E o casamento, como vai? um estudo sobre a conjugalidade em camadas médias urbanas

May 26, 2017 | Autor: Telma Amaral | Categoria: Gênero, Casamento, Conjugalidade
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARÁ CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE ANTROPOLOGIA MESTRADO EM ANTROPOLOGIA

E O CASAMENTO, COMO VAI? um estudo sobre a conjugalidade em camadas médias urbanas

TELMA AMARAL GONÇALVES

BELÉM –PARÁ 1999

2

UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARÁ CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE ANTROPOLOGIA MESTRADO EM ANTROPOLOGIA

E O CASAMENTO, COMO VAI? um estudo sobre a conjugalidade em camadas médias urbanas

TELMA AMARAL GONÇALVES

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa

de

Pós-Graduação

do

Departamento de Antropologia da UFPa, para obtenção do grau de Mestre em Antropologia , realizada sob a orientação da Profª Maués.

BELÉM –PARÁ 1999

Dra. Maria Angélica Motta-

3

Para Lourdes, minha mãe, que por conta deste estudo ficou privada de minha presença por muito tempo; para Edu, meu amor, que sempre me deu apoio; e para Deborah, minha "filha" querida e companheira inseparável.

4

SUMÁRIO AGRADECIMENTOS, 06 RESUMO, 08 ABSTRACT, 09 INTRODUÇÃO, 10 CAPÍTULO 1 - O TRABALHO DE CAMPO: REFLEXÕES E MÉTODOS, 34 a) O ponto de partida e seus desdobramentos, 35 b) Sobre as categorias entrevistadas, 38 c) Sobre as entrevistas, 58 CAPÍTULO 2 - CASAMENTO: IDENTIFICAÇÕES E "CÁLCULOS". OU, DE COMO UM CHÁ-DE PANELA "VIRA" UMA TESE, 64 a) "Existem vários tipos de casamento", 65 “Cada um na sua casa”: um modelo alternativo?, 79 b) "Casar é dividir o cotidiano com grande intensidade", 85 b) "Casar tem vantagens e desvantagens ...", 90 O medo da solidão, 95 A constituição da família e dos filhos, 100 CAPÍTULO 3 - CASAMENTO: REQUISITOS PARA BEM CASAR E PARA BEM VIVER ... CASADO, 107 a) "Ah! o amor ...", 108 c) "O amor e o respeito recíprocos são a base da relação", 119 O respeito na relação, 125 A compreensão e o diálogo, 128 A idéia de reciprocidade, 132 d) "Antigamente era assim ... hoje em dia ...", 134

5

Namoro e casamento, 135 O “tradicional” e o “moderno” no casamento, 143 CAPÍTULO 4 - CENAS DE CASAMENTO ... , 154 a) Cena 1 - Relações Familiares: "A relação com a família é muito importante" , 155 Rede de apoio familiar, 158 Conflitos familiares, 163 Planejamento familiar, 168 b) Cena 2 - Conflitos Domésticos: "A pessoa pra viver a dois é muito difícil", 176 Crise Conjugal, 177 Separação, 183 c) Cena 3 - Amor e Fidelidade: "Se você não é fiel é porque já não gosta tanto", 187 Sexo e casamento, 197 d) Cena 4 - Trabalho Doméstico: "As tarefas têm que ser divididas entre os dois", 201 À GUISA DE CONCLUSÃO: E O CASAMENTO, COMO VAI?, 209 ANEXO, 214 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS, 217

6

AGRADECIMENTOS Agradecimentos são inevitáveis. Para quem os lê (se os lê) eles talvez não possuam grande significado, são apenas parte do grande ritual que é concluir um trabalho acadêmico. Todavia, para quem os faz, eles são carregados de significados, pois expressam a gratidão para com todos aqueles (e são incontáveis) que corrigiram, remendaram, sugeriram, criticaram, questionaram, que, enfim, interferiram de alguma forma tornando-se, assim, partícipes deste esforço. Gostaria de registrar aqui, meus agradecimentos à antiga coordenação do Programa de Pós-Graduação, em especial, ao professor Raymundo Heraldo Maués, bem como à Chefia do Departamento de Antropologia, na pessoa da professora Laura Arlene Saré Ximenes, pela tolerância e compreensão para com minhas dificuldades em finalizar este trabalho. Sou muito grata, também,

a professora Maria Luzia Miranda

Alvares pelas observações, críticas, sugestões e preciosas indicações bibliográficas, além das oportunidades que ela me proporcionou de discutir o meu tema de estudo nos meios acadêmicos e fora dele. Não

poderia

deixar

de

mencionar

a

professora

Deborah

Magalhães Lima, que ministrou a disciplina Métodos e Técnicas de Pesquisa no Mestrado e, naquele período, acompanhou mais de perto os primeiros passos que dei na realização deste trabalho, ainda sob a forma de um projeto. Foi ela, também , quem me forneceu uma importante bibliografia que se tornou uma referência constante neste

7

estudo. No âmbito de minha própria relação de conjugalidade, sou especialmente grata a Edu, com quem compartilho uma experiência de vida em comum, e que nestes últimos meses, certamente, sentiu-se "traído" por me ver tanto tempo debruçada sobre outras vidas que não a nossa, enfrentando minha oscilações de humor, resultado do cansaço físico e mental. Por sua tolerância e por ter me ajudado em tantos momentos devo muito a ele. Agradeço, de forma especial, a minha orientadora,

Maria

Angélica Motta-Maués, que mais uma vez, contribuiu para minha formação acadêmica, fazendo jus ao seu papel de me indicar o rumo a seguir. Sua leitura sempre atenta, séria e comprometida, me aclarou tantos pontos obscuros

e me ajudou a superar as dificuldades do

percurso, fazendo-me ver que eu seria capaz de vencê-las. Por isso e por tantas coisas mais, sou-lhe muito grata. Agradeço, por fim, aos meus interlocutores, homens e mulheres que se colocaram à disposição para expor suas

opiniões

acerca

do

casamento, e que comigo partilharam parte de suas vidas, suportando pacientemente minhas constantes indagações e "intrometimentos". Sem todas estas pessoas e, tantas outras mais, este esforço não teria sido concretizado.

8

RESUMO

Este trabalho examina o casamento dentro de uma perspectiva heterossexual, tendo como referência os discursos e as práticas sociais de pessoas casadas e de pessoas não casadas, das camadas médias urbanas de Belém. O casamento reflete as inúmeras transformações por que tem passado a nossa sociedade. Estas afetam diretamente a vida privada, pois redimensionam papéis e práticas sociais, dando ao casamento

uma

feição

de

heterogeneidade

e

flexibilidade.

A

coexistência de elementos de modelos diferenciados e até antagônicos entre si e a dificuldade em conciliar o discurso enunciado com a vivência cotidiana são alguns exemplos disso. Homens e mulheres contemporâneos apresentam uma tendência em estruturar suas relações conjugais apoiados em princípios recíprocos de amor, respeito, compreensão, amizade e na consideração de que as diferenças existem, devem ser mantidas e constantemente negociadas pelo casal através do diálogo.

Palavras-chave: casamento, conjugalidade e gênero

9

ABSTRACT

This work examines the wedding from a heterosexual perspective, based upon the discourse and social practices of married and no married people from the middle urban classes of Belém. The wedding reflects the many tranformations suffered by our society. These afect private life directly, as it re-dimension the roles and the social practices by giving to the conjugal relations a kind of heterogeneity and flexibility. The coexistence of differentiated models some of them antagonistic, and the difficulty in conciliate discourse and daily living are some examples of this. The comtemporary men and women show a tendency to structure their conjugal relations based upon reciprocal principles of love, respect, comprehension, friendship, and assuming that the differences do exist and must be maintened and contantly negociated by the couple through dialogue.

Key-words: marriage, conjugality and gender.

10

INTRODUÇÃO

O termo casamento é passível de inúmeras interpretações. Ele nos remete de imediato a vários contextos nos quais as representações e práticas são diferenciadas. Isso ocorre porque todos nós, de alguma forma, temos contato com ou fazemos parte, direta ou indiretamente, de uma relação de casamento. Neste sentido, casamento é um assunto que parece trivial, conhecido de todos. A "trivialidade" do termo lhe confere

um caráter peculiar

na

medida em que, de certo modo, todos somos (ou nos consideramos) "autoridades" no assunto e, portanto, sempre temos algo a dizer, daí porque a palavra casamento, em geral,

vem seguida de um adjetivo

que caracteriza e especifica o tipo de relação de que se está falando o que possibilita a quem investiga a

percepção da diversidade de

representações que a envolve. Neste sentido, fala-se, nas várias traduções verbalizadas pelas pessoas, em geral, e pelo grupo entrevistado, em particular, do casamento como um

termo definidor de uma relação entre duas

pessoas e que se apoia em uma série de princípios , mas que não é encarado como uno à medida em que se desdobra em formas ou tipos variados que são rotuladas ou não pelos indivíduos. Algumas categorias rotuladas pelos entrevistados neste trabalho são:

casamento

legal,

casamento

tradicional,

casamento

civil,

casamento

casamento

casamento

no

formal,

casamento

informal,

moderno,

casamento

religioso,

papel,

casamento

heterossexual,

11

casamento homossexual, casamento por interesse, casamento por conveniência, casamento por amor e casamento de aparência. É interessante observar que a maior parte das categorias citadas são designativas, ou seja, o nome associado à palavra casamento define um tipo de relação, enquanto outras, à exemplo das quatros últimas são descritivas, pois descrevem o tipo de relação existente no matrimônio. Num outro nível de discussão situam-se inúmeros trabalhos de caráter científico que discutem o tema casamento e suas associações, partindo de referenciais de análise diversos e enfocando aspectos, também, os mais variados.1 E existe, ainda, uma outra forma de literatura que trata de questão e inclui romances, contos, bem como um outro tipo de linguagem que envolve o cinema, o teatro e a música, expressões estas que sempre privilegiaram o casamento e, mais amplamente, o amor em suas produções. Estas considerações me parecem importantes na medida em que sinalizam para a abrangência e a complexidade do assunto em questão e, ao mesmo tempo, alertam para a necessidade de uma delimitação precisa de meu interesse específico dentro da vastidão que a temática sugere.

1 Na literatura antropológica e/ou sociológica existem trabalhos clássicos que tratam do casamento num contexto mais amplo à exemplo de Mead, 1935; Mair, 1971; LéviStrauss, 1949 ; assim como estudos mais recentes e específicos como Rose, 1983; Azevedo, 1986; Macfarlane, 1986; Badinter, 1986; D'Incao, 1989; Goldenberg, 1990 e 1991; Vainfas, 1992; Motta-Maués, (1977) 1993; Vaitsman, 1994; Gregori, 1993; Shirer, 1997 , dentre outros.

12

OBJETIVO DO TRABALHO Este estudo se propõe a investigar o casamento dentro de uma perspectiva heterossexual2 e tendo como referência básica os discursos de representantes atuais das camadas médias urbanas da cidade de Belém, no Estado do Pará. Mais especificamente, ele constitui uma análise das idéias que as pessoas entrevistadas têm sobre o tema está, portanto, centrado no seu entendimento verbalizado

e

acerca do

assunto. É importante destacar que assim como estou lidando com integrantes de um contexto específico - camadas médias urbanas de Belém - estou, da mesma forma, tratando do casamento do ponto de vista de brasileiros,

no âmbito da sociedade ocidental da década de

19903. Neste sentido, estou falando, evidentemente, judaico-cristão, sob o qual, seja lá como for, foram estruturadas e que,

enquanto tal,

do

modelo

as relações conjugais

tem sido constantemente

atualizado, sem deixar de continuar sendo uma referência importante e, portanto, muito presente em nossas representações e práticas ligadas ao tema. Neste contexto - e já adiantando algumas de minhas conclusões o casamento de que estou tratando é visto, pelos entrevistados, como uma relação pautada na união formal ou informal de dois parceiros de 2 Optei por trabalhar com o arranjo de casamento heterossexual , embora, evidentemente, existam outras formas que também são designadas como casamento. 3 Embora, em certos casos, este espaço temporal possa ser recuado até a década de 40, uma vez que entrevistei casais que iniciaram a sua vida conjugal em períodos distintos, mais especificamente, nas décadas de 1940 (1) ,1970 (2), 1980 (1) e 1990 (4).

13

sexos diferentes, caracterizada pela coabitação, pelo intercurso sexual, pela presença ou não de filhos e apoiada em princípios de amor, respeito, companheirismo e reciprocidade. Estas são as características que conformam uma espécie de perfil traçado pelo universo pesquisado e cujos elementos serão desdobrados e analisados no decorrer deste trabalho.

O UNIVERSO PESQUISADO Um outro aspecto a ser ressaltado é que estou trabalhando com membros das camadas médias urbanas, o que apresenta algumas especificidades. Gilberto Velho (1987), que há muito anos vem fazendo pesquisas com esse grupo no Brasil, foi um dos primeiros antropólogos a alertar para a questão da pluralidade de visões de mundo e de estilos de vida no interior destas camadas e para a dificuldade em encontrar os elementos que unam e diferenciem, mais precisamente, esses segmentos em relação a outros existentes em nossa sociedade. Este universo tem sido caracterizado por uma heterogeneidade e pela relativa falta de parâmetros que dificulta

sua definição

e sua

diferenciação mais precisas de outros segmentos da sociedade.4 No meu caso,

é exatamente esta característica - a heterogeneidade - que

procurei explorar à medida em que trabalhei com representantes de segmentos variados de um universo comum, o que me permitiu "casar" 4 Devido a estas características, grande parte daqueles que estudam esta camada, optam por alguns segmentos mais homogêneos, à exemplo, dentre outros, de Velho e seu estudo sobre os white collar de Copacabana (1973) ; de Vaitsman (1994) que analisa um grupo que, mesmo tendo sido oriundo de segmentos variados da classe média, desenvolveu uma visão de mundo semelhante; de Goldenberg (1990, 1991) que em seus trabalhos acerca da identidade masculina e feminina elegeu uma elite em termos sócio-econômicos e intelectuais.

14

a idéia da heterogeneidade destas camadas com a realidade da heterogeneidade do grupo pesquisado que, a despeito das diferenças apresentou

visíveis

similaridades no discurso, como será visto

posteriormente. Procurei , desta forma, construir um quadro geral da idéia de casamento5,

só que num

microcosmo formado por

duas categorias

básicas: pessoas casadas e pessoas não-casadas. Desde já devo fazer algumas observações acerca da terminologia usada neste trabalho. Utilizo os termos usados pelos informantes para designar o tipo de casamento

vivenciado,

aqui devidamente agrupados nas duas

categorias citadas, a fim de garantir o entendimento do que está sendo dito. Assim, com relação aos entrevistados casados uso o termo casamento formal para me reportar a relacionamentos marcados por um ritual oficial público, ditado pela instituição a qual ele está afeto, ritual este civil e/ou religioso. Em alguns momentos, tal qual os informantes, faço menção especificamente ao casamento formal/civil, que também pode ser denominado de legal ou jurídico.6 Além do casamento formal,

utilizo o termo casamento informal para me referir

aos casados que não possuem entre si vínculos formais, sejam eles religiosos e/ou civis. Trabalhei,

portanto, com

homens

e

mulheres que se

5 Muitos autores tem trabalhado com a história das idéias e produzido trabalhos de grande importância à exemplo de Ariés: 1975 , Badinter: 1986, Macfarlane: 1986, dentre outros. 6 O Estado Brasileiro considera três modalidades para o casamento monogâmico: religioso (de caráter sacramental), civil (estabelecido por Decreto) e religioso com efeitos civis . Para as leis brasileiras, o casamento válido é o casamento civil, porém foi estabelecido formalmente por lei que os demais casamentos acima citados, geram efeitos de validade civil. Assim, a celebração religiosa de casamento é a única cerimônia com aspecto sacramental e jurídico. (cf. Santiago, 1995)

15

declararam

heterossexuais unidos através do casamento por laços

formais (civil e/ou religioso) ou informais e com pessoas denominadas de não casados7, incluindo as seguintes subcategorias: solteiros, ou seja, pessoas que nunca foram casadas;

separados, pessoas que

desfizeram uma relação informal de casamento; e, divorciados, aqueles que

possuíam

entre

si

vínculos

formais

juridicamente. Todos heterossexuais e

que

foram

rompidos

pertencentes às camadas

médias urbanas da cidade de Belém, totalizando 28 informantes8. A opção por trabalhar com essas duas categorias - casados e não casados - foi intencional por considerar que assim me seria possível ter um universo diversificado,

formado por pessoas que estavam

vivenciando uma relação de casamento, por outras que haviam tido uma experiência neste sentido e por indivíduos que nunca haviam vivenciado

uma

relação

intencional, me permitiu

conjugal.

E,

de

fato,

esta

estabelecer um contraponto

diversidade interessante,

pois do conjunto de entrevistados (casados e não casados) pude obter as suas percepções pessoais acerca do tema que, de modo geral, é conhecido e tratado

por todos, bem como suas percepções e

observações em relação ao casamento de outras pessoas. Dos informantes casados e dos que já haviam sido casados, tive um elemento a mais, expresso através da vivência cotidiana em comum ( ou da referência/memória dela), ou seja, das próprias relações de

7 A referência que faço ao estado civil das categorias entrevistadas diz respeito ao período em que a pesquisa de campo foi realizada. 8 Todas as características do grupo entrevistado serão analisadas em detalhe no capítulo 1 deste estudo.

16

conjugalidade.9 Neste

sentido,

informantes,

além

de

analisar

as

representações

dos

expressas em seus discursos sobre o tema, me propus

também a investigar, na medida do possível, no caso dos entrevistados casados,

as relações de conjugalidade. Digo na medida do possível

porque, dada a natureza do conjunto de meus entrevistados - 28 pessoas oriundas de diferentes segmentos da classe média, residentes em locais diferenciados da cidade ( às vezes, bem distantes entre si) , com ocupações diversificadas - não me seria possível conviver mais permanentemente e, portanto, mais intimamente com os casais que participaram como informantes deste estudo. Optei, assim, por fazer tal "investigação" 1) através da observação mais atenta durante as entrevistas

em que pude ter até um diálogo, uma discussão dessas

relações; e 2) através da observação, talvez mais privilegiada, de muitos momentos de convívio informal com os casais selecionados. Ao longo do trabalho procurei adotar uma perspectiva de análise sincrônica, pois, como já disse anteriormente, minha investigação está

centrada nas falas das pessoas entrevistadas, nas suas percepções e/ou vivências acerca do casamento. Apesar disso, não pude perder de vista a perspectiva temporal diacrônica na medida em que o grupo entrevistado 9 O termo

freqüentemente

fez

referência

a

outros

momentos

conjugalidade que tem sido freqüentemente utilizado na língua

portuguesa, constitui um galicismo (conjugale), ou seja, uma palavra, expressão ou construção afrancesada. Este termo é aqui utilizado para designar a vivência cotidiana do casamento. Sobre sua utilização ver também Goldenberg, 1990 ,Heilborn, 1992 e Vaitsman,1994.

17

históricos específicos, onde as relações de conjugalidade, segundo eles, se estruturavam de forma diversa daquela que eles vivenciaram, ou se encontram vivenciando ou observando hoje.

A CONJUGALIDADE E OS DOMÍNIOS PÚBLICO E PRIVADO É justamente no contexto da conjugalidade, traduzida pelas relações entre os gêneros feminino e masculino vivenciadas e/ou pensadas no âmbito do casamento - e vinculadas aos espaços público e privado em que, necessariamente, ambos se movem, mas cujos marcadores sociais são, como sabemos, presos a cada gênero - que se delineia o debate em torno das esferas pública e privada. Esta discussão constitui um elemento norteador deste trabalho, à medida

em

que

permite

examinar

as

idéias

sobre

reelaborações que o casamento tem sofrido, o que tem

diversas conferido às

relações conjugais um caráter de flexibilidade e heterogeneidade, já referido em outros estudos. As reelaborações a que me refiro, dizem respeito à nova feição que as relações conjugais têm assumido, principalmente a partir da década de 70, sob o impulso do movimento feminista - com a participação mais efetiva das mulheres na esfera pública - onde noções como durabilidade do relacionamento10 e "amor eterno", que é esta durabilidade no limite, já não são encaradas com tanta rigidez, mas se mantêm, ainda que atualizadas, pois ao mesmo tempo em que parte dos entrevistados faz referência à idéia do amor "eterno enquanto dure", esta idéia coexiste com a noção de "amor além 10 Uso o termo relacionamento conforme Giddens (1992: 68), significando um vínculo emocional próximo e continuado com outra pessoa.

18

da vida" que emociona (até às lágrimas) e continua sendo encarada como um ideal. Para melhor situar o debate acerca dos domínios público/privado, tomo emprestado algumas definições de Jeni Vaitsman11 ( 1994) acerca do que seja a família conjugal moderna, expressas em sua obra intitulada "Flexíveis e Plurais. Identidade, casamento e família em circunstâncias pós-modernas". Segundo ela, as normas e os valores que organizavam e legitimavam o casamento e a família conjugal entre segmentos das camadas médias urbanas antes da década de 1950 - e que se apoiavam no casamento heterossexual, legal,

indissolúvel,

monogâmico, com coabitação e filhos e na hierarquia expressa através da figura do homem como pai como provedor financeiro e da mulher como esposa-mãe-dona-de-casa - sofrem modificação a partir deste período dando origem à família conjugal moderna.

11 Em sua obra, esta autora faz uma análise das transformações no casamento e na família das últimas décadas, onde observa um enfraquecimento do modelo típico de família moderna, o que constituiu uma importante referência para o presente estudo.

19

Segundo esta autora, este tipo de família é hierárquica e se desenvolveu juntamente com os processos de industrialização e de modernização. Ela se caracteriza por um grupo de parentesco formado a partir da união baseada na livre escolha e no amor, é constituída pelo casal, podendo incorporar outros agregados,

e se apoia na divisão

sexual do trabalho nas esferas pública ou privada atribuídas segundo o gênero. A divisão sexual do trabalho se baseia na crença em uma "natureza" feminina distinta, complementar e acima de tudo desigual à masculina, na medida em que é incapaz de competir em bases iguais na esfera pública, que por sua vez é mais valorizada que a esfera privada, pois dela provém o status e a renda familiar. Assim, o modelo que vigora até meados da década de 1960 deste século - é bom lembrar: nas camadas médias urbanas - é caracterizado pelo homem como o provedor financeiro e pela mulher desempenhando o papel de dona-de-casa, a eles agregados os filhos, todos vivendo sob o mesmo teto. Neste modelo prevalece a dicotomia entre os papéis público e privado atribuídos a cada um dos gêneros e as relações são reguladas pela

livre

escolha

do

parceiro,

o que

implica

nas

noções

de

individualismo, liberdade e igualitarismo. A partir de meados da década de 60, a expansão das classes médias urbanas e o aumento da participação feminina em diversos setores da sociedade, começam a corroer as bases da família conjugal moderna e ela entra em crise. As relações de gênero começam a se redefinir à medida em que mulheres que haviam sido socializadas para desempenhar seus papéis de esposa-mãe e dona-de-casa, ganham o

20

espaço público e descobrem um novo universo repleto de oportunidades de realização pessoal. Com isso o casamento deixa de ser um fim em si mesmo, abrindo espaço para as aspirações e realizações pessoais femininas. O processo de modernização que envolve a industrialização e a urbanização redimensiona a divisão sexual do trabalho e dá uma nova feição à construção social do gênero. Todas estas mudanças são em parte motivadas em nível mundial pelo movimento feminista que surge na Europa Ocidental a partir do século XVIII e vai se estruturando enquanto movimento, ao longo do século XIX12. No Brasil, apesar deste movimento não ser generalizado em todas as classes, década

o feminismo começa a se esboçar na segunda

do século XX com a reivindicação pelo direito ao voto13

(Goldenberg e Toscano: 1992). O movimento feminista colocou em relevo questões como a emancipação e a liberação sexual das mulheres, a conquista de seu espaço profissional, a defesa da

igualdade entre os sexos, dentre

inúmeras outras (Badinter: 1986), questões essas que acarretaram 12 Durante a segunda metade do século XIX começaram a surgir movimentos organizados na Inglaterra que visavam a conquista do voto feminino. De 1920 a 1928 o direito ao voto feminino foi sendo lentamente reconhecido e em 1928, o Parlamento inglês outorgou o direito de voto a todas as mulheres, em igualdade de condições como os homens. ( Toscano e Goldenberg, 1992: 19-20) 13 No Brasil , de início a luta pelo direito ao voto era uma bandeira defendida pela classe média e pela burguesia. Após a 2ª Guerra Mundial a intensificação das relações internacionais, semeou idéias que, de início , ficaram restritas a pequenos grupos de intelectuais. Foi no bojo destas idéias e refletindo os movimentos que se desenvolviam na Europa, que as idéias feministas começaram a ganhar campo, defendendo uma maior participação da mulher na vida política e nos centros de decisão. Lentamente, as mudanças iam se dando e atingindo diferentes instâncias da sociedade e da família. O direito ao voto é conquistado em 1923 e a criação de uma legislação trabalhista de proteção ao trabalho feminino ocorre em 1932 e 1943, através da consolidação das leis do trabalho. ( idem, p.p. 24-28)

21

diversas modificações na forma de tratar e vivenciar aspectos como a afetividade, a sexualidade, o trabalho profissional e doméstico, a geração e criação dos filhos, entre outros. Ocorreu uma mudança no modelo vigente de casamento e de família que passou a coexistir com outros modelos mais flexíveis e heterogêneos no que se refere à forma como os parceiros pensam e organizam suas relações afetivo-sexuais. Considero que as reelaborações que a família conjugal e, portanto, o casamento têm sofrido - e que, em parte, são influenciadas pela penetração da mulher no espaço público - implicam sem dúvida no redimensionamento das relações entre os gêneros no espaço privado da casa. A saída da mulher do lar criou uma lacuna que precisou ser preenchida o que implicou, por parte do casal, numa nova forma de reorganização deste espaço. Todavia,

me parece que

as

mudanças

ocorridas no espaço público, onde a mulheres e o homens exercem as atribuições profissionais mais diversificadas, não têm acompanhado de maneira equilibrada a

divisão de tarefas no lar, ficando estas ainda

quase que exclusivamente como uma atribuição feminina, o que pode ser visualizado através da utilização - entre segmentos das camadas médias urbanas - da empregada doméstica e/ou de outras mulheres, como é o caso das avós e tias. Assim, segundo penso, há

a

permanência de divisões marcadamente sexuais no espaço privado, enquanto que no espaço público, proclama-se - e, de certo modo, se exige - uma maior igualdade entre os gêneros. Na verdade, acho que, se quisermos falar nestes termos, segundo propôs Vaitsman -

- e

a heterogeneidade tem sido um traço

22

distintivo das relações conjugais atuais, principalmente entre os segmentos das classes médias urbanas, aqui representadas através das pessoas, casadas ou não, que se dispuseram a falar de suas idéias e/ou experiências em torno do casamento e se tornaram assim os interlocutores deste trabalho. Neste sentido, foram referidas, ainda que não necessariamente vivenciadas

pelos

informantes,

inúmeras

modalidades

de

relacionamento, à exemplo de casamentos sem nenhum vínculo formal, seja ele religioso ou civil, casais se considerando casados mas morando em

casas

separadas,

separações

sucessivas

seguidas

de

novos

casamentos, mulheres e homens que assumem seus filhos sem a presença do parceiro ou com novos parceiros, casais que moram juntos mas dormem em quartos separados - o que interferiria até na tradicional referência espacial da casa que comporta um "quarto de casal" - , casais que possuem e admitem entre si o envolvimento com outro(s)

parceiro(s)

e

permanecem

juntos,

casamentos

entre

homossexuais, isso tudo aliado, de certo modo, imbricado com, e/ou encompassado pelo modelo caracterizado como tradicional, são algumas destas reelaborações. Assim, partindo de um conjunto de temas que serão apresentados e analisados em detalhe mais adiante e me valendo das diferenciações que o grupo entrevistado apresenta - escolaridade, idade, estado civil, atividades profissionais, tipo de relacionamento - foi possível estabelecer um interessante contraponto entre: 1) o modelo socialmente dado de casamento

2)

o

modelo

desejado

e

expresso

nas

23

representações/verbalizações que, certamente não é necessariamente pensado de forma unívoca por homens e mulheres, e 3) aquele vivenciado e/ou visualizado nas relações conjugais. É importante ressaltar que estes aspectos aqui elencados

separadamente, se

encontram, tanto nas representações quanto nas

práticas dos

entrevistados e na análise feita, articulados entre si.

GÊNERO E CONJUGALIDADE Para discutir as questões aqui apresentadas - as percepções acerca do

casamento,

as modificações que este vem sofrendo e a

articulação entre estas percepções e mudanças e os espaços privado e público - optei por adotar a perspectiva do gênero como categoria de análise. Este trabalho, portanto, se propõe a realizar uma abordagem relacional do casamento, evitando privilegiar um ou outro dos gêneros e sim procurando articular seus discursos em torno de uma questão que é comum a ambos. Este tipo de enfoque é, pode-se dizer, relativamente recente no contexto internacional (Rosaldo,1974; Rosaldo e Lamphere, 1974; Chodorow, 1974; Ortner, 1974; Rubin, 1975; Strathern, 1980)14 e no Brasil foi colocado na ordem do dia, no final dos anos 80, e mais especialmente a partir de 1987 (Machado; 1992, Heilborn, 1992; Stolcke,1991; Kofes, 1992). Além de ser relativamente recente, esta perspectiva é marcada

14 Ver referências em Lasmar, 1997.

24

por inúmeras controvérsias15. Em recente artigo, Cristiane (1997)

Lasmar16

fazendo uma revisão de parte da literatura antropológica

publicada em língua inglesa nos ano 1970 e 1980, destaca que é possível dividi-la em duas fases. A primeira, referente à década de 70, está centrada na preocupação com a busca das origens e causas da dominação masculina encarada como um fato universal. Neste período, segundo

a

autora,

houve

hegemonia

das

teorias

universalistas

formuladas por Sherry Ortner e Michelle Rosaldo17, onde se fez uso constante

de

oposições

binárias

tais

como

natureza/cultura,

público/privado, perspectiva feminina/perspectiva masculina, com o objetivo de explicar a subordinação social da mulher. A segunda fase,

referida pela autora como a década de 80, é

marcada pelo surgimento de correntes revisionistas e críticas18 que questionam a produção do período anterior e se voltam para "a busca dos processos sociais através dos quais a assimetria sexual se atualiza em sociedades particulares" (p.76). Neste sentido, a preocupação com

15 A categoria analítica gênero vem sendo discutida e estudada por inúmeros autores que apresentam entre si discordância quanto ao seu entendimento. Para maiores detalhes ver Machado (1992), Heilborn (1992) Lasmar (1997). 16 O artigo referido constitui uma versão so primeiro capítulo de sua dissertação de Mestrado em Antropologia Feminista e Etnologia Amazônica: a questão do gênero nas décadas de 70 e 80, defendida em 1996 no Programa de Pos-graduação em Antropologia Social Do Museu Nacional/UFRJ. 17 Sherry Ortner e Michele Rosaldo veicularam suas idéias na coletânea intitulada "Woman, Culture e Society", publicada em 1974. Além deste estudo, Lasmar cita, também, o estudo de Michelle Rosaldo & Louise Lamphere e de Nancy Chodorow, na mesma coletânea, além dos de Karen Sacks (1974), Peggy Sanday (1974), Rayna Reiter (1975), Gayle Rubin (1975), Judith Brown (1975), Susan Brown (1975), Eleanor Leackok (1977),Albert Bacdayan (1977), Alice Schlegel (1977), Shirley Ardener (1975) e Edwin Ardener (1972). 18 Neste grupo, Lasmar cita : Carol MacCormak e Marilyn Strathern , Jean e Maurice Bloch, L. Jordanova, Olivia Harris, Jane Goodal, Gillian Gillison, Michelle Rosaldo), Rosaldo e Jane Collier, todos de 1980; Sherry Ortner e Harriet Whitehead (1981)e Collier e Sylvia Yanagisako (1987)

25

explicações gerais deixou de ser o foco de atenção e a noção de dominação masculina como fato universal perde parte de seu interesse teórico. Em anterior e pontual artigo, publicado em importante coletânea dedicada a discussão sobre gênero no Brasil, Lia Zannota Machado (1992),

discutindo a mesma questão também identifica na chamada

Antropologia feminista uma divisão. Segundo ela, alguns estudos19 defendem a universalização da opressão de sexo/gênero e da assimetria de poder, enquanto outros20 entendem que esta universalização pode ser uma "transposição do pensamento ocidental" ( p. 34), pois os tipos de poder e o prestígio são variados nas sociedades humanas, da mesma forma

que

as

posições

dos

gêneros

podem

ser

distribuídas

diferenciadamente. Os diversos trabalhos citados por ambas as autoras como referentes à primeira fase (Lasmar,1997) ou

vinculados ao primeiro

grupo (Machado, 1992), mostram o comprometimento dos estudiosos do período - em especial das estudiosas, já que o tema tem sido prioritariamente estudado por mulheres (ver notas 17 e 18)

- com a

causa feminista e refletem o diálogo da academia com as intelectuais militantes feministas, no sentido de que a primeira fornecesse uma explicação científica para a dominação masculina no Ocidente (Lasmar,

1997:77). Além disso, ao adotar modelos analíticos dicotômicos estes trabalhos tendem a reforçar a idéia de que as diferenças são explicadas 19 A autora cita Rubin (1975), Ortner (1974), Rosaldo e Lamphere (1974). 20 Neste grupo, a autora cita MacComark e Strathern (1980).

26

pela fisiologia sexual, ou seja, as diferenças biológicas entre os sexos estariam na raiz da subordinação feminina. Neste contexto, as discussões acerca da oposição público/privado e, dentro dela,

a

socialização primária de homens e mulheres era tida como universal e natural. Os estudos sobre papéis sexuais enfocavam a socialização que era dada a meninos e meninas, ressaltando a existência de um discurso que determinava o papel que mais se ajustava a cada um dos sexos. À menina eram atribuídos qualificativos como passividade, docilidade, romantismo e o lar era definido como o seu lugar; ao sexo masculino correspondiam a vocação do poder, a virilidade, a capacidade de tomar iniciativas, assim como o desejo de liberdade e racionalidade. O segundo período mencionado por Lasmar e por Machado, caracteriza-se,

segundo

as mesmas,

pela

crítica

aos

modelos

universalistas e considera de grande importância a visão do "nativo" como objeto de análise. Busca-se, assim, relativizar as categorias de análise e desnaturalizar a categoria mulher, à medida em que, segundo nos diz Machado (1983) ,

“na perspectiva antropológica, os gêneros

feminino e masculino são construções sociais. Assim, não existe a mulher, mas mulheres segundo as variações culturais” (p. 349; grifo meu). Seguindo esta linha de raciocínio, Verena Stolcke (1991) destaca que o conceito de gênero vai além do reducionismo biológico e considera as "relações entre homens e mulheres como formulações culturais resultantes da imposição de significados sociais, culturais e psicológicos sobre identidades sexuais” (p. 103).

27

É interessante observar que esta mudança de paradigmas foi incorporada por algumas autoras do período anterior como Ortner (1981) e Rosaldo (1980) que deixam de lado as dicotomias analíticas características de seus primeiros estudos e passam a considerar que o gênero é

construído a partir de constrangimentos políticos e

econômicos que constituem elementos definidores de relações sociais (Lasmar, 1997; Heilborn, 1992). Neste diapasão, em 1996, Ortner publica um livro chamado "Making Gender. The Politics and Erotics of Culture", uma coletânea de aproximadamente vinte e cinco anos de ensaios publicados a partir da década de 70, e onde faz uma importante introdução em que reflete em torno da questão e afirma: "There are things I probably would not write today, and things I wish I had written differently, but there is something science fiction-like in trying to unwrite and rewrite the essays now, and I could not bring myself to do it". (p.IX) Adotando uma outra perspectiva de análise, Mireya Suárez (1997) problematiza as diferenças de gênero tomando como referência a antropologia clássica e o contexto dos estudos de organização social e parentesco onde a distinção dos sexos e o desempenho social diferenciado

dos

gêneros

são

sempre

referidos,

porém

nunca

problematizados, na medida em que não são considerados como objetos de estudo. Todavia, ela menciona como exceção três trabalhos clássicos que estabelecem uma relação de continuidade entre a Antropologia dos anos de 1930 e os enfoques feministas atuais, e que podem ser considerados como os "precursores" no desenvolvimento de temáticas

28

vinculadas à sexualidade e à construção do gênero (p.37, 40). Bronislaw Malinowski (1929), tematiza as diferenças entre homens e mulheres a partir da análise da sexualidade entre os habitantes das ilhas Trobriand; Gregory Bateson (1965), faz um estudo sobre a construção simbólica da feminilidade e da masculinidade entre o povo Iatmul de Nova Guiné; e Margaret Mead ( 1928,1935), analisa atitudes sociais variadas em sociedades diversas tendo por base as diferenças sexuais. Deste grupo de autores, gostaria de destacar a antropóloga americana Margaret Mead e seu importante estudo sobre a vida íntima de três povos primitivos da Nova Guiné (1988). Seu objetivo era estudar o condicionamento das personalidades sociais dos dois sexos, porém após dois anos de trabalho, ela verificou que o material reunido esclarecia

antes

sobre

as

diferenças

de

temperamento,

consideração de sexo. Assim, em seu estudo diz que

sem

“... não se ocupa

da existência ou não de diferenças reais e universais entre os sexos, sejam qualitativas ou quantitativas. (...) e que ele "não é um tratado sobre os direitos da mulher, nem uma pesquisa das bases do feminismo”(p. 22). Todavia, ao comparar as três tribos que estudou, ela menciona uma nova ótica de análise, qual seja o de "deslocar a atual ênfase extrema sobre os papéis sexuais para uma nova ênfase sobre os seres humanos como personalidades distintas, as quais, homens e mulheres, partilham muitas

das

mesmas

contrastantes

e

diferentes

abordagens

temperamentais da vida”(p.13). É interessante observar que Margaret Mead, mesmo partindo de matrizes teóricas referentes aos estudos de cultura e personalidade

29

(estudo do caráter e do temperamento), já adianta, ou pelo menos anuncia, sem o saber,

quarenta e cinco anos antes – as discussões

acerca do conceito de gênero,

pelo menos no Brasil, só iniciam no final

dos anos 80 - o dado crucial para a desnaturalização do conceito (mulher para gênero), que é a ênfase ou o acento nas relações e não em qualquer dos sexos particularmente. Após o surgimento do conceito de “gênero”, o desenvolvimento da teoria de gênero não tem se dado sem a presença de desacordos, como já foi mencionado anteriormente. Stolcke (1991), considera que apesar da teorização acerca gênero, a teoria feminista ainda não forneceu um para sua análise, e além disso não

do

modelo inconteste

existe consenso sobre o próprio

conceito em si. Adriana Piscitelli

(1997), por sua vez, ressalta que, no Brasil, é

bem recente a consideração de que este conceito constitua um avanço teórico significativo em relação aos estudos anteriores. Assim, apesar do interesse no desenvolvimento de pesquisas e estudos nesta área, o conceito passa por um "processo de desconstrução" e sua viabilidade analítica é questionada por algumas teóricas feministas (p. 49). Machado (1992), enfatiza ainda que, em se tratando do Brasil, esta questão é colocada na ordem do dia, no final dos anos 80, e mais especialmente a partir de 1987 "na academia das Ciências Sociais e na academia dos estudos de Literatura e crítica literária, postula-se a primazia dos estudos de gênero sobre os estudos de mulher e a 'superação' dos estudos de papéis sexuais pelos de gênero"

(p. 26).

30

Recompondo a trajetória, pode-se dizer que, antes desse período, os estudos eram referentes aos papéis sexuais; mais tarde, em parte impulsionados pelo movimento feminista, surgiram os estudos sobre a situação da mulher ou sobre a "condição" feminina, que implicavam numa abordagem que privilegiava a figura feminina em detrimento da figura masculina; por volta de 1987, surgem inúmeros trabalhos que procuram adotar uma ótica relacional, o que implica em analisar, em conjunto, os sujeitos feminino e masculino. No entanto, o que se observa, é que nem todos ou a maioria dos trabalhos que utilizam este rótulo têm, de fato, incorporado a perspectiva da relação que a categoria gênero exige. Tratando desse tema, Maria Luiza Heilborn (1992), faz uma importante reflexão em torno da utilização do conceito de gênero que, segundo ela, não tem significado o alcance de um patamar teórico mais elaborado como parecia indicar, ao praticamente, se substituir por ele a categoria mulher. Segundo me parece, podemos

atribuir estas dificuldades na

utilização do conceito de gênero, apontadas por Heilborn, em parte, ao fato de seu surgimento e utilização ainda ser muito recente – a partir de meados da década de 70 - o que dificulta o entendimento claro do que ele pretende de fato envolver. Suely Kofes (1992), refletindo sobre a questão pergunta: “a categoria gênero permitiria uma substituição, isto é, não se fala mais em mulheres, e substitui-se esta categoria por gênero? Ao se propor pesquisar gênero há que necessariamente ter como pesquisadores homens e mulheres e recortar necessariamente objetos

31

masculinos e femininos? Se se reconhece que,

teoricamente, mulher é

uma categoria de gênero (‘gendered’), seriam equivalentes e, portanto, substituíveis, ou há distinções que pedem a manutenção do uso distinto? No segundo caso, qual a disjunção, e qual a conjunção possível?” (p.20) . Em 1994, escrevi um trabalho intitulado “Antropologia, Mulher e Gênero: alguns olhares, um olhar - Uma revisão de trabalhos sobre mulher e gênero21, no qual produção antropológica

realizei um levantamento parcial da

brasileira existente acerca

do gênero, no

período de 1985 a 199222. Através deste estudo, pude constatar que muitos dos trabalhos antropológicos analisados usavam a expressão "relações de gênero" como definidora de sua identidade teórica, sem que isso significasse a inclusão da dimensão relacional intrínseca a esta análise. Verifiquei, assim, que a mudança na linha teórica não havia sido assimilada de forma homogênea pelas pesquisas realizadas o que ocasionava mais uma mudança de rótulo aliada, ao mesmo tempo, à manutenção dos enfoques dados anteriormente (tradicionalmente) aos estudos.

No caso do presente estudo, procurei dar um enfoque relacional no sentido de articular as falas dos entrevistados e deslocar o eixo de análise da figura de um ou de outro dos gêneros. Busquei, assim, procurei estabelecer um diálogo em torno do casamento a partir das falas de mulheres e homens, procurando situá-los dentro de um 21 Amaral Gonçalves, Telma. Trabalho de Conclusão do Curso de Especialização em Teoria Antropológica, UFPa, 1994. 22 Escolhi este período porque foi a partir da década de 80 que, no Brasil, iniciaramse os estudos sobre gênero.

32

universo comum, onde as relações de conjugalidade são constituídas e vividas. Isto significa

dizer

que, apesar de vigorar

um modelo

masculino de sociedade - e mesmo se considerando a hierarquia de poder que, durante longo período, tornou invisível ( e ainda torna) a presença da mulher ( Perrot,1988) - homens e mulheres partilharam/partilham sua construção e o vivem em conjunto, à base da percepção comum que têm dos sexos.

O trabalho está dividido em quatro capítulos. O primeiro deles intitulado

"O Trabalho de Campo: Reflexões e Métodos" faz uma

reflexão/discussão em torno da pesquisa de campo antropológica e narra em linhas gerais o processo de realização do trabalho empírico, iniciando com a escolha do tema e apresentando, em seguida, a metodologia utilizada e o modo de exposição dos dados. O segundo, intitulado "Casamento: Identificações e ' Cálculos' " trata da definição de casamento para o grupo entrevistado, colocando a questão em dois níveis: como o ato em si que envolve vários termos que definem e descrevem a relação

e o entendimento do casamento como

uma relação que se traduz pela vivência do cotidiano. Um outro item abordado é o "cálculo" acerca das vantagens e desvantagens do casamento. O terceiro capítulo, que denominei de "Casamento: Requisitos para Bem Casar e para Bem Viver ... Casado", aborda os requisitos necessários ao casamento, dando ênfase às várias concepções de amor

33

existentes e ao amor e o respeito recíprocos encarados como a base do relacionamento conjugal. Por fim, procuro estabelecer um paralelo entre dois modelos de casamento mencionados pelos entrevistados: o "moderno" e o "tradicional", fazendo referência aos pontos positivos e negativos associados a eles pelo informantes. O quarto capítulo, denominado "Cenas de Casamento", trata de quatro grupos de temas que dizem respeito, mais de perto, às relações cotidianas do casal entre si ou como membros de seus grupos de parentesco (consangüíneo ou afim), e até de fora deles. Os temas abordados, sempre a partir do casamento, são: família, onde é tratada a questão da relação com os parentes e afins, o planejamento familiar e os filhos; conflitos, onde analiso as crises conjugais , a separação e a individualidade; fidelidade, onde abordo as relações extraconjugais e a questão sexual; e

trabalho doméstico, com uma discussão acerca da

divisão de tarefas no lar entre os parceiros. Finalmente, à guisa de conclusão, faço um retomada do que foi discutido ao longo dos capítulos anteriores e abordo alguns temas pontuais colocados pelos trabalho num contexto maior de discussão, com o objetivo de responder a questão título deste estudo:

" E o

casamento, como vai?". CAPÍTULO I O TRABALHO DE CAMPO: REFLEXÕES E MÉTODOS OU, DE COMO UM CHÁ-DE-PANELA "VIRA" UMA TESE

Neste capítulo, partindo da consideração de meu próprio

34

trabalho, me proponho a desenvolver uma reflexão/discussão em torno da pesquisa de campo antropológica tendo assim como referência os métodos por mim utilizados no levantamento dos dados que tornaram possível a realização deste estudo. Este esforço me parece fundamental na medida em que, sendo a etnografia um recurso antropológico por excelência - sem desconhecer o debate que seu uso e escopo tem suscitado - discuti-la implica em repensar a própria Antropologia naquilo que ela tem de mais específico. Ainda que não pretenda, evidentemente, desenvolver aqui essa tarefa, procuro dar a dimensão do trabalho de campo realizado, do material coletado e de todo o contexto que envolveu a pesquisa que, mesmo não tendo sido feita nos moldes clássicos - o que implicaria num afastamento do meu próprio grupo e num convívio mais intenso com o grupo pesquisado - utilizou os parâmetros e o instrumental peculiares à pesquisa tradicional, o que, de certo modo, a aproxima desta. O capítulo se situações

específicas

divide em três itens cada um deles abordando relacionadas

à

escolha

do

tema

e

seus

desdobramentos, às categorias de indivíduos entrevistados e às próprias entrevistas e observações realizadas.

A) O PONTO DE PARTIDA E SEUS DESDOBRAMENTOS O interesse pelo tema estudado neste trabalho, surgiu, na verdade,

há alguns anos atrás, como resultado de observações e

reflexões pessoais relacionadas ao cotidiano de casais com os quais convivia proximamente e de outros às voltas com os preparativos para

35

seu ritual de casamento

23

.

Neste sentido, um dos fatos que mais me chamou atenção àquela época foi um "Chá de Panela" a que compareci cuja decoração composta por inúmeros desenhos de utensílios domésticos afixados na parede do salão - e brincadeiras realizadas reforçavam, enfaticamente, a idéia de que o espaço da casa era exclusivamente feminino e que cabia à mulher a sua organização e manutenção , o que não combinava em nada com a postura combativa que a anfitriã e homenageada a quem se oferecia

o

Chá,

assumia

no

curso

de

Ciências

Sociais

que

freqüentávamos juntas na UFPa. Em uma interessante e peculiar análise do chá-de-panela como um rito social, Roque de Barros Laraia e Zaira Batista de Mello (1980), consideram que este ritual tem sofrido inúmeras alterações a ponto de tornar-se um "rito marcado por fortes procedimentos agressivos, dotados de conotações simbólicas bem manifestas" (p.140). Segundo estes autores, uma de suas características é a realização de inúmeras brincadeiras de sentido ambíguo e, freqüentemente, de conotação sexual, cujo alvo principal é a noiva, que está sujeita a pagar "prendas" a cada erro cometido. Isto, de fato, ocorreu no chá a que compareci. Foi realizada, entre outras,

a tradicional brincadeira da adivinhação do

conteúdo dos embrulhos de presente recebidos e a cada erro a noiva era maquiada e "enfeitada" de maneira ridícula com papel crepon, numa representação

exagerada

da

vestimenta

de

uma

dona-de-casa

tradicional com laço no cabelo e avental, numa clara associação com a 23 No período mencionado, eu mesma estava às vésperas de meu próprio casamento e, talvez por isso, muito preocupada e atenta a tudo que se relacionava ao tema.

36

realização de atividades domésticas que ela iria assumir após o casamento. Além disso, também me “incomodavam” alguns elementos do ritual de casamento como a utilização das alianças, a troca de nome da mulher (acrescentando ao seu o nome de família do marido) e, especificamente, o ritual religioso marcado por inúmeras simbologias. A observação destas situações do cotidiano provocava em mim uma série de reflexões acerca dos nossos discursos sobre o casamento, pois a realização dos rituais que envolvem os preparativos e a cerimônia em si - ela própria um ritual bastante expressivo - a meu ver não mais se coadunavam com aquilo que dizíamos e esperávamos de uma relação de casamento. Neste sentido, me parecia haver uma oposição entre o discurso (público) e a prática (privada), o que me conduziu ao questionamento sobre o papel e as atribuições de cada um dos cônjuges nestas duas esferas. Se por um lado, observava que cada vez mais as mulheres conquistavam seu espaço profissional fora do âmbito doméstico e partilhavam com o homem espaços

que há algum tempo atrás,

especificamente antes da década de 1950,

eram exclusividade deste,

por outro, observava que parecia haver uma manutenção na divisão rígida de tarefas e, portanto, de papéis no espaço privado da casa, continuando a mulher a assumir as mesmas responsabilidades

de

antes como se estas fossem, realmente, atribuições exclusivamente femininas. Estas reflexões sofreram continuidade e, como já foi dito, em

37

1994, escrevi um trabalho acerca da produção antropológica existente sobre a questão de gênero (ver introdução), que constituiu um esforço sobremaneira importante, pois

me possibilitou o acesso a uma

literatura específica através da qual tive contato com uma discussão importante sobre a questão de gênero e, a partir da qual, vislumbrei, pela primeira vez, a possibilidade de realizar uma abordagem relacional das relações conjugais. Em 1994, já como aluna do Mestrado24, elaborei um pré-projeto onde esbocei o meu interesse em investigar o cotidiano das relações de conjugalidade, partindo das representações e práticas sociais de casais pertencentes

às

camadas

médias

urbanas

intelectualizadas

-

especificamente, pessoas com nível de escolaridade superior - através de seus discursos acerca do casamento, bem como de observações a serem feitas durante a pesquisa. Até este momento tinha intenção de trabalhar apenas com pessoas casadas como de fato o fiz, para esse esboço de projeto, tendo entrevistado três casais. Posteriormente, redimensionei a proposta inicial e optei por trabalhar não apenas com casados, mas também com pessoas que denominei de não casadas - o que incluiu solteiros, separados e divorciados, como já foi mencionado anteriormente - o que, evidentemente implicou numa mudança no eixo de investigação, ou seja, já não iria mais investigar o cotidiano propriamente dito das relações de casamento e sim as concepções das pessoas entrevistadas

24 Neste período, estava cursando a disciplina Métodos e Técnicas de Pesquisa, na qual a elaboração de um Pré-projeto tinha caráter obrigatório .

38

acerca do casamento25 - o que, na verdade, não deixa de incluí-lo.

B) SOBRE AS CATEGORIAS ENTREVISTADAS A escolha dos entrevistados obedeceu a alguns critérios. Trabalhei com 28 pessoas pertencentes a segmentos variados das camadas médias urbanas da cidade de Belém, agrupadas em duas categorias básicas: casados (formalmente ou não) e não casados, com tempo de casamento diversificado, todas do universo heterossexual, de gerações26 diferentes, e portanto, com faixa etária variada e com diversos graus de escolaridade. O procedimento que adotei foi selecionar inicialmente pessoas de minha própria convivência, com as quais eu tinha um certo grau de intimidade que, posteriormente, poderiam me indicar outras pessoas, como de fato aconteceu. Optei pelo critério da intimidade27 por ser este, de certo

modo, comum e produtivo, em trabalhos desta

natureza,

sua utilização na seleção de informantes28 à medida em que a 25 Esta mudança se deu basicamente pelo fato de eu achar que trabalhar com as percepções de casamento abriria um leque maior de possibilidades não só no que se refere à seleção dos entrevistados, como à própria realização do estudo. Além disso, enfrentei inúmeras recusas por parte dos segmentos mais "intelectualizados" no que se refere a aceitação para participar das entrevistas o que , sem dúvida, me desestimulou e, ao mesmo tempo, me impulsionou a dar um novo rumo ao trabalho. 26 Utilizo a definição de geração da mesma forma que Vaitsman (1994) que, por sua vez, a toma emprestado de Ryder (1965) e que envolve "pessoas que apresentam características comuns por terem nascido numa mesma época e experimentado um mesmo acontecimento dentro de um determinado intervalo de tempo." (p.5, nota 31) 27 A questão da intimidade é aqui colocada no sentido da liberdade de aproximação e de abordagem com as categorias entrevistadas. Ver discussão mais ampla em Giddens (1992) e Rezende ( 1995) . 28 Sobre este aspecto, Goldenberg , em seu estudo sobre a construção social da identidade masculina (1991) e em seu trabalho sobre a identidade da "outra" ( a amante do homem casado), (1990) age dessa forma; e Vaitsman (1994) em sua análise do casamento e da família conjugal recorre a conhecidos para que estes indiquem pessoas do seu conhecimento para serem entrevistados e estes, por sua vez, indicam outros. A intimidade cria expectativa por parte do investigador de que o informante, sentindo-se à vontade em sua presença, forneça os dados desejados com mais facilidade, o que pode acontecer ou não.

39

intimidade, em tese,

possibilita às pessoas maior naturalidade para

falar do tema - o que não aconteceu necessariamente. É interessante analisar a equação intimidade x distanciamento, pois tanto um quanto outro elemento da equação podem facilitar ou dificultar o trabalho. A intimidade pode

facilitar o contato à medida

em que, a rigor, coloca o entrevistador e o entrevistado mais à vontade. No entanto, quanto maior for o grau de intimidade maior terá que ser, de certo modo, a transparência nos discursos dos informantes, pois eles terão que

necessariamente confirmar aquilo que já se conhece ou ir

além do que é familiar realizando um aprofundamento, o que implica em expor mais as suas opiniões e, em última instância, "expor-se" mais, o que pode constituir um entrave. Por outro lado,

o distanciamento

pode gerar uma certa inibição e um clima pouco à vontade, mas deixa os informantes mais livres para revelar apenas aquilo que desejarem , se "expondo" menos. O trabalho de Cláudia Rezende (1995) sobre amizade e trabalho de campo em Londres é bastante sugestivo nesse aspecto. Entre o grupo entrevistado, o amigo é definido como aquele com quem a pessoa pode ser "ela mesma" (someone you can be yourself with) e a possibilidade de revelação do "verdadeiro self"

é um elemento

considerado importante nas relações de amizade. Ao se referirem ao "eu verdadeiro" que só é revelado a algumas pessoas e somente em certos momentos e contextos, os ingleses revelam, também, a existência de um "eu diferente" tido como pouco verdadeiro e até mesmo como falso, um

40

eu "educado, e polido, controlado e contido" (p.15) Na fase inicial da amizade, segundo a autora,

existe uma

situação de ambivalência entre o ideal - valorizado e desejado - de se mostrar verdadeiro aos amigos e o medo do julgamento que os outros possam fazer do "verdadeiro self", cuja revelação sempre suscita ansiedade, devido a preocupação constante com a privacidade e a individualidade de cada pessoa. Neste sentido,

a amizade é uma

relação onde está sempre em jogo a negociação de limites. O tempo e a confiança adquiridas, aliados a idéia de reciprocidade vão fazendo com que, lentamente, estes limites sejam reduzidos. Durante a realização da pesquisa de campo pude constatar algumas das situações aqui levantadas. Algumas pessoas que eu acreditava que não colocariam nenhum obstáculo a serem entrevistadas - exatamente devido ao grau de intimidade que existia entre nós - se mostraram bastante reticentes em falar acerca do casamento e de expor suas opiniões sobre o tema; por outro lado, algumas pessoas que eu é que me mostrava muito reticente em convidar para serem entrevistadas, pelo motivo inverso, se mostraram, ao contrário, bastante dispostas a conversar sobre o tema proposto. Devo dizer que isso não constituiu uma regra e que,

de modo geral, os informantes forneceram as

informações que eu precisava para realizar este trabalho. Os limites, de fato, são definidos e flexibilizados de acordo com o aspecto abordado, com o contexto em que se dá o contato e com as características pessoais do entrevistado e do pesquisador na situação da pesquisa. Em relação a este último, não se pode perder de vista que por maior que

41

seja o nível de interação com seus interlocutores, ambas as categorias antropólogo e interlocutor - estão cientes do papel que desempenham durante as entrevistas e em todo o decorrer do trabalho, qual seja o de coletar informações e o de fornecê-las, respectivamente. Neste sentido, conforme salientou Rezende (1995), por maior que seja o nosso esforço em abafar o papel de pesquisador, o grupo entrevistado sempre nos verá, principalmente, como um antropólogo. A grande maioria dos entrevistados

eram pessoas que eu

conhecia anteriormente e com as quais mantinha contato esporádico ou freqüente, seja no ambiente de trabalho, ou familiar, ou por fazerem parte do meu grupo de relações sociais mais amplas. Eu os abordei diretamente, explicando os objetivos da pesquisa e os convidando para serem meus informantes. Outras pessoas me foram apontadas por conhecidos e me eram completamente estranhas, o que aconteceu, exclusivamente, no grupo dos casados. Dois casais foram indicados por uma pessoa do meu ambiente de trabalho. Estes casais apresentavam características interessantes: um deles tinha 50 anos de casamento e o outro estava casado pela terceira vez. Um outro casal tem uma história peculiar:

eu

os

via

constantemente

juntos

em

locais

públicos

(shoppings, teatros e restaurantes) e eles sempre me chamavam a atenção devido à aparência29, pelo fato de andarem de mãos dadas e com um "ar" de jovens namorados, por parecerem muito atenciosos e carinhosos um com o outro e, acima de tudo, por estarem seguramente 29 A maneira simples de se vestir da esposa, aliada ao rosto do marido adornado por uma grande barba e a todas as demais características que serão citadas a seguir , certamente os tornava um casal "exótico".

42

acima da faixa de 50 anos e, portanto, não se enquadrarem nos padrões estabelecidos e permitidos socialmente que restringem a expressão pública da afetividade a uma faixa etária mais jovem30. Posteriormente, vim a saber que outras pessoas de meu relacionamento também já os haviam notado pelos mesmos motivos e fui informada de que eles, talvez por isso,

já haviam sido entrevistados

na televisão numa

matéria sobre o

Dia dos Namorados. Esta informação aguçou ainda

mais o meu interesse em entrevistá-los e depois de algumas tentativas, acabei por descobrir um contato telefônico, através do qual os abordei e consegui sua aquiescência para participação na pesquisa. Um outro dado que considero importante é que com os demais casados , o meu vínculo era sempre com as mulheres e foi através delas que eu consegui a aceitação dos maridos para participar do trabalho. Acho relevante dizer que outras pessoas foram contactadas mas não chegaram a ser entrevistadas devido a três motivos básicos: não disponibilidade de tempo dos entrevistados (06), que impedia que as entrevistas marcadas fossem realizadas; recusa pessoal, sob a alegação de que não gostavam de tratar do assunto (02) e recusa dos maridos no caso de pessoas casadas (05). Neste último caso, as mulheres diziam que não havia nenhum problema da parte delas, mas quando

30 Os meios de comunicação de massa reforçam a idéia de que uma vez ultrapassada uma determinada faixa etária, o indivíduo não mais é capaz de vivenciar e expressar a sua sexualidade, fato este bastante reforçado pelas populares telenovelas cujos papéis principais, em sua grande maioria, são reservados a homens e mulheres jovens enquadrados num padrão de beleza estabelecido socialmente. E, quando o "par romântico" é formado por atores de mais idade, as cenas de amor, em geral, se restringem a comedidos beijos, quase sempre na face. Devo dizer que, mesmo tendo um olhar treinado antropologicamente, e portanto crítico em relação às diferenças, mas devido ao fato de estar inserida neste contexto e compartilhar, de certo modo, destas visões, não pude me furtar de olhá-los como exóticos.

43

conversavam com os homens (seus maridos) eles se recusavam a participar. Houve um caso específico em que uma entrevista foi acertada e deixei claro que

os dois deveriam estar presentes, mas

quando cheguei, no horário aprazado, o marido havia se ausentado e tive que entrevistar somente a esposa e depois de novas tentativas frustradas de contato, acabei por achar conveniente não insistir mais, ficando, assim, com os dados incompletos o que me impediu de utilizálos neste trabalho. Uma outra situação ocorreu, também, com um casal. Eu havia contactado com a esposa e ela aceitou, afirmando que seu marido também aceitaria. Eu pedi a ela que conversasse com ele, porque os maridos eram os que mais recusavam-se a participar. Quando retornei a ligação para saber a resposta, ela me disse que a princípio ele não havia aceitado, mas quando ela fez referência ao que eu havia dito, ele cedeu.

No entanto, no dia da entrevista ela ligou-me tentando

desmarcar porque ele não iria poder participar. Como não foi possível acertar outro horário, ficou combinado que retardaríamos o início da entrevista , eu começaria com ela e ele chegaria um pouco depois. Assim aconteceu, só que ele chegou depois de duas horas de entrevista e quando nos viu disse: "vocês ainda estão aí?". Frase esta que pareceu significar que ele havia, ainda que inconscientemente, retardado sua chegada a fim de não participar da conversa. Apesar disso, e como de fato não havíamos concluído a entrevista, ele participou ativamente da parte final da mesma. Neste contexto, em alguns casos em que se alegava "falta de

44

tempo", eu interpretava que por trás da desculpa dada havia uma certa resistência das pessoas em tratar do assunto. Devo ressaltar que a maioria das recusas se deu por parte dos homens casados e, dentre estes, de membros pertencentes a segmentos mais intelectualizados do grupo. Neste sentido, comparativamente, avalio que foi mais acessível conseguir informantes da categoria não casados, onde as recusas, apesar de ocorrerem, foram em número bastante reduzido. Apesar disso, devo dizer que foi, de certo modo, difícil selecionar os informantes pois houve muita resistência por parte de alguns dos prováveis entrevistados, fato este que, em certos momentos, me desestimulou para a realização do trabalho. Desse modo, optei por trabalhar com os que já haviam aquiescido em participar das entrevistas, por considerar que este grupo era representativo enquanto segmento da camada social que eu estava interessada em investigar31. Desta forma, entrevistei 28 pessoas assim distribuídas: sete mulheres não casadas, dentre as quais cinco são solteiras, uma é separada e uma é divorciada; cinco homens não casados, sendo três solteiros, um separado e um divorciado; oito casais, sendo que destes, seis são casados legalmente, três no civil e no religioso e três somente no civil; e dois vivem juntos sem nenhum vínculo legal32. Dos casados, somente três pessoas têm mais de uma experiência de casamento, um dos homens vive o terceiro casamento, outro homem a segunda 31 Tive como referência alguns trabalhos recentes que investigam o mesmo universo que eu e abordam questões afins, tais como Goldenberg (1990 e 1991) que entrevistou oito e nove pessoas, respectivamente, Heilborn 1992) que trabalhou com um grupo de 32 entrevistados e Vaitsman (1994) que em sua tese de Doutoramento trabalhou com 22 informantes. 32 Todos os dados referentes aos informantes dizem respeito ao período em que eles foram entrevistados, aspecto este que é melhor explicitado no item c deste capítulo.

45

experiência como casado e uma das mulheres está casada pela segunda vez. A tabela a seguir facilita a visualização: TABELA 01 - CATEGORIAS ENTREVISTADAS CASADOS Formalmente

Não formalmente

12 Total

NÃO CASADOS

04

Homens

Mulheres

SOLTEIROS

SEPARADOS

DIVORCIADOS

SOLTEIRAS

SEPARADAS

DIVORCIADAS

03

01

02

05

01

01

16

05

07

A escolaridade dos entrevistados variou do 1º ao 3º graus, sendo que no grupo dos casados houve uma equivalência entre os parceiros, com exceção de um casal em que a mulher possuía apenas o 1º grau, enquanto que o marido tinha o 2º grau. O grupo dos casados ficou assim constituído: um casal possuía o 1º grau , cinco casais o 2º grau e dez o 3º grau, havendo prevalência da escolaridade superior. Entre as mulheres não casadas, uma possuía o 1º grau, quatro concluíram o 2º grau e duas tinham nível superior, tendo prevalecido, portanto, o 2º grau. Entre os homens, dois possuíam o 2º grau e os três restantes são de nível escolar superior. Vemos , assim, que dentre os 26 informantes, 15 tem escolaridade superior, 11 possuem o 2º grau e 02 têm o 1º grau, como vemos a seguir.

TABELA 02 - ESCOLARIDADE ESCOLARIDADE

CASADOS

NÃO CASADOS

TOTAL

46

HOMENS

MULHERES

1º GRAU

01

-

01

02

2º GRAU

05

02

04

11

3º GRAU

10

03

02

15

A idade dos informantes é variada porque optei por trabalhar com gerações diferentes e, também, com casais cujo tempo de casado era diversificado. A tabela a seguir ilustra este dado.

47

TABELA 03 - IDADE Nº

CASADOS

NÃO CASADOS

ESPOSO

ESPOSA

HOMENS

MULHERES

01

34

25

28

27

02

30

34

29

30

03

32

34

31

33

04

28

32

39

36

05

48

47

49

37

06

53

62

-

55

07

64

42

-

-

08

76

73

-

-

Como pode ser visto existe uma certa equivalência entre as idades dos parceiros, com exceção dos seguintes casos: no casal 01, o marido é nove anos mais velho que a esposa; no casal 06 a situação é inversa, ou seja, a mulher é 9 anos mais velha que seu parceiro; e, no casal 07 o marido é 22 anos mais velho que a esposa. No grupo entrevistado, a maior concentração de informantes pertence a faixa etária média de 30 anos com quinze entrevistados, seguida da faixa etária de 20 anos com cinco entrevistados e da de 40 anos, com quatro entrevistados, tendo por último o grupo de 50, 60 e 70 anos, cada um com dois entrevistados. Por estar interessada em analisar as concepções de casamento de pessoas com experiência de vida diferentes, procurei no grupo dos casados selecionar informantes cujo tempo de casado fosse diversificado para que assim eu pudesse contrapor as opiniões, verificando as semelhanças e as diferenças. Assim, entrevistei oito casais cujo tempo

48

de casados era: 1ano, 6 anos, 7anos, 16 anos, 18 anos, 24 anos e 50 anos. Um último aspecto a ser citado no que se refere à seleção dos entrevistados é a atividade profissional. Grande parte do grupo, ao todo 17 pessoas exercem suas atividades no funcionalismo público, sendo que nove são professores, um de 1º grau e oito de 3º grau. Os demais informantes

atuam

nas

áreas do

serviço

privado

(03)

ou

são

trabalhadores autônomos (05) e um (01) estudante universitário. Dos 28 entrevistados, cinco já estavam aposentados e somente duas mulheres não exerciam atividades profissionais: uma delas havia deixado o emprego ao casar e a outra

solteira, nunca havia exercido

nenhuma atividade remunerada e dependia dos pais. Os dados apresentados acima estão dispostos na tabela a seguir:

49

TABELA 04 - ATIVIDADE PROFISSIONAL CASADOS

NÃO CASADOS

ESPOSO

ESPOSA

HOMENS

MULHERES

Trabalhador autônomo

Professora de 3º grau

Professor de 1º grau

Funcionária Pública

Funcionário de empresa privada

Funcionária Pública

Estudante universitário

Não exerce atividade profissional

Trabalhador autônomo

Professora de 3º Funcionário de grau empresa privada Funcionário Público

Funcionária Pública

Trabalhador autônomo

Trabalhadora autônoma

Professora de 3º grau

aposentado

aposentada

aposentado

Não exerce atividade profissional

-

Trabalhadora autônoma

Professor de 3º grau

Funcionária Pública

-

aposentada

aposentado

aposentada

-

-

Funcionário de Professora de 3º empresa privada grau

Apresento a seguir o conjunto dos informantes, classificados segundo

características

subdivisões internas (1a,

afins

em

três

grupos

que

apresentam

1b; 2a, 2b, 2c; 3a, 3b). Procurei agrupá-los

com o objetivo de dar ao leitor um visão do conjunto dos entrevistados e das inter-relações que existem entre eles. O grupo dos casados foi dividido em dois e nele o critério de separação foi o fato de pertencerem a gerações diferentes e, desta forma, apresentarem visões de mundo, até certo ponto, bastante diferenciadas. Os não casados foram

50

inicialmente agrupados,

de acordo com o gênero e, em seguida, em

duas categorias: solteiros, separados e divorciados. A partir de agora, utilizo nomes fictícios para me referir a cada um dos entrevistados. O

grupo 1a

é composto pelos 4 casais mais jovens que

denominei de Ana/Aldo, Aline/Amauri,

Arlete/Alfredo e Alice/Átila.

Eles se encontram na faixa de 25 a 34 anos e possuem entre 1 e 7 anos de casamento. Todos os parceiros têm filhos em comum33, são independentes financeiramente, exercem atividades remuneradas e possuem escolaridade superior, com exceção de Aline e Amauri, ele com o 2º grau e ela cursando a Universidade. Quanto ao tipo de casamento, Arlete/Alfredo e Alice/Átila são casados formalmente no civil, Aline e Amauri o

pretendem casar

divórcio

dela que,

no

civil,

assim

que for

homologado

vindo de um relacionamento anterior,

está

casada pela segunda vez34 e Ana/Aldo - ele sendo oriundo de um

primeiro casamento - são os únicos do grupo que acham desnecessário qualquer vínculo formal, apesar de não descartarem a possibilidade de 33 Apesar de alguns informantes casados serem oriundos de casamentos anteriores e terem filhos destes relacionamentos, os dados apresentados neste trabalho dizem respeito a situação conjugal dos entrevistados durante a realização das entrevistas, o que não constituiu impedimento para que circunstancialmente viesse a mencionar algum outro dado considerado relevante para a análise. 34 Sobre este casal considero importante mencionar alguns fatos. Aline vem de um primeiro casamento que durou 4 anos, de 1981 a 1985, do qual tem uma filha de 13 anos, que mora com ela. Depois de separada, Aline voltou a residir com os pais e teve um relacionamento de namoro que durou de 86 a 88. Em 1989, ela e Amauri se conheceram , namoraram um ano e meio e resolveram se casar informalmente em seguida, no ano de 1990. Estão juntos há seis anos, e pretendem realizar uma cerimônia civil assim que o divórcio dela for homologado. Ela não faz questão do casamento formal, porém a família dele, que é muito católica, faz e ele próprio também. Sobre este aspecto, acho interessante citar o desejo de Amauri em realizar a formalização da união, pois apesar de ter se afirmado casado ao longo das entrevistas em certo momento ele diz: " ... eu quero casar, ainda não casei ...", numa referência clara à idéia do casamento como o ato em si, que ainda não ocorreu, que difere da idéia do casamento como uma relação cotidiana, o que para eles já existe há seis anos.

51

casarem no civil se for para beneficiar a filha que possuem. Este grupo pertence a um geração mais nova que o grupo 1b ( casais com idade acima de 42 anos) e, provavelmente, foi socializado de forma diferente, daí algumas características que lhes são peculiares. Em seus discursos está expressa a extrema importância que dão à sua própria realização profissional e a necessidade de conciliar o trabalho com a vida familiar; mostram-se

bastante críticos em relação ao modelo tradicional e

hierárquico de casamento e de família vivenciado por seus pais e defendem uma postura igualitária, pautada no diálogo, no respeito e no amor. Consideram-se

bastante flexíveis em relação às diversas

modalidades de casamento e não acham obrigatória a existência de vínculos formais entre os parceiros, pois estes, segundo eles, não garantem nem a durabilidade, nem o êxito do casamento, apesar da maioria deles ser casada no civil. (ver tabela 5 no final deste capítulo) O grupo

de

casados

1b

reúne 4 casais mais maduros

aqui denominados de Berenice/Benito, Berta/Bóris, Beth/Bruno e Beatriz/Benedito. A idade do grupo varia de 42 a 76 anos e eles possuem de 16 a 50 anos de casamento. Todos são aposentados, com exceção de Beth que deixou sua atividade profissional ao casar e do casal Beatriz/Benedito que exercem suas atividades autonomamente35. Quanto à escolaridade Berenice/Benito e Berta/Bóris possuem o 3º grau, os demais possuem o 2º grau, com exceção de Beatriz que cursou apenas o 1º grau. Um ponto comum entre os informantes deste grupo é 35 Beatriz e Benedito são os únicos do grupo 1b que continuam trabalhando. Ela exerce sua atividade profissional em sua própria residência e ele tem um firma particular.

52

que a maioria é casada formalmente, no religioso e no civil, sendo a única exceção o casal Beth/Bruno que aguarda o resultado do pedido de anulação do segundo casamento dele para casarem no religioso36. Com exceção de Berta/Bóris37, todos têm filhos e já são avós e, no caso de Berenice/Benito, também bisavós. Em relação ao grupo anterior, estes casais apresentam algumas diferenciações. A maioria iniciou a vida de casado a partir da década de 1970 - com exceção do casal Berenice/Benito que casou na década de quarenta (1943) - período caracterizado, como sabemos pela ocorrência de inúmeras transformações políticas e sociais - e vivenciou, assim, o modelo hierárquico, pautado na divisão sexual de papéis dentro e fora do lar. Todos consideram o casamento como uma relação que deve ser "para toda a vida" e se mostram muito críticos em relação à geração atual que "casa já pensando em separar", embora, em certos casos quando o amor não mais existe - admitam a separação. Acreditam e defendem o casamento civil e religioso, pois acreditam que sem ele não há compromisso e responsabilidade entre o casal

e têm

muita

dificuldade em aceitar qualquer outro modelo que não seja este. 36 Este casal também possui uma história interessante. O primeiro casamento de Bruno durou 26 anos e terminou com o falecimento de sua esposa. Por não querer ficar sozinho, pouco tempo depois ele casou-se de novo, mas a experiência não foi bem sucedida e 1 ano e 4 meses depois ele separou-se e requereu o divórcio. Em 1982, começou a viver junto com sua atual companheira. Em 87, quando foi homologado o divórcio dele, casaram-se no civil. Ele deseja muito casar no religioso, por isso solicitou a anulação do segundo casamento, mas o processo ainda não foi concluído. 37 Este casal, em relação ao grupo, apresenta algumas particularidades. Quando casaram-se Berta tinha 44 anos, sofreu dois abortos e não têm filhos. Eles já casaram bastante tardiamente e possuem uma interessante "história de amor". Conheceram-se por correspondência em abril de 1977 quando ele escreveu para uma revista com o objetivo de divulgar o seu recém-escrito livro de poesias. A partir daí iniciaram um namoro por correspondência que durou 6 meses. No mesmo ano se conheceram pessoalmente e ficaram noivos por 4 meses. Em fevereiro de 78 casaram-se no civil e no religioso, ela com 44 anos e ele com 35 anos. Estão juntos há 18 anos.

53

Consideram importante que o casal exerça uma atividade profissional, para que ambos contribuam com a manutenção da família, desde que isso não interfira na administração do lar38. Todos acham ainda que "antigamente" existia mais respeito e responsabilidade entre os cônjuges, condições estas que aliadas à compreensão e amor são fundamentais para a manutenção do casamento. (ver tabela 5 no final deste item). O grupo das mulheres não casadas apresenta 3 subdivisões. O grupo 2a é formado por 2 mulheres solteiras, Carmem de 36 anos e Cláudia de 37 anos. Ambas possuem escolaridade superior, exercem atividade remunerada, moram sozinhas e se auto-sustentam. Se definem como mulheres independentes, preocupadas, prioritariamente, com sua formação profissional, e apesar de não descartarem a possibilidade de virem a se casar, defendem como modelo ideal de casamento "cada um morar na sua casa"39, sem vínculos formais, pois estão acostumadas a morar sozinhas e a administrar suas vidas sem "depender de ninguém". Consideram que o relacionamento ideal é aquele que se apoia em princípios de igualdade, liberdade, diálogo e amor. O grupo 2b agrupa três mulheres, também solteiras, Denise de 38 Sobre este aspecto a experiência de dois casais é significativa. Beth trabalhava antes de casar com Bruno, porém ao casarem ele achou que não era necessário ela continuar a exercer uma atividade remunerada já que o que ele ganhava era suficiente para o sustento dos dois. Ela concordou e deixou o seu emprego. Hoje, porém, ele diz que se casasse novamente, iria querer que sua esposa trabalhasse a fim de que a independência financeira do casal fosse garantida. Uma outra informante, Beatriz, viveu a mesma situação, parou de trabalhar ao casar porque o marido não aceitava e isso sempre era motivo de conflito entre eles. Depois de muita insistência ela passou a exercer sua atividade profissional em sua própria casa e, com o passar do tempo, ele passou a aceitar e até incentivar sua profissão. No entanto, hoje em dia, se ela mostra interesse em desvincular sua atividade profissional de sua casa, como já aconteceu várias vezes, ele se recusa a aceitar e os conflitos recomeçam. 39 Apesar disso, Cláudia diz que se vier a casar irá optar pela união civil, pois, assim, se sentirá mais segura.

54

27, Diana de 29 anos e Dora de 60 anos. Todas possuem o 2º grau, sendo que as duas primeiras moram com suas famílias e dependem financeiramente

destas,

apesar

de

Denise

exercer

atividade

remunerada. Dora já é aposentada e nunca se casou40.Em seus discursos elas dizem entender e aceitar as diversas modalidades de casamento existentes hoje, mas

acreditam que "casamento mesmo", é

quando há a cerimônia religiosa e civil, porque caso contrário não há compromisso entre os parceiros. Idealmente acham que deve haver igualdade

e

responsabilidade

entre

o

casal

e

consideram

a

compreensão, o respeito e o amor como fundamentais na relação de casamento. O grupo 2c é composto por duas mulheres que têm em comum o fato de serem separadas de seus companheiros e não terem casado novamente. Eliana tem 33 anos e 1 filho, possui o 2º grau e tem um emprego que lhe garante autonomia financeira. Ester tem 55 anos e 4

filhas, possui o 1º

grau e sempre trabalhou

autonomamente para

sustentar a si e as filhas. Ambas casaram no civil e Ester casou, também, no religioso. Estas mulheres pertencem a gerações diferentes e, portanto, seus discursos diferem em vários pontos, sendo possível situar Ester no grupo 1b, no que se refere à sua visão do casamento. Por outro lado, as idéias de Eliana se afinam com as das mulheres do 40 A história de Dora é peculiar. Nunca se casou, apesar de ter tido relacionamentos de namoro e o desejo de fazê-lo. Isto se deu devido ao fato de suas duas outras irmãs terem casado primeiro, tendo ficado com ela a responsabilidade de cuidar dos pais. Seu pai ficou paralítico e já é falecido e até hoje ela cuida da mãe que tem 86 anos. Sempre colocou a família em primeiro lugar e nunca encontrou um companheiro que aceitasse viver com ela e com os pais.

55

grupo 2a, destacando-se, apenas, a ênfase que ela dá quanto a importância do diálogo e a necessidade de se procurar aprender a conviver com as diferenças para que o casamento tenha êxito. Alguns destes dados podem ser melhor visualizados na tabela 5, no final deste item . Por fim, temos o grupo dos homens com duas subdivisões. O grupo 3a reúne 3 homens solteiros, Fernando de 31 anos, Fábio de 29 anos e Fred de 28 anos, todos residentes com suas famílias, com as quais têm uma relação muito próxima. Somente Fernando possui apenas o 2º grau, os demais são de escolaridade superior; Fred já concluiu o curso e Fábio está em fase de conclusão de seu curso. Todos trabalham para se manter, apesar de Fábio receber ajuda financeira da família. Em seus discursos, consideram que não existe necessidade do casamento formal e que este é uma justificativa que se dá para a sociedade,

mas

consideram

a

coabitação

importante

e

acham

fundamental que ambos os parceiros trabalhem a fim de garantirem a sua autonomia financeira. Criticam o modelo vivido por seus pais em que a mulher vive sob a dependência total do marido. Manifestam interesse em se casar desde que encontrem a "pessoa ideal" e defendem a compreensão, o respeito e o amor como pilares do casamento. O último grupo é composto por 2 homens que separaram-se de suas companheiras e não casaram novamente. Gerson tem 49 anos, o 2º grau completo, foi casado sem vínculo formal durante 15 anos e tem 1 filho que, após a separação passou a morar com sua ex-esposa. Não tem interesse em casar formalmente com alguém e acha que o modelo

56

ideal é "cada um na sua casa" , acredita que a estabilidade financeira é relevante na manutenção do casamento. Gilmar de 39 anos, tem o 3º grau e foi casado no religioso e no civil durante 8 anos. Tem dois filhos que residem com a ex-esposa , já tendo sido casado informalmente durante 3 anos após a separação e tem interesse em casar novamente, com ou sem vínculo formal. Tal como

Gerson é

independente

financeiramente. Ambos valorizam, tal como os demais informantes, a compreensão, o respeito e o amor no casamento. A tabela a seguir, facilita a visualização e resume os dados apresentados ao longo desta parte do trabalho:

57

TABELA 5

58

C) SOBRE AS ENTREVISTAS A pesquisa de campo foi realizada em duas etapas41. A primeira, ocorreu de setembro a dezembro de 1995 e nela realizei a maior parte das entrevistas; a segunda, de agosto a setembro de 1996 e foi nesta etapa que retornei com alguns entrevistados e acrescentei outros até chegar no grupo formado pelos 28 informantes. Como já foi mencionado no item anterior, enfrentei inúmeras dificuldades para conseguir compor o grupo com o qual trabalhei. A mesma dificuldade ocorreu com alguns informantes quando

da

tentativa de realizar novas entrevistas - cujo objetivo era rediscutir algumas questões ou tratar aspectos que não haviam sido abordados durante a primeira entrevista - pois estes resistiam e procuravam adiar indefinidamente um novo reencontro formal. Digo formal porque, como já foi referido, a maior parte do grupo fazia parte - e até hoje ainda faz -do meu universo de relações cotidianas (familiar, profissional, religioso ou político) e, desta forma, nós nos encontrávamos freqüentemente, em alguns casos até diariamente. Em função disso, utilizei com todos os entrevistados, de maneira geral, e não só com este grupo específico, um recurso muito utilizado na Antropologia que é o contato permanente onde é possível fazer observações da vivência cotidiana e, também, discutir, de maneira informal, assuntos pertinentes ao interesse

41 Em novembro de 1994, como parte da disciplina Métodos e Técnicas de Pesquisa, que eu cursava neste período, entrevistei cinco casais, o que me serviu como uma espécie de prévia do trabalho que posteriormente viria a desenvolver. Destas entrevistas somente uma foi utilizada neste trabalho, pois as demais ficaram com os dados incompletos e não consegui contactar novamente o grupo tendo conseguido reentrevistar somente um casal.

59

específico do antropólogo. Assim, denomino de entrevistas formais aquelas com dia e hora marcados, em que utilizo um roteiro estruturado e uso gravador e de entrevistas informais aquelas que são não-estruturadas, mas que seguem o eixo do roteiro formal e aproveitam as situações fortuitas de contato entre o antropólogo e o seu informante. Para a realização das entrevistas formais utilizei

um roteiro

previamente elaborado com vários temas relacionados à temática do casamento, do qual constavam os seguintes itens: definição de casamento, requisitos para o casamento, namoro, amor, família, dificuldades da vida em comum, o que é bom

e o que é ruim no

casamento, rituais do casamento, modelos de casamento, filhos, gravidez,

planejamento

familiar,

sexualidade,

crises,

separação,

fidelidade, adultério, ciúme, trabalho doméstico, trabalho profissional, machismo e feminismo . O roteiro foi elaborado quando da preparação da primeira etapa da pesquisa

a partir do levantamento de temas mais diretamente

relacionados ao casamento. Posteriormente, foi reformulado e alguns itens foram acrescidos ou melhor colocados, de forma que os entrevistados pudessem facilmente entender o que se pretendia e, assim,

respondessem

e/ou

discutissem

amplamente

os

temas

abordados. As entrevistas formais obedeceram a seguinte dinâmica: iniciava a conversa solicitando uma identificação dos entrevistados ( nome ,

60

idade profissão, etc) e, em seguida, introduzia o tema, questionava-os acerca da definição de casamento, e a partir daí, de maneira geral, a conversa

fluía

e

os

outros

assuntos

iam

surgindo

desdobramento "natural" da mesma. Os aspectos

como

um

não mencionados

eram por mim retomados, no momento mesmo da entrevista ou numa segunda conversa formal ou contato informal com os entrevistados. Todos os informantes autorizaram o uso do gravador para a realização das entrevistas, com exceção de um casal, com o qual eu não tinha nenhum vínculo anterior, em que a esposa foi contrária à utilização deste recurso e tive que usar um bloco de notas para fazer alguns registros que considerava importantes. Este procedimento me pareceu estranho e, ao mesmo tempo, significativo, porque justamente este casal já havia sido entrevistado duas vezes por uma rede de televisão local - sobre temas semelhantes - e havia exibido para mim as fitas com as matérias gravadas, logo no início da entrevista. A utilização do gravador causou um constrangimento inicial tanto nos entrevistados quanto em mim, mas depois de um certo tempo de conversa ele parecia não mais incomodar e algumas pessoas, ficavam até

preocupadas se a fita já havia acabado ou esperavam que eu a

trocasse para continuarem a falar. Todas as fitas foram transcritas pessoalmente por mim a fim de evitar quaisquer problemas de identificação dos entrevistados. Além do gravador, lancei mão também do bloco de notas - onde fiz registros breves sobre itens que considerava relevantes - e do diário de

61

campo no qual fiz importantes anotações sobre o desenvolvimento da pesquisa

realizada.

Estes

pesquisa antropológica foram estudo, porque mesmo

recursos,

tradicionalmente

usados

na

fundamentais para que realizasse este

não tendo feito uma pesquisa de campo nos

moldes clássicos - o que implicaria num afastamento do meu próprio grupo e num convívio mais intenso com o grupo pesquisado - num certo sentido posso dizer que o fiz na medida em me utilizei dos parâmetros e do instrumental que lhe são peculiares. Cada casal foi entrevistado formalmente em conjunto - o homem e a mulher ao mesmo tempo - e esta opção foi proposital na medida em que me permitiu contrapor suas opiniões e visualizá-los enquanto um par. Neste sentido, vivenciei algumas experiências instigantes. Em uma entrevista com um dos casais, este com 50 anos de casamento, quando começamos a discutir o tema fidelidade, a esposa estava ao telefone e o marido colocou que diante de uma situação de infidelidade por parte de dela não haveria perdão em hipótese alguma, pois a fidelidade era imprescindível no casamento. Nesse meio tempo a esposa retornou à sala e eu retomei a mesma questão com ela. Imediatamente, o marido levantou-se como que para deixá-la à vontade para falar e ela narrou uma caso de infidelidade dele em relação a ela. Com um outro casal aconteceu uma situação constrangedora e ao mesmo tempo engraçada. À certa altura quando discutíamos sobre o tema das relações com os familiares e sua influência na vida do casal – aliás, um dos motivos de conflito entre eles – eles discordaram sobre

62

um determinado ponto e começaram a ficar de ânimos exaltados, um culpando o outro, num confronto verbal que me deixou meio sem saber que atitude tomar. Fiquei eu ali em meio ao "fogo cruzado" até que eles se acalmassem e pudéssemos, assim, abordar outra questão. Além das entrevistas em conjunto, tive momentos de contato informal, em separado, com a maior parte dos casais, o que se revelou uma experiência interessante, pois em alguns casos me foram revelados alguns dados acerca da vida do par que não haviam sido mencionados nos momentos em conjunto. Neste sentido, faço menção a dois fatos ocorridos: uma das informantes oriunda de um casamento anterior, falou-me de um outro relacionamento que havia tido após a separação, no qual ela morou junto com seu parceiro, sem nenhum vínculo formal; outra informante revelou que o casal estava vivenciando algumas dificuldades em relação à educação de seus filhos adolescentes, devido ao fato de seu marido se mostrar muito radical em suas posições, aspectos estes que não haviam sido abordados antes. Apesar disso, de modo geral, as entrevistas em separado serviram para reforçar ou melhor explicitar aspectos já referidos em outros momentos. Um último aspecto a ser abordado acerca das entrevistas, diz respeito à

sua duração e ao local de realização das mesmas. As

entrevistas formais duraram de 1 hora e meia a 4 horas, sendo que a média ficou em 2 horas e meia; quanto ao

local de realização das

mesmas todos os casais, e mais cinco informantes não casados, foram entrevistados sempre em suas próprias residências; em outros casos,

63

algumas entrevistas foram realizadas em locais diversos: praça pública , minha residência42, residência de terceiros e local de trabalho do entrevistado. Quanto às entrevistas informais, estas se realizaram em locais diversificados que dependiam do tipo de relação existente entre pesquisadora/informante. Devo ressaltar que a escolha do local , foi uma decisão de comum acordo entre a antropóloga e seus informantes. Termino aqui estas reflexões e elucidações em torno do trabalho de campo realizado para, em seguida, iniciar uma discussão acerca dos dados levantados, mais especificamente, das idéias dos entrevistados acerca da definição

de casamento e de todas as

variações que esta

apresenta.

42 Este informante era uma das pessoas com as quais eu tinha bastante intimidade e foi por sugestão sua que as entrevistas formais realizaram-se em minha residência.

64

CAPÍTULO 2 CASAMENTO: IDENTIFICAÇÕES E "CÁLCULOS"

Neste capítulo pretendo discutir a questão que lhe dá título, partindo

da

identificação

e

análise

das

concepções

do

grupo

entrevistado acerca do que seja casamento. Em suas falas dois níveis de definição se destacam: 1) o casamento como o ato em si que pode ser estabelecido através de vínculos

formais ou informais e,

2)

o

casamento pensado/definido como uma relação que se traduz através da vivência cotidiana. Num nível, a ênfase é na forma como se deu a união, no outro, o foco é o compartilhar da relação e em ambos os casos

são

levantados

requisitos

que

servem

de

base

para

o

relacionamento. É importante ressaltar que nas falas dos entrevistados estes dois níveis de definição se interpenetram e só estão aqui separados para fins de análise. Além disso, por mais que o grupo discuta e se coloque favorável ou não à formalização da união, a ênfase maior recai sobre a relação cotidiana que o casamento

envolve. Esta sim é importante e

dentro dela, o sentimento que une o casal, traduzido por todos, sem exceção, como o amor, tem papel mais relevante ainda, como veremos ao longo deste capítulo e do seguinte. O capítulo está dividido em três itens, sendo que o primeiro e o segundo discutem a definição de casamento, enquanto que o terceiro analisa o "cálculo" das vantagens e desvantagens que

o casamento

65

possa apresentar.

A) "EXISTEM VÁRIOS TIPOS DE CASAMENTO" Nas falas do grupo entrevistado43, o termo mais usado para definir o casamento, no sentido do ato em si,

foi a palavra união.

Casamento é a “união entre duas pessoas”, “união de um homem e uma mulher”,

“união de duas pessoas que se gostam”, “união de duas

pessoas que se respeitam, que têm alguma coisa para trocar”, “união entre duas pessoas que têm algo em comum”, “união entre duas pessoas que se completam”, “união entre duas pessoas que se gostam e que pretendem formar uma família”, enfim a palavra união serviu para traduzir o relacionamento a dois. Casar é, portanto,

unir, mais que

unir é unir-se a uma outra pessoa com objetivos específicos e sob determinadas condições, o que será tratado com detalhe, mais adiante, neste capítulo. Além da identificação do casamento como a união entre duas pessoas, este foi caracterizado por alguns entrevistados como "um encontro de almas". O casal Berta/Bóris44, pertencente ao grupo1b (com idade acima de 42 anos)

defende esta idéia e acrescenta que o

casamento é um estado permanente e recíproco de "querer fazer o outro feliz". Ester, uma informante separada, também refere a questão 43 Todas as vezes em que eu usar o termo "grupo entrevistado", significa dizer que estou me referindo ao conjunto dos informantes independente da categoria em que eles estão inseridos e que estou tratando de um ponto em comum presente em seus discursos. Por outro lado, quando quiser realçar as diferenciações existentes em suas falas, utilizar-me-ei das categorias já definidas anteriormente. (ver Capítulo 1) 44 Este casal foi o único que não permitiu que a entrevista fosse gravada, o que justifica a ausência de depoimentos mais longos como ocorre com os demais informantes.

66

quando considera que " .... se

eu

casei,

eu

comunguei,

eu

me

enlacei

em ... eu ... me tudo, eu me enrosquei ..."45. A

referência à idéia de comunhão muito presente no modelo

cristão de casamento, como será visto no próximo capítulo deste estudo, permite uma associação entre as diversas representações dos entrevistados, onde o relacionamento conjugal pode ser pensado como a mais perfeita união entre duas pessoas, que tem como base e como finalidade o amor recíproco entre os parceiros. Ademais, o ato de unir-se a alguém se reveste de formas variadas. Em suas falas, distintivas,

os informantes vão referindo inúmeras categorias

já mencionadas anteriormente (ver Introdução), que

sintetizei em duas as quais nomeei de casamento formal e casamento informal. O casamento formal pressupõe a realização de um rito cerimonial no ato de sua celebração, formalizado por uma instituição e que, portanto, possui uma chancela oficial, rito este que tem caráter público e que consiste numa cerimônia civil e/ou religiosa. Nesse sentido, o termo formal

engloba o casamento legal ou "de papel

passado", bastante mencionado pelos entrevistados como aquele que envolve um ato jurídico. Outros termos usados pelo grupo de informantes para se referirem ao casamento formal são "convencional" 45 No que se refere ao registro dos depoimentos coletados durante a realização da pesquisa de campo, devo destacar que a grafia das palavras obedece a forma como os entrevistados as verbalizaram, o que explica as reticências e palavras abreviadas e utilizadas dentro de uma linguagem coloquial.

67

e "tradicional" e traduzem uma relação onde existem ambos os vínculos, legal e religioso. Por oposição, a expressão casamento informal designa o ato de "se juntar" ou de "viver junto" independentemente do estabelecimento de qualquer um

destes vínculos, que pode ter ou não algum rito

cerimonial de caráter público ou particular e é associado, pelo grupo, à idéia de casamento "moderno"46. Entre o grupo entrevistado que vivencia um relacionamento informal, pude constatar a realização de rituais de caráter mais íntimo. No caso específico de Aline e Amauri, um casal pertencente ao grupo 1a (com idade abaixo de 34 anos), este ritual íntimo ocorreu. Diz ela : "Quando a gente começou a morar junto, nós fizemos assim tipo um ritual, (...) só entre nós dois mesmos, (...) porque um dia antes de mudar pra cá, ele chegou com essa outra aliança (...), aí nós fizemos uma troca (...). Foi, assim, uma cerimônia a dois, com direito a taça de vinho ..." Como

foi

visto,

dentre

as

considerações

feitas

pelos

entrevistados, dois grupos de questões merecem destaque: 1) o casamento é definido como um ato que pode ser formalizado através de uma cerimônia jurídica e/ou religiosa e 2) pode ser não formalizado

traduzindo-se como uma união entre duas pessoas sem que haja necessariamente entre elas qualquer vinculação formal, ainda que 46 A referência às idéias de "tradicional "e "moderno" enunciadas pelos entrevistados, será melhor discutida mais adiante, ainda neste item.

68

possa haver um rito qualquer que marque o momento da união do casal. Sob

este

aspecto,

aparece

uma

clara

divisão

entre

o

posicionamento dos informantes classificados no grupo 1b (casados acima da faixa de 42 anos de idade) e o dos demais, pois este grupo valoriza e defende o caráter oficial e cerimonial

do casamento,

enquanto que, de modo geral, os demais grupos se mostram bastante flexíveis em relação a esta questão e alegam que tal procedimento é uma

"burocracia"

desnecessária47,

cuja

função

precípua

é

a

consagração social da união (Bèjin,1987) que em nada garante a durabilidade e o êxito do relacionamento. As noções de "burocracia" e “satisfação social” remetem a uma visão negativa e crítica do casamento formal e reforçam o caráter de aliança e a idéia de moralidade, temas estes amplamente discutidos na literatura antropológica. Em seu trabalho clássico sobre o parentesco denominado “As Estruturas Elementares do Parentesco” (1949), o

antropólogo Claude

Lévi-Strauss, em sua conhecida discussão do tema, afirma que o casamento não é simplesmente a união de um homem e uma mulher, mas uma aliança entre duas famílias ou grupos de parentesco. E é exatamente esse caráter de aliança que o casamento propicia, que LéviStrauss procura enfatizar em sua obra ao afirmar que o que diferencia o homem dos outros animais é o fato destes basearem sua vida na troca 47 O termo burocracia é usado com referência à documentação exigida para a formalização do casamento e, principalmente, quando isto ocorre, no momento do seu término,

69

recíproca, uma das quais é

o intercâmbio de mulheres através do

casamento. Casar, desse modo, implica em oferecer ao grupo de amigos e parentes mais próximos - e à sociedade em geral - uma satisfação expressa através de um ritual que pode ser

religioso quando o

casamento é celebrado na Igreja ou o ato jurídico, também um ritual, quando o casamento é civil. O termo "contrato" também citado pelos entrevistados, define um "acordo entre duas ou mais pessoas que transferem entre si

algum

direito ou se sujeitam a alguma obrigação"48 , mas no contexto do casamento sua associação com a expressão "satisfação social" reforça a idéia de que , segundo Gilberto Velho (1983,1985), apesar da ideologia individualizante que caracteriza a união de casais no universo das camadas médias urbanas, o caráter de aliança faz com que o casamento não diga respeito apenas aos casais, mas a toda rede de relações que é estabelecida com ele. Assim, segundo Velho, "estabelecem-se expectativas, favores são trocados, dos mais

diferentes tipos são

estabelecidos,

apoios

tendo

como

referência a existência

do casal. Isto acontece mesmo

formalização

quando não



da união. Ocorre a despeito também da vontade,

muitas vezes freqüente, dos dois

indivíduos

de

estabelecer

uma vida à parte, independente". (Jornal do Brasil, Caderno 48Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa.. 2 ed. Editora Nova Fronteira.1986.

70

Especial: A nova família de 14/07/1985, p.2) Sobre este aspecto, a antropóloga Lucy Mair, em seu referencial estudo "O Casamento" (1971), ao tratar das sociedades baseadas numa economia de subsistência, em seu exame do casamento e sua relação com o parentesco, afirma que “o casamento representa, antes de mais nada, um laço na rede de elos de parentesco que mantém unida aquela sociedade. É o meio formalmente reconhecido de recrutar novos membros para uma linha de descendência, e cria alianças entre essas linhagens” (p.20). Todavia, se no âmbito do discurso os informantes apresentam posições bem definidas, no campo da experiência cotidiana nem sempre é assim, pois apesar de todos os membros do grupo 1b terem casado de acordo com o modelo que defenderam, eles têm consciência de que a reprodução deste modelo com seus filhos e netos é bastante difícil, devido às inúmeras transformações por que tem passado a sociedade ao longo dos últimos anos. Deste grupo (1b), composto por quatro casais, um deles, Beatriz e Benedito, especificamente este último, afirmou que não aceitaria a adoção de outro modelo por parte de seus filhos. Disse ele: " ... eu não

aceitaria ou não vou aceitar um filho meu fazer uma

união que não seja aquela legal." Beatriz, sua parceira, assumiu uma posição mais flexível, pois segundo ela,

71

" Um filho faz o que ele quiser da vida dele". Na verdade, dois de seus filhos deram um rumo diferente às suas vidas. O mais velho "juntou-se" com sua namorada que ficou grávida e, hoje em dia, o casal tem uma vida em comum, independente da de seus pais; e a filha de 16 anos ficou grávida num relacionamento de namoro, mas continua vivendo com os pais e sob a tutela deles49. Bruno, um informante casado, também considera a formalização do casamento como fundamental, mas apesar disso uma filha sua, do primeiro casamento, viveu durante 8 ou 9 anos ( ele não soube precisar) um relacionamento informal com seu marido e a relação só foi formalizada no civil quando eles precisaram se ausentar juntos do país, para dar prosseguimento à sua formação acadêmica. Somente um casal deste grupo se orgulha de "ter casado" os 3 filhos no religioso e no civil. Berenice e Benito, com sua trajetória de 51 anos de vida de casado demonstram enorme satisfação ao comentar sobre o casamento dos filhos que, segundo eles, "se miraram no bom exemplo" oferecido pelos pais. Berenice diz: "Eu tenho a impressão assim que com todo esse tempo que eles tão casados ( 26, 24 e 21anos), com as mesmas esposas até hoje, então eu acho que eles se miraram na nossa vida em comum.

49 O caso da filha de Beatriz e Benedito é interessante. Após a descoberta da gravidez por ela própria e pelos pais, a jovem tinha intenção de casar-se com o namorado, porém eles não permitiram por achá-la nova demais para iniciar uma vida de casada que , talvez, nem fosse bem sucedida. Então ela continuou morando com os pais e manteve, também, o relacionamento com o namorado. Esta situação, porém, não foi facilmente enfrentada pelos pais, principalmente por Benedito, que sempre se mostrou bastante rigoroso com a filha. Os dados aqui mencionados foram coletados após a realização da pesquisa de campo formal e se referem a um período mais recente.

72

(...) Eles seguem muito os nossos exemplos50. Ainda sobre esta questão, no grupo de casados que denominei de 1a (com idade abaixo de 34 anos), apesar dos informantes, em seus discursos, afirmarem que a existência de vínculos é dispensável, todos com exceção de Ana e Aldo casaram-se no civil ou pretendem fazê-lo, como no caso de Aline e Amauri, que no momento da entrevista não estavam formalmente casados, mas aguardavam a homologação do divórcio dela para casarem-se, também, no civil. No grupo dos não casados (solteiros, separados e divorciados) a grande maioria considera dispensável a formalização da união, ainda que ao pensar no seu próprio casamento,

o faça dentro do modelo

civil51. Diante do que foi colocado e utilizando

aqui uma perspectiva

geracional, pode-se dizer que, com exceção de um deles, todos

os

casados e não casados do grupo entrevistado, acima de 42 anos de idade, consideram que o casamento deva ser precedido de uma cerimônia formal civil e religiosa52 e

encaram o casamento informal,

como um "modernismo" que não é bem visto. Por outro lado, os informantes casados e não casados, situados na faixa etária entre 25 e 50 Para ilustrar essa idéia ela cita o caso de um dos netos que indagou-lhe se era verdade que ela havia ensinado o filho a dirigir com o carro parado, pois o seu pai havia dito isso e os estava ensinando a dirigir deste modo, referindo-se ao fato de ele ter aprendido da mesma forma com a mãe, o que a deixou muito vaidosa e satisfeita. 51 No universo pesquisado por Goldenberg (1991), formado por 9 homens, membros das camadas médias urbanas intelectualizadas, somente 3 eram casados formalmente no civil. 52 A exceção neste grupo é Gerson, um informante separado que nunca vivenciou uma relação formal e que depois da separação, que foi extremamente conflituosa, passou a defender como modelo ideal, além da informalidade da união, o "cada um na sua casa".

73

39 anos, mostram-se mais flexíveis, principalmente em relação à cerimônia religiosa, que a grande maioria considera como "totalmente dispensável". Quanto à existência de vínculos jurídicos, como já

foi

visto, os informantes os consideram desnecessários, mas apresentam uma tendência a continuar adotando-os quando se referem a si mesmos, o que será visto mais adiante. É

interessante

observar

que,

contraditoriamente,

alguns

membros do grupo dos não casados que são favoráveis a inexistência de vínculos jurídicos, fazem referência a algumas

vantagens que a

oficialização do casamento oferece. À existência de vínculos legais é associada à idéia de "garantia" ou "segurança" e "necessidade". Sobre estes aspectos, Denise uma informante solteira, afirma: "(a união formal) ... nada mais é do que um contrato entre as duas pessoas pra que os bens sejam divididos caso a união não venha a dar certo. (...) é uma garantia”. Aqui, o vínculo formal é referido como uma garantia, segurança, não para o casamento em si, mas para as pessoas (o casal), que se expressa melhor no seu término, o que constitui uma preocupação "moderna", que pode ser um reflexo da (idéia da) não durabilidade dos casamentos. Um segundo aspecto citado, considera que a necessidade de se estabelecer vínculos jurídicos, se apoia no fato de que

eles podem

trazer benefícios para os filhos, como é o caso do seguro de vida e do plano de saúde, daí porque, mesmo para aqueles que optaram pela não

74

formalização da união, a existência de filhos pode ser um fator determinante na decisão de legalizar o casamento. É interessante observar aqui a idéia de que os filhos "fazem" o casamento dos pais, na medida em que visando o seu benefício, estes contrariam um princípio a não formalização da união - considerado importante por ser um traço distintivo dos relacionamentos "modernos" em relação ao modelo "tradicional" onde o cuidado com os filhos e o "sacrificar-se" por eles é visto como uma atribuição dos pais. Além destes

aspectos, foi mencionado, principalmente,

pelos

informantes favoráveis à formalização da união, que o casamento na sua forma legal representa o que denominei de garantia psicológica ou seja, o sentimento de segurança de que o cônjuge se acha investido ao regulamentar

o

relacionamento

perante

à

Lei.

Segundo

estes

informantes, a institucionalização do casamento sela um compromisso individual entre o casal, mas ao mesmo tempo firma esse compromisso perante um grupo social. Assim, embora "racionalmente" se saiba que este não é um elemento determinante na durabilidade da relação, o compromisso publicamente assumido funciona como um mecanismo de pressão no sentido da permanência da relação. Neste aspecto, ele constitui um

elemento importante, pois

a inexistência de vínculos

jurídicos faz com que o casal não se sinta compromissado com a relação, o que aumenta a possibilidade de rompimento. É interessante observar que este argumento, que ficaria melhor situado no modelo dito "tradicional", é partilhado, por exemplo, por

75

Cláudia, uma

informante

solteira

e bastante

independente que

mencionou como padrão ideal de casamento aquele denominado de "cada um na sua casa" . Diz ela: " ... se eu resolver casar com uma pessoa, eu vou querer casar no papel, ainda que eu ache que não seja uma ... garantia de nada (...) eu acho que seria um ingrediente a mais na minha tranqüilidade. (...) Eu acho que não é por causa de um papel que um casamento vai se desfazer, mas por outro lado, já que a proposta é não se desfazer, (...) vamos colocar isso como tem que ser." A expressão "como tem que ser" usada por esta informante, remete mais uma vez ao modelo "tradicional" - encarado quase como o modelo e a idéia de casamento dentro deste,

representado como uma

instituição que quase chega a ser visto como uma "entidade", algo exterior às pessoas, enquanto tal, que obedece a um padrão constituído (civil e religioso), daí porque apesar de existirem outras alternativas que são, inclusive, defendidas pelos entrevistados, a referência constante ao padrão sempre se manifesta. Foram,

também,

levantadas

algumas

vantagens

da

não

formalização do casamento. O item mais referido foi a ausência do elemento burocrático que é encarado como um entrave, na medida em que constitui "mais uma amarra" que dificulta o processo de separação. Neste sentido, a não existência de vínculos formais aparece como uma característica positiva na relação. colocações feitas sobre este aspecto:

O depoimento de Ana resume as

76

" ... o dia que eu não quiser, tem poucas prendendo, porque a gente já relação ( ...) tem toda uma

se prende por relação

coisas

me

tanta coisa ... na

emocional, pra

você

se

desvencilhar

disso já é um caso muito sério, aí você além

disso

tem

ainda

outras questões burocráticas, legais ..."

É interessante ressaltar que a formalização da união, seja ela encarada como vantagem ou desvantagem, associação

com

a

idéia

de

é sempre referida em

separação,

uma

preocupação

característica dos relacionamentos "modernos". A constante referência a modelos tradicionais e modernos pelos entrevistados, exige que se faça aqui algumas considerações acerca do assunto. Segundo Anthony Giddens (1990, 1992), o termo modernidade refere-se a "estilo, costume de vida ou organização social" que surgiu na Europa a partir do século XVII e cuja influência, mais tarde, tornou-se quase mundial. Em relação ao termo pós-modernidade, Giddens discorda da idéia de que ele constitua uma etapa que irá suceder a modernidade neste final de século. Para este autor, "em vez de estarmos entrando num período de pós-modernidade, estamos alcançando um período em que as conseqüências da modernidade

estão

se

tornando

mais

radicalizadas

e

universalizadas do que antes". Vaitsman (1994) destaca que esta discussão "possui diferentes nuances e tons" e citando um outro autor, diz que um sentido mais

77

geral do termo diz respeito à "presença e a existência de um espectro de características muito diferentes, ainda que interdependentes" (Jameson,1984, apud Vaitsman, p. 19). Neste sentido, um dos traços distintivos da pós-modernidade é a inexistência de um padrão dominante. Sem pretender realizar uma discussão sobre a questão da modernidade e da pós-modernidade, utilizo o termo moderno no sentido que

lhe

foi

características

atribuído que

se

pelas

categorias

encontram

entrevistadas,

presentes

nas

como

relações

de

conjugalidade de nossos dias. Deste modo, no contexto do debate que está sendo desenvolvido neste item, um dos traços modernos do casamento ( ou de sua representação) - outros serão tratados ao longo deste trabalho -

é a flexibilização da idéia de formalidade da união, o

que tem provocado as mudanças referidas anteriormente. Apesar disso, e retomando o sentido de pós-modernidade referido, observo, a partir dos dados levantados, a coexistência de modelos diferenciados entre si, que impede que se defina um outro padrão e justifica as discrepâncias no discurso de alguns entrevistados no que se refere a defesa de um modelo e a vivência ou perspectiva de vivência de outro. Em relação a este aspecto, no que tange à formalização do casamento, me parece haver, entre alguns membros do segmento mais novo estudado, uma tentativa de conciliação de modelos, pois ao mesmo tempo em que estes descartam o vínculo religioso, característico

78

do padrão tradicional, eles mantêm o elo civil, o que confere ao relacionamento um "ar" de modernidade, sem desvinculá-lo totalmente da representação de casamento ainda muito presente no imaginário social como um ato que deve possuir uma chancela formal. Neste sentido, segundo os informantes,

os mecanismos de

pressão social para o casamento e sua formalização, ainda existem e aqueles que vivem um relacionamento informal demonstram isso ao terem dificuldade de definir a sua própria relação,

como o casal

Aline/Amauri que em alguns momentos afirma ser casado, em outros diz que não é casado e justifica porque não o é( "quando nos casamos", "a gente resolveu casar", "o nosso casamento" ou "eu digo casado, mas a gente não é casado", "nos não casamos ainda, não tá nada legalizado, porque ainda não saiu o meu divórcio"),

e o casal Ana/Aldo que

encontrou uma definição específica para o seu relacionamento, denominado por eles de "casamento-namoro", definido por eles como um casamento sem vínculos formais, onde se procura adotar uma postura semelhante àquela que caracteriza a fase de namoro ( "eu considero ainda um casamento-namoro", "não pode parar de conversar, de ser namorado, como eu te falei o casamento-namoro") . Sobre a não adoção de vínculos religiosos, há que se considerar, também, o contexto mais amplo da sociedade moderna onde a idéia de secularização tem estado muito presente ( a "morte" de Deus , no limite) e reflete no casamento através do

menosprezo que os casais mais

jovens tem dado ao aspecto religioso do mesmo. Por outro lado, outras

79

expressões rituais são introduzidas, à exemplo da nova onda ( "new wave", "nova era") do

esoterismo, que constitui uma possibilidade a

mais de casamento, diversa daquelas que são tradicionalmente apresentadas.

"Cada um na sua casa": um modelo alternativo? Um

último aspecto que gostaria de referir no contexto da

discussão aqui estabelecida, diz respeito ao "modelo" denominado "cada uma na sua casa" que consiste no ato de morar em casas separadas a ser adotado pelo casal. Este aspecto foi discutido pelo conjunto dos entrevistados e foi caracterizado por um grupo reduzido, pelo menos no âmbito do discurso, como "alternativo", opondo-se, assim, a noção de família conjugal típica - onde pai, mãe e filhos moram juntos (Vaitsman, 1994) como será visto a seguir . A habitação em casas separadas foi defendida como um modelo ideal de casamento por 5 informantes: um casal do grupo 1a (com idade abaixo de 34 anos), duas mulheres do grupo 2a (que moram sozinhas e se auto-sustentam) e um homem separado do grupo 3b. Todos os informantes do grupo 1b (casados com idade acima de 42 anos), duas mulheres solteiras do grupo 2b, dois homens solteiros do grupo 3a e uma mulher separada do grupo 2c, totalizando 13 pessoas, são contra esta forma de relacionamento. E, finalmente, três casais do grupo 1a (com idade abaixo de 34 anos), uma mulher solteira do grupo 2b, uma mulher divorciada do grupo 2c, um homem solteiro do grupo 3a e um

80

homem divorciado do grupo 3b, no total de 10 entrevistados, consideram que cabe ao casal decidir o que é mais adequado para si, pois todas as formas de casamento são válidas. A referência numérica detalhada feita aqui ilustra um dado interessante: de todo o grupo entrevistado, à exceção dos solteiros, todos os demais - apesar de defenderem ou considerarem válido o casamento com casas separadas - vivem ou viveram relacionamentos "tradicionais", ou seja, morando na mesma casa. Somente 1 casal entrevistado, Ana e Aldo do grupo 1a ( com idade abaixo de 34 anos) vivenciou um relacionamento durante vários anos, morando em casas separadas, ela com os pais e ele sozinho. No entanto, ela se referiu a este relacionamento primeiro como um namoro " a gente já namorava há (...) anos" e

depois como um "casamento-

namoro". Ocorre que com a gravidez dela eles decidiram morar juntos o que é um bom exemplo da afirmação feita há pouco de que os filhos "fazem o casamento dos pais". Assim, no caso específico do grupo entrevistado, embora o casamento com casas separadas seja pensado como o modelo ideal, ele não é vivenciado como prática. Neste sentido, foram levantados uma série de argumentos que demonstram a viabilidade e a não viabilidade desta prática. Cláudia, uma informante solteira, afirma: "Eu sempre defendi casamentos em casas separadas. Sempre achei que isso era o ideal de relacionamento. (...) Porque justamente

81

essas questões mais domésticas, vamos dizer assim ... não aparecem porque cada um tem a sua casa, cada um organiza a sua vida cotidiana independente do outro." Gerson, um entrevistado que teve um relacionamento informal que durou 15 anos, levanta um outro aspecto da questão. Segundo ele: " Um modelo (...) que eu acho que não é desgastante (...) Eu sou casado com você, mas não sou obrigado a viver junto com você e você não é obrigado a viver junto comigo. Cada qual mora na sua casa. Sabe por que eu acho mais gostoso isso aí? Porque incentiva que tanto eu como você procure o outro. A coisa continua como se fosse um namoro (...) Eu acho que é mais duradouro do que ficar constantemente vendo a cara do outro todo dia, que tanto de ver enjoa ..." Este dois depoimentos resumem os principais argumentos levantados pelos entrevistados que são favoráveis à não coabitação . Privacidade, garantia de autonomia e evitar o desgaste são os elementos específicos citados. Para o grupo que defende que todas as formas de casamento são válidas, foi argumentado que

o "importante é o casal

viver bem", é "a qualidade da relação". O que muda nesta forma de relacionamento é a moradia em separado mas os demais valores como responsabilidade, respeito, fidelidade e amor são preservados. Todavia, o que é defendido como válido não é necessariamente uma postura que se adote ao final, daí porque os entrevistados optaram por morar na mesma casa.

82

Vaitsman (1985) ao analisar a questão refere que "... um dos principais motivos para não morarem junto com o parceiro é a preservação de um espaço próprio que lhes garanta privacidade e liberdade. Isto é, mesmo que o casal estabeleça entre si uma proposta de igualdade e autonomia, a invasão da privacidade e o cerceamento da liberdade de si mesmo e do outro são problemas que sempre acabam se colocando quando um homem e uma mulher com vontades e expectativas diferentes passam a dividir a vida cotidiana". (Jornal do Brasil, Caderno Especial: A nova família, 14/07/1985, p.5) No entanto, mesmo para os que defendem a moradia em separado, existem algumas dificuldades impostas por esta condição. É o caso dos casais que têm filhos53 em comum e da falta de recursos para manter duas casas em separado. Estes fatores acabam fazendo com que o casal decida morar junto, ainda que considere o ideal de relação manter casas separadas. O outro grupo, que se opõe ao casamento com moradias separadas, também tem argumentos que justificam a sua posição. O mais citado deles é que casamento implica em convivência, em estar junto e compartilhar as situações do cotidiano intensamente e o modelo em que se adota casas separadas impede algo que é considerado 53 Em seu artigo intitulado "Casal sim, mas cada um na sua casa", Jeni Vaistman faz referência a este modelo só que num universo formado por homens e mulheres que possuem filhos de relacionamentos anteriores o que impõe limites para uma nova coabitação. Já o grupo com o qual trabalho é constituído por um universo diferente ( casados, solteiros e separados) que não vivencia um relacionamento nos mesmos moldes mencionados por esta autora, mas cujos argumentos se apoiam em alguns dos princípios por ela levantados como a autonomia e a privacidade.

83

fundamental: o estar junto. Fernando, um informante solteiro sintetiza bem as opiniões do grupo. Para ele, "(...) o casamento mesmo seria essa convivência, agora eu tá junto com outro, eu numa casa e o outro noutra, eu acho que não é a mesma coisa. Acho que nunca se chega a conhecer direito o outro. Morando junto é que a gente vai ver (...) se ama mesmo (...) separado, não chega realmente a se conhecer, fica sempre uma coisa muito superficial ..." Neste grupo também é referida a questão dos filhos e a dificuldade

de manter duas casas separadas, mas o elemento

fundamental é a relação como será visto no próximo item deste capítulo. A representação básica deste grupo acerca do casamento é a constituição de uma família dentro do modelo tradicional com todos residindo no mesmo local,

daí a dificuldade de pensar em outra

alternativa que não se encaixe neste modelo. Beatriz, uma informante casada do grupo 1b (com idade acima de 42 anos), diz: "Existem muitos casais que são felizes assim.

Eu respeito,

sabe? Por mais que eu veja que não vai dar certo, na verdade, no fundo, no fundo, não vai. Pode ser bom no início, pode ser uma brincadeira, pode ser animado, pode ser tudo, mas depois quando começar a nascer os filhos, como é que pode dar certo? (...) A partir do momento em que um casal se gosta, eles querem ficar juntos (...) Olha nós somos casados

há 23 anos, nós nunca dormimos

84

separados, nós não sabemos o que é isso ..." Foi mencionado por alguns entrevistados que um casamento com casas

separadas

pode

ter

uma

durabilidade

até

maior

que

o

relacionamento tradicional, mas isso se deve exatamente ao fato de que nele falta o elemento fundamental, pois é através da convivência que as diferenças

surgem e o casal se vê obrigado a enfrentá-las o que

redundará no amadurecimento da relação ou no seu rompimento. Além disso, nas colocações feitas está implícita a idéia de que se o casal não vive junto, ele não se sente compromissado com a relação e, portanto não é fiel ao relacionamento, aspecto este que é extremamente valorizado no casamento, como será visto no próximo capítulo deste estudo.

B) "CASAR É DIVIDIR O COTIDIANO COM GRANDE INTENSIDADE" Como foi visto anteriormente, o casamento é definido como o ato em si que pode ser regido por parâmetros legais ou não. Todavia, nas colocações do conjunto dos entrevistados, também

surge um outro

nível de definição que trata do casamento enquanto uma relação, ou seja, o casamento se define a partir da relação de duas pessoas que vivenciam juntas e intensamente o cotidiano, como afirmou Ana, uma das entrevistadas casadas pertencentes ao grupo 1a ( com idade abaixo de 34 anos), na frase que dá título a este item. É

esta

perspectiva

relacional

que

traduz

o

sentido

de

conjugalidade aludido neste trabalho. Assim, casar é estabelecer uma

85

relação de conhecimento mútuo que envolve inúmeros

fatores, como

pode ser visto nas falas dos entrevistados. Fábio, um informante solteiro, ressalta o lado prático da relação. Diz ele: "Casamento pra mim seria ... não essa relação pautada pelo documento oficial. (...) É a convivência entre duas intuito

de dividir carinho,

responsabilidades,

dividir

dividir tarefas

um

pessoas com o

espaço,

domésticas

e

dividir

despesas.

Dividir ... talvez a palavra não fosse dividir, eu acho que a palavra que eu gosto mais de usar é ... compartilhar. Dividir parece uma obrigação". Cláudia,

uma

informante

solteira

também

cita

o

termo

compartilhar. Segundo ela, casamento é "... compartilhar um sentimento de amor e ... uma história de vida ... mais ou menos assim um caminhar junto com uma pessoa que se gosta e respeita e confia". Beatriz, uma informante casada do grupo 1b, diz: "A gente casa pra .. pra ficar juntos, pra dividir as alegrias, as tristezas, dividir tudo, tudo divide quando se casa ..." Aqui o termo conviver aliado às palavras dividir e compartilhar dão a real dimensão do estar casado. Conviver significa "viver em comum com outro, em intimidade, em familiaridade"54 e compartilhar implica em " ter ou tomar parte em"55; neste contexto, casar é cada um dos cônjuges 54 Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa.. 2 ed. Editora Nova Fronteira.1986. idem.

55

86

tomar parte de uma vida de intimidade em comum. O casamento, então, passa a ser uma modalidade de relacionamento que se define a partir das relações vivenciadas cotidianamente. O depoimento de Ana, uma informante casada do grupo 1a, é ilustrativo: " ... o importante é a qualidade da relação, tipo assim: se você tá com a outra pessoa dividindo essas coisas do cotidiano, pra mim é mais essa divisão do cotidiano (...) de ela saber das coisas todas que tu tás fazendo, de tu saberes das dela, das mínimas coisas, quer dizer, e com uma intensidade grande (...)". Na fala desta informante casada, aparece com maior ênfase um elemento importante levantado pelos entrevistados que se expressa na idéia de convivência intensa, de conhecimento mútuo que pressupõe grande intimidade, e que parece, ao mesmo tempo, se opor à noção, também presente nos discursos sobre o casamento, da preservação de espaços de individualidade. Entre os casais mais jovens observei uma grande preocupação com

a garantia desses espaços, considerada

fundamental nos relacionamentos modernos. Há, portanto, que se negociar sempre os limites de cada um na relação, a fim de que mesmo com a convivência, os espaços individuais possam ser preservados, aspecto este que será melhor discutido no último capítulo deste estudo. Heilborn (1992) estudando um universo específico das camadas médias urbanas56 diferente, portanto, do grupo aqui pesquisado, mas que apresenta, com ele,

algumas similaridades, enfatiza que o casal

56 Segmentos intelectualizados e psicanalizados, "adeptos de uma moral liberal e eventualmente, vanguardista", entre 35-45 anos de idade, residentes no Rio de Janeiro.

87

igualitário estudado por ela,

adota como ideal a preservação da

autonomia individual, ao mesmo tempo em que se debate com a idéia de tempo e/ou espaço compartilhado, implícita nas suas representações sobre o casamento. Isto ocorre, segundo ela, porque, ainda que inconscientemente, existe uma idéia de dependência recíproca entre os parceiros que aliada à noção de mutualidade, dá origem a uma espécie de - no termos da autora - "contabilidade conjugal", que consiste num "mecanismo de aferição do contrato, que freqüentemente tem por alvo a disponibilidade de cada um dos seus membros de cumprir o acordo de mútua dependência que o casamento encerra" (p. 95). o que implica, por vezes, em fazer uma "espécie de relatório cotidiano sobre as atividades realizadas fora das vistas do parceiro." (idem) É interessante observar que,

quando o casamento é definido

como uma relação que se constrói no dia-a-dia,

fica quase que

obscurecida a questão da formalização ou não da união. Os próprios informantes - com algumas exceções - consideram que o que de fato é definidor no relacionamento é a forma como as questões diárias são encaradas e trabalhadas pelo casal. O depoimento de Ana, que vivencia uma relação de casamento informal, mais uma vez, ilustra bem esta questão. Segundo ela, " ... Pra mim se puder evitar esse tipo de aliança legal (...) melhor. Mas, quem opta por isso, eu acho que tanto faz . Eu vivo os mesmos

88

problemas que as pessoas que optaram por outras formas, vivem , eu acho que é muito semelhante (...) os problemas são muito parecidos." Nesse caso, existe uma homogeneidade nas posições dos informantes de modo geral, pois mesmo os casais do grupo 1b, que dão extremo valor aos vínculos formais, admitem que é possível e eles até conhecem casos de casais que independentemente da formalização do casamento

vivem

juntos

e

felizes,

porque

sabem

cultivar

o

relacionamento diário. O depoimento de Bruno é interessante: "Eu conheço várias pessoas que só são casados no ... religioso ou então, às vezes, nem são casadas, que se juntam e vivem bem a vida toda. Eu acho que também dependendo se houver amor entre o casal, entre as pessoas, o casamento não tem assim tanta influência. A meu ver, precisa, mas têm pessoas que acham que não (...) Eles vão levando a vida muitos e muitos anos, felizes, sem precisar casar." Tal como Bruno, os demais informantes consideram que o elemento mais importante no relacionamento do casal é o amor, sentimento este

que aparece em suas falas, associado a

inúmeros

outros como amor e compreensão, amor e respeito, amor e amizade e amor e confiança. O amor é considerado importante porque através dele os parceiros têm condições de superar as dificuldades que, de acordo com seus depoimentos, parecem ser inerentes ao casamento, pois pelo menos no âmbito do discurso, ele aparecem com freqüência, daí a

89

constante referência a termos como conflitos, problemas, diferenças e crises, aspectos estes que serão melhor analisados nos capítulos 3 e 4 deste estudo. Vê-se, assim, que o casamento se define pelo ato de casar em si mas, muito mais, pela vivência da relação e que estes dois níveis de definição não possuem necessariamente dependência entre si no sentido de garantir a qualidade do relacionamento. Além disso, vivenciar uma relação de casamento pode apresentar vantagens e desvantagens como veremos a seguir.

C) " CASAR TEM VANTAGENS E DESVANTAGENS ..." A decisão de contrair matrimônio envolve uma série de aspectos que devem ser cuidadosamente pensados pelos futuros cônjuges, pois sejam quais forem os motivos que conduzam os indivíduos ao casamento, sempre se há de fazer, como em qualquer decisão a tomar, ainda que não conscientemente, muitas vezes,

um levantamento do

que a vida de casado tem de bom a oferecer, assim como das possíveis desvantagens que ela venha a apresentar. Alan Macfarlane, em sua obra "A História do Casamento e do Amor" (1986) , refere este aspecto. Em 1838 Charles Darwin, então com 29 anos, estava considerando a possibilidade de vir a se casar com sua prima Emma Wedgwood. Como se encontrasse indeciso, resolveu escrever numa folha de papel as vantagens e desvantagens de um

90

possível casamento. Os argumentos favoráveis ao casamento eram basicamente os filhos que permitiriam a propagação da espécie e

a

companhia da esposa que seria um meio de afastar a solidão. Darwin mencionava também que o casamento lhe possibilitaria ter "um objeto de amor e distração", "um lar e alguém para cuidar dele", "clássicos de música e tagarelice feminina" e "uma boa lareira" (p. 18). Os principais argumentos desfavoráveis ao casamento referiam-se à perda da liberdade em relação à vida social e aos amigos, ao convívio com parentes, às despesas e preocupações com filhos, às brigas, às angústias e responsabilidades. Além destes, ele menciona também, "não poder ler à noite", "gordura e ociosidade", "menos dinheiro para livros" e "maior esforço para ganhar a vida" ( p. 18-19).Depois de somar os custos e os benefícios, Darwin optou, enfim, por casar-se com Emma, o que ocorreu em 29 de janeiro de 1839 e

com a qual teve 10 filhos,

sendo 6 mulheres e 4 homens. A atitude de Darwin,

ainda que peculiar, não é exclusiva do

célebre criador da teoria da evolução, nem de sua época, na medida em que a preocupação com o casamento e com a sua finalidade, o que pressupõe o levantamento das vantagens e desvantagens que ele possa apresentar, vem de longa data e não deixou de existir como se sabe. No Brasil do início do século, mais precisamente em 1927, o casal Anah Pereira de Melo Franco e Afonso Arinos de Melo Franco - este último, figura importante nos meios literários e políticos do nosso paísse encontrava às voltas

com

planos de casamento57. Só que,

57Os anseios e "cálculos" do casal ficaram registrados na correspondência trocada por

91

diferentemente de

Darwin,

o

casal

se

encontrava

envolvido

pelos ideais do amor romântico e, completamente apaixonado58, desejava ardentemente casar-se, ainda que, tal como Darwin, se encontrasse indeciso, por motivos diferentes. Como o casamento envolve uma série de

cálculos,

Anah e Afonso, avaliavam suas

condições financeiras, em especial as de Afonso, a quem caberia sustentar a casa e arcar com todas as despesas decorrentes da vida de casado. O casamento só constituía vantagem para eles se fosse possível manter o mesmo padrão de vida a que estavam acostumados quando solteiros. Enquanto isso não ocorresse, eles ficariam aguardando o momento mais propício para concretizar o matrimônio59. Vê-se, assim, que, apesar do amor ser considerado como o elemento de grande importância, ele não é o aspecto decisivo, à medida em que outro elementos precisam ser avaliados pelo casal. No Brasil, também em outro momento e outro contexto, Ellen Woortmann (1994) em sua análise da reprodução camponesa, a partir eles entre junho de 1927 e junho de 1928, posteriormente publicadas por Afonso Arinos (1979). A obra deste consagrado escritor revela dados importantes acerca dos costumes e das regras de namoro e noivado nas décadas de 20 e 30, entre a burguesia brasileira. 58 Um trecho da correspondência trocada entre eles durante este período, ilustra a questão. É Anah quem diz: "Eu sei que você gosta de mim. E você pode ter certeza de que, para mim, não existe outra pessoa no mundo, a não ser você. É uma loucura. É uma obsessão. Eu não sei o que é. Eu só sei que não penso em outra coisa, senão você, Afonso, meu amor. Eu quero você com toda a força da minha vontade, com todo o desejo do meu sentimento. Eu quero você para mim só, para eu poder ficar junto de você o tempo todo de minha vida, para poder gostar de você muito, para cuidar de você, para ser sua só". 59 Algumas falas do casal são elucidativas. Diz Afonso: "... tenho necessidade de me casar e o ordenado que ganho aqui não é suficiente para vivermos bem. (...) E se eu ficasse aqui, não nos poderemos casar: esta é a verdade. Não faremos a loucura de nos casarmos com um conto por mês, durante 3 anos, você não acha? Ao que Anah responde: "Quanto ao nosso casamento, meu amor, não há remédio. Ele tem que esperar até você vir para cá, porque eu acho, como você: nós não podemos nos casar só com um conto de réis. Seria a maior das loucuras, loucura que nunca farei. Nenhum de nós está habituado a viver assim com tão pouco".

92

das relações de parentesco, mostra que "entre os camponeses, o casamento não é uma simples questão de escolha individual; a rigor, não são apenas dois indivíduos que se casam, mas duas famílias que entram em acordo"( p.157). O

amor romântico é contrário ao esforço das

famílias de construir o casamento de acordo com

"seus interesses e

necessidades", por isso é encarado como um "perigo". Assim, a escolha do parceiro e o casamento em si obedecem a uma série de regras bem definidas

que

devem

sempre

estar

em

consonância

com

estes

interesses. Mair (1971), em sua obra já citada sobre o casamento, argumenta que não se conhece, quer no mundo contemporâneo, quer no passado, nenhuma sociedade que deixe de reconhecer o casamento, os valores e regras sociais que o limitam, o regulam e o definam. Daí, porque, o casamento mobiliza uma ampla rede de relações e tem que se dar em condições vantajosas para ambas as partes envolvidas. No período anterior a Darwin, mais especificamente no século XVIII, como será visto detalhadamente mais adiante, a Igreja, investida de poder institucional e munida de um discurso normativo e moralizador,

defende

como

finalidade

básica

do

casamento

o

pagamento do débito conjugal, a procriação e a luta contra a tentação do adultério (Flandrin, 1985; Del Priore, 1989; Vainfas, 1992). E a vantagem do casamento, entre outras coisas, se expressa em os cônjuges estarem incluídos no quadro das relações consideradas lícitas. Bueno Trigo (1989),

ressalta que, do ponto de vista político e

93

econômico, a aliança matrimonial fortalecia os grupos de parentesco e de status, preservando a herança e o poder econômico. O critério da homogamia regia a escolha entre os parceiros e a indissolubilidade do matrimônio pregada pela Igreja conduzia a uma escolha "pensada e madura", apoiada no princípio da igualdade que, de acordo com os discursos moralistas do período, aumentava as possibilidades de que o casamento tivesse êxito. A partir do século XIX na Europa Ocidental e das primeiras décadas do século XX no Brasil,

as ideologias individualistas

(Dumont, 1983; Benzaquen de Araujo e Viveiros de Castro, 1977) começam a ganhar espaço e a escolha do parceiro de casamento tornase, teoricamente, mais livre e passa a ter o amor como base, como será analisado no capítulo 4 deste estudo. Mais modernamente, no Brasil, Vaitsman em seu estudo já citado,

focaliza momentos distintos

da trajetória de indivíduos

socializados nas décadas de 1950 e que casaram-se na década de 1970, na tentativa de mostrar que não existem padrões

dominantes de

casamento e de família e que a atitude da pós-modernidade é marcada pela pluralidade e pela flexibilidade. Nesse sentido, só constitui vantagem investir em relacionamentos onde haja espaço para as realizações pessoais e coletivas dos casais que estão sempre a procura de possibilidades e alternativas para as suas práticas afetivo-sexuais e para o desempenho de papéis no casamento e na família. A referência aos estudos acima remete (a) e reforça o fato de que a

94

decisão de casar envolve sempre reflexões e escolhas, que, por sua vez, estão vinculadas ao contexto específico em que as relações - que não envolvem apenas o par - estão se dando. No grupo entrevistado este mesmo tema foi tratado e os argumentos levantados, evidentemente que atualizados, ou não exatamente nos mesmos termos, apresentaram similaridades.60 Os

motivos

levantados

para

estabelecer

uma

relação

de

casamento, foram: a necessidade de " ter alguém com quem compartilhar a vida", o "medo da solidão " e a possibilidade de "constituição de uma família" colocados nesta ordem de importância.

O Medo da Solidão O

primeiro aspecto foi citado unanimemente por todas as

categorias entrevistadas e é associado ao "medo da solidão". É importante ressaltar que, segundo os informantes, o principal fator que impele as pessoas ao casamento

é a necessidade de compartilhar a

vida com alguém. Segundo suas percepções, o casamento envolve a convivência mais permanente com outra pessoa e afasta, desta forma, a possibilidade da solidão que é encarada como positiva se for temporária, mas que nunca é pensada como um estado permanente. Retornando ao instigante "cálculo" de Darwin, vê-se que este, ao se referir à solidão,

avaliou que o casamento garantiria

uma

60 Neste capítulo irei tratar basicamente das vantagens que o casamento pode trazer, pois meu intuito aqui é verificar o que leva as pessoas ao casamento e os requisitos necessários para tal. No capítulo seguinte, um dos itens tratados será as dificuldades da vida em comum, onde retornaremos às desvantagens levantadas por Darwin.

95

"constante companhia que se interessará pela gente ( uma companheira na velhice)" . O depoimento de Bruno, que vive o terceiro casamento, é bastante significativo se considerarmos a sua história de vida: " O casamento é a união de duas pessoas que evita (...) a solidão. Eu sou uma pessoa que não ... acho que ficar só é a pior coisa do mundo. Então eu acho que (...) vivendo bem no casamento, a gente preenche, a gente evita a solidão. O casamento sendo, por exemplo, bem estruturado (...) evitará no futuro a solidão. (...) Já fui casado anteriormente, fiquei viúvo (...) casei de novo, mas aquele negócio, aquele casamento de emergência, sem pensar, um negócio assim pra evitar, talvez, a solidão. (...) Não durou nem um ano e meio." O depoimento de Bruno, sinaliza uma questão importante. As pessoas casam para evitar a solidão, porém se o único móvel do casamento for este, a relação tende a não se sustentar e a solidão irá existir de qualquer forma, seja porque o relacionamento irá se desfazer, seja porque o ideal de reciprocidade - que se apoia nos princípios do amor, da compreensão , do respeito, da fidelidade, entre outros - foi rompido. Assim, a despeito das ideologias individualistas, a idéia de casamento como composta por um par, é mais forte que a necessidade individual de bem estar pessoal, o que faz com que o casal esteja em primeiro lugar em relação a cada um dos elementos da díade. Mirian Goldenberg (1991) verificou em seu estudo sobre a identidade masculina a mesma preocupação com o medo da solidão,

96

que já havia sido referida, entre outros, por André Bèjin (1987). Este medo é justificado pela dificuldade de se viver sozinho e é agravado nos casos de separação, quando, então, se manifesta a tendência de casar novamente. A autora ressalta que os homens separados que não puderam casar-se novamente devido a impossibilidades econômicas, voltaram a

viver com suas mães. O mesmo se dá entre os meus

entrevistados, pois os dois homens separados que não tinham voltado a casar-se, viviam com suas famílias, enquanto que as duas mulheres na mesma condição deram continuidade a uma vida independente de suas famílias e passaram a viver sozinhas com os filhos. Há que se considerar aqui algumas questões. Velho (1985), analisando os "dramas e rotinas da separação" entre segmentos das camadas médias urbanas, argumenta que na recomposição da rede de relações após a separação, há diferenças significativas entre homens e mulheres, pois estas se encontram "mais sujeitas à acusação e à estigmatização". Além disso, o controle das famílias de origem ocorre de maneira mais efetiva, principalmente quando há filhos e uma maior dependência destas. Estes fatores, certamente, contribuem para que as mulheres que apresentam uma autonomia financeira, após a separação, optem por formar um núcleo independente junto com seus filhos. Eliana, uma informante separada, caracteriza esta situação, mas se ressente muito pelo fato de não ter um companheiro. Diz ela " ... eu não sei, é muito difícil ficar só. Pelo estilo de pessoa que eu sou, eu acho muito difícil viver só. A solidão dói demais, demais,

97

demais ..." Apesar disso, ela não se casou novamente e avalia, pelo processo de reconstrução de sua própria vida, que é muito mais difícil para as mulheres do que para os homens, pois, segundo ela, estes "se recompõem muito rápido (...) eles reconstroem família, eles têm filhos e rápido eles tão numa outra ..." O que pode parecer uma característica pessoal, ou seja, o medo da solidão para quem já teve um casamento desfeito,

ganha uma

conotação mais ampla que pode ser indicada através do depoimento de Cláudia,

uma informante solteira que há 13 anos mora sozinha e

valoriza muito a sua independência. Segundo ela, ".. eu gosto muito de ficar sozinha, eu gosto muito de morar sozinha, mas .... a longo prazo é muito chato, porque essa base de confiança que a gente deseja, todas as pessoas desejam, e porque é muito complicado também você morar sozinha ..." Cabe ressaltar que estou associando o medo da solidão ao casamento, porque este é o tema de meu interesse. No entanto, é possível afirmar que a solidão constitui uma questão mais geral que é encarada como problemática para quase todo mundo, pois tal como disse Cláudia é bom ter momentos de solidão, mas um estado permanente

de

solidão

não

é

algo

desejado

e

encarado

com

tranqüilidade. O medo da solidão, portanto,

é um dos fatores que impele as

pessoas ao casamento. A possibilidade de ter alguém com quem

98

compartilhar as experiências, sejam elas boas ou ruins, de ter uma companhia permanente, inclusive, durante a velhice que, sempre, é

quase

pensada como uma fase difícil e marcada pela solidão, é

encarada como uma grande vantagem da vida de casado. Neste sentido, o compartilhar , o estar junto

e os filhos que

advirão do relacionamento, são considerados pontos fundamentais na decisão de casar-se,

o que se expressa na fala de Beatriz, uma

informante casada do grupo 1b (com idade acima de 42 anos) : "... bom é você saber que pode contar com aquela pessoa a qualquer momento, como é o nosso caso. A gente tá aqui, (...) a nossa camisa é do mesmo time, sabe? Então, se fizerem alguma coisa pra ele eu sinto, reclamo e vou à luta e brigo e se fizerem comigo, ele faz a mesma coisa. Se eu tiver doente, se eu tiver triste, ele tá ali pra me consolar, pra me confortar, pra me dar força e viceversa. Isso é muito importante. (...) Eu sei que eu não tô sozinha (...),

porque

deve

ser

horrível

uma

pessoa

se

sentir

só,

principalmente já no fim da vida, que é quando mais a pessoa precisa da companhia do outro." Benedito, seu parceiro de casamento complementa: "O casamento tem ótima coisas. Agora, o bom mesmo é saber que você tem em casa ... uma esposa, você tem um marido, você vai pra luta do dia-a-dia, principalmente nos dias de hoje, aí tem as suas alegrias, tem seus problemas, as dificuldades e chegar em casa, tem com quem ... é ... extravasar essa alegria, com quem dividir a

99

tristeza, o aborrecimento, a dificuldade e ao mesmo tempo, pegar ... receber ajuda, porque isso é gratificante ..." Ana, uma informante casada do grupo 1a (com idade abaixo de 34 anos) aborda a questão. Segundo ela: " (no casamento) É bom não ficar sozinho, eu acho isso bom. (...) É você poder conversar, as pequenas coisas. (...) Se você tá casado, como você tá muito tempo com a pessoa, então quando você chega, já vai comentando, porque a pessoa tá ali contigo (...) O tempo todo você tá falando as coisas que te aborreceram, que te deixaram feliz ( ... ) Então essa troca é mais intensa e eu acho isso legal."

A constituição da família e os filhos Além desses dois aspectos, foi mencionado também como uma vantagem do casamento

a constituição da família e associada a ela,

surgia a questão dos filhos que foi considerada como de grande importância no casamento pelos entrevistados em geral. Esta questão será melhor trabalhada no capítulo 5 deste estudo, mas já adianto aqui um pouco da análise. A diferença que se observa é que, enquanto que para os membros do grupo 1b (com idade acima de 42 anos), os filhos são vistos como uma conseqüência natural e imediata da vida de casado, os demais casais e os não casados mais jovens defendem que haja um período de adaptação do casal à nova vida, antes deles assumirem o compromisso com os filhos. É o caráter de "moratória" ou período de adiamento referido por

100

Bèjin ( 1987) em relação à coabitação juvenil, termo que ele usa para designar "jovens que vivem como casais heterossexuais sem serem casados". Segundo ele, "estes jovens querem dar a si mesmos uma moratória, adiando a vinda do filho", o que faz com que "o nascimento de um filho seja adiado indefinidamente, sem que nenhum dos dois parceiros jamais tenha manifestado uma recusa absoluta de ter um descendente." (p. 191) O depoimento de Eliana, uma informante divorciada, aborda e é ilustrativo sobre a questão: "Eu acho que o filho é um marco na relação . (...) Eu tive um ano sem criança, mas um ano que eu já passei grávida. (...) Acho que esse é um fator muito importante, que as pessoas tenham um período a dois, se avaliem, se curtam, aproveitem, pra que depois venham os filhos e aí a gente vai curtir os filhos ..." Esse dado, que aparece nas falas dos entrevistados mais jovens reflete uma mudança que tem se dado no quadro das relações afetivas de casamento, pois, como já foi dito, para o casais do grupo 1b, os filhos faziam parte do casamento e era quase inevitável casar e, em seguida, ter filhos. Isso se dava, porque na idéia corrente de casamento àquela altura, "era assim que devia ser" e o casamento seria bem sucedido, se assim o fosse, ainda que efetivamente isso não ocorresse. Todavia, para os casais mais jovens entrevistados e, de modo geral, para os entrevistados com idade abaixo de 35 anos, a idéia de casamento vigente é a de que cabe ao casal decidir se quer ter filhos e

101

em que momento deseja fazê-lo. Além disso, existe quase um consenso de que o casal deve retardar a vinda dos filhos, em benefício do próprio relacionamento. De acordo com os depoimentos dados, alguns fatores contribuem para esta situação. Um deles é que devido ao alto índice de separações entre os casais mais jovens, parece haver uma preocupação em garantir após o casamento um tempo de convivência mais intensa entre o par, para que este avalie se o relacionamento "vai dar certo ou não". Neste sentido, o namoro é pensado como uma etapa de conhecimento mútuo que, ainda que importante - e, se considerarmos os dias atuais, com um grau de intimidade física avançado - não pode ser comparada com o vivência que o casamento possibilita, o que justifica a idéia enunciada pelos informantes de que é "só com o casamento que se conhece realmente a pessoa, que ela se mostra tal qual é". Um outro aspecto a ser ressaltado em relação aos filhos é que eles podem consolidar o relacionamento do casal, na medida em que surgem novas responsabilidades que têm que ser compartilhadas pela díade, o que os aproxima e dá um sentido mais profundo ao relacionamento. Ao mesmo tempo, os filhos podem ser motivo de conflitos e rupturas, se o casal não tiver amadurecimento para saber como se adaptar as mudanças advindas com o nascimento deles, pois segundo

as

percepções

do

grupo

entrevistado,

estes

comprometer ou impedir a realização de projetos pessoais.

podem

102

É interessante observar o papel importante que os filhos desempenham na vida do casal, pois é possível afirmar que eles "fazem", "sustentam" e, em certos casos, "desfazem" o casamento dos pais. Em relação ao primeiro aspecto, já foi visto que muitos casais formalizam a relação em função dos filhos. Além disso, para os casais que defendem o modelo "cada um na sua casa", a única morar

justificativa

para

se

junto é a existência de filhos, como pode ser visto nos

depoimentos a seguir. Ana, uma informante casada do grupo 1a, diz: " Eu acho assim: (...) pelo que eu percebo, não tem muito sentido pras pessoas morarem juntas (...) se não for por algo mais, porque sexo as pessoas já fazem antes ou depois, independe; sair juntas, já fazem (...); freqüentar uma mesma casa, por mais que seja de um ou de outro (...) eles vivem sempre muito juntos. Então, (...) por que casar? (...) Geralmente é porque aparece um filho, porque aí realmente a coisa muda, no sentido de que você não vai levar o teu filho pra casa dos teus pais, e também, (...) você não vai ficar morando na casa dos pais, enquanto o teu marido ou então a tua esposa tem uma casa, onde tá o teu filho.(...) Assim, eu acho que você engravidar é um marco que faz que você vá morar junto." Claúdia, uma informante solteira que defende o mesmo modelo, diz: "... Acaba sendo uma conseqüência, é ... quase que natural, casar e ter filhos. Eu fico imaginando nessa minha forma de pensar o casamento ... a consagração desse casamento seria filhos, né? ,

103

porque senão tá bom do jeito que tá, cada um morando na sua casa ..." Com relação à idéia de que os filhos "sustentam" o casamento, foi dito pelos informantes que a chegada destes marca "uma nova etapa na vida do casal", que passa a ter um laço mais forte entre si, o que amadurece e aprofunda o relacionamento. O casal Alice/Átila do grupo 1a viveu após dois anos de casamento uma forte crise motivada pela má administração dos espaços de cada um e pelo não privilegiamento do espaço doméstico que ficava em segundo plano em relação a outros tidos como prioritários. A crise quase dissolveu a relação, mas eles acabaram optando por continuar juntos. Logo em seguida, Alice descobriu que estava grávida e a chegada do primeiro filho constituiu uma marco importante para eles. Diz ela: " O casamento com filho é uma outra etapa. Você passa a privilegiar o espaço doméstico de convivência ." Por outro lado, e muitas vezes pelos mesmos motivos que unem os casais, os filhos podem "desfazer" o casamento. Sobre este aspecto, foram levantados inúmeros motivos, tais como: "a perda da liberdade", "a má administração de tarefas", "a sobrecarga financeira", "a falta de maturidade", "a divisão do afeto" e "o ciúme" No contexto da discussão sobre a espécie de "contabilização" das vantagens e desvantagens que a vida de casado possa apresentar, os entrevistados foram levantando uma série de requisitos para bem viver casado que devem ser levados em consideração ao se optar pelo

104

casamento e que, a longo prazo, se cultivados e trabalhados pelo casal, garantem o êxito e a durabilidade do relacionamento. Foram inúmeros os requisitos abordados pelos informantes e procurei reuni-los,

segundo a ênfase dada por eles, em dois grupos:

aspectos recorrentes e aspectos não recorrentes. Assim, o primeiro grupo reúne alguns requisitos não recorrentes nas falas dos entrevistados. Apesar de terem sido citados por um número pequeno de pessoas, faço questão de referi-los, por considerar que eles fazem parte das idéias de senso comum como elementos importantes

para

Surpreendentemente

que ou

se não

inicie ,

eles

uma foram

vida citados,

de pelo

casado. menos

explicitamente, apenas por mulheres solteiras e por homens solteiros e são traduzidos como: estabilidade

econômica (3), atração/afinidade

sexual (1), afinidade intelectual (2), aparência física (2) e compatibilidade de gênios (3)

61

.

Devo ressaltar que, apesar destes aspectos não terem sido considerados importantes para a grande maioria dos entrevistados como requisitos prévios do casamento, citados

alguns deles foram bastante

como fatores importantes no cotidiano da relação, como é o

caso da atração/afinidade sexual e da estabilidade econômica. O segundo grupo que trata dos aspectos recorrentes, reúne os requisitos que foram constantemente mencionados, independentemente 61 Alguns destes aspectos (aparência, estabilidade econômica, afinidade intelectual) e outros como idade, compatibilidade de condições familiais e sociais, raça, religião são analisados por Azevedo (1986) e Macfarlane (1986). O número ao lado do item indica o número de informantes que o referiu.

105

da

categoria a que os entrevistados pertenciam e que estão aqui

colocados

de acordo com a importância a eles atribuída. São eles:

amor, respeito, compreensão, diálogo, amizade ou companheirismo. De modo geral, o amor engloba/encompassa todos os demais aspectos e é sempre pensado como estando acima de tudo e ao mesmo tempo como permeando todos os demais sentimentos, daí porque ele é pensado como requisito básico para o casamento, como será visto no capítulo a seguir. Para melhor entender a ênfase dada pelo grupo ao amor, irei inicialmente analisar a idéia do amor a fim de verificar como ele tem sido pensado num contexto mais amplo, para, em seguida, abordar a idéia de amor dos entrevistados e sua associação com os demais quesitos levantados através da pesquisa empírica.

106

CAPÍTULO 3 CASAMENTO: REQUISITOS PARA BEM CASAR E PARA BEM VIVER ... CASADO Neste

capítulo

irei

analisar

os

requisitos

considerados

importantes pelos entrevistados para que se inicie e se mantenha uma vida de casado, dando destaque para o amor no sentido mais genérico do termo e para a idéia de amor expressa no discurso das categorias entrevistadas, como anunciei no final do capítulo anterior. A noção de casamento e, dentro dela, a de amor, presente em nossas representações - e aqui estão incluídos os 28 entrevistados - se fundamenta na tradição judaico-cristã, cujo modelo

influencia, até

hoje, o comportamento daqueles que decidem estabelecer um vínculo conjugal, ainda que estes, de modo geral,

desconheçam qual o

fundamento teórico de suas ações. Para fazer esta discussão, dividi o capítulo em três itens. No primeiro, irei pontuar historicamente algumas das características deste modelo vinculadas mais diretamente ao tema de meu interesse - o casamento e a idéia do amor - sem a preocupação de estabelecer seqüências temporais rígidas e de realizar uma abordagem aprofundada do tema ou dos autores que o discutem. Na verdade, meu objetivo é oferecer alguns elementos que permitam contextualizar, num sentido mais amplo, a idéia de amor enunciada nos discursos das categorias de pessoas por mim entrevistadas, o que será discutido detalhadamente no segundo item. Por fim, no item final, apresento uma análise

107

comparativa

entre

o

modelo

de

casamento

denominado

pelos

informantes de "tradicional" e aquele referido por eles como "moderno".

A)" AH! O AMOR ..." Segundo o historiador Ronaldo Vainfas (1992), a tradição ocidental judaico-cristã nunca se apresentou como homogênea e imóvel mas, pelo contrário, sempre foi marcada por articulações e oposições de acordo com as diversas épocas. Assim, nos primórdios do Cristianismo, não se dava prioridade nem ao casamento nem à família, privilegiandose, antes, o ascetismo, cujos valores básicos eram a virgindade e a continência.

Desta

forma,

estimulava-se

as

mulheres

ao

não

casamento, a fim de que fosse garantida a virtude de uma vida continente. Nessa tradição, o casamento e tudo que a ele estivesse vinculado foi hostilizado como fonte de angústia, inquietação e turbulência em oposição às recompensas que uma vida

casta proporcionava.

No

entanto, apesar de todas as restrições que eram impostas e de todas as associações negativas que eram feitas ao casamento, a sexualidade era exercida por homens e mulheres, o que exigia que se normatizasse as relações existentes, à medida em que o desejo carnal era considerado um ato pecaminoso. Vê-se aí as ambigüidades e impasses desta moral: o casamento era execrado enquanto instituição que permitia a manifestação do desejo ao mesmo tempo em que era defendido como uma alternativa ao prazer descontrolado62. ( Jean-Louis Flandrin, 1987; 62 A moral cristã se opunha, de modo geral, a todos os prazeres carnais, por

108

Philippe Ariès, 1987; Ronaldo Vainfas, 1992) Sobre este aspecto, as exortações de Paulo, o apóstolo, através de suas epístolas aos Coríntios, são bastante elucidativas no sentido de recomendar a virgindade e a contingência. No entanto, para evitar a "impudicícia", dizia ele, melhor seria que "cada homem tivesse a sua mulher, e cada mulher o seu marido" ( I Cor. 7:2), e continua 'mas se não podem conter-se, casem-se. Porque é melhor casar do que arder" ( I Cor. 7:8). Neste período, primórdios do Cristianismo, não havia ainda a intervenção da igreja e o casamento era algo que dizia respeito a elite ( nobreza) e à família, ficando os interesses dos cônjuges em plano secundário. Vê-se que este modelo se opõe a idéia hoje vigente de casamento como algo que diz respeito primordialmente ao casal. Os moralistas cristãos, concebem a instituição familiar como o único

espaço permitido para a procriação e consideram a atividade

sexual fora do casamento como um pecado. Portanto, a união sexual legítima só poderia ocorrer dentro do casamento, cuja finalidade básica era a procriação63. (Flandrin, idem) Um marco temporal importante é o século XII, a partir do qual, através da intervenção da Igreja, o casamento passa a ser um sacramento64. Como

conseqüência, surge o discurso em relação ao

considerar que eles mantêm o espírito preso ao corpo, impedindo-o de elevar-se até Deus. (Flandrin, 1987: 135) 63 Flandrin analisa em detalhe esta questão. Ver 1985: 135-152. 64 Antes deste período, a união dos casais e a celebração das núpcias conservavam-se como atos domésticos nos quais o clero praticamente não intervinha. Todavia, os

109

desejo, através do qual a Igreja passou a "vigiar" e ordenar o leito conjugal65, apoiando-se em três eixos básicos: a imposição da relação carnal como uma obrigação dos cônjuges, a condenação do ardor sexual na relação do casal e a classificação dos atos permitidos e proibidos na comunhão sexual, cuja função principal era a procriação.( Flandrin, 1987; Ariès, 1987; Vainfas, 1992) Neste sentido, se por um lado havia obrigatoriedade do ato sexual, com aquela finalidade, por outro condenava-se todo tipo de excessos. Em nenhum momento o prazer era permitido, a paixão e o ardor transformavam a esposa em amante e o marido em adúltero66. Passou a vigorar um modelo conjugal monogâmico, indissolúvel67 e bastante austero, baseado em princípios de autocontrole e discrição e composto por uma rede de interdições e permissões relativas ao espaço, ao tempo e ao próprio ato68. Segundo Vainfas (1992), os teólogos introduziram no casamento teólogos medievais pretendiam fazer dele uma instituição sagrada e o passo decisivo para que isso ocorresse foi a sua inclusão no rol dos sete sacramentos ( o batismo, a crisma, a eucaristia, a penitência ou confissão, a ordem, a extrema-unção e o matrimônio), o que foi feito por Pedro Lombardo, em 1150. 65 Uma das técnicas usadas para realizar a vigilância dos casais era a confissão, tornada obrigatória em 1215. Del Priore, em seu estudo sobre a mentalidade feminina durante o período colonial, refere que a Igreja exercia "severa vigilância doutrinal e de costumes", através da confissão, do sermão e das devassas da Inquisição. (1993: 29) 66 São Jerônimo defendia que o ato sexual dever-se-ia apoiar em princípios rígidos de autocontrole e discrição. Ver Vainfas, 1992: 42-43. 67 Ver Ariès, 1987: 163-182. 68 O espaço reservado para o ato sexual era a casa e, dentro dela, o leito conjugal. A utilização de lugares públicos acarretava ao infrator a penitência de quarenta dias de jejum a pão e água. Com relação ao tempo, eram interditados os períodos considerados sagrados como o Natal, a quaresma, os dias santificados e os domingos, cuja punição era equivalente à anterior, e o período da gravidez e da menstruação das mulheres, o que implicava em dez dias de jejum. Por fim, o ato em si também era regulado, sendo proibido o sexo oral e anal, e determinadas posições no sexo genital que só era aceito e considerado natural se consistisse na posição em que o homem ficava deitado por cima do ventre da mulher. Neste caso, as penalidades variavam de acordo com a infração cometida. Ver Flandrin, 1984 e 1987 e Vainfas, 1992.

110

os valores da ascese, onde o amor era associado a entregar-se a Deus com a alma piedosa e o corpo imaculado. O exercício do amor

se

confundia com a oração e a salvação da alma. Além disso, introduziram no matrimônio os valores da caridade, estabelecendo um estado de comunhão, onde se reprovava a discórdia entre o casal e valorizava-se a eliminação da alteridade entre os esposos, salvo no tocante ao poder do marido que era plenamente reconhecido. Ë interessante observar que, nas relações conjugais atuais, expressas

através

das

categorias

por

mim

entrevistadas,

estes

elementos - reprovação da discórdia e eliminação da alteridade - são considerados importantes e podem ser relacionados com as noções de compreensão , tolerância, diálogo e igualdade entre os parceiros, levantadas pelos informantes e que serão discutidas mais adiante neste capítulo. Assim, durante o século XII e nos seguintes, a concepção de amor que envolve a atração sexual esteve absolutamente ausente da noção cristã

de

amor

conjugal,

sendo,

inclusive,

a

atração

carnal

transformada em um dos sete pecados capitais: a luxúria. Com isso, neste modelo, o amor

só encontrou lugar no mundo das relações

ilícitas. Destarte, expulso do casamento, onde foi transformado em devoção e caridade, o amor frutificou nas relações ilícitas, tendo sido estilizado por cavaleiros, poetas e trovadores.69 69 Para maior detalhamento ver Duby,1990 e Vainfas,1992. O quadro que se encontra no final deste item ajuda a melhor entender as diferenças e semelhanças entre estas várias concepções de amor.

111

Só mais tarde, a partir do final do século XVIII é que começam a ocorrer mudanças significativas no quadro das relações afetivas através do surgimento de outros ideais de amor, ainda que

profundamente

ligados aos valores da cristandade. Surge a idéia do amor romântico70, que estabelece um vínculo do amor com a liberdade, ambos sendo considerados estados normativamente desejáveis. Nele, o amor sublime predomina sobre o ardor sexual; ele rompe com a sexualidade, embora a abarque; a “virtude” assume um novo sentido, não mais implicando apenas em inocência, mas em qualidades de caráter que tornam a outra pessoa distinguível das demais (Giddens, 1992). Cabem aqui alguns esclarecimentos feitos por Giddens, em sua obra

"A Transformação da

categoria de amor denominada

Intimidade" (1992)

acerca de uma

amor apaixonado através do qual se

estabelece uma conexão entre amor e ligação sexual. Segundo este autor, " O amor apaixonado é marcado por uma urgência que o coloca à

parte das rotinas da vida cotidiana (...) O envolvimento emocional com o outro é invasivo - tão forte que pode levar o indivíduo ou ambos os indivíduos, a ignorar suas obrigações habituais. (...) Tem uma qualidade

de encantamento que pode ser religiosa em seu

fervor. Todo mundo parece de repente viçoso, embora talvez ao 70 Existe muita controvérsia entre os autores no que se refere às origens do amor romântico. Segundo Macfarlane, uma das localizações mais antigas para o seu surgimento é a Europa meridional nos séculos XI e XII, vinculado às tradições do amor cortês.(1986: 335)

112

mesmo tempo não consiga captar o interesse do indivíduo que está tão fortemente ligado ao objeto de amor. (...) É

perturbador das

relações pessoais, (...) arranca o indivíduo das atividades mundanas e gera uma propensão às opções radicais e aos sacrifícios. Por essa razão (....) é perigoso", (p.48) Giddens considera que "o amor apaixonado é um fenômeno mais ou menos universal" (idem) e por perturbar as relações pessoais, tornase perigoso, o que fez com que ele nunca tenha sido reconhecido como uma base necessária ao casamento. Neste sentido, o amor romântico embora tenha incorporado alguns elementos do amor apaixonado difere deste que, se por um lado sempre foi libertador, na medida em que quebrava a rotina e o dever, por outro sempre se manteve à parte das instituições existentes. Além disso, embora o amor romântico implique em atração instantânea, esta tem que ser completamente separada das compulsões sexuais/eróticas que caracterizam o amor apaixonado. Para Giddens, o amor romântico é essencialmente um amor feminilizado, estando sua gênese ligada a um conjunto de influências que afetaram as mulheres a partir do final do século XVIII. Ele destaca três grupos de influências: a criação do lar, a modificação nas relações entre pais e filhos e a maternidade. Tratando-se dos dois primeiros grupos de influências é de conhecimento geral que, em nossa sociedade, até pelo menos o final do século XIX,

o domínio do homem sobre a mulher era quase que

113

ilimitado e plenamente justificado pelas ideologias vigentes. Neste período a figura masculina se encontrava bastante vinculada ao espaço da casa. Todavia, o domínio direto do homem sobre a família começa a declinar quando ele deixa de ser o centro do sistema de produção devido a separação entre o lar e o local de trabalho, o que ocasiona um maior controle das mulheres sobre a criação dos filhos. Com isso reforçou-se a imagem da “esposa e mãe” e a separação dos domínios de um e de outro sexo e a associação da maternidade com a feminilidade se tornou quase que um traço da personalidade feminina. A separação de esferas de ação entre homens e mulheres colocou o amor dentro do universo feminino. Os ideais românticos estavam relacionados à subordinação da mulher ao lar e ao seu relativo isolamento do mundo exterior, mas ao mesmo tempo propiciaram à mulher o desenvolvimento de novos domínios de intimidade, pois tornaram-nas "especialistas do coração" permitindo

o contato entre

elas em condição de igualdade pessoal e social. As mulheres se tornaram confidentes e a amizades entre elas ajudou a superar problemas e desapontamentos no casamento. Coincide com este período o consumo ávido de novelas e histórias românticas por parte das mulheres, o que reforçava os ideais do amor romântico, ao mesmo tempo em que introduzia elementos não vivenciados no cotidiano e que até mesmo constituíam uma recusa da realidade vivida. Tomando, por outro prisma, a mesma temática, Viveiros de

114

Castro e Benzaquen Araujo ( 1977), discutindo a noção de amor na tradição cultural do Ocidente moderno, tendo por base a obra "Romeu e Julieta" de Shakespeare, texto no qual se define o amor como uma "concepção particular das relações entre o indivíduo e a sociedade" subordinada à idéia ocidental do indivíduo liberto dos laços sociais e profundamente relacionado a um universo formado por indivíduos, onde se dá extremo valor às relações interindividuais. Assim, estes autores sinalizam que esta noção aponta para uma concepção de mundo que tem no indivíduo sua categoria central. Segundo eles, "O amor é uma noção que designa, na linguagem corrente, uma modalidade de 'afeto', ou

'sentimento'; designa também

determinadas relações sociais em que predominaria o componente afetivo ou emocional, o qual, por sua vez, estaria associado à idéia de escolha, de opção individual. A .tal tipo de relações se costuma opor as relações marcadas pela obrigatoriedade, sancionadas por códigos exteriores ao indivíduo. " (p.132) No século passado,

no Brasil,

houve uma mudança de

sensibilidade em relação ao que se chama ora de amor, ora de sexualidade, que ocasionou um afastamento dos corpos dos que se amam, os quais passaram a ser mediados por um conjunto de regras prescritas

pelo

amor

romântico

(Maria

Ângela

D’Incao,

1989).

Investigando a literatura ficcional brasileira do século anterior, D'Incao encontra referências claras a uma aproximação física entre namorados, ainda que, por outro lado,

a vigilância com que eram tratadas as

115

mulheres e a valorização extremada da virgindade, principalmente nas classes altas, funcionasse como uma garantia do status da noiva, encarada como um objeto de valor econômico e político sobre o qual se assentava um sistema de herança de propriedade. O século XIX é o período em que a ficção romântica71 passa a descrever

o amor como um estado da alma e a escolha do cônjuge

como condição de felicidade. Afirma

D’Incao:

“ O amor parece ser uma epidemia que contagia as pessoas, as quais, uma vez contaminadas, passam a suspirar e sofrer no desempenho do papel de apaixonados. Tudo isso em silêncio, sem ação, senão as permitidas pela nobreza desse sentimento novo: suspirar, pensar, escrever e sofrer. Ama-se, então, um conjunto de idéias sobre o amor" . (p. 66) Assim, a mudança de um para outro sistema não implicou num afrouxamento do controle exercido sobre as mulheres, mas se passou a desenvolver uma vigilância mais sutil e eficaz, aquela que é realizada pelo próprio indivíduo. Com isso, o autocontrole e a auto-vigilância passaram a intermediar os corpos. Vemos, assim, que as diversas representações que temos acerca do amor são influenciadas e permeadas por estas variações, daí porque nas entrevistas foram inúmeras as referências feitas à paixão e ao romantismo como sendo expressões de amor, o que será objeto de análise no próximo item deste trabalho, 71 D'Incao cita algumas obras brasileiras como "A Moreninha"(1844-45) e "Os Dois Amores" (1848) de Joaquim Manoel de Macedo, e "Senhora" (1875) de José de Alencar.

116

O quadro a seguir ajuda a visualizar melhor as diversas modalidades de amor referidas neste item do trabalho.

117

B) "O AMOR E O RESPEITO RECÍPROCOS SÃO A BASE

DA

RELAÇÃO" "Eu acho que a base (do casamento) é o amor e o respeito. Eu acho que a partir do momento que existe o amor, no sentido mais amplo da palavra. O amor engloba tudo. (...) E depois do amor, logo atrás o respeito (...) Principalmente amor. Eu acho que o casal pra casar, pra constituir família hoje em dia, ele tem que ter certeza que se ama, o resto se dá um jeito. " O

depoimento de Beatriz, uma informante casada -

que foi

ratificado por seu marido - resume boa parte das colocações que foram feitas sobre o que é necessário para que um relacionamento conjugal tenha êxito. A referência ao termo amor foi unânime em todas as categorias entrevistadas ainda que este sentimento não fosse definido claramente e que, em geral, fosse associado a outros sentimentos ou situações, como veremos a seguir. No contexto das entrevistas,

o amor é entendido como uma

concepção englobadora que tudo envolve e tudo abarca. Neste sentido amar é respeitar, é ser companheiro, é dialogar, é compreender, e ter confiança, é aceitar o

outro como ele é, é ser tolerante, é renunciar e

ceder quando necessário, é ser paciente, é se doar, é confiar, é ser amigo, é perdoar ... O amor é a base, é o ponto de sustentação da relação. O depoimento de Beatriz, uma informante casada do grupo 1b (com idade acima de 42 anos), é representativo no sentido da importância atribuída pelo grupo de entrevistados ao amor, como poderá ser visto nas

diversas falas que serão referidas ao longo deste item. Diz ela: " Eu acho que se existir o amor verdadeiro (...) tudo é possível. Depois que acabou o amor ... dificilmente dá pra segurar as coisas, porque aí vai desencadeando uma atrás da outra, não existe mais o amor pra segurar, porque a gente quando ama, a gente passa por cima das coisas, segura muita coisa. a gente releva, porque a gente ama, a gente não quer perder." A referência a um amor verdadeiro traz embutida a idéia de que existem outros tipos de amor "não verdadeiros", amores "falsos", portanto. Sobre esta questão, uma referência direta e que foi constantemente citada diz respeito a diferença entre amor e paixão ou a questão do amor apaixonado já tratado no item anterior. O primeiro é encarado como duradouro e fundamental no casamento, enquanto que a segunda é vista como um "fogo perigoso e perturbador" , cuja tendência é desaparecer com o tempo, podendo inclusive implicar, também, no término do casamento. Sobre este aspecto, o pertencentes

depoimento

de

ao grupo 2d (homens separados)

dois informantes é ilustrativo desta

questão. Segundo Gilmar, " Paixão é uma coisa muito séria , não é todo mundo que encara uma paixão, que sabe sair de uma paixão , que ultrapassa uma paixão. (...) É preferível

amar do que se apaixonar. O amor é

gostoso, a paixão é horrorosa. (...) A paixão é que nem um vulcão. É lindo só saindo a fumaça , jogando aquela lava, mas a conseqüência das lavas caindo depois ... Se queima e, às vezes,

acontece até

morte. (...) É muito bom pra muito pouco. A paixão acaba, o amor não acaba . " Um outro informante deste grupo, Gerson, também analisa este aspecto: "(Pra casar) tem que gostar mesmo. Não é aquele negócio de ter paixão (....) que acaba rapidinho." É interessante a ênfase dada por Gilmar no caráter negativo, pernicioso e perigoso

da paixão, encarada como um sentimento

antagônico ao amor , efêmero , do qual é difícil, porém

necessário

"sair". Num outro sentido, a paixão também foi referida como uma fase inicial do casamento que com a convivência tende a se transformar em outros sentimentos como amizade e companheirismo que, por sua vez, se equiparam ao amor. Sob este enfoque, tal como disse Giddens (1992), pode-se estabelecer uma relação entre amor e ligação sexual, apesar

do

sexo

ser

considerado

pelos

informantes

como

um

complemento do amor que é visto como fundamental, o que será analisado em detalhe no capítulo 5 deste trabalho. Beatriz, uma informante casada do grupo 1b, diz: " (...) depois com o passar do tempo acaba aquele fogo do inicio, aquelas descobertas ...". Eliana, uma informante divorciada, também refere este aspecto: " Quando duas pessoas se casam, elas se propõem a crescerem (...) fugindo um pouco daquele amor inicial, daquela paixão (...) de todo aquele fogo e ir chegando numa relação mais

madura ..." O casal, Beth e Bruno, pertencente ao grupo 1b, complementa esta idéia. Diz Bruno: " Dizem que com o passar do tempo o amor se transforma em amizade. Eu acho que não é bem o amor, eu acho que o que acaba é aquela paixão inicial, aquela ... empolgação. Isso, com o passar dos anos tende a se transformar em amizade e amizade sincera ..." Sua parceira continua: "(...) Eu acho que o amor não acaba não, eu acho que aquela empolgação acaba (...) vai ficando uma coisa mais suave. (...) Agora eu acho que essa amizade que ele fala, eu acho que isso é o amor pra mim ...". A referência constante à paixão como sendo um fogo que, como tal, consome e tende a se esgotar na relação cotidiana de casamento é um dado interessante, pois se por um lado a paixão é encarada como um elemento que perturba as relações afetivas e até contrasta com o amor e, desta forma, como mencionou

Giddens (1992),

não é

reconhecida como uma base necessária ao casamento, por outro o casamento parece ser sempre movido por ela na sua fase inicial, daí a associação com o termo empolgação e com a idéia de ardor sexual característica, segundo os informantes, deste período. Surge, assim, nos discursos do grupo, a associação do amor com a amizade e o companheirismo, este último já citado anteriormente, pois na medida em que o casal, através da convivência, ultrapassa a fase da descoberta inicial - onde o elemento sexual se manifesta em

todo o seu ardor, através da paixão - ele chega na fase do companheirismo onde a ênfase se desloca da questão sexual para a um relacionamento pautado no estar com o outro incondicionalmente. Isto não significa que o sexo exclua o companheirismo

- na verdade ,

quando relacionado ao casamento, ele está diretamente relacionado ao amor - ou vice-versa. A diferença está, segundo os informantes, na ênfase que é dada a um e outro em diferentes momentos. Ana, uma informante casada do grupo 1a, diz: "Claro que muda, né? Do início da relação pro meio, mas não muda a qualidade, o sentimento, a qualidade, é sempre gostoso, por mais que ... possa até mudar a intensidade ..." O depoimento de Fernando, um informante solteiro, ilustra bem esta discussão: " A gente vê a questão das pessoas que já são idosas e que se tratam carinhosamente. Já não há aquele amor, mas há aquela amizade. É o amor, né?, mas se transforma naquela coisa não só física (...) mas naquela amizade realmente." Nas falas dos entrevistados não existe clareza com relação a estes sentimentos - amor, paixão e amizade ou companheirismo - pois eles se misturam e mudam de significado de acordo com o contexto. Em alguns momentos aparece a idéia de seqüência: a paixão é sucedida pelo amor e , depois, pela amizade; em outros, destaca-se a idéia de imbricação, ou seja, estes sentimentos aparecem sobrepostos uns sobre os outros; por fim, surge, também, a idéia do amor como um sentimento englobador que reúne todos os outros em si mesmo.

Goldenberg (1991), em seu estudo já citado sobre a identidade masculina,

identificou

entre

os

seus

entrevistados

os

mesmos

sentimentos aqui referidos: o amor, a paixão e a amizade. Em sua análise ela considera que o

amor contrasta com a paixão, que é

encarado como um sentimento provisório que se transforma ou acaba no decorrer do relacionamento, transformando-se no amor que para se manter precisa de alguns resíduos desta, sob pena de transformar-se em amizade.(p. 55) Acredito que, para o grupo entrevistado, é possível considerar, a partir da discussão aqui entabulada, que o amor é um sentimento englobador, que abarca a paixão e a controla, impondo limites a ela, da mesma forma que encompassa a amizade ou o companheirismo citados. Assim, o amor é o sentimento único que, ao longo da relação de casamento assume feições diferentes. Na fase inicial do relacionamento, ele

é

caracterizado

pelos

entrevistados

como

o

amor-paixão

("empolgação", "fogo", "ardor") , porém com a vivência cotidiana ele tende a se transformar no amor-amizade ( "suave", maduro") , sem nunca deixar de ser amor. É importante ressaltar, tal como Goldenberg, que estas categorias não são excludentes, daí a idéia de imbricação existente entre elas, pois se assim não for, o relacionamento tende a se desfazer, seja por que a paixão não resiste ao cotidiano, seja porque a

amizade deixa de lado a

paixão ou resíduos dela e se transforma num sentimento fraternal. O respeito na relação Por

ser

englobador,

o

amor

é

associado

a

outros

sentimentos/requisitos necessários ao casamento. O respeito foi outro requisito bastante mencionado, pelo conjunto dos entrevistados, como fundamental na relação. A palavra respeito foi citada inúmeras vezes e sempre associada a um contexto específico como a questão da individualidade ( opiniões, espaço de cada um e características pessoais) e da fidelidade (sexual e para com o sentimento do outro), aspectos estes que serão retomados no capítulo 5 deste estudo. O depoimento de Dora, uma informante solteira, é semelhante ao de Beatriz, citado no início deste item: ( o casamento) é uma relação a dois que eu acho que deve ter muito respeito, porque o casamento que não há o respeito entre os dois, não pode haver casamento (sic). O amor e o respeito, acima de tudo pra mim. Porque eu acho que um casal que não tem o amor e não tem o respeito é difícil você conseguir dar certo." Somente um casal pertencente ao grupo 1b, Berenice e Benito, situou a questão do respeito num contexto mais específico e conservador: o respeito que a mulher deve ao marido, como vemos a seguir. Berenice diz: "... As moças de hoje acham que são direitos iguais. Eu acho que a gente deve respeitar o marido (...) Eu ainda acho que o que faz muito do modernismo e que talvez prejudique o casamento é o casal não se respeitar, porque as moças de hoje tem mania de achar ... eu digo as moças porque sempre a corda fraca é a mulher, né? porque no homem nada pega, mas eu acho assim que não tem aquele respeito pelo marido (...) então eu acho que a mulher deve

respeitar o marido, seja no que for. Não é que vá respeitar pra ser é ... ficar toda de miudinho, não. A gente enfrenta, que também ninguém pode ser cordeirinha, né?, mas eu acho que hoje em dia não tem respeito entre o rapaz e a moça e a moça e o rapaz. Eu acho que isso é uma infelicidade muito grande, não haver respeito ..." Aqui o termo respeito é associado à idéia de falta de consideração que, segundo

o casal, tem sido

característica

dos casamentos

modernos. Em relação a este aspecto, Berenice e Benito, estão de pleno acordo o que em parte se justifica pelo fato de eles terem casado na década de 40, e terem sido socializados na década de 20, período em que o modelo de relação entre homens e mulheres se assentava na diferenciação rígida e desigual de papéis sexuais, numa hierarquia onde os direitos de cada um

não eram necessariamente iguais como se

defende hoje. Neste contexto,

o respeito ao marido é plenamente

justificável, até porque, segundo Berenice, ao casar, a mulher deixa de pertencer à família de origem

e passa a pertencer ao marido, o que

pode ser visto em sua fala: " ... porque automaticamente, (quando se casa) a gente deixa de pertencer àquela família, o pai e a mãe já ficam noutro plano, porque a gente pertence ao marido, o marido é que sustenta ..." Apesar de ter citado a dependência econômica como justificativa para este pertencimento,

Berenice relata que sempre exerceu uma

atividade profissional durante a sua vida de casada, ainda que esta fosse essencialmente feminina, como exigia o período, o que justifica a

sua postura de certo modo combativa, expressa em sua fala inicial ("enfrenta", "não ficar de miudinho", "não ser cordeirinha"). Benito, seu companheiro de casamento, está de pleno acordo com as colocações feitas por ela acerca do respeito que a mulher deve ao marido. Sobre este aspecto, diz ele: " É a mesma coisa que a pessoa chegar e dizer assim: olha, eu sou casada, mas eu obedeço mais o meu pai do que o meu marido. Não pode, que negócio é esse? Você quando casou, você rende mais homenagem ao esposo do que ao próprio pai." E continua ele: " Olha, eu ainda sou das palavra de Cristo ... de Deus, quando dizia: 'serás submissa ao homem depois de casada, enquanto o homem existir', porque esse negócio de o camarada casou e depois querer (a mulher)

cantar de galo, não. Mulher deve ficar lá nos

seus direitos e o respeito, o que vale é o respeito entre ambos. Se não houver respeito, aí não existe mais nada". Apesar de se referir à idéia de submissão, Benito menciona, em seguida, a questão dos direitos de cada um dos cônjuges, o que está em concordância com o que foi dito por Berenice que, em outros termos significa que admitir a hierarquia existente no relacionamento do casal, não implica em ter submissão total ao homem, pois ambos possuem direitos que devem ser respeitados.

A Compreensão e o Diálogo Outro dado que aparece associado ao amor e ao respeito é a

compreensão e o diálogo. A convivência intensa com o outro, implica em o casal aprender a conviver com as diferenças que são inevitáveis por maior que seja o grau de afinidade dos mesmos. Aqui se coloca a questão da eliminação da alteridade abordada por Vainfas (1992), que é algo extremamente valorizado, pois vige entre os entrevistados que entre a casal tem que haver entendimento e a discórdia só é bem vista se servir como elemento de amadurecimento, fortalecendo o respeito e a confiança que deve haver entre o par. Beth, uma informante casada do grupo 1b, diz: "Pra mim o mais importante ( no casamento) são os filhos e a compreensão que a gente tem, o companheirismo, a amizade e ser amigo um do outro, eu acho fundamental. (...) Havendo amor, companheirismo, compreensão, amizade, eu acho que o amor ele é ... um conjunto, né?, de amizade, de companheirismo, de compreensão (...) Isso é o amor pra mim. (...)Havendo tudo isso, eu acho que é difícil os dois se separarem." Vê-se em seu depoimento que, mais uma vez, o amor é colocado como um conjunto que envolve uma série de outros requisitos, em tese, garantidores do relacionamento. Fernando, um informante solteiro,

discute a questão. Segundo

ele, " O importante é o amor, a compreensão, estar disposto a compreender o outro, pra que haja um bom relacionamento. A gente não vai querer um relacionamento perfeito, mas que com todas as dificuldades cada um vá superando (...) e aceitando o outro ..."

A compreensão, além de aparecer associada ao amor, é sempre referida como um requisito importante na superação das dificuldades que envolvem o casal nas relações cotidianas. Eliana, uma informante divorciada, analisou este assunto: " Compreensão é um palavra tão teórica, tão longe da vida da gente ... mas compreensão é um ato, (...) é você entender que você vai viver com uma pessoa que é totalmente diferente de você (...) e que você não vai poder modificá-la (...) É tentar entender ... é ter amor (...) é relevar uma série de coisas. (...) Você vai viver de uma outra maneira, com uma pessoa que tem costumes diferentes dos seus, educação diferente da sua." Para que as dificuldades da vida em comum sejam amenizadas, o diálogo é encarado como um dado fundamental pelos entrevistados. Novamente é Eliana que refere este aspecto: "Conversar demais, acima de tudo, pra gente não guardar nada pra amanhã. Tudo precisa ser dito. Aquilo ali, às vezes tem uma importância imensa praquela pessoa e pra ti não tem nenhuma importância.72 Ana, uma informante casada do grupo 1a, reforça a importância do diálogo não só com o objetivo de resolver problemas, mas acima de tudo como uma forma de compartilhar todos os momentos vividos conjuntamente pelo

casal ou individualmente por cada um dos

72 O caso de Eliana, justifica a ênfase que ela dá ao diálogo e à necessidade de aprender a conviver com as diferenças. Seu casamento durou apenas 3 anos o que ela lamenta profundamente, pois gostaria que a sua relação "tivesse dado certo". Um dos motivos que ocasionou sua separação, segundo ela, foi a dificuldade que teve em lidar com as peculiaridades de comportamento do marido que, em alguns aspectos, diferiam muito de suas próprias características. Ela avalia que foi intolerante e que lhe faltou maturidade e apoio familiar no sentido de auxiliá-la a lidar com a situação.

parceiros. Diz ela: " ... bom é você poder conversar, no meu caso, assim, as pequenas coisas, porque tem coisas pequenas que (...0 se você não falar na hora que aconteceu contigo, ali, (...) você esquece, ou então passa por cima e não comenta com ninguém. Se você tá casado, como você tá muito tempo com a pessoa, então você chega, já vai comentando, porque a pessoa tá ali contigo. (...) Essa troca é mais intensa. (...) Então, eu acho que isso é bom, essa troca, o tempo todo você tá falando das coisas que te aborreceram, das coisas que te deixaram feliz ..." Béjin (1987) considera que, em termos ideais, a coabitação juvenil, estudada por ele, pressupõe que entre os parceiros exista um nível absoluto de franqueza o que implica em "não esconder nada, dizer tudo, revelar suas infidelidades, até suas masturbações"( p. 189). Goldenberg (1991) analisa este fato entre os homens por ela estudados e

verifica que o ideal de complementaridade total com a

esposa aparece somente entre o grupo monogâmico. Os homens poligâmicos, acham desnecessário a "lógica confissional" e não partilham todas as experiências com as esposas. Entre o grupo por mim entrevistado, de modo geral, o diálogo aparece como um requisito importante à medida em que cria um espaço maior de intimidade e de franqueza, o que permite ao casal estabelecer uma base de confiança mútua. Todavia, dois casos são ilustrativos de posturas extremas da "lógica confissional" referida por

Goldenberg. Benito, um informante pertencente ao grupo 1b, defende o respeito e compreensão como requisitos para o casamento e acredita que, numa forma de interpretação bem de acordo com uma certa "cultura masculina" justamente por isso, não é necessário contar tudo para a esposa. Ele cita o caso da infidelidade e afirma que numa situação assim o marido não vai ser "panaca" de chegar em casa e contar para a esposa a sua "traição". Contar, para ele, é que constitui uma "falta de respeito", como diz ele: " Isso eu acho que seja um abuso do homem para com a mulher. Ignorância, acho uma grande ignorância." No outro extremo, Fred, pertencente ao grupo 3a, composto por homens solteiros, ressalta em seu depoimento a importância do casal ajudar-se mutuamente e em todas as situações de impasse, conversar para chegar numa posição intermediária que atenda os dois. Ao tratar da mesma questão - fidelidade - ele menciona que teve um relacionamento com outra pessoa durante um namoro fixo e acabou por contar a "traição" para sua companheira. Diz ele: "Quando aconteceu comigo, eu não consegui esconder. Eu falei pra pessoa, fui bastante franco. A pessoa ficou magoada comigo, chorou, se bateu, foi embora. Eu dei um tempo pra ela, depois ela me procurou."

A idéia de reciprocidade Um último aspecto que gostaria de referir neste item, diz respeito

à idéia de reciprocidade que permeia toda a discussão acerca do amor e dos demais requisitos aqui citados e considerados,

pelo segmento

analisado, como fundamentais numa relação de casamento. A reciprocidade, como sabemos, é um tema clássico da literatura antropológica expresso, principalmente, na obra de Marcel Mauss73 que, em sua análise da civilização escandinava e em muitas outras, verificou que as trocas e os contratos são feitos através de presentes teoricamente voluntários, mas que em verdade são obrigatoriamente dados e retribuídos. O que, num primeiro momento, parece apresentar um caráter

voluntário e, portanto, "livre e gratuito", na verdade,

quando analisado em profundidade , se reveste de um "caráter imposto e interessado". No sistema de "prestações totais" analisado por ele, um dos elementos essenciais é a obrigatoriedade de retribuir a dádiva recebida e é justamente este caráter crucial da troca que pode ser articulado com o casamento. De acordo com as informações coletadas através das entrevistas, o casamento é pensado como uma relação fundada na reciprocidade, aliás expressa no discurso formal que o instaura (civil e religioso), onde são estabelecidos deveres e direitos recíprocos. Ele é, em grande medida, uma relação permeada por "doações" que, a rigor, implicam em uma contrapartida ( o retorno do dom) daquele que o recebe. Criam-se, assim, laços de reciprocidade que quando não cumpridos, enfraquecem o

relacionamento e podem provocar o rompimento entre as

partes

73 Estamos nos referindo aqui ao seu conhecido e referencial "Ensaio sobre o dom. Forma e razão da troca nas sociedades arcaicas", datado de 1923.

envolvidas. A reciprocidade envolve, portanto, três movimentos que juntos completam um ciclo: o dar, o receber e o retribuir. A realização deste ciclo é crucial nas relações de conjugalidade, pois se não houver retorno na relação ela tende a se desfazer, como veremos no capítulo 5. Atualmente, parece haver uma maior exigência nesse sentido, apesar de - como foi dito por alguns informantes existirem relacionamentos caracterizados pela acomodação de um dos parceiros diante de uma situação que não é satisfatória para ele. Entretanto, de modo geral, uma premissa básica é como disse Bóris, um informante casado do grupo 1b: " ... cada um tem que dar, sem procurar ser cobrado ..." Aqui

está claramente expressa a idéia de que cada uma das

partes tem que cumprir com o seu papel sem que seja necessário haver cobrança. Porém, se uma das partes deixa de retribuir, aquele que se sente lesado vai reagir de alguma forma, pois o circuito estabelecido de comum acordo foi rompido. O sentido da reciprocidade foi claramente expresso no discurso das categorias entrevistadas através das noções de "apoio mútuo", de que "cada uma das parte tem que ceder um pouco", de que "você vai lá, coloca o que você acha; a pessoa coloca o que ela acha",

de que "as

relações têm que ser trabalhadas em conjunto" e de que "tudo tem de ser compartilhado". Em relação aos requisitos aqui discutidos - amor , respeito, compreensão, diálogo, amizade ou companheirismo - mais fortemente a reciprocidade se coloca, pois eles só se justificam,

e o casamento

também, se ambas as partes se predispuserem a dar, receber e retribuir sempre, completando o ciclo. Caso contrário, como disse Beatriz, uma informante casada do grupo 1b: " ... que adianta um ter um amor grande pelo outro, quando não é correspondido? "

C) "ANTIGAMENTE ERA ASSIM ... HOJE EM DIA ..." Durante

as

entrevistas,

os

informantes

referiam-se

constantemente ao casamento "atual" tendo por base de comparação o casamento "antigo" vivenciado por pais ou avós ou - no caso dos informantes mais velhos - pautado na sua própria experiência74, como pode ser visto ao longo deste trabalho. Neste sentido, eles estabeleciam comparações, ressaltando o que

consideravam como os aspectos

positivos e negativos de um e de outro modelo, o que será objeto de análise neste item. Ao tratar do relacionamento conjugal os entrevistados fizeram referência a uma fase anterior, o namoro, tanto no sentido de comparar o namoro "de hoje" com o namoro "de ontem", quanto no de verificar as mudanças que ocorrem do namoro para o casamento. Em função disso, antes de abordar o casamento propriamente dito, farei uma digressão intencional, com o objetivo de discutir brevemente esta etapa que precede o casamento.

74 Em nenhum momento os entrevistados fizeram referência a uma data ou período específico. A marcação do tempo foi feita a partir de colocações como "antes", "antigamente", "há algum tempo atrás", "na nossa época", "a geração passada".

Namoro e casamento Macfarlane (1986) em seu estudo, já referido, sobre o casamento e o amor destaca que nas sociedades onde se valoriza o individualismo, o namoro é, acima de tudo, uma preocupação dos parceiros e tende a ser prolongado e bastante elaborado. Todavia, diz ele, na maior parte das sociedades humanas os indivíduos não têm tanta importância e o namoro, os sentimentos do casal e o papel destes na relação é considerado irrelevante.(ver capítulo 3) Thales de Azevedo (1986), em trabalho que é um clássico sobre o tema, ao analisar as regras do namoro à antiga destaca que no Brasil colonial, a escolha dos cônjuges era um privilégio quase exclusivo do pater familias e por isso o casamento " interessava à solidariedade e à integridade dos grandes grupos de parentesco em que se apoiavam a ordem social, a economia, a política e a própria realização pessoal para os indivíduos. " (p. 7). No entanto, a partir do século XIX este antigo padrão passou a ser substituído pelas exigências do amor romântico, firmando-se na norma do "consentimento individual condicionado" e apoiado em critérios de escolha bem definidos relacionados à classe social dos candidatos e à "simpatia, atração física e correspondência afetiva" (p. 8). É neste contexto que Azevedo analisa o namoro tradicional, encarado como uma etapa que deveria ser sucedida, necessariamente, pelo noivado e pelo casamento, e precedida pelo flirt, este último "um misto de ousadia e recusa", que não

é "somente galanteio e olhares,

mas propicia por vezes tocar, pegar" (p.23). Além disso, o namoro faz

parte de um sistema complexo de regras e valores que visa "encaminhar e facilitar" a escolha adequada dos futuros cônjuges, evitando a promiscuidade sexual e garantindo a união monogâmica e habituar os futuros nubentes aos papéis a sem desempenhados após o casamento. (p.47) Entre o segmento por mim estudado, o namoro é pensado como uma fase importante na medida em que marca o início de uma relação que pode ou não ser aprofundada e ter continuidade. Um dado que reflete o momento atual e que foi bastante abordado nas entrevistas é a incorporação do sexo no namoro. O sexo se tornou tão banal nos relacionamentos que perdeu muito do significado que tinha como um marco no aprofundamento da intimidade entre um casal. Sob este aspecto, Eliana,

uma informante

solteira fez referência a uma

colocação que ouviu de uma amiga que dizia o seguinte: " .... Hoje em dia é mais comprometedor você ir ao cinema com uma pessoa do que ir pra cama, porque todo mundo vai pra cama com todo mundo e ... agora ir ao cinema já significa que você tem um compromisso com aquela pessoa. " Segundo as percepções do grupo entrevistado, por ser uma fase de conhecimento mútuo da díade, nele as relações são mais "leves", e os parceiros tendem a não revelar de maneira plena suas características, o que, de acordo com vários informantes, só acontecerá no casamento. Além disso, foi mencionado que durante o namoro o lado afetivo dos dois se manifesta mais através do carinho e da atenção, mas com o casamento este quadro tende a mudar.

É interessante observar que os entrevistados que mais referiram a mudança que ocorre do namoro para o casamento foram os separados, mais especificamente, dois homens e duas mulheres, como podemos ver em seus depoimentos. Eliana diz: " Tudo pra mim no dia-a-dia precisaria ter um pouco de requinte, sabe? Requinte. A maneira de tratar, a forma educada de você passar as coisas ... que isso parece assim que quando você casa, todo esse encanto se perde (...) fica doméstico demais (...) Vai se perdendo e com esse se perdendo pra mim, muitas coisas vão (...) se desgastando (...) Quando a gente entra entre quatro paredes, cai por terra, caem as máscaras, a gente vai viver o dia-a-dia, você vai viver com a intimidade de uma pessoa que não foi educada contigo, que não teve a mesma formação" Gilmar, outro informante separado também analisa esta questão. Diz ele: "Quando você tá namorando (...) as pessoas se cobram muito, (...) mas quando casa é aquele cobrar (...) não com respeito (...) é um cobrar com ciúme (...) é diferente. (...) A gente namorava, nunca pensei que ... ia continuar ou ser melhor. Não, piorou! Quando assina aquele papel lá, algumas pessoas acham aquilo assim como ... um título de propriedade ..." Gerson, outro informante separado, foi bastante enfático: " ... quando estavam namorando, ninguém olhou o defeito um do outro. Veio descobrir o defeito mais tarde.(...) Quando você tá vivendo

maritalmente com uma pessoa, o relacionamento é um, quando com aquela pessoa você vem a casar (...) começa a desunião. (...) (antes) A mulher não se sente segura (...) mas a partir do momento que ela casa, ela passa a ter a segurança que ela não tinha ... e, muitas vezes, ela passa a mostrar o que ela é ..." Todavia, não são apenas os depoimentos de separados que enfocam tal aspecto. Beatriz, uma informante casada do grupo 1b, diz: " Quando você casa, que vai morar junto, você pensa que conhece o outro, porque nós, por exemplo, namoramos tantos anos ( 8 de namoro e 2 de noivado) que a gente pensava que se conhecia, mas nada, a gente não se conhece não. A gente vai se conhecer ali, ali é que a gente vai se conhecer verdadeiramente. Então o bom é essa descoberta, você descobrir o outro com as suas virtudes e os seus defeitos e você passa a amar aquela pessoa do jeito que ela é . O que acontece muito por aí, (...) o pessoal se casa, a mulher imagina o marido de um jeito e o marido não é aquilo que ela sonhou. Ela se desilude, se decepciona e lá se descasa. Então, nós passamos por essa fase (...) Eu (...) fiz assim um conceito de ídolo, eu idolatrei o meu marido, eu achei que ele era um Deus (...) Depois, eu fui cair na real, eu fui ver que ele era uma pessoa, que ele era um ser humano, que ele erra igual aos outros."75 Diana, uma informante solteira, aborda um outro aspecto em

75 Beatriz está se referindo a uma situação de infidelidade que ocorreu no seu casamento, por parte de seu marido, e que a magoou muito. Na época, eles tinham entre 3 e 4 anos de casamento e o que os ajudou a superar o problema foi o início da participação deles nos Encontros de Casais da Igreja católica, do qual eles faziam parte até o momento das entrevistas.

relação a esta questão. Segundo ela, "No namoro, você se agarra mais, se abraça, se beija, mas quando chega na hora do casamento, é difícil você ver um casal se beijar na boca, (...) tá se agarrando, (...) Aí, acaba mais ... eles se unem, mas se separam um pouco." Este aspecto já foi, de certo modo, abordado anteriormente, no contexto da discussão acerca da paixão, onde se analisou que, sem dúvida, passada a fase inicial do

casamento, o amor tende a se

modificar, assumindo uma feição diferente daquela vivenciada no namoro. Porém, isso não significa dizer que não haja mais amor, que o casal não manifeste mais o seu lado afetivo ou que haja a perda do interesse sexual.

Me parece que ocorre, sim, uma densificação das

relações entre o casal o que acarreta novas responsabilidades e compromissos mútuos. Por conta disso, todo o grupo enfatizou que "o namoro deve ser eterno" , ou seja, a expressão intensa da afetividade característica desta fase - o amor-paixão - deve ser transportada para o casamento e que se isso for feito existe grande possibilidade de a relação ter êxito. Goldenberg (1991) ressalta, a partir dos dados levantados por ela, que no casamento deve ser mantida uma certa dose de paixão a fim de que a certeza de possuir o outro não venha a ocasionar a perda do desejo e o relacionamento não venha a cair numa rotina que pode gerar o rompimento entre o casal. (p.55) Quanto ao namoro de "antigamente" foi colocado que há algumas décadas atrás o namoro possuía regras bem explícitas e havia inúmeras

restrições em relação à escolha do parceiro, à idade, ao nível social, ao sexo e a interferência familiar era muito mais definitiva e abrangente (Azevedo, 1986: Macfarlane, 1986), o que não ocorre mais , pois na atualidade as relações de namoro flexibilizaram-se a tal ponto que ele passou a ser uma segunda fase do relacionamento, o que foi mencionado por alguns informantes mais jovens. Uma primeira etapa que antecede o namoro é o "ficar com" que é um novo código de relacionamento que teve início na década de 80, que apresentas traços diferentes do namoro e de outros vínculos amorosos e é característico, principalmente, do comportamento de adolescentes de classe média e média alta. Segundo Jacqueline Chaves (1994), o "ficar com"76 é um

sistema relacional que apresenta alguns traços

distintivos. A falta de compromisso e a desvinculação do prazer como algo que implica no envolvimento mais intenso com alguém; o desejo momentâneo como o elemento que desencadeia o processo e envolve uma ação efetiva e sem maiores conseqüências; a ausência de uma intimidade "mais íntima", na medida em que o contato físico e/ou sexual não implica em envolvimento emocional com o parceiro, são algumas das características desta modalidade de relacionamento. A forma de encarar as modificações que o namoro vem sofrendo é diferenciada para o grupo entrevistado e, por isso, é

interessante

76 Mais modernamente, parece surgir no final da década de 90, uma variação do "ficar com", que vem sendo denominada de "ficação", um traço característico do comportamento de adolescentes de classe média alta, entre 12 e 15 anos, que nos clubes e festas noturnas, ficam com inúmeros parceiros com o objetivo, exclusivo, de beijar na boca. A "ficação" não envolve o relacionamento sexual e, de modo semelhante ao "ficar com", não tem maiores conseqüências, no sentido do estabelecimento de qualquer outro tipo de relação entre os parceiros que se beijaram. (Revista "ISTOÉ/1538 - 24.03.1999, p.62-64.)

analisá-la dentro de uma perspectiva geracional. O grupo mais maduro, aqueles acima de 40 anos e, principalmente, os casados, favorável

às

mudanças

e

as

remetem

para

o

não é

contexto

da

"irresponsabilidade". Em contrapartida, o grupo formado pela geração mais nova, situada entre 25 e 39 anos, tanto de casados como de nãocasados, encara com maior naturalidade as transformações que as relações afetivas vêm sofrendo nos últimos anos. O primeiro grupo, apesar de conviver de perto com as mudanças que têm se dado nos códigos amorosos - através dos filhos e netos - não consegue encarar com naturalidade os novos comportamentos. O casal Beatriz/Benedito aborda a questão. Segundo Benedito, "Hoje você vê pessoas se conhecendo numa festinha, encontro rapidinho e daqui a uma semana, um mês tá casando, sem ao menos conhecerem-se as famílias." O casal Berta/Bóris é mais enfático. Para eles o relacionamento sexual antes do casamento é um "pecado mortal" e o que ocorre, hoje em dia, e uma "inversão de princípios". Outro casal, Berenice/Benito, também é muito crítico. Diz Berenice: "Antigamente, o namorado ia, conversava com a namorada na porta, entrava, quando era dez horas ia embora. (...) Hoje em dia, ele chega às dez horas, dez e meia, vão pra festa, voltam duas ,três horas da manhã. Então, já não existe mais aquele namoro. Muitas vezes, a família nem sabe que tá namorando fulano. Aquele tradicionalismo que havia antigamente, de conhecer a família do noivo (...) eu acho isso muito legal e fazia com que os

casamentos fossem duradouros. (...) Hoje em dia, não se respeita nada. (...) O próprio enxoval que era um prazer a gente ir comprando, ir fazendo um bordadinho, tudo isso. Agora não tem mais nada, casa com a roupa do corpo, vai na loja, compra três camisolas, mudou muito." Benito concorda plenamente com a opinião da esposa e ainda complementa: "Antigamente, era tão tradicional que a pessoa dizia: olha, eu não vou casar , porque o meu enxoval ainda não tá pronto.(...) Não sei se nós somos antigos, se nos somos antiquados. Eu não sei se eles que tão certo ou se somos nós que tamos errados. Eu me julgo certo. Se a maioria acha que eu tô errado, eu prefiro ficar errado, mas com o meu pensamento." O grupo que pertence a uma geração mais nova, de modo geral, não partilha das opiniões do grupo anterior e encara com tanta naturalidade os aspectos referidos por estes , que não os questiona e até, em sua maioria, nem os refere na

discussão, a não ser quando

indagado acerca deles. Apesar disso, quando analisa a "fragilidade" das

relações

compromisso",

atuais de

são

atribuídas

"seriedade",

de

causas

como

"responsabilidade",

a

"falta

de

aspectos

levantados pelo grupo anterior, como veremos a seguir.

O "tradicional"e o "moderno" no casamento Após este longo parêntese voltaremos ao objetivo deste item que é tratar do casamento usando como ponto de referência os dois modelos

mencionados pelos categorias entrevistadas em seus discursos. Como já foi visto anteriormente (ver capítulo 2), os informantes consideram a existência de um casamento que é por

eles denominado de "antigo",

"tradicional", "conservador", "arcaico" em oposição a outro considerado "moderno", "atual", "dos dias de hoje". É interessante observar que somente os informantes pertencentes ao grupo 1b ( com idade acima de 42 anos), se assumem como inseridos

no modelo "tradicional", a

exemplo do depoimento de Beatriz: "Bem, nós (ela e o marido) somos um casal mais ou menos à moda antiga. Nós temos um pensamento diferente dos jovens de hoje." Beth, outra informante casada deste grupo, diz: " ... eu ainda sou do tempo antigo ..." À princípio, estes modelos se opõem - até mesmo pelo termo que os designa - principalmente, no âmbito do discurso, ainda que seja possível estabelecer interessantes correlações entre eles. Da mesma forma que foi possível visualizar a existência de dois modelos, identifiquei entre o grupo entrevistado, sob uma perspectiva geracional,

uma separação rígida de posicionamentos que

permite

classificá-los em dois grupos. O primeiro envolve todos os informantes das categorias 1b, uma entrevistada do grupo do grupo 2c ( mulheres separadas) e uma entrevistada do grupo 2b (mulheres solteiras). Este grupo foi associado ao modelo dito "antigo" de casamento. O outro grupo reúne todos os informantes pertencentes as demais categorias: 1a (casados), 2a e 2b (mulheres solteiras),

2c ( mulheres

separadas), 3a ( homens solteiros) e 3b ( homens separados). Estes

informantes foram associados ao modelo dito "moderno". Desde já, cabe ressaltar que ambos os grupos defendem o seu modelo

como

prioritariamente,

sendo

o

mais

adequado

e

nele

enfatizam,

as características positivas, mostrando-se bastante

críticos em relação ao outro que, supostamente, se lhes opõe. Digo, supostamente, porque em alguns momentos os dois grupos

se

interpenetram e, sem que o informante se dê conta, ele manifesta-se no discurso e/ou na vivência de forma diversa daquela que defende. Feitas estas considerações iniciais, passarei agora para a análise dos dados levantados, iniciando, primeiramente, com os pontos considerados negativos no modelo "antigo". O elemento mais citado - e temos aqui um elo em comum entre os dois grupos - diz respeito à "submissão feminina",

que concentra em torno de si vários aspectos.

Foi citado, de modo quase

unânime77,

como muito negativo no

casamento, o autoritarismo masculino associado à submissão feminina e à dependência da mulher em relação ao homem. Para o grupo mais jovem, o fato de as mulheres, da geração de seus pais e avós, não exercerem nenhuma atividade profissional e dependerem economicamente do marido, é encarado como um "atraso", pois implicava no fato da esposa ficar vinculada exclusivamente aos cuidados com o lar e com a educação dos filhos. Além disso, constituíam um impedimento para o ruptura do relacionamento, pois a mulher não tinha condições de sustentar-se sozinha e tornava-se alvo 77 Somente um casal já citado anteriormente, Berenice e Benito, se refere claramente ao modelo hierárquico, onde ambos os parceiros possuem direitos, mas ao marido, cabe um papel hegemônico na relação de casamento. Ver item anterior.

de estigma social se a separação viesse a ocorrer. O

depoimentos

de

informantes

de

ambas

as

categorias,

dimensiona melhor a discussão. Bruno, um informante casado do grupo 1b (com idade acima de 42 anos), diz: "A mulher antigamente não tinha independência, essa é que é a verdade, ela dependia do marido. Então, às vezes ela não se dava bem com o marido (...) e não tinha coragem de enfrentar uma situação, ser tachada de separada. Ela vivia uma vida sob o jugo do marido, vamos dizer assim,

(...) e achando que ela não tinha

condições de viver sozinha (...) ia levando mas não separava." Claúdia, uma informante solteira, fala das mesmas questões em outros termos: " ... hoje uma mulher pode optar por se separar, porque ela é independente financeiramente, ela ... não depende da ... mesada do marido (...) ela é autônoma ..." Beatriz,

uma

informante

casada

do

grupo

1b

,

acima

mencionado, também partilha desta idéia. Segundo ela, " ... uma mulher que vive dentro de casa, só pra cuidar dos filhos e do marido, ela não sai daquelas quatro paredes, ela se aliena totalmente (...) , ao passo que a mulher que trabalha, mesmo que seja no meu caso, dentro da minha casa, mas eu me relaciono com vários tipos de pessoas e isso pra mim é bom, porque eu converso todos os tipos de assunto em qualquer lugar, tanto no meu trabalho, como fora ... e converso com ele também". É interessante verificar a afinidade de discursos entre as duas

categorias que , em outros aspectos têm posições tão díspares. Cláudia, novamente, tem uma fala semelhante. Diz ela: Hoje não se concebe uma mulher que não tem uma proposta de trabalho, que não se profissionalize. (...) É claro que isso interfere nas relações, porque primeiro cria uma abertura pro mundo, prum novo relacionamento que não existia antes. Você tem acesso a pessoas diferentes do seu âmbito doméstico, você tem possibilidades de se realizar nesse outro âmbito ..." Eliana, uma informante separada, considera: "... as mulheres elas foram limitadas na sua educação (...), elas quase que não podiam achar, as coisas já estavam quase que determinadas para elas. Não passava pela cabeça delas, eu acho, mudar ou questionar aquela relação que elas tinham porque ... o que elas poderiam fazer sem ser aquilo, sem ser donas de casa? Elas não tinham uma profissão , elas saiam do teto do pai pro teto do marido. Elas foram criadas (...) pra serem mães e esposas devotadas, fiéis, compreensivas ..." Nestes depoimentos se menciona o modelo do homem como provedor financeiro e da mulher como mãe-esposa-dona-de-casa bastante referido

e discutido na literatura sociológica78 - como um

padrão que não mais atende os anseios e expectativas de homens e mulheres numa relação de casamento. Este foi o dado fundamental referido como negativo pelo conjunto dos informantes. Por oposição, foi mencionado como positivo no 78 Ver Rago (1985 ), Badinter (1986), Goldenberg e Toscano (1992), Vaitsman (1994), dentre outros.

relacionamento atual a entrada da mulher no mercado de trabalho, o que deu a ela independência econômica e provocou uma verdadeira reviravolta nas relações conjugais. Cláudia, uma informante solteira, enfatiza este aspecto: “Antes, as mulheres não tinham outra escolha, não podiam escolher: 'Ah! Eu quero fazer isso ou não.' Não é casar, ter filho ... cuidar dos filhos, cuidar do marido e ... e só, né? Podia ter alguma atividade, ajudar o marido no comércio, professora, ter uma boutique, mas são aquelas coisas compatíveis com o casamento, não é como hoje (...) 7que a gente tem (...) esse universo que não tinha antes, que é o universo profissional. Isso torna a relação muito diferente, porque na medida em que uma mulher não tem nenhuma perspectiva profissional (...) ela é absolutamente um apêndice daquele homem com quem ela vive. (...) Hoje, o casamento é constituído por duas pessoas autônomas, idealmente. (...) Então, é um elemento que eu acho que é um divisor de águas nos casamento de antigamente e nos casamentos atuais." Bruno, que pertence ao grupo 1b , incorpora esse dado novo como importante no relacionamento do casal: " Se eu tivesse que casar novamente, eu gostaria que minha mulher trabalhasse também, que eu acho ... que é muito bom para o casamento. Quando os dois trabalham, eu acho que o casamento é mais fácil de se levar, porque são duas pessoas independentes, que moram juntas e se gostam. Há que ressaltar nas falas destes informantes a ênfase na idéia de

que

ao

exercer

uma

atividade

profissional,

a

mulher

torna-se

"autônoma", o que, me parece, se dá de modo mais efetivo no âmbito financeiro, o que não significa dizer, absolutamente, que exista uma autonomia

entre

os

parceiros

no

cotidiano

das

relações

de

conjugalidade, pois de acordo com os dados levantados, há entre o casal uma forte dependência afetiva e material, resultante da própria idéia e vivência do casamento como a "união" entre o casal , aspecto este que será retomado e melhor discutido no capítulo 4 deste trabalho. Como foi mencionado anteriormente, os informantes ressaltaram os aspectos considerados positivos do modelo ao qual se sentiam mais identificados. Neste sentido, o grupo composto pela geração mais velha, destacou certos elementos, alguns dos quais já foram discutidos em itens anteriores, como:

um namoro sério e prolongado, que permitia

um maior conhecimento e entrosamento entre o casal, a formalização do casamento como garantia de durabilidade e maior compromisso entre os cônjuges, a coabitação e, por fim,

a existência de vínculos

mais fortes e duradouros entre as famílias dos cônjuges. Um aspecto interessante a ressaltar é que este grupo se reportou a uma suposta "irresponsabilidade" que caracteriza os casais mais novos e os jovens de modo geral, no que se refere ao casamento, pensamento este que, certamente, não é compartilhada pelo grupo que é alvo das críticas. Ester, uma informante separada, foi quem melhor traduziu esta idéia muito presente na colocações do grupo mais maduro. Segundo ela, "... quando existia casamento, o negócio era mais sério, (...) porque

havia assim um juramento. (...) Hoje em dia, é tudo deixa pra lá, é tanto deixa pra lá que o mundo tá assim. (...) É a atualidade, (...) não existe casamento, mas também eu duvido, eu quero que me prove se existe gente feliz, você não vê! A irresponsabilidade é tão grande, tão grande, ... Se não existe casamento, como as minhas filhas falam e todas falam: ah! eu vou experimentar, eu vou viver com um cara, eu vou experimentar. Então não vai com responsabilidade. Claro que não

vai

dar

certo.(...)

Hoje

em

dia,

o

pessoal

não

quer

responsabilidade e casamento é uma coisa que você se doa, uma vida a dois (...) é uma coisa muito forte, você precisa gostar mesmo da pessoa." Esta fala se repete no discurso deste grupo. Berenice, uma informante casada do grupo 1b, diz: "Quer saber de uma coisa? esse negócio da mocidade, da geração atual, eu acho que ... não querendo abranger a totalidade, mas você vê , o camarada ama, depois de três meses tão separados. Eu não compreendo aí o que seja amor nesse casamento. (...) Então tavam se iludindo, na minha opinião (...) esse pensamento jovem, atual sobre o casamento, ele não tem a profundidade do que seja de fato a responsabilidade do casamento. Seu marido, Benito, partilha da mesma opinião. Diz ele: "Eu acho que isso é ... não sei se até na expressão do termo é uma bandalheira, porque o camarada vai hoje, vai amanhã, por que casou-se? (...) Eu sou do pensamento de que a pessoa deve cumprir a sua responsabilidade, entende? E não pensar que isso seja uma

pagodeira, um pagode qualquer." Do ponto de vista do grupo que pertence à geração mais nova, algumas observações críticas foram feitas em relação ao modelo de casamento considerado "antigo". No que se refere à durabilidade do casamento foi colocado que grande parte deles duravam "até o fim da vida" porque não havia alternativa para a separação, como disse Fábio, um informante solteiro: " ... tinha uma série de valores morais que obrigavam essas pessoas a continuarem, tinha filho, tinha aquela coisa de ser separada ..." Por outro lado, diz ele, "( Hoje em dia) as pessoas se sentem mais livres pra fazer uma opção pessoal, não tá dando certo, então tchau!. (...) Os casamentos antigos se arrastam, os modernos não duram muito tempo." Sob

este

aspecto,

foram

enfatizadas

pelo

grupo

como

características positivas no relacionamento "moderno" a existência de uma maior abertura sexual, um maior espaço de igualdade entre os pares, a divisão de tarefas no espaço público e no espaço privado, a inserção da mulher no mercado formal de trabalho e a flexibilização do vínculos entre o casal, o que será abordado em detalhe mais adiante. Num outro nível, Ana, uma informante casada do grupo 1a (com idade abaixo de 34 anos) , observou que, inegavelmente, as mudanças num sentido mais amplo ocorreram e são visíveis, no entanto,

num

âmbito mais restrito se observa a manutenção de muitas práticas que, apesar de serem questionadas, não implicaram necessariamente numa mudança de posicionamento.

Segundo esta informante, "Olha, eu acho que mudar, muda sim. (...) Cada vez menos, as pessoas casam na igreja e no cartório. (...) Cada vez mais (...) os meus colegas e os meus amigos ... optam por morar junto sem nada oficial (...) Então isso é uma mudança, eu acho. Agora (...) no dia-adia, os problemas, conflitos, eu acho que não mudou muito (...) você pode ter a cabeça diferente dos teus pais em termos de muitas coisas que eles fazem (...) mas eu acho que estruturalmente não muda muito ... os problemas são recorrentes, as maneiras de resolver muitas vezes são recorrentes (...) É claro que o discurso mudou ... Há uma preocupação em ser diferente. Acho que há essa preocupação de mudar (...) mas é muito difícil. Eu ... não consigo perceber uma mudança muito grande. (...) Por exemplo, se minha avó nem questionava isso (a realização de certas tarefas domésticas),as minhas amigas questionam, mas fazem ..." Sobre a dificuldade de incorporar mudanças nas relações cotidianas um dado significativo diz respeito a dois elementos rituais do casamento: o uso de aliança79 e a mudança do nome80 por parte das 79 A troca de alianças é um simbolismo que remonta à antigüidade. Era utilizada entre os egípcios e os romanos, mas só foi considerada essencial no casamento a partir do século XVI, com o Concílio de Trento. Seu uso no dedo anular da mão esquerda teve origem no Egito e era devido a crença de que este dedo estivesse ligado diretamente ao coração.( Superinteressante, maio de 1996: 65-71) 80 "No Art. 240 do Código Civil/1916, afirma-se que a mulher pode acrescentar a seu sobrenome, o sobrenome do marido. Isso significa que a mulher brasileira pode escolher entre conservar o seu sobrenome de solteira ao casar-se ou pode adotar o sobrenome do marido. Por outro lado, o homem não está facultado para acrescentar o sobrenome de sua mulher ao seu. (...) Poucas brasileiras sabem disso. (...) As mulheres são freqüentemente orientadas por funcionários dos cartórios a adotarem o sobrenome do marido para evitar aborrecimentos futuros. Algumas brasileiras, que não adotaram o sobrenome do marido ao casar, contam que se habituaram a carregar a Certidão de Nascimento na bolsa para eventualidades como: aprovação da contaconjunta em banco, do convênio de saúde ou da matrícula na escola" (Santiago, 1995).

mulheres. Quando indagados sobre o assunto, do conjunto das categorias entrevistadas, somente uma minoria se colocou contra estas práticas, mas a maior parte ou faz questão de realizá-las ou nunca questionou sobre a utilização das mesmas. Os que se colocaram contra - três informantes não casados e uma casada informalmente - foram taxativos na recusa e isso se deu especialmente em relação a troca de nome. O principal argumento é a garantia de uma independência jurídica e de um certo domínio da individualidade. Cláudia, uma informante solteira disse: "Eu não trocaria de nome. É ... eu acho que é um certo domínio, onde a gente guarda um pouco da individualidade. " A troca do nome, também é encarada com certa reserva por parte dessas

pessoas,

devido

a

grande

probabilidade

de

separação

característica dos relacionamentos atuais, o que já foi visto antes. Manter a independência jurídica é, portanto, uma forma de evitar problemas futuros. Diz Ana, uma informante casada do grupo 1a: " ... porque eu tendo a minha independência jurídica, ter o meu nome, a minha carteira de identidade, o meu CIC, as minhas coisas, eu acho que é mais fácil, porque a qualquer momento ... eu sempre penso assim, sabe? Nunca o casamento é ' ad infinitum' ..." Fernando, um informante solteiro, acresce um outro elemento à discussão: "... a troca de nome, não há uma necessidade, também, porque é uma trabalheira que dá, vai trocar papel e, até mesmo, por que só a mulher trocar de nome? E não o inverso ou a gente

escolhe, o homem troca e a mulher troca? (...) Quando vier os filhos, aí eles vão ter o nome dos dois ..." Quanto ao uso da aliança houve grande flexibilidade no sentido da possibilidade de vir a usá-la , pois segundo a maior parte informantes ela representa

dos

" um símbolo que marca a união", "é um

acessório bonito" , um "elo entre o casal". Este foram os aspectos relacionados pelos informantes no que se refere à comparação entre o casamento considerado "dos dias de hoje" e o modelo das gerações anteriores às dos entrevistados. No capítulo seguinte, irei tratar de quatro grupo de temas (família, conflitos, fidelidade e trabalho doméstico) onde, de certo modo, este debate se prolonga.

CAPÍTULO 4 CENAS DE CASAMENTO ... Durante as entrevistas para este trabalho vários temas foram por mim abordados, alguns deles mais diretamente ligados a vivência em comum81. Neste sentido, os informantes casados e aqueles que já haviam vivenciado uma relação de casamento referiram-se de maneira mais direta à sua própria experiência, enquanto que os demais, nãocasados,

referiram-se

a

experiências

de

outras

pessoas

e/ou

expressaram suas opiniões sem o respaldo de uma prática pessoal de vida. Todavia, a diferença mais marcante entre as duas categorias diz respeito à extensão das respostas, na medida em que o conteúdo apresenta inúmeras similaridades, o que reforça a idéia enunciada no início deste estudo de que, de certo modo, em relação ao casamento, todos nós somos "autoridades" no assunto. Os diversos temas abordados, apesar de estarem articulados entre si, foram aqui agrupados por afinidade temática, a fim de serem mais facilmente trabalhados e compõem o que estou chamando aqui "cenas de casamento"82, cada uma delas enfocando um conjunto

de situações específicas. Estas cenas tratam de

relações familiares,

81 Os demais temas enfocados nas entrevistas foram sendo discutidos ao longo dos capítulos anteriores. 82 O livro "Cenas de um Casamento Sueco", de Ingmar Bergman, sobre a trajetória de um casal que depois de um longo casamento se separa de maneira conturbada, talvez (inconscientemente) tenha me inspirado a compor estas cenas e dar título a este capítulo.

conflitos domésticos, amor e fidelidade e trabalho doméstico .

A) CENA 1 - RELAÇÕES FAMILIARES: "A RELAÇÃO COM A FAMÍLIA É MUITO IMPORTANTE" ALICE: " ... eu tenho uma relação muito forte com a minha família. A minha mãe é um ponto de apoio, não só emocional, mas material (...) Ela me ajuda a cuidar das crianças, quando eu preciso de um socorro é a ela que eu recorro (...) Então, eu não acho justo eu ter que abrir mão de dar algum apoio a ela, de ficar com ela (...) O Átila, ele quer que (...) o mesmo procedimento que eu tenho com os meus pais, eu tenha com os pais dele. E eu não acho justo, porque a reciprocidade dos relacionamentos não é a mesma.(...) É essa opção, ela criou os filhos e não quer ajudar a criar o neto. (...) Eu não me incomodo com isso, é a opção dela. (...) Agora, essa opção dela, acarreta um procedimento meu ..." ÁTILA: " Só que eu acho, Alice,

que a eqüidade tem que existir num

determinado nível. Se você quer dar alguma coisa a mais pra sua mãe, é uma determinada coisa. Agora, você querer anular qualquer coisa em relação à minha família não pode. (...) Teve uma época que pra mim levar o nosso filho pra casa da minha mãe, eu tinha que levar quase que escondido, porque ela não queria deixar. (...) Mas até hoje é assim. A gente vai pra casa da minha mãe. 'Ela vai ou não vai deixar? '. Fica aquela tensão. (...) Às vezes, eu tenho que pedir por favor."

Os trechos aqui reproduzidos de maneira limitada, diante do material tão rico que sempre se obtém durante a realização do trabalho de campo, fazem parte de um diálogo tenso ocorrido durante a entrevista com Alice e Átila, um dos casais entrevistados pertencente ao grupo de 1a (casais com idade inferior a 34 anos) e ilustram claramente que, a despeito da "ideologia individualizante que preside a união de casais" (Velho, 1985) no universo das camadas médias urbanas, existe uma contradição nos discursos e nas práticas sociais, entre os modelos "moderno" e "tradicional" e entre a idéia de casal como uma unidade em separado e o estabelecimento, com o casamento, de uma rede de relações de parentesco que compartilha a vivência dessa

relação,

gerando inúmeras interferências. Em termos sociológicos (ou antropológicos), o casamento já foi devidamente situado no campo do parentesco através, dentre outros, dos estudos de Radcliffe-Brown (1950) e de Lévi-Strauss (1966).

O

primeiro demonstra que desde o nascimento, a escolha do casamento já está determinada, em grande parte, tendo por base as relações familiares de seus pais. Assim, em sobre sociedades da África , um casamento,

seus estudos a partir de dados

Ásia e América do Sul, ele considera que

mais do que uma união entre um homem e uma

mulher, é uma aliança estabelecida entre famílias ou grupos de parentesco, como já mencionei antes aqui. Lévi-Strauss (1966), que venho referindo neste trabalho,

em seus estudos sobre este tema fala

de "sistemas elementares" que são aqueles em que existe a preferência por certo tipo de casamentos e de "sistemas complexos" onde se define o

círculo de parentes, deixando a escolha do cônjuge ser norteada por outros fatores como os econômicos e os psicológicos. Evidentemente, nossa sociedade se enquadra nos sistemas complexos, mas isto não significa que as relações de parentesco não sejam importantes na constituição das relações conjugais. Desse modo, pode ter razão Lévi-Strauss quando afirma: "Constitui quase que uma característica universal do casamento o fato de que é originado, não pelos indivíduos, mas pelos grupos interessados ( famílias , linhagens, clãs, etc.); de que une os grupos, antes e acima dos indivíduos." ( 1966:217) Uma conseqüência disso, sendo que " ... embora o casamento dê origem à família, são as famílias que produzem o casamento, como principal expediente legal de que dispõem para estabelecer alianças entre si". (idem) As idéias de Lévi-Strauss parecem se opor aos princípios do sistema individualista que regula o casamento na sociedade ocidental moderna e, segundo o qual, o namoro passa a se basear na atração mútua e não mais nos interesses familiares; os casais optam por morar numa casa separada e o número de filhos passa a ser uma decisão de ambos; o grupo de parentesco efetivo passa a ser a família imediata e uma de suas características básicas é a exclusão de parentes consangüíneos e por afinidade dos assuntos relativos ao casal; o relacionamento marido/ mulher passa a ser o vínculo mais importante e o casamento deixa de ser "eterno" podendo os cônjuges que se separam

procurar um novo relacionamento. (Macfarlane, 1986: 51-52,

Béjin, 1987).

Rede de apoio familiar Entretanto, apesar do casamento ser constantemente referido como algo que

diz respeito ao casal, pois cabe a ele "decidir o que é

melhor para sua vida", também foi unânime nas entrevistas e, portanto, nas falas de todas as categorias entrevistadas, a colocação de que a relação com a família é muito importante. Esta continua a ser um núcleo marcante que interfere não só nas relações de conjugalidade vivenciadas cotidianamente, como também na constituição do próprio par. Sobre este último aspecto, a história do casal Alice/Átila é interessante e um bom exemplo no sentido de mostrar os laços existentes entre eles e suas famílias. O período do namoro para eles foi muito conturbado devido à interferências externas, principalmente familiares, e marcado por

separações esporádicas do casal de

namorados. Apesar de terem interesse em casar, Átila sentia-se inseguro e sua mãe se posicionava contra por achá-lo demasiado novo (quando eles casaram Alice tinha 27 e Átila 23 anos), o que gerava uma indefinição da parte dele. Em função disso, a família de Alice não encarava com "bons olhos" o relacionamento dos dois, como diz Alice: " (a mãe dela) ficava chateada com o Átila que não tomava uma atitude e comigo que aceitava de ele não tomar uma atitude. (...) Final das contas, (...) a mãe dele tinha outra estratégia, ela passava mal do coração, cada vez que ele falava: mãe, tô pensando em

casar ...". Atendendo ao conselho de uma amiga, eles decidiram por "casar

escondido". Casaram-se "no cartório" (casamento civil) e só

comunicaram as famílias depois, Alice contou no mesmo dia para seus pais, Átila, no entanto, só o fez 15 dias depois do casamento. Nesse meio tempo, eles ficaram morando separados e simulando a situação de namorados. Átila comenta o fato: "Mas o engraçado é que eu contei pra minha mãe e depois ela assumiu legal, Alice. (...) Aí, eu fui contar pro meu pai, aí eu falei: 'pai, eu tô pensando, eu acho que eu vou casar com a Alice'. Eu já tinha casado, né? Aí ele falou: ' nem me convide que eu não vou' . Aí, eu falei: 'Então, nem precisa, eu já casei' ". Após a revelação do casamento, eles passaram a morar três dias com a família dele,

três dias com a família dela e no sétimo dia

eles revezavam para equilibrar entre as duas famílias os dias da semana. Depois de algum tempo, eles montaram um apartamento e passaram a morar sozinhos, separados tanto dos pais dele como dela. A história de Alice e Átila, apesar de ser extremamente peculiar, me parece exemplar no sentido de demonstrar, como uma espécie de caso limite,

o quanto os laços familiares influenciam no

cotidiano daqueles que iniciam (ou vivenciam) uma vida em comum, mesmo para um casal do grupo 1a (com idade abaixo de 34 anos). Este casal se considera particularmente "vulnerável à agentes externos da família", sendo este o maior motivo de conflito entre eles. Por outro lado, devo dizer que os laços de família são

extremamente valorizados pelas diversas categorias entrevistadas. Os depoimentos são bastante ilustrativos neste sentido. Fernando, um informante solteiro, afirma que o casamento não deve implicar no rompimento dos laços com a família de origem. Diz ele: "A relação com a família é muito importante. Claro, a partir de que o casal se casou, sai da família originária (...) Eu acho necessário manter o relacionamento com os pais e com os irmãos e até estreitar os laços entre as duas famílias (...) Se eles se isolarem, às vezes acontece, casam e acaba uma família ficando isolada, a do marido ou a da esposa. " Este

informante

refere

um

aspecto

importante

e

muito

relacionado à representação que temos de casamento: casar implica em montar um núcleo separado da família de origem. O que, aliás, fica muito bem expresso no ditado popular: "quem casa quer casa"; ao que por vezes se acrescenta "longe de casa", como disse Gerson, um informante separado: "Acho bonito isso, esse relacionamento das famílias. Tá sempre em convivência. Isso ajuda. Não destrói não. (...) Não presta, assim, você viver na casa da mãe. ´Quem casa quer casa´.

(...) Não dá

certo mesmo ..." Beth, uma informante casada do grupo 1b (como idade acima de 42 anos), diz: "... claro, a pessoa se afasta, cada um tem a sua casa, cada um tem uma vida, cada um tem uma atividade diferente, mas a gente sempre tá junto. Inclusive, eu reclamo de vez em quando: pôxa,

vocês hoje não telefonaram.( em referência às filhas). Mas sempre final de semana a gente tá junto. Como se pode ver através dos depoimentos a constituição de uma residência em separado não implica em rompimento de vínculos. Na realidade,

ela constitui uma garantia de bom relacionamento com a

família dos cônjuges, pois se considera que os recém-casados não devem morar na casa de um dos pais. Em contrapartida, por mais que os familiares formem uma rede de apoio extremamente valorizada eles não devem interferir no relacionamento do casal, a não ser em casos considerados

extremos, como por exemplo, conflitos mais acirrados

entre o par. Sobre a formação de uma rede de apoio, o casal citado no início deste item, é um caso exemplar: os pais de Alice exercem um papel fundamental na

vida dos dois devido à atenção que dispensam aos

netos e às responsabilidades que assumem em relação a eles. Sobre este aspecto, diz Alice: "Eu tenho uma supervantagem nessa modernidade toda, que eu tenho uma instituição que tá em extinção, que é a instituição mãe. Eu tenho uma mãe que ajuda a mim, a minha irmã, ela fica direto com as crianças ..." Fernando, um informante solteiro, fala da questão: "Eu acho importante manter os vínculos, até por uma questão de solidariedade. Sabe lá se a gente não vai precisar deles depois ..." De fato, os casais entrevistados que se consideram dentro de um modelo diferente do "tradicional", tem usado com muita freqüência o

auxílio dos próprios pais - talvez mães seja o termo que se aplique melhor - na criação dos filhos, o que parece ser algo incompatível com a idéia de individualidade que, como já vimos, está muito presente nos relacionamentos ditos "modernos". Myrian Lins de Barros (1985), em sua análise da relação de autoridade e afeto existente entre avós e netos nas camadas médias urbanas, faz referência ao papel que os primeiros desempenham no sentido de liberar noras e filhas para o trabalho profissional, ou o casal para

um

programa

de

final

de

semana,

assumindo

parte

da

responsabilidade com os netos, o que é ao mesmo tempo uma atividade prazerosa e marcada por conflitos. A autora refere que em alguns casos as avós

se sentem usadas, equiparadas às empregadas domésticas,

pois não são consultadas acerca de sua disponibilidade de tempo e não podem interferir de maneira mais direta na educação dos netos. Por outro lado, ambos os avós sentem imenso prazer na convivência com os netos e, inclusive, assumem alguns encargos financeiros em relação a estes. Acerca da interferência dos familiares na vida do casal, Beth, uma informante casada do grupo 1b, fala de sua atitude em relação às filhas casadas: "Eu procuro não interferir na relação ... eu acho que cada um tem seu

problema, cada um tem que resolver, né? Só quando eu vejo

que tem alguma coisa ... que tá errada, (...) que eu acho que eu tenho o direito de dar palpite, eu dô, mas eu prefiro não me envolver. Eu acho que cada um tem que resolver o seu problema

sozinho, porque é aquele negócio: o que é bom pra mim, pode não ser bom pra ti, né? ..." Vê-se, assim, que um bom relacionamento com a família do parceiro, pode ser uma garantia de

equilíbrio entre o casal. Beatriz,

outra informante casada do grupo 1b, diz: " Eu acho muito importante o relacionamento entre ... o lado dele com a minha família e o meu lado com a família dele. Eu acho que isso aí, pesa muito na balança pro nosso relacionamento dar certo, porque se por acaso ele não se der bem com a minha família (...) eu acho que muita coisa já estaria mudada ..."

Conflitos Familiares Por outro lado, quando as relações com os familiares não vão bem, o casal é diretamente afetado. Neste contexto, o relacionamento com sogros e sogras - que no imaginário popular, no caso da sogra, é encarado como

problemático -

foi mencionado pelos informantes,

sendo necessário que se faça algumas diferenciações. Entre os casados do grupo 1a (com idade abaixo de 34 anos), dois casais, Alice/Átila e Arlete/Alfredo, têm dificuldade de relacionamento com os sogros. Em especial, isso se dá com as mulheres em relação à família dos maridos; Aline/ Amauri têm um excelente relacionamento com os sogros; e, Ana/Aldo não enfrentam dificuldade e o contato é unilateral , pois os pais de Aldo são falecidos e ele não possui familiares em Belém. Entre os casados do grupo 1b ( com idade acima de 42 anos) a situação é diferente, pois devido à faixa etária em que se encontram,

eles não mais possuem os pais e estão, eles próprios (com exceção de Berta/Bóris que não têm filhos) na condição de sogros e sogras, pois têm filhos já casados e, portanto, genros e/ou noras e netos, com os quais declaram ter uma boa convivência. No grupo 3a (formado por homens separados), Gilmar e Gerson citam os problemas familiares como um dos fatores que ocasionaram sua separação das esposas e o mesmo ocorre com Eliana, pertencente ao grupo 2d (composto por mulheres separadas). Os informantes pertencentes aos demais grupos apenas enfatizaram a importância de se ter um bom relacionamento com os familiares. Algumas das situações mencionadas serão discutidas a seguir. Alice e Átila, pertencentes ao grupo 1b e citados no início deste item,

vivenciam uma situação problemática em relação aos sogros.

Ambos são extremamente apegados às suas famílias o que dificulta o relacionamento

entre

o

casal.

No

período

em

que

eles

foram

entrevistados, o conflito estava bastante acirrado, pois a esposa cobrava do marido uma maior participação dos pais dele na criação dos netos e usava como comparação a postura de seus próprios pais que davam grande assistência aos mesmos. É interessante observar na "queixa" de Alice, retratada de modo mais explícito no depoimento que dá início a este item ("minha mãe é um ponto de apoio", "ela me ajuda a cuidar das crianças", "é a ela que eu recorro"), a oposição entre a idéia de modernidade, representada pelo próprio casal, e a referência ao papel que tradicionalmente é atribuído à mulher, a mãe que a ajuda a cuidar dos filhos.

Outro casal deste grupo, Arlete e Alfredo, também enfrenta conflitos com a família, no caso os pais de Alfredo não aceitaram o casamento dele com Arlete e, praticamente, haviam rompido os vínculos com ele, o que os deixava muito ressentidos, principalmente pelo fato dos filhos não terem convivência com os avós paternos. Com relação aos informantes separados foram citados inúmeros conflitos. Gilmar, um informante separado vivenciou esta situação, pois sua mãe não aprovava o seu namoro e, mais tarde, a sua decisão de casar-se. Diz ele: "Na véspera de eu viajar, os pais dela moravam em ... (outro Estado), eu ia lá pedir ela em casamento, (...) a minha mãe me chamou e disse: meu filho, (...) eu acho, eu tenho certeza que o seu casamento não vai dar certo. Pelo que eu já vi, eu nunca me meti na sua vida, mas eu acho que não vai dar certo. (...) Minha mãe nunca se meteu no meu relacionamento." Apesar da desaprovação da mãe, ele casou-se e permaneceu casado durante oito anos, apesar das dificuldades enfrentadas, algumas delas envolvendo as famílias. As datas comemorativas, em geral, bastante negociadas pelos casais mais jovens que estão às voltas com a constituição de um novo núcleo familiar independente de sua família de origem, foram referidas por ele como problemáticas. Diz Gilmar: " ... aquelas convenções que eu achava absurdo. Natal. Ah! Esse ano vai ser na casa do meu pai. Tudo bem. Aí no outro ano, se ela tivesse com raiva de alguém ( da família dele), ela dizia assim: esse ano eu não vou. Tu podes ir sozinho. (...) eu achava um

absurdo. Dia das mães. Ah! porque a minha mãe tá lá em ... eu não vou pra casa da tua mãe, eu vou ficar aqui, curtindo a minha mãe pelo telefone ..." Vê-se, aqui, que a rede de relações que deveria ser estabelecida com o casamento (e até mesmo antes de sua concretização) não foi consolidada e o que deveria funcionar como uma rede de apoio para o casal (Velho, 1985) , tornou-se motivo de conflito entre eles. Gerson, outro informante separado, relaciona o início de seus conflitos (brigas, acusações e até agressões físicas) com a esposa à realização de uma viagem que teve que fazer para prestar auxilio à sua mãe que morava em outro Estado, o que desencadeou uma crise de ciúmes, que terminou por ocasionar o processo de separação. Diz ele: " Houve uma época que a mamãe adoeceu aqui. Aí eu tive que vir de lá pra cá. Ela não queria que eu viesse. (...) Pedi licença e vim pra cá. Era pra passar um mês aqui, eu passei três (...). Eu ligava sempre pra lá informando. No telefone, começou a me tratar mal, achando que eu tinha mulher aqui. Quando eu voltei, começou a fazer cobranças. (...) Aí eu já tava chateado, (...) chamei ela e disse: vamos dar um tempo.(...) Aí ela saiu quebrando tudo ..." É

interessante ressaltar que, assim como a família pode ser o

motivo do conflito ou contribuir para a separação do casal, na leitura que os informantes fazem, do mesmo modo, ela também desempenha um papel de grande importância na manutenção do relacionamento, se assim for de seu interesse. Neste sentido, as considerações feitas pelos familiares mais próximos são um fator de peso na decisão que o casal

irá tomar. Na situação de Eliana, uma informante separada, a leitura é inversa, pois ela lamenta que a família (os pais são falecidos) não tenha funcionado como um rede de apoio no sentido da manutenção do relacionamento, ajudando-a a entender e trabalhar as dificuldades da vida em comum. Diz ela: " ... o contexto todo que nos rodeava contribuiu. A família dizia: 'o fulano não é um cara legal , ele não te valoriza'. (...) Eu não tive uma mãe do meu lado que me dissesse assim: 'minha filha todo casamento é difícil, toda relação é difícil'. (...) eu não tive ninguém que me dissesse isso. " Num outro sentido, o casal Aline/Amauri, também do grupo 1a ressalta o bom relacionamento existente com os sogros. Diz Aline: "Inclusive, eu digo que o meu relacionamento com a minha sogra é mais de amiga do que de nora e sogra.(...) Quando a gente sai por aí, ninguém percebe que é nora e sogra. (...) Às vezes, eu ligo pra ela e a gente conversa alguns assuntos (...)

Às vezes, eu tô

chateada com ele por algum motivo, aí eu falo, porque normalmente a gente não fala com a sogra (...) Mas, aí ela escuta e, às vezes, ela diz assim: Não vão brigar por besteira ... Às vezes, ela diz assim: É, tem que falar mesmo ..." Benedito, um informante casado do grupo 1b (com idade acima de 42 anos), aborda a mesma questão. Diz ele: "Eu me dou muito bem com a minha sogra, embora tenha aquela sina de que sogra é bicho papão, mas eu não a tenho desse jeito.

Eu realmente gosto muito dela e ela gosta de mim. Temos uns desentendimentos, mas são passageiros ...por questões até de gênio, de opiniões, mas não chega a ser ... nunca sério. E ... o resto da família em si, todos nos relacionamos bem. Vê-se, assim, que a família, através de sua interferência direta ou indireta, solicitada ou não, "faz" e "desfaz" o casamento, daí porque ela é encarada pelos informantes como um vínculo importante que precisa ser mantido. Planejamento Familiar Ainda em torno das relações familiares, outros temas abordados foram

o

planejamento

familiar,

a

utilização

de

métodos

anticoncepcionais e a questão dos filhos no casamento. De acordo com o grupo entrevistado, o planejamento familiar é pensado de forma mais ampla como um planejamento econômico que deve anteceder, inclusive, a realização do casamento e envolve o cálculo do número de filhos; de forma restrita, é entendido como referente

à

avaliação da quantidade de filhos que o casal pretende ter, o que inclui a utilização de métodos anticoncepcionais. O segundo sentido foi o mais referido e, deste ponto de vista, fica evidente a caracterização destes informantes como representantes de um segmento das camadas médias urbanas, cuja preocupação com o número de filhos diz respeito, basicamente, à garantia de uma qualidade de vida que assegure o bem-estar do conjunto do grupo

familiar. O depoimento de Beth e Bruno, um casal pertencente ao grupo 1b, reflete bem esta preocupação. Diz Beth: "Hoje em dia, botar filho no mundo sem ter condições de educar, que eu acho que toda criança devia ter educação (...) eu sempre digo isso pros meus filhos. A educação, eu acho que todo pai que puder (...) botar seus filhos numa boa escola,(...) pagar um professor particular, se ele tiver ruim e dar uma opção de educação melhor, porque eu acho que a única herança de boa que a gente deixa pro filho é uma educação. (...) Então, eu acho importante o planejamento familiar, porque se a pessoa não tem condições de ter três, quatro, cinco filhos, então vais ter pra quê? Com certeza vai ...as crianças vão sofrer de alguma maneira.

(...) Eu acho

fundamental as crianças estarem ... todo ser humano tá bem alimentado, ir pra escola ..." Neste sentido, é muito importante para estes informantes, modo geral,

de

o cálculo da previsão de filhos, pelo menos teoricamente.

A diferença é que os casados do grupo 1b não fizeram este planejamento, apesar de considerarem que "hoje em dia", como disse Beth, ele é fundamental e os informantes dos demais grupos o consideram como uma premissa básica,

ainda que os imprevistos

venham a ocorrer. O casal Ana/Aldo pretendia ter um filho, mas Ana o havia programado para quando ela concluísse a pós-graduação que estava em curso, o que não aconteceu, pois ela ficou grávida ainda nesse período. Um outro casal, Beth e Bruno, já tinha filhos de outros relacionamentos e ainda que Beth, não descartasse a possibilidade de

um filho em comum, para Bruno este era um plano fora de cogitação, como se pode ver no depoimento de Beth: " ... ela já tava inclusive

aposentado ... então a gente

pensava (...) planejava (...) sair por aí viajando, fazendo outras coisas interessantes e aí de repente (...) ele veio, (...) já foi filho temporão. Foi assim uma coisa ... mas foi bom, porque eu acho até que uniu mais a gente." Vê-se que, ainda que não se consiga cumprir o planejamento feito, a decisão de ter filhos para este grupo tem que ser discutida e negociada, conjuntamente, pelo casal. O depoimento de Fernando, um informante solteiro, é ilustrativo. " Eu creio que ( planejamento familiar) seria ... imaginar quantos filhos nós queremos ter. Planejar pra que possamos dar, conforme nossa condição financeira, o melhor para os filhos e até para nós mesmos. (...) Eu acho que não é deixar quantos Deus dê, eu acho importante o diálogo do casal pra decidir (...) e a partir daí buscar, seja anticoncepcional, tabela (...), pra que possa ter uma vida adequada." Com relação a estes dois últimos aspectos - o número de filhos e os métodos anticoncepcionais - os casais do grupo 1a, os solteiros e os separados, enfatizaram a importância do planejamento dos filhos que, como já foi visto antes, devem ser gerados, preferencialmente , somente depois de 1 ou 2 anos de casamento. O planejamento inclui a utilização de métodos anticoncepcionais que, também, foi considerada por estes entrevistados como necessária.

Ainda com relação aos filhos foi colocado que, de maneira geral, eles têm uma relação direta com o casamento, apesar de não constituírem a finalidade deste.

Assim, Carmem, uma informante

solteira, colocou que, "É muito comum as pessoas falarem essa coisa da realização da mulher. Eu não acho que filho é a realização (...) da mulher. " Esta opinião é partilhada por Ana, uma informante casada do grupo 1a, que possui uma filha. Ao falar sobre o número de filhos, ela diz que idealmente pretendia ter três, mas acha que vai ter somente mais um, e só quando

terminar o Doutorado que pretende fazer.

Segundo ela, "Porque como eu te falo, sempre eu acho que a gente deve priorizar a vida profissional da gente. Pra mim ... até agora, essa é a coisa mais importante, é o que me faz ser eu mesma. (...) Ter filho é maravilhoso, é lindo, mas se eu não tiver a minha vida profissional, vai ficar um saco, eu acho que não é uma coisa boa." Cláudia, uma informante solteira, ressalta um outro aspecto. Diz ela: "Ah! Eu acho fundamental ( o planejamento). Eu não acho que tem que ter filho por acidente. Eu acho que deve ser ... muito chato ... aturar um filho só porque ficou grávida. (...) Desestrutura toda a sua vida, inclusive afetiva. Às vezes, o relacionamento não tava maduro o suficiente pra essa responsabilidade." Segundo estes depoimentos, os filhos são bem-vindos desde que não impeçam o crescimento profissional destas mulheres e que estejam

dentro de um planejamento discutido e elaborado pelo casal. Outro aspecto que aparece nas falas é o do

pressão social para

que o casal tenha filhos, sendo colocado que ela existe e é feita por familiares e

amigos. Denise,

uma informante solteira,

aborda este

assunto: "Têm alguns casais que não querem ter filhos, mas há uma expectativa (...) cada dia alguém te pergunta: mas e aí, vocês não vão ter filhos? (...) Acaba sendo uma conseqüência, é ... quase natural (...)casar e ter filhos ..." Esta pressão não é encarada como "saudável" na medida em que os filhos são, de acordo com o depoimento de Fernando, um informante solteiro, "... uma opção de cada um, dos dois em comum acordo. Uns não querem, outros já querem muitos. (...) Eu acho que é uma opção (...) cada um tem suas necessidades, os seus interesses ..." Aline uma informante casada do grupo 1a, dá um outro enfoque à questão: "Não acho que quem casa tem que ter filhos. (...) Depende muito da cabeça do casal. Se eles querem muito, lógico que imediatamente eles vão fabricar um. Agora, se eles têm um pouco de paciência e têm outros interesses, eles vão querer esperar mais um pouco. (...) Mas acho que é muito importante o filho para o casal." Os filhos são considerados pelos entrevistados como algo muito importante na medida em que eles completam o casamento. Foi dito que o próprio casal, depois de algum tempo de casado, sente

necessidade de tê-los. É Aline novamente quem aborda a questão. Segundo ela, " ...vai chegar o ponto em que só vocês dois, não vão se bastar, tem que ter mais alguém pra compartilhar ..." Esta idéia de incompletude é referida por outros casais. Alice e Átila do grupo 1a,

dizem que depois de dois anos de casados,

eles

sentiram necessidade de ter um filho. Diz Alice: " No nosso caso, houve um momento que começou a ficar um vazio. Não sei se é uma coisa que nós criamos ou foi criada pelos outros ..." Fábio, um informante solteiro, enfoca um outro aspecto desta discussão. Diz ele: "Eu pelo menos hoje,(...) ideologicamente, penso que o ser humano (...) tem necessidade (...) de ter filhos, de continuar, de passar experiências, de trocar experiências, de receber novas experiências.(...) Não conheço ninguém do meu círculo que diga que foi feliz ou tá sendo feliz de não ter tido filho. (...) O que eu tenho observado é

que (...) quando não tem essa relação direta, eles

canalizam (...) pra um irmão mais novo, pro sobrinho. (...) O ser humano continua querendo ser pai e mãe." Esta discussão, praticamente, não se coloca para os casais do grupo 1b, pois tendo sido socializados dentro de um modelo que previa o casamento e , dentro dele, o filho era encarado como condição básica para a

constituição de uma nova família, estes entrevistados

consideram que casamento sem filhos é uma espécie de não-casamento.

Como disse Dora, uma informante solteira: " Eu acho que os filhos completam o casamento. Eu acho que o casal sem filho (...) não tem graça. (...) Eu acho que o filho é o complemento do casamento. A idéia de complemento que foi várias vezes enunciada sugere que o casamento, quando envolve somente o casal, é

pensado como

algo incompleto. Não havendo filhos, o sexo perderia a parte principal de sua finalidade considerada como a perpetuação da espécie. Assim, essa visão parece expressar de alguma forma, a permanência, em todo o grupo, de uma herança da tradição judaico-cristã de casamento, fundada na idéia de pecado carnal e na condenação do sexo como fonte de prazer( Vainfas ,1992). A decisão de ter filhos envolve fatores como " ter condições financeiras" e "responsabilidade";

além disso,

provoca uma série de

modificações na vida do casal. Dentre as alterações mais significativas mencionadas pelos entrevistados está a restrição da liberdade do casal que a chegada dos filhos impõe. Neste sentido, um informante solteiro disse: "Tem gente que acha que ter filho vai prendê-la (a mulher), enquanto estar casado sem filho é como se fosse namorado, saem pra

passear. (...) Então, filho já prende um pouco mais,

principalmente a mulher ..." Sobre este aspecto, Aline, uma informante casada do grupo 1a, foi mais enfática: "Eras, eu acho que muda um montão, pega a vida da gente e vira de

cabeça pra baixo, porque a gente não vive mais, a gente vive em função da criança. A hora (..) que ela vai comer, a hora que ela vai dormir (...) é terrível, é uma mudança radical." Apesar

disso,

os

informantes

com

filhos

mencionaram

o

envolvimento com estes, o acompanhamento do crescimento e a responsabilidade com a sua

educação como uma experiência

extremamente saudável e gratificante. Como pode ser visto, na análise da casamento

foram

levantados

relação dos filhos com o

inúmeros

aspectos

alguns

deles

antagônicos entre si. Foi colocado que os filhos são necessários porque "dão estabilidade ao casamento", porém eles "tiram a liberdade do casal" o que implica no surgimento de conflitos que podem, até ocasionar a separação; foi dito que "os filhos são a cara do casamento", no entanto "cabe ao casal decidir se quer tê-los ou não"; "os filhos completam o casamento", apesar disso "muitos casais são felizes e nunca tiveram filhos"; "os filhos são a realização final da mulher", todavia muitas mulheres afirmaram que seus planos de realização "não incluem filhos"; o planejamento foi considerado "fundamental", porém os casais entrevistados tiveram filhos "sem planejamento algum";

"os filhos

o casal", ao mesmo tempo em que podem "ocasionar a

aproximam

separação", se os parceiros não tiverem maturidade suficiente para têlos. Enfim, as falas do grupo foram marcadas por oposições, o que parece demonstrar que as relações de conjugalidade investigadas não obedecem

a

um

padrão

rígido,

mas

antes

são

marcadas

por

combinações e imbricações que lhe conferem um caráter particular e

heterogêneo, já referido por outros autores em seus estudos ( ver Vaitsman, 1994. Heilborn, 1992, Salem, 1989, dentre outros).

B) CENA 2 - CONFLITOS DOMÉSTICOS: " A PESSOA PRA VIVER A DOIS É MUITO DIFÍCIL ..." BENITO: "Eu acho o seguinte: não tem (...) esse negócio de dizer que eu nunca briguei, eu nunca discuti com a minha mulher. Isso é mentira, quem falar isso pra mim eu digo que é mentira, porque sempre existe a briga, sempre existe a discussão, sempre existe o ...' vai pra longe', 'deixa de besteira' ". BERENICE: "E o bom da casamento é fazer as pazes ..."

O depoimento do casal Berenice e Benito, pertencente ao grupo 1b (acima de 42 anos de idade) , traduz de forma clara a idéia recorrente nas entrevistas de que todo relacionamento conjugal é marcado por conflitos que se não forem trabalhados pelo cônjuges podem ocasionar uma

crise que, por sua vez, pode redundar na

separação do casal. Segundo os entrevistados, um dos fatores que ocasiona as chamadas crises entre os casais é a dificuldade em conviver com as diferenças. Através do casamento ocorre a união de duas pessoas que por mais afinidades que tenham entre si, são intrinsecamente diferentes e precisam, necessariamente, aprender a lidar com as peculiaridades de cada um no cotidiano. Eliana, uma informante separada, analisou a questão. Segundo ela,

"... porque você vai viver de uma outra maneira, com uma (...) pessoa que tem costumes diferentes dos seus, educação diferente da sua. Às vezes, elas são parecidas, mas muitas coisas se chocam quando você fecha a porta e convive no dia-a-dia, na intimidade de uma casa. (...) Então têm coisas que são surpreendentes e têm coisas que chocam você (...) Tem que ser super apaixonada, de sombrear as coisas que vê; ou então, uma pessoa super consciente e com um objetivo claro do que quer." Neste sentido, para os informantes, o grande desafio do casamento é aprender a conviver com as diferenças, evitando que elas se transformem em conflitos. Para que isso ocorra é necessário que haja esforço de ambas as partes e é nestes momentos que os requisitos mencionados anteriormente como fundamentais para o casamento (amor, respeito, compreensão, tolerância, confiança, amizade, etc. ) servem como base de sustentação para o relacionamento.

Crise Conjugal Nas percepções das categorias entrevistadas, os "conflitos", "divergências",

"discordâncias",

"desentendimentos",

"brigas",

"dificuldades" são encarados como parte integrante das relações de conjugalidade. No

entanto, como foi visto,

é necessário

que estas

dificuldades sejam trabalhadas conjuntamente pelo casal, a fim de que não venha a se configurar o que eles designaram de "crise conjugal" que só ocorre quando o grau máximo de tolerância aos conflitos é rompido. Além da dificuldade de conviver com as diferenças, foram mencionados

pelo grupo, outros elementos que podem ocasionar uma crise entre o casal, quais sejam as dificuldades financeiras, o envolvimento com outra pessoa - se bem que este fator é considerado mais como um reflexo da crise conjugal, como veremos no próximo item -, e o ciúme. Ana, uma informante casada do grupo 1a, traduziu bem a idéia do grupo de informantes em geral, acerca do que seja uma crise conjugal. Diz ela: "O que eu acho que é crise conjugal é quando você fica cheio da outra pessoa, aí começa a enjoar os hábitos dela, demais exarcebadamente, começa a não querer mais ... é ... tá fazendo programa com ela, começa a querer fazer os programas sozinho. Tem essa coisa da individualidade que começa a te grilar de uma tal maneira, você achar que perdeu a privacidade, perdeu os amigos, que você só sabe fazer a coisa com o outro, quer dizer, pra mim isso é um problema, né? Então, isso começa a te incomodar de tal maneira que você quer se livrar, quer romper o teu cotidiano (...) Justamente o que estabelece o casamento é você fazer as coisas junto no cotidiano. Então, se isso começa a te incomodar demais, você não tá mais a fim de fazer isso com tanta intensidade (...) isso é uma crise." É importante observar no depoimento de Ana que a crise já está delineada - "você fica cheio da outra pessoa" existiram

fatores

estabelecimento

anteriores

que

e que, certamente,

concorreram

para

o

seu

que, por não terem sido solucionados, foram

"minando" o relacionamento, gerando um processo de insatisfação entre

os parceiros, o que faz com que as diferenças sejam exarcebadas e tornem-se intoleráveis. A idéia de reciprocidade que, como foi visto no capítulo anterior, constitui um dos eixos sobre o qual o casamento se apoia, foi rompida, abalando o relacionamento como um todo. Isto não significa dizer que irá ocorrer o rompimento entre o casal como se pode ver no depoimento de Ana que novamente traduz bem o pensamento dos demais entrevistados. Diz ela: "Eu acho importante esses momentos de você buscar outras coisas, sabe?, buscar romper no cotidiano, porque é o momento de tu pensar e de perceber se tu queres continuar ou não, porque se tu quiseres, tu voltas mais forte. Eu acho que todo casamento tem essas crises e eu acho que elas são excelentes nesse sentido". Este depoimento

apresenta, de modo implícito, uma discussão

importante que diz respeito à noção de individualidade - e de indivíduo o que constitui um debate clássico na Antropologia. Devo logo dizer que não tenha intenção aqui de realizar esta discussão e que estou lidando com estes termos - principalmente individualidade, que é o mais referido pelos entrevistados - no

sentido por eles expresso, o que

implica em falar do conjunto de características pessoais que os distinguem do parceiro de casamento. No que se refere, a este aspecto o grupo entrevistado ficou dividido: a maioria considerou que com o casamento se perde um pouco da individualidade; um grupo menor considerou que se perde a individualidade e passa-se a ser duas pessoas numa só; e um grupo menor ainda afirmou que o casamento não implica na perda da

individualidade. No âmbito desta discussão, as categorias por mim estabelecidas, e que vem sendo referidas ao longo deste estudo, se diluem,

não

sendo

possível

afirmar

qual

delas

defende

qual

posicionamento, pois em todos os grupos de opiniões, elas se fazem representar. Apesar da divergência de opinião entre os informantes no que toca a este aspecto, dando origem a três grupos distintos de opiniões, pude observar que os argumentos levantados por eles para justificar suas posições são marcados por ambigüidades. O grupo que considera que parte da individualidade é perdida, argumenta que com o casamento o espaço pessoal fica limitado e tem que ser negociado em benefício do casal. O depoimento de Dora, uma informante solteira é ilustrativo. Diz ela: "Acho que perde um pouquinho, porque não pode fazer aquilo que você quer. (...) Da feita que você casou, você não é obrigada a ficar presa, você tem que ter a sua liberdade (...) restrita, vigiada por você mesma. (...) Se é um casal que se entende bem (...) você tem que dar uma satisfação ..." O

depoimento

de

Fernando,

também

solteiro,

apresenta

semelhanças. Segundo ele, "Enquanto eu tô só, eu tenho a minha individualidade, mas a partir do momento em que eu me junto com outra pessoa, eu vou ter que ver até onde eu tenho direito de fazer tal coisa, (...) já há uma necessidade de começar a dividir as coisas, não pensar só em mim, mas pensar no outro também ..."

Aline, uma informante casada do grupo 1a, diz: "Eu acho que são raros os casos em que um casal consegue viver junto e cada um ter a sua individualidade, continuar com ela. Eu acho que perde um pouco, (...) pelo menos 50% (...). Às vezes é assim, inconscientemente, da gente ficar se metendo, perguntando, é ... interferindo (na vida do outro). O grupo de entrevistados que acredita que o casamento implica em perda da individualidade, apresenta um argumento semelhante no sentido de avaliar o quanto é difícil para o casal a manutenção de espaços separados à medida em que o casamento implica numa embricação de relações que torna muito difícil pensar a vida sem a presença do outro, realizar atividades em

separado e ter autonomia

para decidir sozinho algo que diz respeito a vida do casal. As falas destes entrevistados

apresentam similaridades com as do grupo

anterior. O depoimento de Fábio, um informante solteiro, é elucidativo. "Perde, isso ocorre (...) a gente tem que aprender a lidar com isso.(...) Você tem que dividir espaço, (...) as pessoas têm que se ver todo dia. Necessariamente, você vai ter que abrir mão de ... alguma coisa pessoal ..." Diana, uma informante solteira, fala nos mesmos termos: "Eu acho que ela (a pessoa) perde, ela tem que pensar em dois , ela tem que se dividir, ela não é mais só ela ..." Ana, uma informante casada do grupo 1a, diz: "É muito ... é muito difícil se conservar. (...) Por exemplo, é tão imbricado, (...) a relação é uma coisa tão cotidiana, tão

... tantas

coisas eu a gente faz junto, que é difícil eu pensar as coisas, lugares sem ele, sabe? (...) São pequenas coisas, (...) você não se toca, você fica surpreso como vocês constroem uma coisa tão a dois, assim fazendo as coisas tão juntos que realmente não ... não conseguem mais fazer sozinho." Apesar disso, um pouco mais adiante, Ana considera que o único espaço onde se consegue manter um mínimo de liberdade e de individualidade é o profissional e completa:

"mas, olhe lá que não é

tanto assim." O grupo que defende que a individualidade se mantém com o casamento, considera que ao casar o indivíduo preserva a sua forma de pensar e as suas peculiaridades, ao mesmo tempo em que precisa flexibilizar posições, discutindo e negociando a vida em comum com o seu parceiro. Fred, um informante solteiro, considerou "Não se perde a individualidade, você continua com a sua (...) , porém você tem que ser flexível, (...) deixar um pouco o seu ego de lado e pensar num todo, nunca em uma pessoa só ou em duas mas sim no todo, em uma situação ...", Segundo Eliana, uma informante separada, " ... se você perder a sua individualidade, você deixa de ser você e certamente, vai ser uma pessoa insatisfeita ..." Benedito, um informante casado do grupo 1b, diz: " Eu acho que se os dois se juntaram pra viver juntos, vamos respeitar a individualidade de cada um. " Bruno, do mesmo grupo, considera que apesar do casal vivenciar

o codidiano "sempre junto" e não ter a "liberdade de ficar só, de resolver sozinho", os espaços individuais precisam ser mantidos. Todos estes depoimentos foram aqui registrados para demonstrar as inter-relações existentes entre eles e a dificuldade expressa nas falas dos entrevistados de definirem claramente suas posições. No bojo desta discussão,



que

se

considerar

que

o

casamento

envolve

o

relacionamento de duas pessoas que são intrinsecamente diferentes, mas

que

ao

separadamente, experiência

casarem

passam

a

partilhar

em

conjunto

segundo a leitura própria de cada um,

ou uma

comum - a do casamento. O que significa espaços,

sentimentos, aspirações, tudo sendo traduzido na expressão

"uma

mesma vida": a vida do casal. E é justamente esta idéia de compartilhamento, de divisão, tão defendida na fala sobre a relação, que sugere que o casamento parece se opor à idéia de individualidade, pois nele as individualidades se misturam. Assim, a

idéia de

casamento, tal como foi expressa pelos informantes ( "união", "enlace", "enroscar-se", "juntar-se", "viver junto", "compartilhar") provoca uma tensão entre a fusão e a separação, o indivíduo e o casal.

Separação No contexto da crise aqui referida, os entrevistados consideram importante a idéia de separação como uma possibilidade no casamento ainda que , pelos menos teoricamente, esta seja a última alternativa. Há que se

retomar nesse aspecto a discussão iniciada no item c do

capítulo anterior que trata da visão diferenciada que os informantes do

grupo 1b têm acerca da separação. O depoimento de Amauri resume algumas das colocações feitas no item mencionado. Segundo ele, " ... o que eu percebo é que os casais de faixas menores (de idade) que as da gente ( ele tem 32 anos e Aline 34 anos) (...) eles já casam com a predisposição de separar. Então eles casam, achando assim que 'ah! daqui a um ano, eu não sei se vai dar certo, eu já tô me separando'. (...) E os casais da mesma faixa etária (...) era a coisa mais pensada, eu acho que separava e separa, mas eu acho que já é uma coisa assim que pensa duas, três vezes antes (...) não casou com aquela predisposição. (...) Agora, eu acho que os casais mais antigos ... eles ... fazem assim de tudo pra não separar. Eu noto assim que eles não têm a predisposição, apesar das crises (...) , preferem agüentar seja lá o que for e levar adiante." Alguns itens da discussão acerca da separação nos grupos que se identificam com um modelo tido como "tradicional", em oposição a um modelo dito "moderno" já foi feita em outro item deste trabalho e aqui está sendo ampliada. Neste sentido o aspecto a ser ressaltado é que mesmo para os casais que assumem uma postura "tradicional", a separação, o rompimento do vínculo estabelecido com o casamento, é encarada como uma possibilidade ainda que não seja uma opção pessoal. Deste modo, dir-se-ia que

o "tradicional" incorporou alguns

elementos "moderno" e este último utiliza elementos do primeiro, na medida em que os informantes que dizem adotar uma postura mais "moderna", são bastante críticos em relação ao

alto índice de

separações entre os casais, considerados por todos como um traço característico dos relacionamentos atuais. O que importa, tanto para um quanto para outro ("modernos" e "tradicionais"), é a

satisfação

pessoal, em todos os níveis ( emocional, sexual, financeiro, psicológico), esta sim é extremamente valorizada no relacionamento e quando ela deixa de existir, a tendência é o casamento se desfazer. A separação para os entrevistados se justifica quando o "sentimento" deixa de existir, porque como diz Benito, um informante com 51 anos de vida em comum com Beatriz, "enquanto tem o amor, tem a compreensão, tá tudo bem. Agora, a partir do momento que acaba, às vezes, acaba tanto que não fica nem a amizade. Os dois ficam ali de aparência ... aí passa a ser ruim, nada presta (...). Eu acho que quando chega nesse ponto, o melhor é ir cada um pro seu lado ..." Ana, uma informante casada há um ano, também coloca a questão: " ... eu nunca descarto essa possibilidade, até porque se você descartar é ruim. (...) Eu não acho que você deve ficar pensando o tempo todo, mas eu acho que se você pensar, faz que cada dia você saiba que tem que conquistar sua relação com o outro." Os depoimentos de Benito e Ana, que ocupam posições polares, são representativos das opiniões do grupo em geral. A separação é vista como uma possibilidade sim, pois hoje em dia "o casamento não segura mais ninguém". Todavia, a opção pela separação tem que ser bastante avaliada, porque em alguns casos, como foi dito, é muito melhor

procurar investir no relacionamento existente buscando juntos superar as dificuldades, do que partir para uma outra relação, pois muitas vezes os problemas são recorrentes por estarem relacionados a características pessoais que como tais, estarão sempre presentes nos relacionamentos. Deste modo, tanto num quanto noutro grupo, valores como "compromisso", "tolerância"

são

"seriedade", vistos

"responsabilidade",

como

condição

"disponibilidade"

básica

para

um

e

bom

relacionamento conjugal. Um dado interessante sobre a separação foi o que Cláudia, uma informante solteira mencionou, tomando emprestada a definição de um amigo, a chamada "cultura da separação". Segundo ele, existe uma idéia vigente nos dias atuais de que o casamento tende a não se prolongar por muito tempo. Diz ela, citando um amigo: "Por que tem que separar? . (...) Não tem que ser surpresa o casamento continuar. E, aparentemente é o que acontece hoje. As pessoas se espantam: ah! ainda tá casado?" A "cultura da separação" foi encarada como extremamente negativa e foi alvo de crítica de todos as categorias entrevistadas. Para estes entrevistados a separação é uma alternativa sim, mas nunca a primeira e se ela puder ser evitada e o relacionamento reconstruído, lucram todos, em especial a díade amorosa.

C) CENA 3 - AMOR E FIDELIDADE: "SE VOCÊ NÃO É FIEL É PORQUE JÁ NÃO GOSTA TANTO".

BETH: "Eu acho que a fidelidade é muito importante. Não tenho dúvida que é ... é um fator importante. Quando a pessoa procura outra fora, começa a desfazer o seu casamento (...) se um dos cônjuges, de vez em quando, dá seus pulos fora, o casamento vai desmoronar, vai perdendo aquela amizade, aquela ... união do casal e isso vai acabando com o casamento, vai desmoronando o casamento ..." BRUNO: "Também acho que é muito importante a fidelidade. (...) é fundamental, senão começam as desavenças e eu acho que aí não dá mais certo. Pra pessoa viver bem com o outro, não pode existir infidelidade, tem que ... tem que ser fiel um ao outro. "

O depoimento deste casal é bastante representativo das opiniões do grupo. A fidelidade sexual e afetiva é encarada como um dos requisitos importantes na convivência diária de uma relação de casamento. Dentre o grupo entrevistado todos, sem exceção, defendem a fidelidade e não concordam com a idéia de que o seu companheiro ou companheira possa ter outros parceiros sexuais. A fidelidade é associada ao respeito que se deve ter pelo outro. Trair, portanto implica em desrespeitar o parceiro. Gerson, um informante separado disse: "Eu acho que se eu tô com aquela pessoa, eu tenho respeito por ela e ela tem que ter respeito por mim..." O raciocínio de Gilmar, outro informante separado é o mesmo. Segundo ele,

"Fidelidade é respeito, (...) se você respeita a outra pessoa, você não vai ser infiel". Denise, uma informante solteira, também , faz esta associação. Diz ela: "Fidelidade é uma palavra que poucas pessoas sabem o significado, mas se realmente parar e refletir sobre isso, quer dizer, fidelidade nada mais é do que o respeito de uma pessoa pela outra. Então, (...) a partir do momento em que existe o respeito, automaticamente existe a fidelidade.(...) Porque se tem a pessoa, ela ... ela o completa, por

que não ficar ali, dando atenção àquela

pessoa? A fidelidade, portanto, é sempre pensada no contexto do respeito e do amor que se deve ter pelo outro. Neste sentido, a infidelidade é considerada como um sintoma de que a relação não está bem. Amauri, um informante casado do grupo, diz: "No momento em que você procura um pessoa fora, essa de dentro não tá te dando mais nada ..." Aline sua parceira, pensa da mesma forma: "Se acontece o adultério entre o casal, eu acho que então não existe mais nada. Eu acho (...) que alguma coisa tá errada. Pode até ser que ainda exista alguma coisa de sentimento entre os dois, mas alguma coisa tá errada, ela não tá te preenchendo, ela não tá te dando o devido valor. (...) Porque se você gosta tanto daquela pessoa, se ela te preenche tanto, pra que que você vai procurar uma outra pessoa fora?"

Ana, uma informante casada deste mesmo grupo (1a), diz: "Eu acho que é uma conseqüência (...) se você tá a fim de viver o cotidiano junto (...) você tá casado. Se de repente, você tá saturado disso ... e ... começa a procurar isso em outra pessoa (...) o problema tá na tua relação com a pessoa que tu tá vivendo. (...) É o lugar comum, , se você tá procurando outra pessoa é porque na tua relação tem algumas coisas que não tão valendo a pena e ... tem que saber o que é." Fred, um informante solteiro, tem um argumento semelhante. Segundo ele, "Tem um ditado curto e grosso que diz assim: 'o homem ou a mulher só procura outro quando ela não está contente dentro do casamento' , ou seja, se eu dou todo o conforto pra minha mulher, eu dou amor pra ela a hora que ela quiser, eu dou carinho, eu dou afetividade, (...) eu imponho respeito a ela, ela não tem que procurar uma outra pessoa fora. Eu acho (...) que isso é uma questão moral.(...) Se eu vou procurar fora é porque eu não te amo. Eu não sinto essa coisa toda por você". Goldenberg (1991), identificou em seu estudo sobre a identidade masculina,

no

que

se

refere

à

questão

dos

relacionamentos

extraconjugais que os entrevistados se auto-representam de duas formas: alguns se consideram "monogâmicos" e outros se consideram "poligâmicos". Os primeiros encaram a infidelidade como um sintoma de que

o casamento não está bem e que há uma crise que pode ser

superada ou ocasionar a separação dos cônjuges, o que será tratado a

seguir.

Os segundos, consideram que a infidelidade decorre de uma

necessidade interior e não é indicativa de uma crise conjugal. Entre o grupo por mim entrevistado, não identifiquei a segunda resposta

a que Goldenberg se refere, pois todos se colocaram

explicitamente a favor da monogamia. No entanto, um pequeno número de informantes fez menção ao fato de que mesmo o casamento estando bem, pode surgir o interesse por outra pessoa. Um grupo reduzido de entrevistados - ainda que defenda o fidelidade como primordial - admite que existe a possibilidade de um dos parceiros vir a se interessar, sentir atração por outra pessoa, o que não significa que esteja havendo uma situação de adultério. Este só se dá quando há envolvimento sexual e emocional com outra pessoa. O casal Ana e Aldo, do grupo 1a, admite que o interesse possa surgir, mas daí a surgir um relacionamento é algo que precisa ser discutido. Ana considera que o "buscar outra pessoa" é um "sintoma de que algo não vai bem" e, como já foi dito, é preciso buscar as causas do problema. Diz ela: " Se ao você saber o que é, continuar a fim de outra (...) e achar que ... quer viver uma relação com outra pessoa, rompe a anterior e parte pra outra. Agora eu não acredito em viver com duas pessoas ao mesmo tempo ... eu já acreditei muito nisso, de achar que não tinha nada a ver, você não precisava ser de uma só pessoa, mas hoje em dia eu te digo que eu não acredito. (...) Eu acho que fidelidade não é (...) por exemplo, me interessar, eu acho que você se interessa todo dia, (...) mas daí a ter uma relação ... aí já é uma

outra história, (...) aí eu acho que tem que sentar e ver se vale a pena continuar". Seu parceiro, Aldo, pensa da mesma forma: "...essa questão da fidelidade nunca foi um problema colocado, 'tem que ser fiel, não tem que ser fiel', isso a gente nunca falou um pro outro. (...) Ela já se interessou por outras pessoas, (...) eu já me interessei por outras pessoas, isso já foi problema, já sofremos e tal mas (...) nunca foi uma condição (...) e eu temo que isso se torne uma condição porque aí fica terrível, porque acaba sendo até um mito, um tabu, porque eu acho que interesse como ela disse, a gente sempre se interessa, a cada dia. Você vive num conjunto de sociedade que você tem contato com mil pessoas, você acaba se envolvendo

com

níveis

diferentes

de

pessoas,

você

acha

interessante e tal, mas daí a ter uma outra relação já é um problema, né? ". Outras informantes, Carmem e Cláudia, duas mulheres solteiras pertencentes ao grupo 2a,

consideram que até pode ocorrer um

relacionamento sexual, mas desde que seja uma situação passageira, esporádica e que não implique num envolvimento emocional duradouro e profundo pela outra pessoa. Cláudia, uma destas informantes analisa a questão: "Eu acho que tem que ter fidelidade, (...) mas pode ser que role um .... tesão incontrolável. (...) Então, você pode até ter tido uma transa rápida com uma pessoa ... e .... mas, na medida em que isso não afeta o seu relacionamento principal ...tudo bem , né? (...)

Eu acho que um relacionamento besta que não teve nenhuma conseqüência, uns beijinhos, uma ...uma coisa que ... eu acho que não tem que falar pro outro, porque ... é ... mina o relacionamento. Por causa de um beijinho besta, você pode colocar uma minhoca na cabeça do outro, que não existe ..." Ambas concordam, assim como o casal Ana/Aldo, pertencente ao grupo 1a, que se este relacionamento esporádico se tornar algo sério, é necessário que o parceiro seja comunicado, pois para eles e para os demais informantes em geral, é inadmissível

o casamento e sua

manutenção com a existência de um outro parceiro permanente, o que configuraria a presença de um amante. Referindo a mesma questão (da infidelidade) Goldenberg (1991) ressalta que para o grupo entrevistado a figura da outra é concebida somente no modelo tradicional de casamento, sendo incompatível com o modelo igualitário de relacionamento conjugal. Novamente é Cláudia quem melhor refere a questão. Diz ela: "Agora, na medida em que

a gente percebe que o

meu

sentimento em relação a outra pessoa não é mais o mesmo, eu fiquei de fato abalado com aquele outro caso, aí é uma questão de deixar claro: 'olha, eu tô em dúvida e eu quero separar'. (...) Então, eu acho que a fidelidade é assim com o relacionamento e com o sentimento do outro e manter sempre informado, mas repito: na medida em que esteja abalando. Porque o que eu vi recentemente são casos de pessoas que enganam a esposa, vamos dizer (...) tendo um outro relacionamento importante e aí .... de um dia pro

outro, chega e diz assim: ' olha, eu só vim aqui buscar as minhas coisas, porque eu já tô envolvido com outro pessoa. E aí a pessoa não sabia de nada ...." Goldenberg (1991) afirma que o grupo por ela estudado não considera a infidelidade uma traição, pois para eles o cerne da questão não está no ato em si, mas na ocultação do fato, no mentir, no fingir e no enganar. No caso aqui citado, Carmem e Cláudia defendem a idéia inversa a da confissão (Foucault, 1988) - embora em um contexto determinado -

ou seja, não é necessário falar se a relação é sem

importância. Fábio, envolvimento

um com

informante outras

solteiro,

pessoas

admite

desde

que

que

pode

isto

tenha

haver sido

previamente acertado entro o casal o que, na opinião dele e de outros entrevistados, constitui um "modernismo", coisa de "casais modernos", "modernex" demais. As idéias do grupo entrevistado, acerca de como lidar com uma situação de adultério trazem à tona todos os valores que têm norteado a educação de homens e mulheres, onde ao

gênero masculino são

permitidos alguns comportamentos na área sexual e ao gênero feminino são impostas inúmeras restrições. Cabe, portanto, fazer uma distinção de gênero. Os informantes pertencentes o gênero masculino, excetuando-se Fernando do grupo 3a (homens solteiros) e Aldo e Átila do grupo 1a, não admitem a infidelidade e em caso de adultério por parte das mulheres, se posicionam contra a manutenção do relacionamento.

Os depoimentos de representam

a

posição

Benito e Fred dos

demais

aclaram a

informantes..

questão e Benito,

um

entrevistado casado do grupo 1b, que declarou durante a entrevista já ter tido relacionamentos extraconjugais, afirmou que se o mesmo acontecesse por parte de sua mulher, ele jamais aceitaria. Diz ele: : "... aconteceu? Então tchau, tchau e acabou-se. Não tem volta, pra mim não. Eu não sou o dono da verdade, eu tô dizendo o que eu sinto, o que os outros sentem não interessa. Pra mim, infidelidade? Tchau, seja feliz. Fred, um informante solteiro, que revelou na entrevista que teve um relacionamento sexual com outra pessoa durante o noivado e, inclusive, contou o fato à sua noiva, se referiu à questão nos seguintes termos: " ...eu acho que se acontecesse isso, eu não ficaria com ela (...) eu a deixaria (...) porque é uma coisa que todos dizem e é uma realidade: no Brasil existe 3, 4, 5 mulheres prum homem. Então já não deu certo com ela, se ela procurou outra pessoa é porque eu não tava satisfazendo ..." Vê-se, assim, que a infidelidade, traduzida pelos entrevistados como adultério nunca é encarada com tranqüilidade, à medida em que fere a auto-estima, fazendo com que o "traído" sinta-se "diminuído", "inferior". No entanto, ainda que no discurso os homens expressem claramente um posição rígida em relação a questão, no conjunto das entrevistas é possível visualizar uma postura mais flexível que parece apontar para um relacionamento mais igualitário onde tudo deva ser

objeto de discussão entre o casal, inclusive a infidelidade. O próprio discurso parece sinalizar neste sentido. No primeiro depoimento está explícita uma posição que podemos denominar de "machista", na medida em que expressa a desigualdade, pautada em atos permitidos e proibidos a um ou outro

gênero. Porém, no segundo

depoimento a expressão "eu acho" já parece apontar para uma postura menos absolutista, indicando outras possibilidades além daquelas presentes no discurso. Em se tratando das mulheres, excetuando-se os caso já citados de Cláudia e Carmem do grupo 2a (mulheres solteiras) e de Ana do grupo 1a, todas as demais informantes são taxativas em afirmar que o conhecimento de uma situação de adultério por parte de seus companheiros, implicaria no rompimento imediato da relação. Apesar disso, o discurso das mulheres, especialmente Berenice e Beatriz, (do grupo 1b, com idade acima de 42 anos) apresenta uma ambivalência na forma de lidar com a situação,

pois na prática, ao se depararem com

uma situação concreta de infidelidade, apesar da revolta e do ressentimento sentidos,

elas permaneceram com seus maridos. Este

fato parece indicar que existe, por parte destas duas mulheres maior

tendência

ao

perdão,

à

tolerância

e

à

manutenção

uma do

relacionamento. Há que se considerar, neste caso, o fato de que estas mulheres foram socializadas acreditando na idéia de que o "homem sempre trai" e aceitando isso como um fato "natural". A fala de Berenice retrata bem a questão: " ... a gente não pode exigir pureza, porque homem é homem.

(...) no homem nada pega, mas na mulher pega (...) Por exemplo, o seu marido vai pra Brasília fazer um curso de quatro, cinco meses, (...)você acredita que ele vai ficar quatro meses olhando pras paredes? (...) É da natureza, é orgânico, tem lá um dia que ele arranja uma fulaninha e vai se divertir, acabou, acabou. (...) Eu acho que a mulher tem obrigação de perdoar o homem, ele não tem obrigação de perdoar a mulher." Uma outra informante, Ester, de 55 anos e separada, afirma: "Toda mulher é traída". Eliana, uma informante separada de 33 anos, analisa o quanto a sociedade ainda trata de forma diferenciada, homens e mulheres, no que se refere a esta questão. Diz ela: "Eu acho que a gente permite que o homem (...) dê uma escapada.(...) A sociedade aceita que o homem dê uma escapada e a sociedade condena a mulher que dá uma escapada. A sociedade rotula essa mulher de puta, vagabunda, de ... todas essas palavras assim de baixo calão ..." A idéia de naturalização da infidelidade masculina está associada a um outro tema que foi objeto de discussão durante as entrevistas: o sexo no casamento.

Sexo e Casamento De acordo com todo o grupo entrevistado, o sexo é considerado como um elemento importante no casamento, ainda que não seja o primordial. De certo modo, nas falas dos informantes em geral, ele foi

colocado em segundo plano e sua importância no relacionamento afetivo sempre está diretamente relacionada com o conjunto da relação, por isso foi considerado que sua prática nunca deve ser dissociada do "diálogo", do "carinho", da "satisfação mútua" e do "amor". Aline, uma informante casada do grupo 1a, fala sobre o assunto. Segundo ela, "Eu acho que não é a coisa mais importante. Acho que mais importante é a convivência a dois, é a amizade dos dois. Eu acho que a parte da sexualidade pra mim é só um complemento que não dá pra pular por cima. Eu acho até que têm momentos que se desse pra pular ... eu pularia. Eu acho que, às vezes, um carinho, um abraço, um beijo, eu acho que fala muito mais do que aquele momento íntimo ..." Este visão é corroborada com o informante casada do grupo 1b

depoimento de Berta, outra

que considera que o sexo não é a

finalidade do casamento e existem coisas mais importantes que ele. Ela citou como exemplo os momentos em que ela e o marido ficaram por longos períodos, devido à problemas de saúde,

sem realizar o

intercurso sexual e a ausência de sexo não fez grande diferença no relacionamento. Todavia, a falta de companheirismo, de amizade, o estar sempre junto são fatores que, segundo ela,

abalam o

relacionamento, daí porque ela afirma que "é preciso dar valor às coisas que, de fato, têm valor". Vê-se, assim, que os informantes casados de ambos os grupos, não exacerbam a importância do sexo. Ademais, eles consideram que

logo no início da vida conjugal o interesse sexual é mais intenso, mas com o passar do tempo ele passa a assumir uma feição diferente, a "quantidade" talvez diminua, mas a relação se aprofunda e passa a ter maior significado. Para os demais informantes, de maneira geral, o sexo não é algo gratuito, mas que faz parte de um conjunto e deve sempre, "vir recheado com conversa, com diálogo ..." e garantir a satisfação de ambos os parceiros. Eliana, uma informante separada, exemplifica a questão: "Pra mim, eu acho que o sexo é uma conseqüência do todo. eu não consigo me relacionar apenas na cama, eu não consigo chegar na cama e ser amorosa, ser carinhosa (...) aquilo tem que ser um complemento de todo um dia-a-dia. Eu não posso me agredir durante o dia e quando entrar no quarto eu ... nos estamos lindos e maravilhosos." O sexo no casamento, portanto, aparece nas falas das categorias entrevistadas como algo que vai além do ato em si e está relacionado com o contexto da relação. Neste sentido, ele parece se diferenciar da "transa" ou dos relacionamentos fortuitos que ocorrem fora do âmbito do casamento. Esta visão talvez explique o depoimento de Fred, um informante solteiro que diz ter um vida sexual extremamente ativa que envolve inúmeras parceiras. Por outro lado, surpreendentemente, ela encara o sexo como um elemento secundário no casamento. Diz ele: "É o seguinte: o sexo em um relacionamento, ele não é fundamental. (...) Ele é um complemento da relação. (...) Em termos

percentuais eu coloco o sexo como 20% de uma relação. Os 80% seriam o companheirismo, o respeito,

(...) o saber viver as

dificuldades. (...) Porque, às vezes, uma palavra carinhosa, um gesto, ele é melhor do que um orgasmo, (...) porque o orgasmo é só naquela hora. Um gesto, uma palavra, uma situação bonita, ela fica pra sempre. (...) O sexo não é tudo, ele é um complemento, (..) até une o casal que tá um pouco afastado.(...) É gostoso, na hora é maravilhoso, mas passou, acabou." Apesar disso, Fred teve um relacionamento sexual com outra mulher durante o seu noivado, o que ele justifica como resultante da indiferença com que sua parceira o estava tratando. Diante do "assédio de que diz ter sido alvo, ele acabou cedendo e dando espaço para o seu lado "animal", como ele mesmo diz: "você foi um animal ali, você não foi um ser humano". No contexto desta discussão, surge novamente a idéia de naturalização, desta feita, vinculada à noção de que o interesse sexual dos homens é maior que o das mulheres. Neste sentido algumas mulheres entre as categorias entrevistadas, pertencentes a grupos diversos, afirmam que o homem é mais "animal", "selvagem" e tem mais "volúpia sexual" que as mulheres. Eliana, uma informante separada, diz: "O homem cobra mais o sexo, Dizem que é o lado animal deles é mais ...Eu acho que a gente (as mulheres) é muito mais pela qualidade do que pela quantidade. (...) Eles não, tem que ser o número ..."

Como a discussão acerca do sexo ficou mais voltada para a idéia de que ele tem que ser contextualizado, não foi possível avaliar com os homens a questão acima. Todavia, Aldo um informante casado do grupo 1a,

mencionou que Ana, sua parceira, tem um "ritmo" menor que o

dele, que tem grande interesse sexual por ela, independente de hora e local. Finalizando este item, gostaria de ressaltar que o sexo, na visão do grupo entrevistado, é considerado como importante no casamento, ainda que não seja encarado como primordial, pois ele só ganha de fato valor quando vinculado a um

conjunto de sentimentos

como o

companheirismo, o carinho e o respeito. Em função disso, quando ele ocorre fora do casamento, caracterizando uma situação de infidelidade, se for visto como algo esporádico, eventual e apenas como resultado de uma atração e um desejo momentâneos, como afirmaram alguns entrevistados, ele - ainda que provoque desentendimentos entre o par e, talvez, acuse que algo não vai bem - não implica necessariamente no rompimento do vínculo conjugal e talvez possa vir a ser superado pelos parceiros, pois estes têm clareza que o casamento é uma relação que vai muito além da permuta sexual.

D) CENA 4 - TRABALHO DOMÉSTICO: "AS TAREFAS TÊM QUE SER DIVIDIDAS ENTRE OS DOIS ..." AMAURI: "No momento que você casa, se acostuma daquele jeito pronto.

Se der moleza, no caso pro homem, além dele ser comodista, ele já é um comodista nato ..." ALINE: "É, o homem é um comodista nato." AMAURI: "Se ele pegar uma que faz tudo ... pra que que eu vou dizer pra ela que eu sei fazer isso, aquilo. Eu acho que é por aí também: se ela não faz por onde ele não muda." ALINE: "O que ele tá falando se aplica bem aquele ditado: 'quem faz o homem é a mulher' ". AMAURI: "No momento que eu casei, que eu senti ... que eu tô casado, porque que ela vai se escravizar, entendeu? Quando nós mudamos pra cá, (...) a gente não conseguia empregada. Eu via ela lavar e ficava olhando ela lavar a louça lá e eu sabendo que eu tinha duas mãos pra poder ajudar, claro que eu vou lá e ajudo. Agora, a maioria dos homens não tem essa concepção, vê a mulher como objeto. (...)Nesse ponto o homem não evoluiu, porque eu acho que no momento em que a mulher adquire a sua liberdade profissional ..." ALINE: "Eu acho importante esse espaço conquistado (...) agora, que é difícil conciliar, é muito difícil. (...) Nessas horas, a mulher precisa de muita compreensão do marido. (...) Porque a mulher é o seguinte: ela tem que conciliar o serviço de fora, (...) e o trabalho de casa. (...) Eu posso dizer assim que mesmo tendo igualdade, mas eu acho que a gente ainda trabalha o dobro do marido. (...) Porque mesmo me ajudando de montão como ele me ajuda, tem coisa que ele não se preocupa, não é verdade?"

O diálogo do casal Aline e Amauri, do grupo 1a, acerca da atuação do casal na realização das tarefas domésticas constitui um tema que tem relação direta com as mudanças que têm ocorrido na sociedade nas três últimas décadas e que implicaram numa maior participação feminina na esfera pública, através da conquista de um espaço profissional, como foi visto na Introdução deste estudo. (Bruschini, 1990, Vaitsman, 1994) Estas

mudanças,

sem

dúvida,

afetaram

profundamente

casamento e provocaram uma alteração nos relacionamentos, pois

o se

no modelo anterior os espaços de cada um dos cônjuges eram muito bem definidos e extremamente valorizados pelos casais, hoje estes têm procurado adequar-se as mudanças ocorridas, ainda que enfrentando inúmeras dificuldades o que pode ser visualizado nas entrevistas. É interessante observar que, como foi visto no item anterior, se no campo

sexual os entrevistados estabeleceram demarcações bastante

rígidas no discurso, ainda que estas possam ser flexibilizadas na prática, na esfera do trabalho doméstico parece ocorrer o contrário. Todos os informantes, independentemente de idade e de gênero, foram unânimes em ressaltar a importância do casal compartilhar todas as tarefas domésticas e foi visto como ultrapassada a idéia de que cabe somente à mulheres as tarefas do lar. Se por um lado, os casais pertencentes ao grupo 1a (com idade abaixo de 34 anos), iniciam a vida conjugal com a proposta de divisão igualitária dessas tarefas, por outro, os casais do grupo 1b (com idade acima de 42 anos), casaram dentro do

modelo pautado na divisão sexual de tarefas, viveram até hoje esses modelo, mas manifestaram nas entrevistas uma mudança, no que se refere à

percepção desse aspecto,

expressa em seus discursos. Os

demais informantes não casados também são partidários de um postura igualitária no que tange a este aspecto. Contudo, no cotidiano nem sempre é assim.

O depoimento das

mulheres é bastante ilustrativo no sentido de revelar que, apesar de todas as mudanças ocorridas é a elas, sem sombra de dúvida, que cabe a realização da maior parte dos serviços "domésticos" , o que constitui uma

sobrecarga



que

elas

também

exercem

uma

atividade

profissional, o que pode ser visto no depoimento de Aline, citado no início deste item. Bruschini (1990) sinaliza em seu estudo sobre a família paulistana que, nos extratos médio e baixo pesquisados, são as mulheres (esposas) que se encarregam da maior parte do trabalho doméstico, pois mesmo quando não cuidam diretamente de sua execução, são elas que o administram e orientam outras mulheres, empregadas domésticas ou não, no sentido de que ele seja realizado. Os próprios informantes - os homens em especial - têm consciência

disso,

mas

remetem

suas

observações

acerca

da

desigualdade para um contexto fora daquele vivenciado por eles. Os depoimentos

referem

constantemente

a

questão.

Gerson,

um

entrevistado separado diz: "O homem praticamente ele não tem obrigação de fazer aquilo. Ele acha que aquilo é papel da mulher (...) a maioria. Eu

tenho quase certeza que se você colocar 10 pessoas (...) vão chegar e dizer: isso é função de mulher, não vou fazer porque é função da mulher. (...) Acho que desde o momento que o cara se propõe a ter um relacionamento com uma pessoa (...) tem que haver participação dos dois em tudo." Gilmar, um informante divorciado, declara: "Eu acho muito legal dividir. Hoje em dia (...) têm algumas pessoas que continuam com esse padrão: a mulher tem que lavar banheiro, cuidar de criança, (...) eu não, eu fazia ..." As mulheres não negam as mudanças, ao contrário elas se mostram cientes de que as modificações estão ocorrendo. Eliana, uma entrevistada separada, fala sobre o assunto: "...eu acho assim que mudou. (...)Existem casais assim que caminham com uma divisão (...) de tarefas que não agride nenhum dos dois. (...) Existem homens que não aceitam (...) e alguns casais ainda formam os filhos dizendo: você não pode fazer isso, isso não é trabalho pra homem (...) é uma exceção, não é a maioria." Dora, uma informante solteira, também aborda a questão: " Existe muito machismo, mas também existe a parte do homem que divide com a mulher as tarefas da casa, especialmente no fim de semana ..." Dora refere aí duas questões importantes: o machismo e a especificidade da tarefas masculinas. Sobre o primeiro aspecto, de fato, inúmeros entrevistados associaram a recusa de alguns homens na partilha das tarefas domésticas com a adoção uma postura machista. O

machista é, portanto, segundo eles, aquele que, entre outras coisas, acha que as tarefas do lar devem ser realizadas, exclusivamente, pelas mulheres. O outro aspecto abordado por Dora, está inserido num contexto mais amplo e é bastante mencionado pelas mulheres. É verdade que a contribuição

masculina

existe,

mas

a

responsabilidade

pela

administração do lar está sempre nas mãos das mulheres, são elas que têm o pleno domínio deste espaço - considerado um domínio feminino, por excelência - e, de certo modo, fazem questão de que seja assim. Ao homem cabe a condição de "ajudante", alguém que têm sob a sua responsabilidade algumas atribuições específicas ou então ele é visto como aquele que, em caso de necessidade, pode "prestar algum auxílio". É interessante observar que em no âmbito do espaço público, esta situação se inverte, e a mulher é vista como a "ajudante" do homem, a quem este espaço está predominantemente reservado. Sobre esta questão, o depoimento das mulheres casadas é significativo. Beth, uma informante casada do grupo 1b, afirma: "Eu acho que tem que haver também uma participação do homem, se bem que eu prefiro

até que ele nem entre na minha

cozinha quando eu tô fazendo as coisas. Eu prefiro eu mesmo fazer porque atrapalha um pouco, né? Beatriz, também casada do mesmo grupo, tem um depoimento semelhante: "Eu acho que a mulher, ela tem estar a par de tudo na sua casa,

mesmo que ela não faça nada, como é o meu caso, (...) eu só administro, mas eu acho que tenho obrigação pra mim mesma, como dona-de-casa, que eu quero tomar conhecimento do que tá acontecendo (...) pra eu poder falar quando houver necessidade. " Aline, outra informante casada, só que do grupo 1a (com idade abixo de 34 anos) adota a mesma linha de pensamento. Diz ela: "O lar, a administração, é a gente que pensa. Ele jamais se preocupou se o guarda-roupa tá arrumado ou deixa de tá. Quem é que pensa nisso? É a gente. (...) Eu não vou ficar só confiando na pessoa que eu tenho trabalhando comigo. Não pode. Só a gente mesmo pra certas coisas ...". Há que se observar nas falas destas informantes que a idéia de que à mulher cabe a administração e o pleno domínio deste espaço, que é um dado estabelecido "culturalmente", se transforma numa espécie de cultura feminina, exclusiva e própria deste gênero, sendo , inclusive, assimilada no discurso e na prática, por ele. Bruschini (1990) identificou entre os extratos por ela estudados uma situação semelhante, pois

a dona-de-casa funciona como o elo

que articula todo o cotidiano da casa e da família, mesmo nos casos em que exerce uma atividade profissional fora do espaço doméstico. É interessante destacar que as mulheres tomam para si inúmeras tarefas domésticas e, ao mesmo tempo, são responsabilizadas ou se auto-responsabilizam pela "omissão e acomodação" masculinas, como pode ser visto no depoimento de Aline e Amauri registrado no início deste item. A idéia de que "a mulher faz o homem" coloca no ombro

destas grande parte da - se não toda -

responsabilidade pelas

mudanças que possam ocorrer , o que as sobrecarrega ainda mais. Num outro sentido, esta idéia pode ser associada com a noção de que é a mãe ( uma mulher, portanto) quem socializa os filhos - homens e mulheres - que acabam por ser, de certo modo, seu reflexo. Sobre a sobrecarga das mulheres, Carmem, uma informante solteira, diz: "Eu acho que com todos os avanços a mulher ainda é sobrecarregada. Só é." Alice, uma informante casada do grupo 1a, concorda. "Eu acho que ainda sobra muito pra mulher. (...) Por mais que você questione o seu companheiro (...) a tendência dele é se acomodar com a situação". Vê-se, assim, que as mulheres não conseguiram se libertar de inúmeros encargos domésticos que a ela

tem sido atribuídos, da

mesma forma que os homens não têm conseguido incorporar como suas, também, atividades das quais eles foram excluídos por um longo período. Ademais, as mulheres agora precisam conciliar sua atuação no espaço da casa, com as atividades profissionais que desenvolvem no âmbito da rua, assim como os homens que sempre circularam com desenvoltura pelos espaços públicos, têm que atuar de maneira mais efetiva no espaço que nunca foi devidamente valorizado por eles e/ou como deles. Tarefa difícil para ambos os gêneros. As mulheres enfrentam, ainda, a resistência masculina em suas atividades no espaço público, mas segundo me parece, a partir dos dados levantados,

têm conseguido mesmo com a sobrecarga a que se referem conciliar sua atuação nas duas esferas. Os homens, por sua vez, têm encontrado resistência das próprias mulheres e têm enfrentado a deles mesmos, para penetrarem na esfera privada e nela atuarem de maneira mais intensa. No âmbito do discurso, os problemas são mais facilmente resolvidos - todos parecem dispostos a mudar, e até já mudaram todavia na vivência cotidiana eles se mantém e tem que ser permanentemente repensados/negociados pelos parceiros.

À GUISA DE CONCLUSÃO: E O CASAMENTO, COMO VAI?

No decorrer deste estudo procurei investigar as relações de conjugalidade no universo das camadas médias urbanas da cidade de Belém. As falas dos entrevistados me conduziram a uma percepção do casamento

como uma forma de relacionamento que se traduz

basicamente através da vivência cotidiana. Procurei mostrar que o casamento, pode constituir-se enquanto ato formal em si, que se reveste de formas variadas, através de um ritual jurídico e/ou religioso ou implicar na união não formalizada dos parceiros que optam por não estabelecer entre si nenhum tipo de vínculo que não seja o próprio sentimento que os une. Todavia, mais importante que a forma de que se reveste a relação, é o significado de que ela está impregnada, e este significado se traduz

através da vivência diária, momento em que os parceiros exercitam-se no aprender a conviver com as características peculiares de cada um dos cônjuges representados no imaginário como uma unidade - um casal. Assim, conviver com as diferenças parece ser o grande desafio que se coloca para estes casais. Na tradução dos informantes o casamento aparece como uma união que tem como finalidade o amor recíproco e que tem como outros elementos fundantes o respeito, a compreensão, a amizade e o diálogo. O amor é, portanto, a base, o ponto de sustentação. Ele engloba os demais

elementos citados e garante a durabilidade

da relação.

Ademais, o amor se apoia na idéia de reciprocidade. O "estar junto", o "compartilhar uma vida em comum", implica em realizar o ciclo crucial da troca que, por sua vez, envolve três movimentos que juntos formam o circuito do dar, do receber e do retribuir. Este dado aparece como importante e indica

uma (nova?) tendência nos

relacionamentos atuais: dar sem haver retribuição acarreta uma quebra do ciclo e, portanto, um provoca um rompimento entre o casal, que não mais encontra justificativa para permanecer junto. E "estar só" equivale a não estar "casado". O que ficou bastante evidente neste estudo, é que o casamento atual reflete as inúmeras transformações por que tem passado a nossa sociedade e que afetam diretamente a vida privada, na medida em que redimensionam papéis e práticas, forçando os cônjuges a repensarem as bases sobre as quais as relações de conjugalidade têm se assentado. Ele tem sofrido inúmeras

reelaborações que tornam as posições de

ambos os parceiros na relação mais flexíveis e dão margem para outras possibilidades. Em função disso, pude perceber que, os homens e mulheres contemporâneos aqui investigados, incorporam em suas falas e na própria vivência das relações de conjugalidade, no caso dos casados, elementos referidos como pertencentes a um modelo encarado como "tradicional" e outros associados a um modelo considerado "moderno", configurando, assim, ambigüidades e tensões entre aquilo que seria um ideal

de relacionamento e uma prática que, muitas vezes, não se

coaduna, com o que é enunciado no discurso. E é exatamente esta coexistência e interpenetração que confere ao casamento uma feição heterogênea, bem expressa nas entrevistas, que pode ser considerada uma dos traços distintivos mais significativos dos relacionamentos atuais. A feição heterogênea referida acima pode ser visualizada através dos relacionamentos formalizados ou não e que se flexibilizaram a tal ponto que, no campo das uniões informais, a "alternativa", encarada por alguns entrevistados como um ideal, é "cada um na sua casa". Aqui mias uma vez o caráter ambíguo do discurso se faz presente, pois dentre os cinco informantes que defendem a moradia em separado nenhum deles vive ou viveu este modelo. Além disso, ao mesmo tempo que se procura preservar um espaço próprio de liberdade e de privacidade, expresso através de expressões como "menos vínculo", "independência", "não ficar junto todo dia", "menos interferência do outro", estes informantes referem-se,

também , em

"viver intensamente o

cotidiano", "compartilhar tudo", "decidir tudo em conjunto" o que parece ser mais compatível com o modelo da coabitação , onde os cônjuges, necessariamente, tem que conviver cotidianamente e integralmente. Desta forma, o que muda nestas falas é somente a não formalização da união e a não coabitação, pois todos os demais elementos associados ao casamento continuam sendo repetidos, ainda que sejam inconciliáveis. Não morar junto, pode-se dizer, constitui uma espécie de nãocasamento, já que a idéia de casar está imbricada com a noção de partilha, que implica em estar sempre junto. Casar, portanto, implica em unir-se a outra pessoa. E é justamente o caráter de união, de junção, de aliança, de enlace - o aspecto fundante do casamento - e a idéia de junção de duas pessoas que possuem particularidades, gostos, opiniões, ideais e que são intrinsecamente diferentes, podendo ser pensadas como autônomas antes do casamento, mas que a partir dele são vistas como um casal, que expressa a tensão, que pode ser inferida nas falas das categorias entrevistadas, entre estar tão imbricado numa relação e ao mesmo tempo ser uma pessoa independente, com vida própria, e talvez seja este difícil equilíbrio ante essas duas formas

de ser das pessoas no

casamento, uma das maiores dificuldades da vida em comum. Apesar das dificuldades,

este estudo mostrou que o amor

continua sendo um elemento primordial para que a decisão de casar se concretize. Contudo, este amor vai além do sentido romântico que normalmente lhe é atribuído, e se expressa por uma vivência cotidiana baseada no respeito mútuo e na consideração de que as diferenças

existem, devem ser mantidas e constantemente discutidas e negociadas através do diálogo entre os parceiros . O outro transforma-se, assim, em um companheiro com quem se compartilha as experiências

de uma

vida em comum, o que garante a satisfação pessoal que, por sua vez, assegura a durabilidade do casamento. O casamento não ficou "demodé". Talvez o modelo conjugal típico sim. As pessoas ainda continuam interessadas em encontrar um parceiro com quem possam compartilhar uma experiência cotidiana. Para isso elegeram alguns critérios que ainda que não sejam cumpridos na sua integralidade, pelo menos já definem aquilo que se deseja alcançar Posso dizer, enfim (sem absolutamente ser conclusiva),

que o

casamento possui uma dinâmica, impressa por aqueles que o vivem, que faz com que ele seja

atualizado, se mantenha, se modifique,

incorpore novos elementos, exclua outros, seja

reinterpretado,

criticado, repensado, mas continue sendo vivido intensamente. O que dá bem a idéia que quis expressar ao formular a pergunta-título deste trabalho, do modo como o fiz - e o casamento, como vai?

ANEXO

ROTEIRO DE ENTREVISTAS 1. Identificação Nome; idade;

naturalidade;

profissão;

ocupação; escolaridade;

estado civil.

2. Namoro , sexualidade e casamento diferenciação entre a

relação de namoro e a de casamento;

lugar que o sexo ocupa no casamento;. satisfação

sexual;

definição de casamento; modalidades de casamento; finalidade; significado; da

pontos positivos e pontos negativos; características

vida

em comum; o casamento atual

e casamento de

antigamente.

3. Família, filhos e casamento planejamento porque na vida do

ter

familiar;

métodos

anticoncepcionais;

filhos; gravidez; alterações que eles provocam

casal; educação dos filhos; relação com familiares;

interferências da família dos cônjuges.

4. Conflitos no casamento conflitos entre o casal; crise conjugal; possibilidade de separação; motivos para separação; conseqüências; superação dos conflitos, infidelidade, ciúme, adultério, machismo; feminismo.

5. Individualidade e casamento as diferenças individuais, o papel de cada um na relação; divisão na relação,

sexual

do

trabalho;

satisfação

trabalho profissional,

igualdade

e

emocional, trabalho

atividades em comum.

desigualdade doméstico,

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