É possivel provocar esteticamente a sensação trágica no mundo contemporâneo?

September 30, 2017 | Autor: Stephan Baumgartel | Categoria: Theatre Studies, Performance Studies, Dramaturgy
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É

possivel

provocar

esteticamente

a

sensação

trágica

no

mundo

contemporâneo? Stephan Baumgärtel – Professor do Programa de Pós-graduação em Teatro/UDESC

Agir. Sofrer. Aprender. Ésquilo, Agamemnon

Quando o coletivo teatral [ph2]:Estado de Teatro me pediu algumas reflexões sobre o trágico para esta publicação e me provocou com a pergunta que deu o título a este pequeno trabalho, entendi que seu interesse se direcionava para um problema não só formal, mas sobretudo social, um problema do imaginário social: a (in-)utilidade de perceber a nossa sociedade atual e seus cidadãos através da categoria do trágico. Essa percepção vai necessariamente além do trágico enquanto “sensação”, para possivelmente construir nos espectadores algo como um efeito ou a experiência do trágico, ou em termos mais técnicos: instaurar piedade/compaixão e terror/horror, eleos e phobos, levando essas experiências para a catarse. Vou, portanto, construir as minhas reflexões, talvez de modo curiosamente didático e subjetivo, primeiro a partir de um esboço historizante da situação não só existencial, mas também política, com que o trágico nos confronta. Supondo, então, que se pode detectar uma dimensão trágica em nossas “estruturas de sentimento” contemporâneas, procuro responder à indagação

sobre

as modalidades

teatrais (reduzirei

o

‘esteticamente’

para

‘teatralmente’) de como, primeiro, trazer esse trágico para a cena, e segundo, problematizar a relação entre o espetáculo e seus espectadores frente à suas possíveis implicações trágicas. Antes de tudo, devemos reconhecer que o mundo moderno, com seu espírito científico e sua ideologia do progresso humana, dificilmente aceita uma relação com “a sensação trágica” enquanto uma condição objetiva e estruturante da existência humana. No nosso contexto teatral, Bertolt Brecht, por exemplo, tratava o trágico com certo desdém em seus escritos sobre um teatro para os filhos da época científica, mesmo que alguns de seus protagonistas podem muito bem ser vistos como investidos com ares trágicos. Pois o dramaturgo Brecht sabia muito bem que um conflito insolúvel, mas inevitável em seu contexto histórico, oferece um material reflexivo e instigante para seu projeto político. Como também a hybris vivida na história pode servir para um processo de aprendizagem no espectador. O espírito moderno recusa menos o conflito inevitável, do que a dimensão ética especificamente

trágica, ou seja, a sugestão de que os ganhos na ‘solução’ do conflito possivelmente não superam as perdas e de que a afirmação do ser humano individual bem como da espécie de poder ser dono do próprio destino talvez não seja uma história de diminuir as atrocidades e sofrimentos humanas, senão sua mera transformação e portanto um acúmulo. A configuração da vitória ou do avanço estrutura a nova hybris, um novo ponto cego no pensamento dos vencedores. Para Hegel, o primeiro e mais eminente crítico da dimensão trágica no drama burguês, a dramaturgia moderna substituiu o conflito trágico por um conflito moralista; a situação trágica, na qual o politico e o individual se entrelaçam, virou uma situação triste. A justiça transindividual que reinava na tragédia grega foi substituída pela recompensa afetiva por acertos e erros demasiadamente humanos. Ou como afirma Raymond Williams sobre esta secularização do trágico: “A tragédia [burguesa] mostra o sofrimento como consequência do erro e a felicidade como consequência da virtude” (p.53), visão compartilhada por George Steiner em A Morte da Tragédia. A tragédia grega posiciona seu herói trágico no centro de um conflito que não é moralista ou individual, mas coletivo e político, o que confere a sua dor e seu terror uma dimensão não-privada. A composição moderna, contudo, mostra que o herói simplesmente tomou a decisão errada, enquanto poderia (e deveria) ter tomado outro caminho. Por isso, encontramos no drama moderno a tendência de entender o trágico como uma categoria íntima da consciência individual, e não mais como uma categoria histórica e política que evidencia como o ser humano está à mercê de forças transindividuais, ou age como ‘mão-de-obra’ (ou carrasco) dessas forças. Forças, então, nas quais o herói trágico participa ativamente, o que constitui o motivo pelo qual ele conspira “cegamente” para o próprio sofrimento e simultaneamente é “vítima inocente” da situação. A grandeza do herói grego reside em aceitar este paradoxo e aceitar (e lamentar) a própria parcela de responsabilidade (não de culpa cristã!), mesmo entendo que não pode saltar para fora do momento histórico. Quando Lukacs, seguindo Hegel, postula que “as tragédias no microcosmo do indivíduo são a revelação do progresso incontível no macrocosmos” ou ainda que “o caminho da espécie não é trágico, mas ele passa por inúmeras tragédias individuais objetivamente necessárias”, ele certamente capta a dimensão dinâmica daquilo que se costuma entender como um conflito supostamente estático, pois inevitável. Entretanto, Lukacs unifica, num gesto proto-stalinista e proto-fascista essa teleologia de um modo que reprime as vozes das vítimas ainda audíveis nas tragédias gregas. Na tragédia grega, se manifesta não só um gesto retórico e performativo de uma justificativa do progresso histórico civilizatório. Também se mantêm as vozes que tornam perceptível a herança

de horror e o preço afetivo-sensível que foram pagos pelos atenienses ao avançar neste caminho. As tragédias gregas mostram como o herói mítico está dilacerado entre duas forças culturais e políticas opostas: o mundo tribal e matriarcal antigo e o mundo político e patriarcal novo. Mostram como este herói aciona, por meio de suas tentativas de solução, essas forças uma contra a outra e como ele está sendo destruído nesse embate. Mas junto com seus heróis míticos, o povo ateniense está posicionado neste cruzamento, e vivencia o cruzamento e a direção tomada por meio de sua participação nas Grandes Dionisíadas. A necessidade de sair do mundo matriarcal encontra-se no início deste processo, por exemplo em Ésquilo, enquanto Sófocles e Eurípides já refletem sobre suas consequências e as responsabilidades que a herança sangrenta impõe. Para os heróis gregos não há o conflito interno como aquele que corrói Hamlet em sua busca pela verdade e suas implicações éticas. A cegueira do herói grego se transforma em conflito interno só no momento do reconhecimento que seu agir produziu as forças que o acabam destruindo: perpécia e anagnorisis produzem o insight no próprio erro, na própria cegueira. Como diz Bernd Stegemann sobre este clímax: “No momento da peripécia, está presente um reconhecimento das limitações humanas. [...] A fronteira da existência humana se torna sensível, com isso pensável. O trágico encontra sua imagem dramatúrgica, quando o entrelaçamento das ações mostra que as forças direcionadas contra uma ação resultam desta mesma. Deste modo, o agir aparenta ser fatídico, pois de sua própria estrutura surge, como consequência, sua auto-destruição.” Instaurar uma experiência do trágico hoje, além da forma da tragédia, necessita um diálogo e uma fidelidade mínima para com esta lógica. Ao meu ver, implica em construir por meio de uma sequência de situações ficcionais ou cênicas uma percepção dessas coordenadas narrativas: apresentar uma ação ficcional ou cênica que induz o espectador a participar de um “ponto cego”, cujo impulso de solucionar um conflito acaba revelando-se como parte fundante do problema. Acredito que o trágico ganha em relevância quando se percebe que e como este ponto cego se relaciona com o conflito inevitável e insuperável entre um mundo coletivo velho e um mundo coletivo novo, entre dois sistemas éticos excludentes (e não só diferentes!), o que direciona nossa atenção para as crises do sistema social e econômico capitalista e nossa busca por um modo de pensar um mundo além do capitalismo. Neste conflito, o indivíduo humano não é o dono do próprio destino, mas pensa que é ou pode ser. Aqui está nosso ponto cego, a amarga esperança que podemos melhorar o sistema econômico atual ao participar “eticamente” nele: fazendo compras com bolsas de

tecido, separando o lixo, ou investindo em uma formação contínua como modelo de vida privado que buscamos também coletivamente: viver a nossa vida nos moldes atuais, mas ecológica e economicamente sustentável. Eis o ponto de partida para gerar material trágico hoje. Que ele seja misturado com o grotesco e o ridículo, configurado frequentemente como fragmentado, só mostra que não estamos arriscando viver e encarar assumidamente a nossa hybris, mas somente a nossa má consciência causada por ela. É possível uma sensação do trágico, como coloca o grupo, mas não a experiência da tragédia: esta necessitaria uma situação concreta de viver uma transição de contextos sócio-econômicos e culturais que justifica os sacrifícios feitos ou a serem feitos. Sacrifícios concretos que envolvem sofrimento individual e coletivo e transição que poderíamos muito bem caracterizar como revolução. Mas as nossas tentativas de solução ainda prolongam o problema e talvez acirram os custos do conflito. Ou seja, a tragédia ainda está à nossa espera. Pois temos medo de imaginar esta revolução, como também os meios de (des-)informação atrofiaram a nossa imaginação e sensibilidade. Somos mais bem informados sobre o mundo e nós mesmos que os heróis gregos. Mas buscamos o Bem de modo irresoluto e sempre como parte deste sistema materialista. Consequentemente, somos mais tímidos que os heróis trágicos em levar nossas ações para as últimas consequências. Talvez simplesmente porque não podemos pensar ou simbolizar a nós mesmos como grandes indivíduos, ou porque intuímos que estas consequências significam a autodestruição de tal modo que ninguém restará para contar a história da derrota. Esteticamente falando, essa situação sócio-cultural explica porque a coralidade ganhou em importância na dramaturgia e direção cênica. Coralidade não como constituição de um coro, mas como resultado de uma desindividualização das instâncias de locução; como consequência de uma diluição da fronteira entre o indivíduo e o anónimo ou generalizado, como busca de outra relação humana que não seja “a massa” nem “o individualismo”. Para finalizar, quero apontar três experiências do trágico contemporâneo pelos quais passei. A primeira aconteceu e continua acontecendo com a dramaturgia de René Pollesch, diretor e dramaturgo alemão. Em seus textos, os atores falam em ‘nome próprio’, mas falam, sobretudo, textos tirados de livros de sociologia sobre urbanismo,

gestão

pública,

liderança

empresarial,

etc.

Esses

textos

desindividualizados não compõem nem individualidades nem uma narrativa ‘trágica’, mas apresentam momentos de reconhecimento ou anagnorisis, marcados por gritos e explosões dos atores frente ao texto e o universo que eles expõem. Nestes gritos manifesta-se a consciência ‘trágica’ que eles não têm como sair do sistema, nem

sabem como levá-lo ao colapso, pois no fundo, seus desejos e os desejos deste sistema social e econômico já se fundiram. No fundo, apesar de suas lamentações, são colaboradores. Ou como diz uma figura: “Estou muito preocupada com o capitalismo em minha DNA.” E outra: “Eu amo meu trabalho. Mas ás vezes eu me pergunto, se o amor pode ser tudo na minha vida.” Assim como na tragédia grega, esses textos atestam uma vitória do sistema vigente, mas levantam, com as lamentações e raivas dos vencidos, a possibilidade de que os atuais vencedores um dia possam virar derrotados. A segunda experiência aconteceu ao assistir o espetáculo Os Bem Intencionados do LUME. Após o intervalo da apresentação, na qual os atores oferecem mais bebidas alcoólicas para o público, a ação cênica leva para um striptease de uma atriz, sob os gritos de seus colegas que formam uma torcida atrás do público, incluindo-o desta forma no espaço cênico. E o público relaxa, fica animado, entra no embalo. Quando vem a quebra da ação com a frase Você vai ver o que você quer ver, o espetáculo sai do modo representacional e se direciona diretamente ao público, confrontando-o com sua colaboração alegre neste momento do espetáculo como parte do problema ético que ele levanta, uma vez que esta frase atravessa o espetáculo todo e relaciona o interesse na atuação com o voyeurismo machista e com a falta de ajuda antes da morte do autor desta frase. Especialmente no momento do strip-tease, o espetáculo nos mostra que nosso desejo de divertir-se produz a tragédia cultural que repudiamos neste país. O grande êxito deste momento reside na construção de uma catarse ao tornar o espectador parte deste momento cênico e o confrontar com os aspectos culturais trágicos de suas “boas intenções”. A terceira experiência diz respeito ao último trabalho do ERRO Grupo de Florianópolis intitulado Hasard. Um trabalho sobre o mundo enquanto um grande jogo, dividido em jogos menores. Os espectadores são convidados a participar de jogos (jogos de mesa, apostas, etc.) ou de manifestar-se enquanto testemunhas perante ações cênicas de forte caráter ficcional, ou de ligar para um telefone para adivinhar o segredo de um cofre. O trabalho ao mesmo tempo incita e torna irrelevante a participação do espectador nos jogos que ele propõe, mas o espectador se dá conta da irrelevância de sua existência somente aos poucos. Independente do que ele faz, the jogo goes on. Mas queremos participar, buscamos recompensas, mesmo que sejam essas a sensação de compaixão e de terror perante a dinâmica (às vezes tosca e por isso realista) do jogo. Mas em última análise, a estrutura dramatúrgica, por ser muitas vezes tosca, deliberadamente previsível, e esnobando a participação dos espectadores, não compensa afetivamente, mas com estímulos para reflexões e o

insight em nossa situação trágica de que the jogo goes on, independente da nossa decisão de ser participante ou observador, porque este jogo somos nós, ele nos constitui. Importa o jogo, onde se pode e ás vezes tem de apostar tudo, até a última peça de roupa, para não cair fora. É ele que nos atribui nossas posições possíveis. Em todos os três casos, o momento trágico envolve os participantes de uma forma a romper com a barreira entre o ficcional e o real, para poder fazer o espectador participar do arranjo trágico no qual a ação escolhida como solução ou estímulo gratificante se revela como parte ativa do conflito e fonte de sofrimento. O conflito é insolúvel nos moldes históricos atuais. Os três também trabalham em sua fragmentação narrativa com o que podemos chamar de citações culturais: a incorporação de formatos midiáticos populares e/ou científicos que são os responsáveis por revelar como hybris, o ponto cego do discurso dominante, a crença de que discursos científicos, canções românticas, crenças religiosas ou a astúcia popular do malandro da rua possam solucionar as tensões do conflito fundamental de que somos nós que desejamos este sistema sócio-econômico. Os trabalhos mostram que temos consciência deste conflito, embora talvez não o sentimos suficientemente bem e claro. Este conhecimento e a falta de ação transformadora entorpecem a nossa sensibilidade e nossa capacidade de viver uma catarse. Quando surge um momento de insight, a catarse consiste em gritos de raiva desesperada (merda!) ou um silêncio chocado. Catatonia ao invés de catarse. De fato, os trabalhos expõem a nossa dificuldade de vivenciar uma catarse profunda, de entrar em contato com o conflito trágico atual. Por isso, não há grandiosidade nessa tragédia, como se estes trabalhos cumprissem com a constatação de Walter Benjamin de que há uma barbárie cultural positiva, cujos trabalhos mostram a aspiração dos homens por “libertar-se de toda experiência, [por] um mundo em que possam ostentar tão pura e tão claramente sua pobreza externa e interna, que algo de decente possa resultar disso.” Por meio deste tipo de trabalho, diz Benjamin, “a humanidade se prepara, se necessário, para sobreviver a cultura.” Ao meu ver, na vivência desta pobreza reside o efeito catártico hoje em nossa sociedade de buscadores de sensações estimulantes. Referências: Benjamin, Walter. “Experiência e Pobreza”. In: Magia e técnica, arte e política. Obras Escolhidas, vol. 1. Trad. Sérgio Rouanet. São Paulo: Editora Brasiliense, 1987. Pollesch, René. www.slums. Reinbek: Rowohlt, 2003.

Stegemann, Bernd. “Tragödie der Kontingenz – Fünf Anmerkungen zu einem modernen Missverständnis.” In: Fischer-Licht, Erika e Dreyer, Matthias. Antike Tragödie Heute. Berlin: Henschel, 2007. Williams, Raymond. Tragédia Moderna. Trad. Betina Bischof. São Paulo: Cosac & Naify, 2002. Lukacs, Georg. Fauststudien. In: Goethe und seine Zeit. Bern: Francke, 1947.

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