133 237/237 11/17

95 100 64

presente

fala/falamos vai/vamos é/somos

132/137 94/99

96 94

pretérito perfeito

vendeu/vendemos teve/tivemos

33/35 21/21

94 100

dar/darmos der/dermos cantava/cantávamos cantasse/cantássemos

95/95

100

144/150

96%

infinitivo/futuro do subjuntivo /pretérito imperfeito/ pretérito do subjuntivo

classe trabalhadora alta

147 classe trabalhadora baixa classe mais baixa

186/192 45/45

97% 100%

Essas restrições lingüísticas são correlacionadas ao morfema –mos, independente da forma pronominal na posição de sujeito. As ocorrências de a gente com o morfema –mos nas classes trabalhadoras demonstra que a substituição pronominal é mais característico do processo de afastamento do falante popular em relação ao vernáculo: assim ele substitui nóis por a gente sem necessariamente alterar o emprego variável do sufixo –mos. Isso nos leva a concluir que, nas classes populares, o estigma lingüístico está mais concentrado em relação ao pronome sujeito nóis do que em relação à concordância propriamente dita. Como vimos anteriormente, enquanto a forma pronominal nóis é uma variante descontínua e indicadora de uma identidade masculina de moradores que possuem status baixo em bairros de periferia, o exagero no uso da variante zero não diferencia os falantes populares entre si (talvez em estratificação por idade, mas não por classe). A partir dessa constatação, pudemos observar que há também uma distribuição diferenciada nas restrições lingüísticas entre os grupos sociais. Os itens abaixo resumem as conclusões em relação aos padrões inovadores nos grupos lingüísticos em cada variável em estudo, na fala dos setores mais privilegiados da vizinhança: (1) A inserção da forma a gente ocorre quando: (i) o falante prefere usar em formas isoladas e primeiras de uma série a forma inovadora (desencadeando a repetição da mesma em formas subseqüentes); (ii) a restrição do pronome de expressar preferencialmente “referentes indeterminados” é anulada com um aumento de a gente para expressar referentes mais determinados; (2) A substituição de nós por a gente se dá em todos os contextos sintáticos (tanto com V-zero como com V-mos), sem que haja reordenação dos fatores, ou seja, as formas menos salientes sempre vão vir sem a marca morfológica, seja com a gente seja com nóis. A tendência é diminuir as ocorrências com a forma nóis na posição de sujeito, mas quando ela ainda é proferida, vem preferencialmente com a variante zero. Conclui-se que o processo mais geral em direção ao uso de variantes não estigmatizadas no dialeto popular, em função da mobilidade de classe, é a substituição do pronome e não necessariamente a adoção da variante –mos. No entanto, não devemos eliminar o traço característico das variedades rurbanas de agir de modo contrário ao descrito: substituir o zero pelo -mos. Isso justifica, por exemplo, por que os pais, migrantes de zonas rurais, e de famílias mais prósperas na vizinhança são um dos líderes no emprego da variante –mos. O afastamento do vernáculo, através da aprendizagem do sufixo, é também o mais

148 conservador, uma vez que é mais falado pelas costureiras mais velhas da cooperativa, com idades acima de 50 anos. Essas observações gerais leva-nos ao ponto de chegada da pesquisa: descrever como variações e mudanças no sistema pronominal e na marcação morfológica das pessoas no verbo estão articuladas com processos de socialização lingüística.

149 CONCLUSÃO

Essa pesquisa demonstra que variantes estigmatizadas, evitadas por falantes que experimentam ou experimentaram ascensão social, recebem uma nova avaliação entre certos jovens da periferia paulistana. Percorremos os caminhos de uma dialetologia urbana que caracteriza “velhos modos de falar” como novas formas de resistência lingüística e de identidade social. É nesse sentido que variantes gramaticais primeiramente indicadoras de uma origem rural fazem parte ainda hoje da ecologia das falas na periferia da cidade de São Paulo. Para caracterizar as falas na periferia paulistana, analisamos diferentes comportamentos verbais que são definidos pelo cruzamento dos padrões de uso observados nas alternâncias dos pronomes e dos sufixos para a primeira pessoa do plural. Inicialmente, podemos localizar os falantes do vernáculo paulistano de periferia a partir das tendências descritas na análise quantitativa dos fatores lingüísticos: (i) o uso de nóis em formas isoladas ou primeiras de uma série atingiu taxas acima de 70%, (ii) a restrição do uso de a gente para expressar referentes menos determinados, e (iii) a “cristalização” do sufixo –mos com um significado gramatical misto - primeira pessoa do plural e tempo perfeito. Esquematizando, a alternância entre as formas pode ser representada do modo abaixo:



[- literal] [- contável] [+ perfeito]

Num primeiro estágio da aprendizagem dessa alternância, os falantes de classes populares usam variavelmente as formas acima. Entretanto, conforme vão experimentando ascensão social na sua comunidade, esses falantes vão se afastando desse comportamento de três modos: substituem (i) nóis por a gente, ou (ii) zero por –mos, ou (iii), ainda de modo mais radical, nóis por a gente e zero por –mos, respectivamente. A figura a seguir representa esses quatro comportamentos, e dentro deles localizaremos os grupos sociais descritos anteriormente, formulando a hipótese dos processos de socializações lingüísticas que os explicam.

150 Figura 5 – Diagrama combinatório das variantes: quatro comportamentos lingüísticos

(nóis+ V-zero)

1

comportamento oscilante

comportamento vernacular

(a gente) (nós V-zero)

(nóis) (nóis + zero)

0,5

comportamento vicário

comportamento rurbano

(nóis) (nóis + V-mos)

(a gente) (nóis + V-mos)

0 0

0,5

1

(nóis)

Cada comportamento é caracterizado pelas freqüências das variantes das duas variáveis em questão. Por exemplo, o grupo caracterizado pelo comportamento rurbano é aquele que usa mais freqüentemente a variante -mos e menos freqüentemente o pronome a gente. No entanto, a definição dos comportamentos não pode ser fundamentada somente na quantificação de formas lingüísticas, sem embasamento na observação etnográfica. Esses comportamentos lingüísticos, que indicam diferentes tendências de usos pronominais e de concordância combinadas, demonstram diferentes arranjos e trocas lingüísticas entre os falantes que foram contatados. Na ocasião da etnografia, foi observado que há uma hierarquização social dos moradores de “Vila Nova”, segundo os grupos de referências e as práticas dos atores nos locais públicos do bairro. As diferenças de status atribuídas a cada grupo na vizinhança têm como marco histórico a urbanização do bairro e a tomada de poder pela associação de moradores na administração de equipamentos urbanos mais centrais. Os locais públicos da vizinhança tinham divisões segundo a reputação de seus freqüentadores: “lanchonetes, bares” vs. “botecos”, “quadra esportiva da creche” vs. “campinhos improvisados de futebol”, “casas de alvenaria” vs. “barracos” etc. Freqüentar

151 um determinado local corresponde, na vizinhança, a demonstrar publicamente a que grupo social o indivíduo adere. Os pais ligados aos setores mais privilegiados “reprimem”, naquela vizinhança, qualquer tipo de vínculo com imagens depreciativas em relação à periferia de São Paulo. São eles também que buscam dar condições necessárias para seus filhos “crescerem na vida”, de tal forma que possibilitam a seus filhos maior estabilidade para aumentar a escolarização. Dessa maneira, para as mães ligadas às famílias mais prósperas da vizinhança, era inadmissível ver seus filhos com determinados “tipos de pessoas”, ou em determinados lugares de baixa reputação. No entanto, o ethos de periferia é valorado pelos homens mais jovens com baixa reputação na opinião dos vizinhos. Para esses jovens, estar na rua é participar de uma vida social entre os iguais. Dessa forma, o único grupo na vizinhança que não se afasta do comportamento vernacular é aquele composto pelos jogadores do gol-a-gol. O significado social local da construção Nóis + V-zero está correlacionado à rebelião “dos mano” do gol-a-gol contra a identidade de “bom moço” dos filhos dos membros da associação. Essa dissociação entre os manos e os “bons moços” é reprodutiva nos dois lados. Dessa maneira, por um lado, a rebelião “dos mano” é contra os valores adultos, que são firmados pelas redes densas e fechadas da vizinhança. Por outro lado, essa rebeldia “dos mano” faz crer, aos outros moradores, que os jovens que perambulam pelas ruas “realmente” são tudo aquilo que se pensa deles. O comportamento vernacular é caracterizado pelo uso exagerado de nóis com a variante zero, com exceção do pretérito perfeito. A propagação do apagamento do sufixo mos em pares mais salientes é a principal inovação desse comportamento. Essa inovação correlaciona-se a uma identidade masculina de classe mais baixa e constitui um exagero do vernáculo, que é o comportamento do qual o resto da comunidade vai se afastar. Portanto, o comportamento vernacular, num primeiro estágio, é o mais natural ou espontâneo, porque é adquirido no ambiente de convivência primária (binômio interação primária/ localidade comum). Sua origem está, sobretudo, no dialeto doméstico das mães, de origem rural, e serve como primeiro modelo lingüístico a ser aprendido. Trata-se da

152 aprendizagem do “dialeto materno” (em paralelo com a “língua materna”), adquirido em casa, no âmbito familiar e na vizinhança restrita.

Figura 6– Distribuição das variáveis sociais, no diagrama com quatro comportamentos verbais.

Nóis + V-zero

1

0,5

0 0

0,5

1

Nóis costureiras filhos dos membros classe trabalhadora alta homens com trabalho mãe solteiras com trabalho

professoras da creche participantes do projeto classe trabalhadora baixa donas de casa casadas

membros da associação jogadores classe mais baixa homens desempregados

No caso dos jogadores, o comportamento vernacular se desliga de sua restrição familiar, quando o falante já adolescente começa a se identificar com um grupo de “chegados”, de mesma faixa etária, uma vez que a falta da mãe em casa lhes possibilita maior integração à vida na rua. O dialeto deles deixa de ter como referência “a casa”, com o sotaque de migrante reforçado pelo circuito familiar dentro e fora da cidade, para ser então

153 baseado num dialeto do “pedaço”. O uso mais atual da forma Nóis+V-zero por esses jovens não indica um passado rural, mas sua adesão a uma identidade urbana dos jovens de periferia. Nesse processo de desvinculação familiar, o uso de determinadas construções deixa de ser um fato meramente “inconsciente” ou “natural”, para se tornar uma marca consciente de sua identidade. “Os mano” libertam-se da pressão vinda dos adultos, valendo-se de um novo significado social correlato ao uso de Nóis V-zero, mas se prendem a outro sistema de valores, fruto de suas vivências com pessoas de mesma idade. Ao contrário do que ocorre entre os manos, os filhos dos membros da associação se dissociam do vínculo familiar por razões diferentes. Os manos vão se identificar com seus iguais: negros, pobres, descendentes de nordestinos, moradores da periferia paulistana. Já os outros vão se identificar com valores de classes mais altas da hierarquia social. Eles são do grupo com maior expectativa de ascensão social. Nesse sentido, a mudança lingüística correlacionada à ascensão social é verificada, na fala dos filhos dos membros da associação, como uma substituição de nóis por a gente, sem a adoção da variante –mos. Nesse caso, o grupo de referência é a classe média. Entre os falantes com o comportamento oscilante, temos as participantes do projeto e as mães solteiras que trabalham fora do bairro. As participantes do projeto são em sua maioria também mães solteiras. No entanto, as participantes são mais jovens e não trabalham fora do bairro. “Os mano” são filhos de mães solteiras que trabalham fora do bairro como domésticas ou como faxineiras eventuais. Elas vão se comportar lingüisticamente como os filhos dos membros da associação: numa oscilação entre o pronome a gente e o pronome nóis, acompanhado da variante flexional zero. Como

o

comportamento

lingüístico

foi

observado

em

uma

entrevista

sociolingüística, é de se supor que os falantes com comportamento oscilante tentem se aproximar da fala do pesquisador, cujo status é no bairro institucional. Portanto, falantes que se comportam com uma oscilação entre uma forma pronominal e a outra, mantendo o morfema zero, teriam as formas vernaculares “reprimidas” na situação de entrevista. Conforme vimos na análise quantitativa, alguns grupos sociais tinham “células” com um número reduzido de ocorrências da variável de concordância, causado pelo uso menos freqüente do pronome nóis. É nesse sentido que podemos definir quantitativamente

154 as “formas vernaculares reprimidas”. O comportamento oscilante pode ser descrito como aquele em que o falante apresentou um uso relativamente maior de a gente, mas em quase todas as formas com nóis que produziu, o pronome veio acompanhado da variante zero. Outro grupo social com comportamento oscilante é a classe trabalhadora mais alta. O nóis “reprimido” nessa classe nos faz concluir, mais uma vez, que a ascensão social do falante popular correlaciona-se mais com a substituição de nóis por a gente do que com a adoção da variante –mos. O comportamento rurbano é observado na fala das mulheres mais idosas da cooperativa e na fala das mães que podem “se dar ao luxo” de ser donas de casa. Essas mulheres comportam-se similarmente àquelas mulheres de variedades rurbanas descritas por Bortoni-Ricardo (1985) e por Rodrigues (1980): a aprendizagem do morfema –mos por essas donas de casa, que possuem redes restritas a vizinhos e a familiares de mesma origem migratória, vem da convivência delas com seus maridos. O uso mais freqüente de –mos na comunidade como um todo correlaciona-se com os falantes adultos e, mais particularmente, com as falantes mais idosas da cooperativa de costureiras. Os homens empregados e as professoras da creche apresentam um comportamento vicário, que pode ser explicado pela influência de seu contato com o modo de vida da classe média. Nesses grupos mais privilegiados da vizinhança, o afastamento do vernáculo se dá pela adoção dos valores lingüísticos dominantes. Dessa forma, notamos que os homens adultos com emprego estável no mercado de trabalho e as professoras da creche negam a aceitação das formas usadas nas trocas lingüísticas praticadas nas socializações mais características do bairro. Os comportamentos não vernaculares são superpostos, porque acarretam algum tipo de afastamento em relação ao vernáculo da comunidade local. Os falantes que se afastam do vernáculo apresentam a tendência de usar a gente com o morfema -mos (“a gente vamos”), sendo assim possível atribuir a essas construções o valor de hipercorreção. Entre os falantes com comportamento vicário, os membros da associação são aqueles que mais empregam a variante zero. Eles são responsáveis pela liderança comunitária, de tal modo que estabelecem o contato entre comunidades mais pobres, como essa em que moram, e comunidades de outros setores da população urbana. Esse comportamento pode ser típico de falantes “pontes” entre redes sociais distintas quanto ao status social. Isso significa dizer que são eles que desempenham o papel de propagadores das mudanças no bairro, não chegando a evitar totalmente as formas vernáculas como as professoras, que aceitam os valores dominantes de maneira mais evidente.

155

Concluímos que o comportamento lingüístico do falante pode ser descrito também por socializações lingüísticas mais vernaculares, e não somente por aquelas que se definem somente pelo circuito escolar ou ocupacional. Conforme vimos, o comportamento lingüístico correlaciona-se a grupos sociais com valores divergentes, muitas vezes independentes de sua formação escolar ou de seu histórico ocupacional. Caracterizá-los como grupos divergentes não significa que eles estejam isolados uns em relação aos outros, mas estão em diálogo e são interligados. Dessa forma, ao mesmo tempo em que, a partir de suas práticas (freqüentar determinados lugares, vestir-se de determinadas maneiras, etc.) as pessoas são “incluídas” em determinados grupos sociais, elas também podem ser “excluídas” deles. Nesse sentido, a variável pronominal, que mais apropriadamente diferencia os falantes quanto a seu status na vizinhança, correlaciona-se a um círculo vicioso mais geral, observado nos padrões comportamentais dos moradores do bairro: os mais jovens, que não se identificam com os valores mais legitimados por outros grupos, ao agir e ao falar conforme um certo sentimento de rebeldia, induzem reiteradamente os representantes dos setores mais elevados da comunidade a usá-los como “maus exemplos”. É dessa forma que se estabelece uma relação de interdependência entre os stata atribuídos pelos grupos sociais a si próprios e a outros grupos. Na opinião dos jovens participantes da cultura de rua, a contravenção aos valores adultos (beber, sair à noite, usar entorpecentes) é uma forma de ganhar um outro tipo de status entre jovens de vizinhanças próximas. Quanto mais “rebelde”, melhor é o status do jovem entre seus amigos de rua. Na opinião dos pais, “ser bom exemplo” significa justamente não se portar como os jovens arruaceiros. Para a formação da “comunidade”, era necessário haver tanto os bons exemplos quanto os maus exemplos, para que a imagem comunitária fosse valorada e modelada por um grupo de moradores da prórpria “Vila Nova”.

156 ANEXO – ENTREVISTA DA AMOSTRA “BRASILÂNDIA” DOCUMENTADOR: Rafael Ferreira Coelho INICIAIS DO INFORMANTE: J. S. da C. GÊNERO/SEXO : masculino IDADE: 18 anos ESCOLARIDADE: ensino médio completo. PROCEDÊNCIA: São Paulo (cidade). Pai paraibano (com quem não teve contato). Mãe paulista (primário incompleto). LOCAL DA ENTREVISTA: Praça Divino Pai Eterno, Jardim Paulistano – Brasilândia- São Paulo. DATA DA ENTREVISTA: 20 de novembro de 2004. Doc. Fita né? ...você... esse aqui ele tem tipo uma memória... dele mesmo... que cê grava e depois cê passa pro... prum CD... aí a qualidade fica bem melhor pa pessoa ouví purquê... antigamente fazia intrevista de fita... nossa! ... primeiro que é uma porcaria, né? Inf.[É! ((concordando)) Doc.[... depois que num dá pra ouví nada ... aí CD fica melhor, né? ... então, fala aí seu nome intero e a idade pra dexá registrado... só pra depois... saber quem é... Inf. J. S. da C. ... 18 anos Doc.18 anos? Tá... é... você... você, cê é daqui São Paulo memo, né? Inf.Eu nasci em São Paulo Doc.Nasceu em São Paulo... mas seus pai são daqui também? Inf.Ih! Nem sei... Doc.[ seus pai... Inf.[ Na verdade, eu num sei não... Doc.Cê num sabe se eles são de São Paulo? Inf.Não.. eu-acho-que minha mãe num é mais que meu pai... eu não sei não... meu pai eu acho que-ele-é... como que é? Doc.Mas você... [cê não vê seu pai ou...? Inf.[ meu pai é paraibano... meu pai morreu Doc.[Ah! Inf.[ ele foi embora quando eu tinha dois ano... Doc.Sei... aí você num sabe dessas coisa? Inf.Tsu-tsu ((negando)) Doc.Ah... [mas sua mãe...? Inf.[eu num convivi com ele não

157

Doc.Hum? Inf. Eu num convivi com ele não... Doc.Hu-huh ((concordando)) Inf.Minha mãe eu acho que é... minha mãe eu-acho-que eu... acho-que-eu tenho certeza Doc.Bom... nunca falô nada, então... provavelmente, ela é daqui memo, né? Inf.É.. Doc.Mas você não tem parente por exe/ fora... de outro estado que você vai? ...ou memo que não seja de São Paulo que esteja em São Paulo... Inf.Só acho que/ ... só na Amazonas Doc.Sua família vinha lá do Amazonas... Inf.Meu pai foi pra Amazona... meu tio... foi trabalhá lá... Doc.Mas cê tem contato com esse pessoal aí ou não? Inf.Vixe Maria! O unco conta/ o único contato que eu tive com eles foi quano... vieram... avisar lá ... que meu pai morreu... aí eu tenho uns irmão aí que tá que.... que é meio difícil né?... vê eles... eles vem aqui de veiz e quando... Doc.Seus irmão são de lá? Inf.É, eles morava lá... Doc.Eles vem de veiz em quando pa cá?... mas é filho da sua mãe também? Inf. Só do meu pai... Doc.Só... ((concordando) Inf.Só por parte de pai... Doc.E aconteceu alguma coisa com seu pai? ... que que aconteceu? Inf.Ah!.. sei não... fala que ele morreu lá com ... barbero... aí os outo fala que morreu de otra coisa eu num sei... mas ele trabalhava de fazê mandioca... farinha de mandioca... farinha de mandioca... farinha de mandioca... aí ele foi pra lá quando eu tinha dois ano lá e... depois disso... a únca comunicação que nóis teve aqui co´a família de lá foi... a ... notícia, né? ...aí foi só isso... Doc.Ih... cê gosta aqui do bairro que você mora aqui? Inf.Ah! É bem melhor... bem melhor do-que-antigamente... Doc.Mas.. eh.. cê já morou em outros bairros? ... você cê se lembra que você sempre tava aqui? Inf.Não, quando eu/ quando eu es/ ... eu vim pra cá com dois ano, entendeu? Doc.Sei...

158

Inf.Vim pra cá com dois ano... aí... eu num me lembro não... dos outros, né? .... que eu era... criança Doc.Hu-huh! ((concordando)) Inf.Cresci aqui... Doc.Só... ((concordando)) Inf.Eu vô fazê dezenove já... Doc.Hu-huh ((concordando))....e.... mas você, cê falô que gos/ gostô tal que era diferente... que que... que que você achô que mudô? Inf.Mudô tudo, num tinha... tinha nada aqui... cê vinha aqui... não tinha nada... não tinha rua... rua asfaltada... tinha só mato... onde cê andava era só mato... vixe! era muito... muito ruim... a violência aqui antigamente era... cruel... violência comandava... os táxi num/ num entrava baxo... não descia pra cá... só da torre pra lá... os cara daqui num podia í pra cima... í pra baxo ....que os cara queria pegá Doc.Que tinha o que/ que era uma área que tinha um... tinha um... tipo um... comando de... Inf.É... era tipo um comando... aqui era uma gangue... entendeu? .... que... a gangue daqui num pudia saí daqui... a de lá e a de lá de baxo queria pegá a do meio... entendeu?... mas a de lá e a de lá não tinha nada... não tinha confusão uma cu´a outra... só cu´a daqui... Doc.Só... ((concordando.)) Inf.Aí num pudia descê e nem subí... Doc.Tá!.. e essa gangue aí... ela... sumiu? ... que aconteceu co´ela? Inf.Ela tá... ela tá... uns tá preso... otros morreru... uns tá vivo... só um poco né? ... que tá vivo... uns tá preso... Doc.Mas esses que tão vivo .... tão morando aqui ainda? Inf.Tem uns que moram... uns-que moram... eles né?... uns num moram aqui... Doc.E você tem contato co´esse pessoal?... já teve?...[próximo Inf.[Tenho... sempre tive contato co´eles... (não tem dessa)... Doc.Certo... Inf.Eu conheci aqui né? ... então... minha mãe sempre me ensinô ... que a gente deve sê humilde... mas não pa se envolvê... entendeu? Doc.Hu-huh... ((concordando.)) Inf.Graças a Deus!... Ave Maria!... só sofrimento... quando eles chega ... eu saio... entendeu? Mas agora eles se mandaru... eles parô com isso... que aqui agora num tem mais gangue... entendeu?... se eles... tentá montá uma... os cara vem e pou! Doc.Nas outra gangue? Inf.É...

159 Doc.Que as outra ainda tão tão.... comendo solto aí? Inf.Tão... as outra continua né? .... puquê... a violência cê sabe como é né? ... sai um... sai um pouco... sai um dois... entra quatro cinco... no mundo do crime... Doc.Sei... mas é.... gangue é só homem .... idade mais ou menos... de quinze a trinta anos... assim? Inf.Não... assim não... eu acho que... que...não... eu acho que quinze é muito pôco! Doc.É mais velho? Inf.É... é mais velho... Doc.Tipo uns quarenta anos? Inf.Vinte... vinte... Doc.Galera assim? Inf.dezoito pra vinte... Doc.Então... você acha que tem a vê então eh... por exemplo... asfaltaram o bairro... aí torna mais viva as coisa ... não sei o que bá-bá-bá ... aí eles... eles.... essa galera some? Inf.Some... eu acho que ficô bem melhor agora porque... sei lá... diminuiu a violência aqui... você num podia ficá na rua... até um... um horário inadequado... aí agora você pode ficá até a hora que cê quisé... o lugau/ o lugarzinho tá calmo agora... a última veiz que morreu um cara aí foi o que? ... foi a ano passa/ ... foi ainda um que morreu ali na Nicarágüa ... acho que... envolvimento com droga... foi o único também... depois disso num teve morte aqui não... Doc.Sei... envolvimento com drogas o que? .... ele usava? Inf.Ah... deve sê ... eu acho que ele vendia usava... acho que ele vendia... aí acabô a dívida... ele pegô fiado com outro cara lá... aí o cara matou ele... ele num pagô ué... a conta... Doc.Só ((concordando))... e você passou por alguma situação de risco? ... nesse tempo? .... não? Inf.Até hoje não... graças a Deus! Doc.Mas hoj/ ...mas hoje em dia você acha que não vai passá mais? Inf.Não sei... quem sabe....( ) eu espero que issso aqui não aconteça né?... que não aconteça nada... Doc.Tá!... ih... assim seus amigos que você... você... cê era da creche aqui não? Inf.[era... Doc.[quando era menor...sua mãe trabalhô na creche também? Inf.Hu-huh ((concordando.))... Doc.Ela ainda trabalha... sua mãe na creche? Inf.Não... Doc.Ih... você cê tem quantos irmãos?

160

Inf.Sei lá... eu acho que é uns sete oito dez... Doc.Mas os que moram aqui ... são quantos? Inf.Que mora aqui é... acho-que-é... ((contando nos dedos- longa pausa)) seis... Doc.Seis... e... todos são da creche? ... todos fizeru creche? Inf.Não... não... eu sô o mais novo... da família... Doc.Ah tá... então... Inf.( ) ((crianças gritando)) Doc.Só... e aí depois... vocês foram pro colégio Renato né? .... todo mundo depois que sai da creche vai pa lá... Inf.Crispim... pro Crispim... depois pro Renato... Doc.e... a galera que você anda... é uma galera que fez creche com você... Crispim... Renato... como é que é? Inf.Não... ah... quem fez creche comigo... acho que não... são poucos... acho que só... o Paulinho... que mora aqui ainda... nem mora aqui... porisso que a mãe dele vem de Santos ... o resto é tudo... colega que conheço aqui melhor... Doc.Na rua aqui do bairro memo? Inf.Do bairro... Doc.Não necessariamente aqui da escola? Inf. ãhn? Doc.Não da escola né? ... seus amigos são mais aqui do bairro do que da escola.... assim? Inf.É... que aqui eu conheço mais... porque eu tenho... conheço uma pá de gente... daqui... de lá de baxo... de lá de baxo... daqui de cima... daqui de baxo... dali... todo mundo da área eu conheço... Doc.Mas quem vo/ você anda memo é o ... é o pessoal daqui? Inf. Daqui... Doc.Tá... e vocêis faz o que aqui... assim junto?... eh... tanto no bairro como fora.... cêis costumam fazê o que? Inf.Ah!... Só brincá né?... jogá bola... o cara vai trabalhá também... emprego tá difícil né ... eu num arrumei ainda... eu num vô lá pra fora... aí eu fico por aqui memo... só jogando bola... ( ) ... eu gosto de dormí bastante. Doc.E você tem filho... não? Inf. Não... Doc.Pretende tê filho? Inf.Eu tenho... mas qual homem que não pretende?

161

Doc.Não... sim... mas agora... mais/ mais pra frente? Inf.Agora não... acho que vai... pela situação financeira... entendeu?... eu quero o melhor pro meu filho... eu quero que meu filho tenha o que eu não tive... entendeu? Doc.Ih... por exemplo... mas é muito comum que ... tê muita garota grávida aqui né? Inf.É... garota não... mina... Doc.Ãhn? Inf.Mina... Doc.Mina memo? Inf.É... Doc.E cê acha que isso acontece por que? Inf.Safadeza delas... Doc.Safadeza? Inf.As mulé de hoje tá mais safada do que ... que antigamente... Doc.Mas você acha que... safadeza... como assim? Inf.Safadeza de í lá... Doc.[mas é por que/... Inf.[Mulé é muito fácil... Doc.Cê acha que é por causa disso? Inf.Eu acho que é... as mulé não tão se dando o respeito... entendeu? Doc.Hu-huh ((concordando.)) Inf.Eu acho que é isso... Doc.Porque também... porque muita gente falou que também que-é... que-é... fazê pra segurá ma/ marido né? ...segurá namorado... você acha que é comum isso aqui? Inf.Eu acho que... não é isso tipo não... eu acho que... na periferia... eu acho que não é isso não porque ela/... o pai dela vai falá o que? ...“ah não! grávida tem que casá”? .... cê acha que na periferia acontece isso? Doc.Não sei... acho que [não Inf.[((ri)) acho que não... Doc.Não... ma não que o pai vai falá/... vai implicá que tem que casá... de repente ela segura o ... o namorado... porque vai tê um filho dele ... Inf.Segura nada... mentira... é mentira isso daí...

162

Doc.Que falou isso... cê tem um caso próximo assim pocê... num picisa nem citá nome... contá pra mim como aconteceu... Inf. Ah! A minha irmã por exemplo... a minha irmã né? ... ela namorô co´o cara... o que?... O cara tinha... oito ano quando ele namorô com ela... aí quando... eles ficaru um bom tempo memo... um bom tempo... ela tava completando... acho que... dezessete... dezesseis... nem me lembro... sei que... eu ia fazê uns... quatorze... quinze... ela engravidou dele... e a mãe dele falava assim ó... que não era dele... aí... num deu... num deu em nada... aí eu... a menina... nasceu né?... um dia ela tava com cinco ano... e é a cara do pai... aí... agora que ele tá registrá ela... tá registrano aí... tá correno atrás dessa papelada aí... pagano em dinhero pra registrá... porque... tá sabeno cartório agora tá cobrando... num registrô quando nasceu ... agora o cartório tá cobrando... aí agora ele tá... minha irmã tá lá... também né? ... minha irmã é nova... teve o filho nova... Doc.Sei... mas aí seus pais apoiaram... acharam melhor deixá em casa mesmo? ...sua mãe? Inf.É por que... aperto/ aperto toda/ né?... a maioria das família passa né? ...mas graças a Deus ela nunca/... nunca faltou nada pra ela não... nem pra nóis também... o que nóis qué... nóis vai lá e compra... graças a Deus... sei lá... Doc.Hu-huh ((concordando)) ...Ih... é... mas assim... pra namorá cê tem medo de... tê filho... fazê isso... você acha que tem garota que já chega querendo... eh... Inf.

Não...

Doc.Você falou não o que? Inf.Não... continua... [ continua... pode continuá Doc.[ Ah... então... eh... se você se previne? E se você acha que tem garota que... que chega de um jeito tipo “ela qué tê um filho comigo”? Inf.Não... Doc.((rindo)) acha que não? Inf.Não... eu acho que não é assim não... acho que tem que tê uma... pra você tê um filho... eu acho que tem que sê a pessoa certa né?... eu acho né? .... pelo menos da minha... pelo menos da minha opinião é essa... eu acho que a minina pra tê meu filho ... vai sê aquela que... se eu namorá com ela um bom tempo... pra mim... pra mim tê um filho com ela... aí... tê certeza que (é) meu filho né?... meu filho vai tê tudo... entendeu? Doc.Hu-huh ((concordando)) Inf.Num sei... mas sabê também se ela não é safada... pra a gente sabê que tem uma pessoa ... que num vai aprontá com você né? ... tem que convivê com ela... tem que não... um bom tempo né?... eu acho que as mulheres de hoje... num aguenta ficá com um cara só não.... Doc.Você acha que qué tê várias? Inf.É... Doc.E os homi não? Inf.É... os homi... a carne é fraca né mano? .... as mulé vem pra cima Doc.((ri)) mas que/... mulhé num pode tê carne fraca?

163 Inf. Também... Doc.Mas aí essas cê num qué casá? Inf.Mas se você é casado... você num vai saí né?... dando idéia nas outra minina... Doc.Só... ((concordando.)) Inf.Porque tem que tê o respeito também né? Se elas te respeitá... nóis tem que respeitá elas... e é assim... eu acho que é assim... pra mim... ficá umas minina séria ... e ela me desrespeitano ... eu prefiro ficá sozinho... num tem respeito... num tem a confiança... num tem nada... Doc.E você... você... suas namorada cê teve tudo aqui no bairro também? Inf.É... a maioria... Doc.A maioria aqui do bairro? Inf.Eu... pra falá a verdade... eu nunca namorei... só... negócio de ficá... ((ri))... namorá... namorá é complicado... eu namorei... eu cheguei a .... começá né? ... foi o que? .... tem uns dois mês... aí eu namorei até hoje... ia namorá com ela né?... nóis já tava... tudo certo... eu já ia falá com pai dela e tudo...ela é... decente né? ...num vejo ela na rua... aí eu sei lá o que aconteceu com ela ... as minina mandô uma carta pra ela ... falô que eu era galinha... aí ela acreditô... a minina... subiu chorano lá... aí... eu nem... ela num dexô eu nem me explicá... já veio chorando... tacô a carta ni mim... eu (ia) catá nela assim... aí ela pegô... queria me batê... aí eu disse “vixe... eu vô embora... depois que você tivé mais calma a gente conversa”.... aí setembro foi quano nóis voltamu ao normal assim e... aí passô uns tipo assim dois dia... aí ela pegô e saiu fora... demorô então.... Doc.Mas você acha que foi.... teve a garotada no meio... mandô a cartinha... de repente você num acha que num foi... ciúme das amiga dela? Inf.Num sei... até hoje num sei quem mandô... Doc.Sei... Inf.Num sei nem quem mandô... quando você tá com uma minina assim... parece que vixe! uma pá de fofoca... pelo menos aqui é assim...se você chegá ali perto das coleguinha... Doc.Aqui assim como? Inf.Aqui... as pessoa daqui é muito... sei lá... diferente... eu acho que é... Doc.Como assim? Inf.Sei lá.... qué sê o que num é... eu acho que é isso... Doc.Ih... peraí o que você tinha falado.... que eu ia perguntá?... bom.... esqueci... vo/...eh… ah! Dexa eu só fazê... me lembrei... todas as garota que você pretende nomará ou pretendeu... você e seus amigos...né?... porque tem um caso e também deve tê um outro né?... vocês pedem... eh.. pro pai dela... avisa pro pai dela? ... como é que é? Inf.É… é isso memo… vai lá e conversa com o pai dela... entendeu? ... porque... as minina quando nóis pega pra namorá... num é igua/ igual essas minina que sobra na rua... que pega já vai... ela já vem... com outras intenções né?... por que a maioria das veiz pode (elas) vim com outras intenções... entendeu? ... que você pega ela e só beija ali... ela fala pras amiga dela que você é devagar... [que você é nóia... Doc.[((ri))

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Inf.Verdade... aí você pega... rapaiz!... cê faiz sexo com ela ((rindo))... aí ela conta p´as amiga ... aí as amiga vem também... é besteira isso daí é... mulé safada! ... Doc.Sei... então... quando a garota é direita assim que cêis curtem cêis vão lá falá com o pai delas? Inf.Oxe!... você beja ela só... tem que bejá ela quando tá na tua firma... eu acho... que na putaria lá... que(m) vira a mina sou eu... Doc.Hu-huh ((concordando))... mas você acha que você e seus amigos pensam assim ou só você? Inf.Não... que... meus colega aí... todos que começa a namorá assim .... num é com qualquer ( ) não... que nem esse daí que tava dando... o Everthon... então... ele chegou... tava lá.... ia namorá co´a minina assim... gosta da minina pra caramba ele... gosta memo... aí as minina pega e sai fora... num dá valor... mema coisa aconteceu comigo... a minina num deu valor... ela viu que eu gostava dela entendeu? ... só que eu tava ficano sem ela né?... porque eu vi que num... eu já tinha pedido uma vez pra ficá com ela ... aí ela disse que não... aí eu tentei esquecê ela... mas... com outras... aí ela viu que eu tava... que eu tava c´umas minina aí... aí ela pegô e veio po meu lado... Doc.Sei... só porque... você foi atrás de outra? Inf. Eu acho que foi sim... eu acho que foi... acho que ela queria vê se tinha alguém ( ) entendeu? ... ih... c´uns treis mês né?... quano a pessoa dá o fora assim... deu.... um fora ni mim... aí depois... corre atrás... Doc.Sei... Inf. Daí depois... eu fico com ela... fico só com ela... ela depois... uma semana e dois dia só... ela pega e termina... Doc.Sei... Inf. Ela pega e sai fora... a únca coisa que nóis fala agora é só “oi”... só “oi”... Doc.Mas é por que ela é metida... que cê acha? ... por que... Inf. [ Não... ela é bem legal... Doc.[Porque é bem.... porque é bem difícil pô... quando você tá querendo esquecê ela ... ela corre atrás de você... aí quando você... fica com ela... ela foge... pô!... que que... que que ela qué? Inf. Eu num sei o que ela qué... eu sei que... ela... me dexô levá né? .... aquela danada... agora eu tô... sussegado... Doc.Só ((concordando))... mas você costuma... teve um que/ qual o nome dele? ... mas ele falô pra mim que... cinema é pa í com namorada... você... cê j/ já levou?... Inf.

Não... ainda não... aí depende da mulherada...

Doc.Ãh? Inf. É... depende da mulherada... Doc.Ele falô até que... í um monte de homi pega mal... Inf. Ah não... tamém uma... né?... um... num é bem assim também... se você vai... entre os amigo... num qué dizê... que aí pega mal não... eu acho que não... é super normal...

165

Doc.É que eu achei estranho seu amigo falando... eu achei estranho... “mas pô! de repente né?... cinema não é só pra isso né?”... Inf.É.... num pensa que-eu tô falano assim... qualqué minina que se pega vai lá... fica lá e volta... Doc.Não... lógico... também não... Inf. Mas mesmo assim em-uma... uma reuniãozinha assim com seus amigos... vamu pra uma pizzaria... nóis foi na que tem aí um tempo atrás né?... aí... agora parô... ia pro cinema ainda... eu nunca fui pro cinema... eu nunca gostaria... eu sou meio caseiro entendeu?... meu irmão tão bem... meu irmão vai/ ... ele me comprô um passaporte pra mim e um pra ele... pra í pro Playcenter... eu num gosto não... eu num pedi não... eu num gosto de saí... só co´a namorada memo... Doc.((ri)) ... sei... ih... mas você... eh.... tem algum tipo de música que você gosta de... de ouví? Inf. Ah... eu gosto de muitas música né? ... eu só num gosto de Rap... Rap eu não sou... muito chegado não... Doc.Mas tem algum tipo que cê gosta de ouví... dançá? Inf. ... só sei dançá um charme... e um forró... Doc.[E cê... Inf. [o que-eu gosto memo de mesmo música assim é pagode Doc.Tá... Inf. Eu num sei dançá pagode não... Doc.E você chega a í pra alguma lugar pra ouví essas coisas? Inf. Não eu... Doc.Cê num gosta muito de saí né? Inf. Eu tava pretendo aí í com... show de black... show de charme... aí... fui não... Doc.Por que você não foi? Inf. Não... os cara num vai eu... os cara fala que num sabe dançá... só vai pro lugar quano sabê dançá... Doc.((ri)) ah... ma tem que aprendê né? Inf. É… Doc.Qué aprendê aonde? Inf. Eu num sabia também e aprendi... Doc.Bla/ black você dança/ ah charme você dança? Inf. É... black e charme é a mesma coisa Doc.Mas que que lugar que você vai?

166 Inf. Não ... eu aprendi aqui memo entendeu?... eu via os cara dançano ali e... entendeu?...e... eu fui aprendeno... Doc.Mas desses lugares que você/... nesses lugares que cê disse que toca charme e black... onde-é que é? Inf. Ah... tem várias lugá... tem vários... tem... na Piqueri... tem... RPC lá na ( ) também... vários lugá... Doc.Aqui na Brasilândia também não? Inf. Não... Doc.Lá pro centro não? Inf. No centro deve tê... eu num sei não... eu nunca ouvi falá não... mas deve tê... lá no centro... Doc.Taipas não? Inf. Tsu-tsu ((negando))... é... salão assim que toca de tudo sabe?... Doc.Sei... Inf. Salão meio assim... tipo... como-é memo?... esqueci... Doc.Não, num precisa falá o nome... Inf. Ali cinco real pra entrá no salão... Doc.Nossa... Inf. É o seguinte... mas é bom né? ... tem que sê bom pra cobrá... Doc.E lá mui/ muita mulher... como é que é? Inf. É mais... patricinha sabe? Doc.Sei... Inf. Classe média que... mas o que dá lá... é só... só gostosa... lá você fala que num vai pegá não... lá você vai só pra dançá mesmo... Doc.Porque muito frescas as mulé? Inf. É... diferente sabe?... as minina metidona memo... vai vê tá gostano assim ó.... e daí ela pergunta da onde você é... já perde até o interesse... Doc.É memo? Inf. ((rindo)) É... lógico que-é... Doc.Por que? Inf. Porque-é metidona as mina... metidona memo... cê chega cola nela... ela te olha de perto acabô... Doc.Cê num vai arrumadinho pô? Inf. É...

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Doc.Então... Inf. Mas as mininas elas... gostam é de... elas olha pocê assim... tudo arrumadinho assim tal... ropa cara... aí... aí não dá... tá c´um celular bom bonito assim... aí dá... chama ela de canto... começa a pagá assim... bebida prela... aí sei lá... ela vê... aí... dá... bejinho né? ((ri)) se num é... aí... já era... num quero ficá com ela... já que deu fora... sai fora!... ((os dois riem)) Doc.Mas você falô que falá onde cê mora é mó queima filme? Inf. Ah... esse lugarzinho era muito mal falado... Doc.

Só... ((concordando))

Inf. Muito mal falado... lá na Lapa ali no alto... quando eu fui pra Lapa ali e... comprá ropa... aí eu fui lá pa dentro os cara da loja me perguntando ...“de onde-cê é?”.... aí eu falei... “sou lá da... Paulistano lá da Brasilândia” “Nossa lugarzinho barra pesado ein? vixe... dava pra vê na tevê direto” “sabe onde é?” ( ) o sujeito mora ni otro luga(r) ...mora ali na Brasilândia memo... em outra parte... deve ficá na o que... “nóis vai fingí que acredita”... ((os dois riem)) lugarzinho aqui... lugarzinho... a gangue deve tê (ficado) lá no cidade alerta... Doc.Só... ((concordando)) Inf. Tinha um muleque lá... mais ou menos co´a ida/ quatorze anos ele tinha... Doc.Nossa... Inf. Quatorze ano... foi o que... bem diz ele... foi graças a ele... que acabô o crime aqui... porque ele caguetô todo mundo... Doc.É memo? E os cara num correram atrás dele? Inf. Ah... os cara correu pa matá ele... ele num volta aqui nunca mais... Doc.Mas ele... el(e) fez isso porque? ...el/ ele brigô? Inf. Porque tava com medo... Doc.Af... porque isso é foda também né? Inf. É… os poliça… os poliça é pior que ladrão... Doc.É... Inf.Muito safado os poliça... Doc.Ih... escola cê tá aqui... já perguntei né?...que ano memo que você falô... Inf. Terminei… Doc.Terminô já né? ... e você pretende continuá... fazê uma coisa aí... fazê um cursinho?.. ou algum curso...de alguma coisa?

168 Inf. Talvez...uns curso... computação...e... faculdade também... tê que fazê a faculdade... Doc.Já pensou em que? Inf. De línguas... Doc.De línguas? Você qué fazê línguas? ... e você acha importante computação por que? Inf. Porque computação eu acho é uma/ é um dos curso mais importante... em todos os lugar agora né?... cê... tem computador... porque o que tá pegano mais agora mais pra... mais pra... balconista... negócio que... o que mexe com computador... se você num tem cursinho nenhum aqui... fica difícil pra você arrumá um emprego... Doc.ih... mas você já mexeu em computador? Vocêis aqui tem acesso aqui em algum lugar? Inf. Nenhum... Doc.Nenhum lugar? Inf. Não Doc.Tá... ahn... você j/ já feiz alguns bico de... ajudante de/ ajudante de pedrero... é isso? Inf. Ajudante de pedreiro... Doc.Ih... mas por que… porque… eh… eh… Inf. É porque aparece… Doc.Mas é parente seu que chama ou...? Inf. Não... é uns cara assim que eu conheço... eu conheço muita gente aqui sabe?... aí os cara me chama... Doc.É lá que você aprendi várias coisa...? Inf. Ah... cê aprendi a ... sei lá... ( ) pra passá... sua profissão... Doc.E eh... inclusive a casa de você... quem construiu... assim? Inf. Não... nóis num construimo ainda não... agora nóis vai tentá construí agora... Doc.Tá... mas... cêis moram em barraco essas coisa? Inf. É... nóis vai...eh... constru/ construí ano que vem agora... é porque agora num dá... num tá dano não... na boa.... tá difícil arranjá um trampo aqui entendeu? Doc.Hu-huh ((concordando)). Inf. Tá difícil memo... Doc.Mas isso cê diz... você/ vocêis... quem que vai construí? Inf. Eu... meu irmão... minhas irmã... Doc.Sei... Inf. Nóis vai... acaba de construí...

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Doc.E vocêis vã/... Inf. ...pode falá... Doc.Mas vocêis... eh...mas quem que manja de construí? Cêis já tem uma noção pra construí tal? Inf. Não... meus cunha/ meus cunhados... meus cunhado.. meu cunhado aqui de baxo é pedrero.. o outo já foi pedrero tamém... tudo sabe mexê com casa.. Doc.Eh... tá… então você participa do A Gente Jovem né? ... participa ou Jovens Urbanos? Inf. Participo no… Jovens Urbanos... Doc.Jovens Urbanos... que que vocêis/... eh... qual foram os projetos/ dexo colocá aqui... exploração não é isso?... teve o guia... então conta pra mim que que foi... que que vocêis faziam?

eh... teve

Inf. Ah…o guia memo… o guia é...um tipo de um mapa ... Doc.Um guia tipo o que? Inf. Eh... tipo um mapa... marcano os nomes das ruas... o nome do... bairro aqui... é isso só... Doc.E vocêis fizeram como? Vocêis... Inf. Colage... colagem... Doc.E vocêis pegaram material aonde? Inf. Ah... lá na... lá no barracão tem bastante... revista... cê foi lá num foi? Doc.Fui... fui... Inf. Então... Doc.Ih... mas cê/ cêis apresenta pra outra/ pra outras pessoas de outros bairro? Cê foi lá no... é SEMPEC né? que financia... cê chegô a í alguma veiz? Inf. Não... Doc.Não? ((confirmando)) Inf. Eu acho que... apresenta né?... porque ela... a Francisca eu acho que apresenta sim... Doc.Ela que apresenta? Inf. Ela pega umas minina lá... ela vê... quem qué í... ( ) Doc.Você que não gosta de í? Inf. Não... eu sô muito... tímido... Doc.Pra í lá e ficá falando? Não acho não... sua entrevista tá boa viu? Inf. É por que eu sô um poco... tímido... porque eu acho que na frente de muitas pessoa assim... eu fico... nervoso... muito nervoso...

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Doc.Entendi... você gosta mais.... conversa mais com poca gente... Inf. Poca gente... Doc.Ih... essa coisa da confetaria… você acha que vai vingá? Da padaria aí... você tá afim de continuá... tá afim de fazê isso ... ou se cê arranjá um emprego cê larga? Inf. Não… continuo… que isso?... continuo... eu... (eu) se arranjá um emprego né? ... aí... se eu arrumá... se Deus quisé né?... Deus vai me... abri uma porta pra mim... eu... se eu trabalhá de tarde... eu... pego a noite...fico a noite... eu num trabalho a noite... também num estudo a noite mais... num estuda... aí... de noite... que dependeno do horário que eu cheguei... eu... tô disponível... pra trabalhá na padaria... Doc.Então você acha que vai rolá então? Inf. Acho que... vai... Doc.Vocêis/ cêis tão fazendo o que pra... pra... consegui os materiais... como é que é? Inf. Ah... eu acho que até agora... até agora ninguém... feiz a pesquisa... acho que não... acho que vai saí mais... vai sê difícil... ((documentador ri)) né? .... eu acho que só tem o lugar ainda eu acho num tenho certeza... porque uma máquina assim é cara... Doc.É... Inf.Muito cara... Doc.Mas você acha que é só por causa do dinheiro ou por falta de organização? Inf. Não... Doc.Você acha que-é só grana então? Inf. É... sei lá... acho que-é por causa de dinheiro... Doc.Cê acha que.. todo mundo tá fazendo as coisa... tá correndo atrás? Inf. Eu acho que tá né? porque eu não sei... eu acho que tá... Doc.Quando você vê assim... a galera/ Inf. Porque nóis fica naquele... naquele bolinho só... aquele lá... e dali nóis tira umas idéia entendeu? Só aquele ali... nóis... num fala co´os cara... num sabe as opinião deles e eles num sabe da nossa... nem da noite... nós num sabe da noite não... Doc.Hum ((concordando))... ih... futebol você é desse time que... tá rolando agora ou não? Inf. Não... parei pra falá a verdade parei de jogá bola... Doc.Ah tá... Inf. Jogo uma veiz assim por mês ainda e olhe lá... parei... Doc.E você tem algum time que cê... Inf. Não... jogo assim brincano

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Doc.Não... sim... mas cê torce pralgum time? Inf. Ah... torcê eu torço sabe?... mas... não sou fanático... só... assisti um jogo só do São Paulo Doc.Você foi/ você foi...pro estádio assisti? Inf. Não... na televisão... Doc.Ah... na televisão… eu também num sô muito de futebol não... Inf. Mas tenho vontade nenhuma de í em estádio... só violência... ( ) Doc.Mas na tevê você vê de veiz e nunca assim? Inf. Na tevê eu vejo de veiz e quando... Doc.Tá... Inf. E aí... quando eu vô assisti jogo eu como as unhas toda aí... Doc.((ri)) e... você assim… eh…. Agora só as coisa que eu esqueci... mas eh... você... você costu/ balada assim no bairro você costuma faz/ í um na casa do outro né? Inf. Não… nós fica aqui na praça memo… Doc.Ah tá... Inf. nóis num é de freqüentá muito a casa ( ) dos amigo... Doc.sei Inf.Os cara fica achano que talveiz a mãe deles num goste... a mãe do Élder... eu sei que... com ela num pega nada lá não... mas talveiz num goste... Doc.Você que cozinha com ele... que ele falô... Inf. Que? Doc.Você que cozinha com ele? Inf. É... Doc.É... ((confirmando)) então cê sabe cozinhá? Inf. Sei... minha mãe me ensinô... quando eu me virava né? Doc.Por que? Inf. Ah!...porque eu num saio... num gosto de saí muito... só saiu daqui pra baxo... agora que-eu tô indo mais lá pra cima lá... que eu tô co´uma minina lá... aí ás vezes eu vô pro lá... Doc.Huh? ((pedindo para continuar)) Inf. Aí eu ficava em casa lá... minha mãe fazendo bolo ... aí eu... me incheretava lá... falava “mãe como?” sabe?... daí... daí minha mãe... pegava falava... eu falava “posso mexê?”... daí ela “lava a mão e me ajuda”...

172 daí eu lavava as mão e ia ajudá ela... fazia... fazia não... só batia né?... que ela num dexô eu fazê não... nunca dexô... eu sempre falei “mãe...dexa eu cozinhá... mãe... dexa eu cozinhá” e ela “não eu não sei como-é sua comida”... “num sei nem como você faiz...”... nóis ia pra Morato... eu e meu irmão... nóis lá em Morato num tem mulé né?.. aí nóis cozinhava... Doc.Sei... Inf.Uma vez nóis jogamo uma panela de arroiz... foi que esquecemo o sal... panela grande... Doc.nossa... ah mais dá pra comê pô... Inf.Mas ninguém quiz comê não Doc.Mas lá em Morato... cêis tem alguma coisa lá? Inf.Meu cunhado tem... meu ex- cunhado... ele tem uns negócio lá... aí nóis ia lá passá férias... também trabalhá pra ele assim... tipo assim... que nóis tava sem dinhero... aí a gente trabalhava pra ele... aí nóis trampava no que nóis quizesse assim sabe? ... que ele ajudasse a pagá... ou intão dava o dinhero pa nóis pagá entendeu?... Doc.Hu-huh ((concordando)). Inf.Aí... nóis sempre trab/ trabalhava pra ele assim de veiz em quando... tipo quando chega os natal assim nóis ia pra lá todo mês de dezembro assim... pra já garantí nossas roupa né? ... Doc.De natal... Inf.Porque... alimento assim graças a Deus!... natal assim... nunca faltô nada... nem/ nem... nos dias assim... já faltô né? mas sempre minha mãe comprava... mas nóis nunca passamo fome graças a Deus... daí mesa no natal é farta... graças a Deus... Natal ano novo... é um... Doc.Cê vai fazê lá esse ano também? Inf.Não... eu nunca passei o natal lá não... nóis só ficava o mêis de dezembro assim até... Doc.Até a etapa que cê conseguia a grana? Inf.É... Doc.E você custuma comprá aonde essas roupas? Inf.Loja de surfe Doc.Loja de surfe onde na Lapa? Inf.Lapa... lá na... na São João... na Barão de Itapetininga também... Doc.Hu-huh ((concordando)). Inf.É... assim na Lapa (se encontra de tudo) tem bastante loja... assim ah... na Tarapuã tem loja também no centro... Doc.e... assim… essas/ essa roupa que você/ ... cê gosta de comprá sua ropa ou cê gosta que sua mãe compre ropa?

173 Inf.Não... minha mãe vixe!... minha mãe num me compra nada... quano... tipo assim nóis tá sem dinhero... aí ela ajuda... nóis pega é... ( )... Doc.Tá... Inf.e... nóis que compra memo... nóis trabalha pra comprá tudo... nóis dá dinhero pra ela e fica com poco pra comprá entendeu? ... se nóis qué um negóço nóis... pega um poco de dinhero... dá um poco pra ela... Doc.Mas por exemplo... ela/ ela/... gôsto de ropa da sua mãe é igual ao seu?... se ela/ se ela comprasse pra você... se acha que ela ia comprá essas ropa de surf que cê gosta? Inf.((rindo)) eu acho que não... Doc.Por que? Inf.Ah... sei lá... nóis... nóis compra essas ropa tudo mais porque... ( ) bastante né?... e ela eu-acho-que... de repente... ela num compra... Doc.Ah... com ela… o importante mais é o preço memo? Inf. Eu-acho-que ela num leva não... Doc.Mas ela fala alguma coisa das ropa? ... ela acha que frescura que cêis usam ropa assim? Inf.Não... ela fala assim/ ela fala... “meu filho é loco”... daí vê que num é ( )... só isso... só que nóis nunca... ela nunca... brigô purque nóis [compramo... Doc.[Lógico... Inf.Ela fala... “ce qué comprá... cê trabalha”... aí nóis trabalha... tem que trabalhá memo... meu irmão mai/... o trabalho dele mais do que eu... porque ele... ele é de menor ainda né?...o ano passado... esse ano num trabalhei muito não... eu trabalhei um poco só... mas meu irmão compra pra ele... compra pra mim... nóis veste o mesmo númro... Doc.Cêis troca ropa essas coisa? Inf.Não...( )... compra assim... já compra pros dois... porque ele compra pra ele e ele vai lá e compra já... duas trêis... uma pra cada... aí sempre assim... nóis ajuda pagá... nóis dá dinhero pa ele também... senão ele... ele quebra... Doc.Ele quebra... ((concordando)) é bom... cabelerero você tem algum...cabelerero que você vai aqui no bairro memo? Inf.É... Doc.Mais eé... lá eles faiz corte diferente? Cê gosta ou... só vai lá corta o cabelo e vai embora? Inf.Lá tem todos os tipo de corte né?... eu gosto de... gosto de cabelo grande... deixá os cabelo grande... quando tá bastante grande os de frente... eu vô lá e corto... Doc.Aí começa... meu cabelo vai crescê aqui assim... aí fico parecendo o bozo ((ri)) Inf.É... apesar que agora eu tô dexando crescê tudo sabe?... aí na outra veiz aqui... meu cabelo tava aqui já.... cabelo grandão no meio... só que fui lá e cortei... agora eu tô co/ deixano crescê de novo... aí só faço pé lá... quano eu falei pocê que eu ia lá no cabelerero... eu fui lá... só fiz o pé...

174 Doc.Ah tá... entendi... é verdade... não eu faço essa pergunta pra todo mundo... então num perguntei porque você tinha falado pra mim... mas é verdade... e....bom... eh... agora eu quero que cê leia isso aqui porque... muito boa a entrevista viu?... cê viu?... cê fala que é tímido... cê falô tudo aí... foi ótimo... agora é o seguinte... você vai lê as duas frases... tá veno... aí você vai falá “já li essa daqui”... aí eu faço umas pergunta... eu faço as mesmas perguntas... Inf.Em voz alta? Doc.Pode sê... se você quizé... pode sê baxo... se você quizé... é que bom sê em voiz alta que já tá no... a gente tá no gravador... nun/ nunca fica um silêncio no gravador... entendeu? Inf.((lendo)) ‘Nóis antigamente sempre costumava comprar legumes ali... no mercadinho da esquina’ ...eh... lê todas sem falar então?... Doc. Não... não ... lê essas duas... e aí num tem num... ali em lugar nenhum... imagina que tivesse uma situação que a gente tivesse falando isso entendeu? Inf.((lendo)) ‘a gente antigamente sempre costumava comprar legumes ali no mercadinho da esquina’ Doc.Você acha que significa a mesma coisa? ... eh... essas duas frases aí? Inf.Hummm... não... eu-acho-que não... ‘a gente’ é um... ‘a gente’? tá errado... Doc.Você acha que tá errado? Inf.‘nós antigamente’... ‘a gente’... acho-que tá errado... Doc.Cê acha que tá errado ‘a gente’? e você acha-que... é...você fala as duas ou cê... ou você fala... cê fala alguma? Ou as duas? Inf.Ah... as duas... talveiz... as duas Doc.Você acha-que fala as duas? E você acha que... é... é... tem pessoas que falam uma e tem pessoas que não falam outra? Inf.Tem... tem pessoas que só falam ‘nóis’... Doc.E num fala ‘a gente’? Inf.Num fala ‘a gente’... Doc.E quem que você vê que seria essas pessoas? Inf.Ah... sei lá... a ... as professora... Doc.Só usa ‘nóis’? Inf.É ...os professores... é porque ‘a gente’ é um modo errado... num é? Doc.Não então... eu num sô professor entendeu? ... Tô perguntando que opinião sua mesmo... num é nem o que te digam no colégio... entendeu? Inf.Eu-acho-que-é errado ((ri)) Doc.Tá...

175 Inf.É... eu falo ‘nóis’ ‘a gente’ Doc.Tá... então.. vai volta... a outra... se você q/... se você for achando a mesma coisa... aí cê fala “ah acho a mesma coisa”.. ou então cê fala “não... acho-que-aqui tem uma coisa diferente” Inf.((lendo)) ‘se nóis passasse o dia todo conversando não dava pra trabalhá (direito)’... ‘se a gente passasse o dia todo conversando não dava pra trabalhá direito’... mema coisa... aqui eh... é claro que é ‘a gente’... mema coisa.... Doc.Mas você acha-que significa a mema coisa? Inf.Tem o mesmo significado... e você o que acha? Doc.O que? ...eu acho a mesma coisa é... Inf.também acho... Doc.Num tem.. num tem... diferença... Inf.Porque tem pessoas que... critica... se você falá ‘a gente’ e ela fala ‘nóis’ Doc.Sei... Inf.Critica né? ... se fala assim... Doc.((ri)) quem que fala… professor fala assim? Inf.Não… em outros bairro assim… tipo um bairro de classe média... Doc.Só... ((concordando)) Inf.Tipo você... que nem eu e meu primo aí... nóis... nóis... uma veiz nóis foi trabalhá lá de... pedí ropa pro asilo lá... nóis chegava pa nóis vendê... as pessoas...vixe criticava... cara... Doc.Criticava? Como assim? Elas... as velha do asilo chegava e ficaram [falando/ Inf.[não... as pessoas na rua mesmo... nóis dess/... nóis vendia ropa na rua entendeu?... que... ( ) ... aí eu arranjei o serviço né?... e... pensei que era bom né?... porque o cara falô que era bom tal... aí ei falei... “ah! Já que-é bom então vô tentá botá ele porque ele tá parado também”... aí coloquei ele né?... e eu vi que num era nada bom... nóis chegava falano dum jeito... as mulé já olhava assim... pedia ropa... elas... xingava reclamava pra caramba... Doc.É memo? Inf.Vixe!... reclamava bastante… “dexa de sê vagabundo [( ) Doc.Mas no seu jeito cê falava? Inf.Ah… sei lá… talveiz pode sê até pelo jeito que nóis se vestia né?... nem sei... porque... nóis... curtia umas ropa assim meia larga né?... meia folgada... daí... sei lá... vai vê até por isso... vai num dia trabalhá de ropa mais justa assim... tal... daí daí... uma veiz lá ele pegô... nóis mininu chegô no...no... no andá de baxo.... ( ) umas ropa lá... (el) chegô e ficô bravo... “Dexa de sê vagabundo... cê passa todo dia aqui ”... a primera veiz que nóis tava trabalhano... ele falava que nóis tava todo dia... aí no outro dia eu falei ...( )... aí ele falô “não”... também o cara falô... o ... salário né?... falô pa gente... chega lá é outro... trabalhá de graça... ficá lá... Doc.Aí é robada... mas cê/ cêis explicaram pos cara lá “a gente tá pegando isso...”?

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Inf.[Não... Doc.[“... porque-é pra caridade” e já achava que cêis era vagabundo? Inf.É... nóis chegava pra... pra... pras pessoa assim...( )... não acho-que era de manhã né?... acho-que-era... ((declama mais ou menos o que decorou para pedir as roupas)) “bom dia...nóis/ a gente tá passando com a perua de tarde recolhendo ropas usadas ou alguns alimentos que possam estar doando para a gente porque as nossas pessoas lá tá precisando... nossos senhores idade assim... já não tem...como se movimentá sozinho... e precisa de ajuda” Doc.Hu-huh ((concordando)) Inf.Daí eles falava “ah... tem...tal”... otos falava “ah... vai na ota casa!... tem nada aqui pa dá não”... Doc.Só ((concordando)) Inf.Tinha vixe... bastante... mas tinha pessoas que era super educada... tinha as mulheres assim memo que já agarrava você... parecia que num via home... Doc.((rindo)) ás vezes num vê memo... Inf.É... num tinha... eu cheguei uma veiz numa casa lá né?... pedi ropa lá eu pedi “dá uma ropa... nós tamo precisando de ropa” ... aí a mulé nem dexo eu terminá “e precisando de home lá?” ... aí eu falei “nossa!”.... sai fora... já era bem velha... devia ter uns quarenta anos... aí eu peguei e saí andando... Doc.Essa aí não devia tê mais homem não... Inf.É... eu falei tudo... e a mulé já me empurrando na parde... dexa eu í embora... tinha duas mulé lá uma mais nova... e outra mais... e aí eu pegeui e saí andando... o meu primo também... era difícl as mulé num mexê com você entendeu? ... o cara memo falô ó “isso daí é normal”... todo dia a mema coisa... lá em Osasco nóis fomo... primeira dia que nóis trampamo ia pra qualqué lugar... mas eu num conheço Osasco não... e a gente ia pra lá... eu tenho uma prima que mora lá... mas num conheço lá não... ((continuando a ler)) ‘nóis vai na feira toda sexta feira aqui no bairro’ ...‘a gente vai à feira toda sexta feira aqui no bairro’... mema coisa também... Doc.Mema coisa? Inf.Mesma coisa ((lendo)) ‘nóis vamos toda sexta feira na feira aqui no bairro’... ‘a gente vamos toda sexta feira na feira aqui no bairro’...acho que não... acho-que essa daqui ficou diferente... ‘a gente vamos na feira’... Doc.Você acha que o quê é diferente? Inf.Completamente diferente... o modo de falá... Doc.E você que é... algo mais correto mais errado? Inf.Mais errado... a .... a outra tá mais certa... Doc.Qual? Inf.((lendo)) ‘nóis vamos na feira toda sexta feira aqui no bairro ’ Doc.Então a outra você acha errada? ... e você acha que fala assim... não? Inf.Ah... eu acho que é a um... essa aqui eu acho-que eu num falo assim não... ((lendo)) ‘a gente vamos na’... ‘a gente vamos toda sexta feira na feira aqui no bairro’

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Doc.Tá... Inf.((lendo)) ´nóis se encontramu ((escrito:escontrávamos)) toda veiz na praça às cinco horas da tarde’... ‘nós nos em-com-trá-va-mo toda veiz na praça às cinco horas da tarde’... eu acho que é a dois... Doc.A dois o que? Inf.A dois tá certa... Doc.Por que que você acha? Inf.Ah... porque... é a correta... aqui tá .... eu acho-que aqui tá errado... Doc.Que que você acha que tá errado? Inf.‘nós nos encontrávamos toda veiz na praça às cinco horas da tarde’... ‘nóis nos encontrávamos’ é... esse é o modo mais correto... não que a outra teje errado... mas que a outra é mais correto... Doc.Tá... e você acha que você fala... essa daí... essa mais correta? Inf.Eu acho que sim... Doc.Cê fala os dois? Inf.((longa pausa)) é... eu acho que... a gente num fala assim... a gente fala “vamo colá lá na praça lá”... a gente colava na praça... a gente vai conversá lá... Doc.Entendi... num fala nem de uma maneira nem de outra... Inf.Nem de outra... essa aqui também é pra lê?.... ((lendo)) ‘é nóis na fita’ ‘somos nóis na fita’ ‘é a gente na fita’ ... ( ) que fala? Doc.É... você acha que fica a mesma coisa? Inf.Eu acho que não... sei lá... Doc.cê fala alguma? Inf.Eu não! Doc.Num fala nenhuma? Inf.Essas daqui não…mais... mais essa é uma gíria né? Doc.‘é nóis na fita’? mas cê acha que cê num usa? Inf.Não… Doc.Quem que você acha que usa gíria... essa gíria? Inf. Aqui eu acho que não... acho que é difícil... Doc.você fala isso… Inf. nóis conhece essa gíria mais não é de falá...

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Doc.Hu-huh ((concordando)). Inf. ‘é nóis na fita’... os cara chega falando ... ( )... tá atrasado... nóis já tá no cd ((ri)). Doc.((rindo)) ‘é nóis no cd’ agora né? Inf. É…( ) ... mas eu acho que a mais correta é mais em cima... Doc.‘é nóis na fita’? Inf. Eu acho que é... ‘é nois na fita’... Doc.Hu-huh ((concordando)). Tá bom... é isso... qué falá mais uma coisa?... Algum depoimento? Inf. Já terminô? Doc.Terminô... Inf. Sei lá... Doc.Alguma coisa que cê esqueceu?... tá bom...

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