«E pur si muove. Oliveira Salazar e a questão da autodeterminação das Províncias Ultramarinas (1962‑63)»

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O Longo Curso

Estudos em Homenagem a José Medeiros Ferreira

Coordenação:

Pedro Aires Oliveira e Maria Inácia Rezola

lisboa: tinta­‑da­‑ china MMX

© 2010, e Edições tinta­‑da­‑china, Lda. Rua João de Freitas Branco, 35A, 1500­‑ 627 Lisboa Tels: 21 726 90 28/9 | Fax: 21 726 90 30 E­‑mail: [email protected] www.tintadachina.pt

Título: O Longo Curso: Estudos em Homenagem a José Medeiros Ferreira Coordenadores: Pedro Aires Oliveira e Maria Inácia Rezola Autores: AAVV Revisão: Paula Almeida Composição e capa: Tinta-da-china 1.ª edição: Dezembro de 2010 isbn Depósito Legal n.º



Índice

9 21 25 37 47 61 75 87 107 129 145 159 175 227 243

Introdução Carta a um amigo António Reis José Medeiros Ferreira: história dos militares e da descolonização Pedro Pezarat Correia Os militares nos Açores durante o cerco do Porto José Guilherme Reis Leite Hintze Ribeiro e a sua época Valentim Alexandre A aliança luso­‑britânica nas vésperas da guerra anglo­‑bóer (1899­‑1902): a declaração secreta de Windsor de 14 de Outubro de 1899 Fernando Costa Dos Açores a Belém: percurso biográfico de Manuel de Arriaga e Teófilo Braga Elsa Santos Alípio Tancos: a génese de um milagre Helena Pinto Janeiro Afonso Costa e as consequências políticas do Tratado de Versalhes Filipe Ribeiro de Meneses A Nova República (1919­‑26) Fernando Rosas A defesa da raia: a estratégia militar e a política militar do Exército português entre as guerras mundiais António Paulo Duarte Une vision folklorique et morbide de l’urss dans l’entre deux guerres François Garçon Corporatisme au Portugal, 1933­‑ 74 Manuel de Lucena L’ administration portugaise au contact de l’indígena angolais (1960) René Pélissier 1945 — As eleições «para inglês ver» David Castaño

261 279 305 331 345 387 411 461 491 507 517 539 575 603 625 647 669 679

O cidadão Borges Coutinho nas malhas da Pide Carlos Enes A PIDE/DGS, polícia política e internacional. O relacionamento com serviços secretos da Europa e dos EUA Irene Pimentel O exílio português na Suíça (1962­‑ 74) Victor Pereira Homenagem a Medeiros Ferreira: teses com futuro Luís Farinha Le « concordat » Bidault (1953­‑ 54): une victoire occulte Luís Salgado de Matos Uma relação conturbada: os americanos nos Açores e a questão colonial portuguesa nos anos 50 Daniel Marcos E pur si muove. Oliveira Salazar e a questão da autodeterminação das Províncias Ultramarinas (1962­‑ 63) Fernando Martins The Salazar regime and European integration, 1947­‑ 72 Nicolau Andresen Leitão O Comité de Descolonização da Organização das Nações Unidas e os movimentos de libertação das colónias portuguesas: 1961­‑ 76 Aurora Almada e Santos A transição portuguesa e a institucionalização de um regime democrático numa perspectiva comparada Lawrence S. Graham Melo Antunes e a descolonização: uma história de paixões Maria Inácia Rezola O Partido Comunista e a revolução portuguesa Carlos Gaspar António de Spínola e o contexto internacional da descolonização Luís Nuno Rodrigues O apoio internacional durante a transição portuguesa para a democracia: o caso da RFA Ana Mónica Fonseca Estratégia e circunstância: opção europeia e competição político­‑partidária Francisco Castro From “soft” power to “hard” power? The transformation of the common foreign and security policy, 1970­‑2009 José Magone Ensaio histórico sobre a política externa portuguesa Nuno Severiano Teixeira Bibliografia de José Medeiros Ferreira

E pur si muove. Oliveira Salazar e a questão da autodeterminação das Províncias Ultramarinas (1962­‑ 63) Fernando Martins Politicamente, o Estado Novo morreu na sequência do pronun‑ ciamento militar ocorrido a 25 de Abril de 1974. A  causa principal deste acontecimento residiu no facto de Portugal e as suas Forças Armadas (FA) se encontrarem comprometidos com uma guerra em três frentes que remontava, no caso de Angola, a Março de 19611. Para os arquitectos do pronunciamento, a racionalidade e a legitimidade do seu acto decorria do facto de o poder exercido à sombra da Cons‑ tituição de 1933 não ter encontrado uma solução política que pusesse fim à guerra. Esta alegação foi usada repetidas vezes antes e depois do derrube do regime autoritário português. Militares e políticos que comentaram e comentam a história política portuguesa entre 1961 e 1974 insistiram e insistem naquela alegação. Por outro lado, historia‑ dores que analisaram a «longevidade» e o «anacronismo» do império colonial português nunca encontraram quaisquer sinais de que a li‑ derança política do Estado Novo tivesse procurado encontrar uma solução política negociada para o problema colonial. Uma solução que implicava, se não o reconhecimento mais ou menos imediato da autodeterminação dos territórios e povos coloniais sob domínio por‑ tuguês, pelo menos a negociação de um calendário em que se esta‑ belecessem etapas que deveriam prever a aceitação futura do citado princípio de autodeterminação2. Como é óbvio, nestas análises e conclusões existe muito de ver‑ dadeiro. Entre 1961 e 1974, salazarismo e marcelismo praticaram 1  Na Guiné­‑Bissau, a luta armada contra a presença colonial portuguesa começou em Janeiro de 1963 e, em Moçambique, em Setembro de 1964. 2  Entre outros, Fernando Rosas, «O Estado Novo (1926­‑1974)», in José Mattoso (dir.), História de Portugal, vol. vii, 1.ª ed., s.l., Círculo de Leitores, 1994, pp. 554­‑ 558 e José Medeiros Ferreira, «Portugal em Transe (1974­‑1985)», in José Mattoso (dir.), História de Portugal, vol. viii, 1.ª ed., s.l., Círculo de Leitores, 1994, pp. 17­‑21.

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políticas cujo resultado se pode resumir àquilo que foi a eternização da guerra e da soberania portuguesa nos seus territórios coloniais. E se no caso da fase marcelista do Estado Novo ainda houve quem vislumbrasse alguns sinais de transigência política na promulgação da lei orgânica do Ultramar português (LOUP) de 1972, imposta pela revisão da Constituição ocorrida no ano anterior3, assim como nas misteriosas negociações de Londres com o PAIGC, em Abril de 19744, já no caso da fase salazarista do regime nunca ninguém lobri‑ gou disponibilidade política por parte do governo para encetar e de‑ senvolver qualquer espécie de diálogo que pudesse conduzir a uma solução negociada do problema colonial que tinha entre mãos, apesar das reformas na política colonial prosseguidas durante a passagem de Adriano Moreira pela pasta do Ultramar, em 1961 e 1962 (e do las‑ tro que deixaram), ou dos contactos político­‑diplomáticos mantidos com vários interlocutores em 1962 e 19635. O objectivo deste texto consiste unicamente em tentar demonstrar o contrário. Por razões diplomáticas e de política externa, causas de na‑ tureza militar e questões de política interna (colonial ou metropolitana), 3  «A revisão constitucional de 1971, a Lei Orgânica do Ultramar e os Estatutos ter‑ ritoriais de Dezembro de 72 deram a Angola e a Moçambique o princípio de uma autonomia política, ou seja: governos privativos; assembleias legislativas (e não só consultivas), eleitas por sufrágio directo, com poderes, nomeadamente fiscais, aná‑ logos aos de um Parlamento; e tribunais próprios (excepto o Supremo). Angola e Moçambique receberam também, sob a capa de uma tradição mais do que suspeita, o título “honorífico” de Estados.», Vasco Pulido Valente, Marcello Caetano: As desven­ turas da razão, s.e., Lisboa, Gótica, 2002, p. 95. 4  José Calvet de Magalhães, «O 25 de Abril e as Necessidades», in Estratégia, n.º 20, 1.º semestre de 2004, p. 248. 5  Por exemplo, a visita de George Ball a Lisboa é considerada uma demonstração clara de «um empenhamento genuíno por parte dos Estados Unidos em resolver os seus diferendos com Portugal». Por esse facto, é sistematicamente interpretada, vis‑ to o seu fracasso, como um sintoma claro da intransigência portuguesa em matéria colonial. Luís Nuno Rodrigues, Salazar­‑Kennedy: A crise de uma aliança, 1.ª ed., Lisboa, Editorial Notícias, 2002, p. 292. E, no entanto, quando o presidente Kennedy inter‑ rogou George Ball sobre se se podiam esperar, no que aos territórios portugueses em África dizia respeito, quaisquer «novas iniciativas […] num futuro próximo» por parte do governo de Salazar, o subsecretário de Estado respondeu que, embora «nada de significativamente novo» tivesse saído das suas conversas em Lisboa, «alguma coi‑ sa» poderia resultar das discussões agendadas com Franco Nogueira nos EUA e das conversas aprazadas para Lisboa entre o representante de U Thant e os portugue‑ ses. «Memorandum for the Record. meeting with the president on under sec‑ retary ball’s debriefing on his lisbon meetings with salazar» Washington, 9 de Setembro de 1963, 11h30, http://www.state.gov/r/pa/ho/frus/kennedyjf/50765. htm (acedido a 05/01/2010).

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Salazar e os executivos a que presidiu desenvolveram, particularmente nos anos de 1962 e 1963, uma estratégia que alterou o rumo da políti‑ ca colonial e a forma como esta condicionava e era condicionada pela política externa. Tal estratégia pretendia certamente comprar tempo; mas desejava sobretudo encontrar uma solução política credível e du‑ radoura para o problema colonial português, solução essa que, tendo em conta os interesses portugueses, metropolitanos ou coloniais, con‑ siderou objectivamente a possibilidade do reconhecimento pelas au‑ toridades governamentais portuguesas do direito à autodeterminação dos povos e dos territórios coloniais por si administrados. Apesar das soluções políticas procuradas e desejadas em 1962 e 1963 não se terem consumado, analisar e compreender as suas razões per‑ mite que se divisem muitos dos constrangimentos que, entre 1961 e 1974, foram colocados à acção dos principais decisores políticos por‑ tugueses, permitindo assim que se contextualizem muitas das conclu‑ sões normalmente tidas como definitivas e segundo as quais a intran‑ sigência, o imobilismo e a sujeição a dogmas ideológicos foram a pedra angular da política salazarista no que à questão colonial diz respeito.

Política externa e política ultramarina na antecâmara da mudança Em vésperas da ida de Franco Nogueira, ministro dos Negócios Estrangeiros, a Nova Iorque para participar nos trabalhos da XVI Assembleia­‑ Geral (AG) da Organização das Nações Unidas (ONU), os EUA procuraram, uma vez mais, que o governo português reco‑ nhecesse perante Washington e, mais tarde, perante a comunidade internacional, o princípio da autodeterminação dos povos e terri‑ tórios «ultramarinos» que governava. Para que tal acontecesse, os norte­‑americanos sustentavam que Portugal deveria apresentar nas Nações Unidas (NU) um plano que conduzisse à autodeterminação dos seus territórios coloniais, independentemente do alcance das reformas de política ultramarina entre­tanto adoptadas por Lisboa6. A administração Kennedy insistia ainda para que o governo português 6  Trata­‑se das reformas introduzidas pelo ministro do Ultramar, Adriano Moreira — nomeadamente, o Decreto­‑lei n.º 43 893 (06/09/1961), que revogou o Decreto­‑lei n.º 39 666 (20/05/1954), o qual promulgara o Estatuto dos Indígenas.

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entregasse na ONU informação sobre as suas colónias, ao abrigo da alínea e) do artigo 73.º da Carta das NU. Para os norte­‑americanos, só assim seria possível «aplacar» as opi‑ niões dos países afro­‑asiáticos «extremistas» e facilitar elementos a partir dos quais os aliados de Portugal, e em especial os próprios EUA, poderiam concertar posições e ajudar o governo de Lisboa nas NU. Perante esta proposta, Franco Nogueira reafirmou que Portugal não alteraria a sua política na ONU, continuando a recusar forne‑ cer qualquer informação ao abrigo do art.º 73.º da Carta. O ministro fez também saber ao seu interlocutor norte­‑americano que Portugal «não tinha medo de ficar sozinho». Aliás, caso ce­desse nos seus prin‑ cípios relativamente a Angola, isso significaria que deixaria de existir qualquer governo português «comprometido com os ideais do Oci‑ dente». Por último, fez também sentir que apresentar em finais de 1961 a autodeterminação como um objectivo da política ultramarina portuguesa seria ape­nas uma maneira de liquidar a forma «ordeira como o progresso social» ocorria no Ultramar. No entanto, nas afir‑ mações do ministro mereceu destaque a admissão de «que a presente política portuguesa po­deria levar ao autogoverno na altura própria»7. Era a primeira vez que um alto responsável político português ad‑ mitia aquela possibilidade, facto que teria importantes repercussões nas tentativas de resolução da questão colonial. Esta declaração teve lugar quando foi criado, por resolução da AG, o Comité dos Sete8 (encarregado de «ouvir peticionários» com teste‑ munhos rela­tivos aos «territórios não­‑autónomos sob administração portuguesa»), dando a entender que as autoridades portuguesas eram permissíveis a determinadas formas de coacção política. A resolução que lhe deu origem solicitava a todos os países membros da ONU que pressionassem as autoridades portuguesas para que concedes‑ sem independência aos territórios coloniais que administravam e 7  TNA­‑FO371­‑155446, telegrama da embaixada do RU em Washington para o FO, 2 de Novembro de 1961; TNA­‑FO371­‑155446, «Meeting between Mr. Adlai Steven‑ son and Dr. Nogueira», 7 de Novem­bro de 1961; e TNA­‑FO371­‑155446, File1023/44, telegrama da embaixada do RU em Washington para o FO, 9 de Novembro de 1961. 8  Resolução n.º 1699 (xvi), de 19 de Dezembro. Constituíam o Comité dos Sete os seguintes países: Bulgária, Ceilão, Colômbia, Chipre, Guatemala (que presidia), Guiné­‑ Conacri e Nigéria. Em Novembro tinha sido criado o Comité dos Dezassete, que dispunha de competências genéricas em as­suntos coloniais [Resolução n.º 1654 (xvi) de 27 de Novembro de 1961]. No decurso da XVI AG aprovou­‑se ainda uma resolução que chamava a atenção para a gravidade da situação vivida nos territórios ultramarinos portugueses [Resolução n.º 1742 (xvi) de 30 de Janeiro de 1962.].

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reclamava que fossem negados a Portugal todos os meios que possi‑ bilitassem a continuação da acção repressiva nas colónias — ou seja, que não fosse cedido qualquer armamento que pudesse ser utilizado no conflito militar em curso em Angola9. Chegado 1962, na opinião de alguns observadores, o Estado Novo parecia ter atingido o limite das suas forças. Quase um ano de guerra em Angola, a humilhação político­‑militar sofrida na Índia, a crítica sistemática por parte de muitos aliados às opções de políti‑ ca colonial, o apoio dado pela administração Kennedy à União dos Povos de Angola (UPA), a ausência de solidariedade britânica10 ou a profusão de iniciativas políticas forjadas por diversos membros do bloco afro­‑asiático na ONU, a que havia que juntar as divisões exis‑ tentes no seio do regime e do governo em torno das opções de polí‑ tica colonial e de defesa tomadas desde Abril do ano anterior, eram razões mais do que suficientes para que dentro e fora de Portugal se comprovasse o desgaste sofrido e se concluísse pela necessidade de se proceder a alterações políticas. As opções até então seguidas pareciam apenas capazes de conduzir ao derrube do governo e do regime11. Fosse como fosse, a liderança política portuguesa não estava pa‑ ralisada. No primeiro semestre de 1962 muita coisa mudou. Dean Rusk, secretário de Estado norte­‑americano, referiu­‑se à política ultramarina portuguesa sublinhando o facto de nela existirem ele‑ mentos que pareciam confirmar estarem em curso alguns «avan‑ ços». Rusk fez correr nos meios diplomáticos que Pedro Theotónio Pereira, embaixador de Portugal em Washington, tinha produzido uma declaração segundo a qual o seu governo havia aceite o «princí‑ pio da autodeterminação para Angola», acrescentando ainda que as movimentações políticas nesse sentido vinham de dentro da­quele 9  Desejo que os governos da França e da RFA não satisfizeram. Sobre o forneci‑ mento de material de guerra pela Alemanha Ocidental e França para utilização por Portugal nas frentes africanas, veja­‑se Ana Mónica Fonseca, A Força das Armas: O apoio da República Federal da Alemanha ao Estado Novo (1958­‑1968), s.e., s.l., ministério dos Negócios Estrangeiros — Instituto Diplomático, 2007; e Daniel da Silva Costa Marcos, Salazar e De Gaulle: A França e a questão colonial portuguesa (1958­‑1968), s.e., s.l., ministério dos Negócios Estrangeiros — Instituto Diplomático, 2007. 10  Sobre as conturbadas relações político­‑diplomáticas luso­‑britânicas no início da década de 60, ver Pedro Aires Oliveira, Os Despojos da Aliança: A Grã­‑Bretanha e a questão colonial portuguesa 1945­‑1975, 1.ª ed., Lisboa, Tinta­‑da­‑china, 2007, p. 217 e ss. 11  TNA­‑FO371­‑163771, File1016/2, Relatório da embaixada do RU, Lisboa, 23 de Fe‑ vereiro de 1962.

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território e não do exterior12. Rusk tinha ainda notícia de conversas mantidas entre diplomatas brasileiros e portugueses «sobre proble‑ mas colo­niais», tendo o governo brasileiro assumido o compromisso de colaborar com Portugal no caso de Lisboa «aceitar o princípio da auto­determinação»13. Se tal sucedesse, os brasileiros trabalhariam em África com o objectivo de ali ser constituída uma «espécie de comu‑ nidade lusitana», e, caso fossem aplicadas as propostas brasileiras, os EUA estariam dispostos a financiar a edificação dessa nova estrutu‑ ra política. Até porque, segundo o Departamento de Es­tado (DE), era mais fácil financiar a constituição de uma nova entidade política, também pro­posta pelo Brasil, e assente no princípio da autodeter‑ minação, do que pôr em prática uma ajuda económica, directamente através de Portugal, e antes de se registarem quais­quer progressos políticos significativos no Ultramar português. Vistos estes novos dados, também o FO (Foreign Office) estava disposto a «rever» a sua «atitude» para com a «política colonial portuguesa», em especial no que dizia respeito às suas posições na ONU14. Entre Novembro e Abril, além da abertura portuguesa ao diálogo, tornou­‑se evidente que, caso o governo português aceitasse discutir e aplicar um conceito de autodeterminação internacionalmente re‑ conhecido, haveria da parte de países amigos e aliados disponibilida‑ de para o apoiar na vertente colonial e externa. Por outro lado, e uma vez que os EUA estavam ansiosos quanto à questão da renovação do acordo que lhes permitira usar a base das Lages, encarregaram­‑se de dar sinais ao governo português de que este passava a possuir mais li‑ berdade para pensar e executar aquilo que fossem as novas opções de política ultramarina, ao mesmo tempo que a administração Kennedy 12  Theotónio Pereira proferiu várias declarações em que se referiu à questão da autodeterminação em termos favoráveis. No entanto, e ao que parece, o significado daquilo que disse estava longe daquele que Rusk lhe deu. Fernando Martins, Pedro Theotónio Pereira: Uma biografia (1902­‑1972), tese de doutoramento, Universidade de Évora, 2004, pp. 943­‑44. 13  TNA­‑FO371­‑161630, telegrama do FO para a embaixada do RU em Lisboa, 7 de Maio de 1962. Sobre o teor destes encontros, Franco Nogueira registou: «Passa por Lisboa o chanceler brasileiro Santiago Dantas, e são longas as conversas com o seu colega português; e por parte de Portugal são feitas sugestões de vasto alcance no contexto do Tra­tado de Amizade e Consulta e para construção de uma real Comu‑ nidade Luso­‑Brasileira.», Franco Nogueira, op. cit., p. 401 e idem, Diálogos Interditos. Parte primeira (1961­‑1962­‑1963), s.e., Braga­‑Lisboa, Ed. Intervenção, 1979, pp. 85­‑101. 14  TNA­‑FO371­‑161630, telegrama do FO para a embaixada do RU em Lisboa, 7 de Maio de 1962.

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deixou de regatear alguns dos apoios internacionais que no ano de 1961 sistematicamente se recusara a dar15.

As mudanças na política externa e ultramarina em 1962 e 1963 As primeiras propostas de revisão de uma política Os contactos ocorridos entre as chancelarias do Brasil e de Portu‑ gal, relatados por Dean Rusk e registados pelo DE e pelo FO, coin‑ cidiram com outros acontecimentos que demonstraram que, após o impacto provocado pelos acontecimentos do ano de 196116, Salazar e alguns dos seus mais próximos colaboradores encetaram uma mu‑ dança na política ultramarina que contemplava o reconhecimento e a aplicação do princípio da autodeterminação aos mais importantes territórios ultramarinos portugueses. O discurso de Salazar proferido a 3 de Janeiro de 1962, na sequên‑ cia da invasão de Goa, dera azo a que a Assembleia Nacional [AN] aprovasse uma «moção» em que se formulava a «sugestão de uma re‑ visão eventual, pelo governo, da política externa, nos casos em que a mesma» se afigurasse «necessária ao interesse da nação»17. Este ape‑ lo conduziu à elaboração, no ministério dos Negócios Estrangeiros (MNE), de um memorando sobre o que era a política externa portu‑ guesa e aquilo que podia ser, numa conjuntura crítica iniciada com o 15  Qualquer fracasso irreversível nas negociações de renovação do acordo com Portu‑ gal sobre a utilização da base das Lages, além de uma derrota política em si mesma, tor‑ naria impossível a ratificação pelo Senado do Tratado de Proibição de Testes Nuclea­‑ res que estava a ser negociado com Moscovo. witney w. Schneidman, Confronto em África. Washington e a queda do império colonial português, s.e., Lisboa, Tribuna, 2005, p. 93. 16  Assalto ao Santa Maria, início da guerra em Angola, «Abrilada», duas remodela‑ ções governamentais (Abril e Maio), nomeação de Adriano Moreira e subsequentes alterações na política ultramarina, regresso de Theotónio Pereira à embaixada por‑ tuguesa nos EUA e de Marcello Mathias à embaixada de Paris, contestação da polí‑ tica metropolitana por parte dos colonos angolanos, pressão política exercida pelos aliados britânicos e norte­‑americanos, crescentes dificuldades na ONU e invasão e ocupação do Estado português da Índia por tropas da União Indiana. 17  Diário das Sessões, n.º 10, 5 de Janeiro de 1962, p. 260 (sessão de 4 de Janeiro). Mário de Figueiredo, presidente da AN, recordou aos deputados que reclamavam a aprova‑ ção de uma «moção» mais «enérgica» e «objectiva», nas palavras de Paulo Cancella de Abreu, que era ao presidente da República, e não ao governo ou à AN, que de acordo com a Constituição competia «dirigir a política externa do Estado […].» Ibidem, p. 262.

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começo da guerra em Angola, aprofundada com as pressões políticas internacionais e agravada com a invasão e ocupação de Goa18. Naquele documento, o «isolamento internacional de Portugal» não era considerado «imputável à sua acção diplomática» mas ao facto de a «política ultramarina» lusa não «encontrar aceitação nem compreensão no plano mundial […]». Isto significava que uma mu‑ dança de política externa dependia de uma «readaptação da política ultramarina» possível, porque nem a Constituição nem Salazar «se acha[va]m vinculados a um determinado tipo de execução», além de a Constituição portuguesa ser «flexível ou semiflexível» e, por isso, não definir «matérias insusceptíveis de revisão». O memorando re‑ conhecia que «as bases da política ultramarina portuguesa, ainda que lógicas nos seus princípios, e coerentes com a lição da história, não se coaduna[va]m com o mundo ocidental em que somos obrigados a viver»19; previa que a ONU prosseguiria uma consolidação da «hos‑ tilidade» internacional «à política ultramarina portuguesa». Por ou‑ tro lado, alertava para o facto de «o objectivo imediato da pressão anticolonialista» não ser «uma vitória militar, ao menos em Angola e Moçambique, mas a queda do regime». O documento também des‑ tacava a escassez de recursos económicos e financeiros ao alcance de Portugal e capazes de, simultaneamente, sustentarem os elevados gastos com a defesa do «Ultramar» e suportarem o desenvolvimento económico necessário e reclamado, prevendo­‑se ainda que a política colonial em curso coarctasse a possibilidade de «obtenção de apoio económico e financeiro externo necessário à persecução simultânea de ambos os objectivos»20. 18  «Notas sobre a Política Externa Portuguesa». Documento conhecido na gíria como non­‑paper e entregue a Oliveira Salazar, provavelmente, em Janeiro de 1962. Reproduzido em José Manuel Duarte de Jesus, «Eduardo Mondlane, Estados Unidos e Portugal. Estratégias dissonantes», vol. 2, «Anexos», dissertação de doutoramen‑ to em História das Relações Internacionais, FCSH­‑UNL, 2008, doc. 9. Sem data no original, o autor do estudo que reproduz o documento optou, a meu ver errada‑ mente, por datar o documento de Dezembro de 1961. Esta conclusão coincide, por exemplo, com o facto de o non­‑paper citar um «parecer» da AN redigido depois de ter sido lido o discurso de Oliveira Salazar, a 3 Janeiro de 1962. 19  Sobre um cenário de conflito global, escrevia­‑se no relatório: «Deixa­‑se de lado, por ser inútil considerar, a hipótese de uma guerra mundial. Conflitos armados de carácter local ou agravamentos sérios da Guerra Fria não devem levar os EU a valorizar mais a aliança portuguesa, nos tempos mais próximos, do que a neutralidade do grupo afro­ ‑asiático. Admite­‑se, por isso, a continuação por largo tempo de climas de Guerra Fria ou de coexistência pacífica, que não reforçam a nossa posição no campo ocidental.» 20  «Notas sobre a Política Externa Portuguesa», op. cit.

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De que forma seria então possível «levar a cabo a reorientação […] das políticas»? Criando «órgãos de decisão apropriados», capazes de permitirem uma «actuação rápida, coordenada e harmónica da tota‑ lidade dos meios disponíveis» e fazendo uso da autoridade e da legi‑ timidade político­‑jurídica que a Constituição conferia ao presidente do Conselho. Seguir­‑se­‑ia o abandono de «uma óptica unificadora» e a adopção de «soluções individuais para cada território ultramarino»21. Uma vez que o MNE reconhecia que Angola e Moçambique cami‑ nhavam «irreversivelmente para formas de autonomia» que poderiam «levar à independência», impunha­‑se a adopção de uma solução capaz de prevenir uma «ruptura» que conduzisse «à perda definitiva e total» da‑ queles «territórios». Ora essa perda só seria inevitável se houvesse uma «oposição rígida» face a qualquer «processo» de mudança, embora qual‑ quer mudança tivesse sempre de rejeitar «um recurso global aos prin‑ cípios e regras da ONU»22, da mesma forma que não era «tacticamente desejável a afirmação pública do princípio da autodeterminação». Uma «readaptação da política ultramarina» poderia então «abrir novas perspectivas à acção diplomática», nomeadamente produzindo «uma menor hostilidade política» por parte dos EUA e, a partir daí, possibilitar a aceitação por Portugal de «auxílio financeiro» norte­ ‑americano, «designadamente para planos concretos de educação» que criassem «elites» nas colónias ligadas a Portugal e de oposição àquelas que estavam a ser formadas «em diversos países comunistas, afro­‑asiáticos e até ocidentais». Porém, uma «reorientação» da política externa não estava apenas dependente da «readaptação» da política ultramarina. Escorava­‑se ainda na definição daquilo que na questão colonial deveria ser con‑ siderado essencial. Para o MNE, à «luz» de um conjunto de «conside‑ rações de ordem política, económica, social e estratégica», Angola, Moçambique, Cabo Verde e a Índia portuguesa (apesar de entretanto ocupada) não eram dispensáveis. Revista a política ultramarina, a acção externa poderia centrar­ ‑se no reforço da comunidade luso­‑brasileira criada pelo Tratado de Amizade e Consulta de 1953 e que se materializaria no seu alarga‑ mento ao Ultramar, através da «possibilidade de concessão mútua de 21  Ibidem. 22  Por exemplo, na questão da transmissão de «informações ao abrigo do art.º 73.º da Carta», considerava­‑se ser este um «elemento estratégico a ponderar», embora não fosse politicamente «determinante». Ibidem.

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facilidades ou preferências comerciais» e da negociação de «uma declaração conjunta sobre a posição do Ultramar na comunidade». No caso de Espanha, propunha­‑se o «reforço da aliança», nomeada‑ mente nos domínios económico e político. Um novo tratado celebrado entre os dois Estados «poderia» conceder à Espanha «facilidades eco‑ nómicas no Ultramar português» e «a fixação ali de colonos espanhóis». O memorando propunha­‑se ainda que o Mercado Comum ocupas‑ se um lugar de destaque numa política externa portuguesa revitalizada por uma nova política ultramarina. A aposta no Mercado Comum de‑ corria do desejável afastamento português dos EUA, do RU e «até» da OTAN/NATO. Deveria por isso dar­‑se rapidamente início a negocia‑ ções que permitissem a Portugal antecipar­‑se a alguns países da EFTA que estariam a preparar a sua aproximação ou adesão ao Mercado Co‑ mum. Apesar de a relação com esta entidade dever cingir­‑se a «formas de associação possíveis», a conjuntura favorecia essa aproximação. Por um lado, figuras como Spaak, De Gaulle e Adenauer eram politica‑ mente preponderantes; e, por outro, a Bélgica, a Holanda e a França mantinham com os EUA e a ONU relações de grande «insatisfação»23. Uma aproximação ao Mercado Comum poderia ainda abrir a porta para uma futura fixação de colonos italianos, gregos e franceses em Moçambique e Angola. Para garantir o apoio europeu, Portugal devia ponderar reconhecer em privado, junto das chancelarias dos Seis, aqui‑ lo que não estava disposto a reconhecer em público: «o princípio da autodeterminação» de povos e territórios ultramarinos. Quanto à OTAN/NATO, a política externa portuguesa devia orientar­‑se no sentido da redução dos seus compromissos. O MNE sustentava ainda que o «montante do arrendamento» da base dos Açores aos EUA deveria ser «substancialmente aumentado» e reduzi‑ do o seu «prazo» de vigência. Advogava­‑se ainda uma aproximação de Portugal a países do bloco socialista (a partir da celebração de acor‑ dos comerciais), nomeadamente à Polónia e à República Popular da China (RPC). Neste último caso, o MNE propunha uma negociação 23  Note­‑se que a Argélia ainda não alcançara a independência. A questão argelina tinha­ ‑se tornado num sério obstáculo no relacionamento da França com os EUA e a ONU. Alistair Horne, A Savage War of Peace: Algeria, 1954­‑1962, 2.ª ed., s.l., Papermac, 1996, pas­ sim. Por outro lado, e desde a independência do Congo belga e da subsequente tentativa de secessão do Catanga, apoiada por Bruxelas mas combatida, entre outros, pelos EUA e pela ONU, as relações da Bélgica com a ONU e, sobretudo, com os EUA conheciam momentos difíceis. Odd Arne Westad, The Global Cold War. Third World interventions and the making of our times, s.e., s.l., Cambridge University Press, 2007, pp. 136­‑43.

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do estatuto de Macau, com a sua transformação num «porto franco», não se devendo enjeitar uma «transferência de soberania com manu‑ tenção de laços simbólicos com Portugal». Quanto ao bloco afro­‑asiático, o grande inimigo internacional de Portugal, uma mudança na política ultramarina permitiria «estrei‑ tar laços com o Japão, Paquistão, Filipinas e Tailândia […]». O MNE propunha ainda a negociação do destino de Timor com a Indonésia, o que poderia ser feito em moldes idênticos aos de Macau. A  rela‑ ção com os Estados africanos devia ter em conta e tentar beneficiar das divisões e conflitos, cada vez mais evidentes e intensos, que os opunham. Apostava­‑se na restauração de relações diplomáticas com os dois Congos24, com o objectivo de reduzir a pressão sobre Ango‑ la e Cabinda25, mas também com o Senegal, que Portugal preferia à Guiné­‑ Conacri. A Rodésia e a África do Sul eram vistas como pro‑ váveis parceiros na conclusão de «acordos militares secretos de as‑ sistência mútua local, e formas de cooperação económica a serem reguladas por tratados bilaterais», sendo que os problemas em torno da emigração de mão­‑de­‑obra angolana e, sobretudo, moçambicana para a Rodésia e a África do Sul deveriam ser «revistos sem demora». No que respeita a Israel e aos Estados árabes, o MNE propunha, face à crescente hostilidade de vários países árabes (Tunísia, Marrocos e República Árabe Unida), uma «revisão» da «política» relativamente ao Estado hebraico. Israel devia merecer uma particular atenção por se ter transformado num «país» com «capacidade» para «fornecer auxílio técnico e financeiro» e por ter ganho «influência no continente africano». A per‑ cepção portuguesa era de que, negociando­‑se com os israelitas concessões acompanhadas da «oferta» do «estabelecimento de relações diplomáticas», se produziriam excelentes resultados políticos para ambas as partes26. 24  A guerra civil no ex­‑ Congo belga entrava nos cálculos do MNE. Pelo signifi‑ cado e alcance do confronto em si mesmo, mas, sobretudo, pelo facto de permitir a presença, nas imediações de Angola, de «um poderoso exército» das NU, «onde predomina[va] o contingente indiano […]». Este facto podia constituir­‑se, «sem dú‑ vida alguma, [n]a mais grave [ameaça] que pesa[va] sobre todo o nosso Ultramar». «Notas sobre a Política Externa Portuguesa», op. cit. 25  Propunha­‑se a negociação do seu estatuto com o Congo Brazzaville, uma vez «que nem historicamente nem em função da geografia ou da economia terá neces‑ sariamente que acompanhar Angola». Eliminando­‑se o «ponto de fricção» que era Cabinda, melhorariam as relações entre Portugal e o antigo Congo francês, facto que «teria reflexo favorável na atitude para connosco de outros Estados africanos, nomeadamente Madagáscar». «Notas sobre a Política Externa Portuguesa», op. cit. 26  Ibidem.

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A entrevista de Oliveira Salazar à Life: consequências e significado A entrevista dada por Oliveira Salazar à Life27 foi um dos maiores e mais inequívocos sinais das mudanças em curso na política colonial. Pu­blicadas a 4 de Maio de 1962, as declarações foram recolhidas um par de semanas antes. Após a sua reprodução em jornais portu‑ gueses desencadeou­‑se «uma celeuma política tanto nos círculos do governo como nos da oposição» e «um estremecimento que ganha o Ultramar»28. A resposta de Salazar à segunda per­gunta foi o alvo de todos os comentários: Sendo uma hipótese prática, poderá V. Ex.ª prever o período dentro do qual quer Angola quer Moçambique poderão estar preparados para to‑ mar o seu lugar, por si mesmos, na comunidade das nações? [...] Se «por si mesmos» V. Ex.ª quer significar «como Estados sobera‑ nos», devo di­zer que não sei responder. O facto de um território se pro‑ clamar independente é fenó­meno natural nas sociedades humanas e por isso representa uma hipótese sempre admis­sível, mas em boa verdade não se lhe pode nem deve marcar prazo [...].29

Salazar acrescentou depois que as condições de «desenvolvimento demográfico, económico, cultural, técnico e político» sobre as quais se deve construir «um Estado independente e assentar uma soberania responsável» não se encontravam ainda «realizadas nos territórios em questão.» E concluía: […] se nos deixarem trabalhar em paz, o lugar que a Angola e Moçambi‑ que cabe na comunidade internacional, e mais particularmente no conti‑ nente africano, não dei­xará de progressivamente ganhar relevo nos anos mais próximos.30

27  Oliveira Salazar, «Entrevista Concedida à Revista Life, de Nova Iorque», in Entre­ vistas 1960­‑1966, s.d., pp. 77­‑ 97. 28  Franco Nogueira, Salazar: A resistência (1958­‑1964), s.e., s.l., vol. v, Liv. Civilização Ed., s.d., p. 405. 29  É este o texto transcrito no Diário de Lisboa de 3 de Maio de 1962, pp. 1 (1.ª e 2.a colunas) e 15. 30  Oliveira Salazar, op. cit., pp. 80­‑ 83.

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Queriam estas afirmações dizer que Salazar admitia a independência das duas mais importantes Províncias Ultramarinas portuguesas? Era óbvio que sim. Porém, promoveu­‑se o estabelecimento de uma dúvida metódica que rapidamente produziu um discurso capaz de desmentir a resposta que Salazar tinha efectivamente dado. Na imprensa, nome‑ adamente no oposicionista Diário de Lisboa, sugeriram­‑se hipó­teses e retiraram­‑se das declarações de Salazar conclusões que não agradaram a importantes sectores do regime31. Estar­‑se­‑ia, segundo estes, a «criar a dúvida» passível de se repercutir junto dos «elementos civis no Ultramar, e sobretudo nos círculos militares». Sobretudo quando os militares «se batiam por certezas que de súbito pare­ciam abaladas ou, pelo menos, eram passíveis de mais de uma interpretação». Fosse como fosse, tudo acabou com «esclarecimentos oficiosos inspirados pela Presidência do Conselho e di­fundidos pelo Secretariado Nacional de Informação»32. No entanto, todos os cuidados e dú­vidas então suscitados foram inter‑ pretados como não tendo qualquer razão de ser. Salazar não podia es‑ tar a falar de uma «política nova», porque esta criaria uma «velocidade 31  No editorial do Diário de Lisboa de 4 de Maio, intitulado «Realidades e Ilusões», escrevia­‑se o seguinte a propósito da entrevista de Salazar à Life e transcrita na vés‑ pera: «Sem excluir a hipótese de Angola e Moçambique se tornarem um dia indepen‑ dentes, o que considera um ‘‘fenómeno natural nas sociedades humanas e por isso representa uma hipótese sempre admissível’’, o chefe do governo acrescentou que a essa presumível independência ‘‘em boa verdade não se lhe pode nem deve marcar prazo’’ — e este parece­‑nos o ponto essencial das suas declarações. O dr. Oliveira Salazar mostrou­‑se, portanto, contrário à independência com data marcada […]. Não se põe, portanto, e as próprias individualidades responsáveis da oposição ao regime não encaram essa hipótese, o problema da independência imediata ou com prazo mar‑ cado dos territórios portugueses de África, mas sim uma lenta e segura preparação que aliás está em marcha, para se alcançar um estádio de desenvolvimento em que seja pos‑ sível aos povos evoluídos tomarem nas suas mãos as rédeas do seu próprio destino. […]». 32  No Diário de Lisboa de 5 de Maio era reproduzida a seguinte nota do SNI: «Em ar‑ tigo de fundo, ontem publicado no Diário de Lisboa sob o título ‘‘Realidades e Ilusões’’, fez­‑se uma interpretação das declarações do sr. Presidente do Conselho na entrevista concedida à revista norte­‑americana Life que de modo algum corresponde ao pensa‑ mento, tantas vezes e tão claramente expresso pelo chefe do governo, e que, aliás, é novamente confirmado no que na mesma entrevista se contém. Efectivamente, de nenhum passo da citada entrevista se poderá concluir pela admissão da hipótese da independência de Angola e Moçambique, mesmo sem prazo marcado. Realmente, perguntando­‑se ao sr. dr. Oliveira Salazar se poderia prever­‑se o período dentro do qual, quer Angola quer Moçambique, poderão estar preparadas para tomar o seu lugar, por si mesmas, na comunidade das nações, as respostas foram inequívocas no sentido sempre definido à política portuguesa. Disse o sr. Presidente do Conselho: ‘‘A missão a cumprir nunca pode ser a tendente à preparação de desmembramento em maior ou menor prazo mas ao seu desenvolvimento harmónico dentro da nação.’’»

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psicológica» que conduziria à «sua execução imediata»33. E estando consciente deste facto, a res­posta à pergunta da Life nunca podia ter sido dada, mas apenas deturpada34. Porém, e a favor das intenções de Salazar em prosseguir uma po‑ lítica colonial aberta a cedências e a negociações, registe­‑se o facto de a transcrição da entre­vista, na versão da Life e na tradução portu‑ guesa, segundo averiguação levada a cabo pela embaixada do RU em Lisboa, ter sido totalmente fiel. Aliás, e no caso da Life, as autorida‑ des portuguesas mostraram­‑se satis­feitas com o seu conteúdo, tendo apenas lamentado o título escolhido35 e as fotografias seleccionadas para acompanharem o texto. O facto de o presidente do Conselho optar por publicar os seus pontos de vista num importante órgão da imprensa internacional não constituía nada de novo. Tratava­‑se de uma «táctica escolhida» por Salazar nou­tras ocasiões. Já acontecera recorrer­‑se ao The New York Times36 para anunciar as reformas de po‑ lítica ultramarina preparadas por Adriano Moreira; ou ao Le Figaro37 para transmitir a primeira reacção à queda de Goa38. Por isso, segundo diversos observadores, e em especial o oposicio‑ nista Diário de Lisboa, tendo em conta a reacção do SNI à reprodução literal da entrevista naquele jornal e ao editorial que a comentou, no qual era sugerido que o governo se preparava para alterar a sua posi‑ ção de sempre quanto ao destino político das províncias ultramarinas, não era descabido pensar que Salazar tivesse transmitido, propositada‑ mente, para o exterior, alguns elementos que permitissem vislumbrar uma vontade de mudança na política ultra­marina. Justamente por isso, aliás, a partir do momento em que um jornal português sustentava que havia sido proposta uma mudança daquela política, era óbvio que fosse divulgado um desmentido, de forma a fazer crer que o problema nunca tinha existido — ou seja, não fazia sentido produzirem‑se declarações 33  Franco Nogueira, op. cit., p. 405. 34  Na sua publicação em livro acrescenta­‑se em nota que se tratava, de facto, do texto da «entrevista concedida à Life», mas que a «revista» havia publicado «com al‑ gumas deturpações». Oliveira Salazar, op. cit., p. 79. Tal como, assim sendo, o fizera toda a imprensa portuguesa. 35  «Dictator on the Defensive». 36  Oliveira Salazar, «Entrevista ao Jornal The New York Times, de Nova Iorque», in op. cit., pp. 25­‑44 (publicada no n.º de 31 de Maio de 1961). 37  Oliveira Salazar, «Entrevista a Le Figaro», in op. cit., pp. 59­‑ 76 (publicada nos n.os de 23 e 24 de Dezembro de 1961). 38  Ainda em 1962, o SNI publicou a versão oficial da entrevista com o título Proble­ mas Portugueses em África.

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contrárias àquilo que era normal, para mais cedo ou mais tarde virem a ser «negadas». Sobretudo quando uma declaração, seguida de um desmentido, facilmente produziria reacções indesejáveis, tanto na opinião pública interna como externa. Além disso, a «linha que o SNI obrigou» o Diário de Lisboa a seguir, e que A Voz reforçou no dia 6 de Maio, era muito mais a de uma correcção do que a de uma «refutação», sendo por isso dado ênfase ao facto de Salazar ter «sem quaisquer dúvi‑ das falado de independência como uma possibilidade teórica», embora rapidamente acrescentasse que tal não poderia acontecer enquanto al­ guns «pré­‑requisitos» não fossem preenchidos, o que, manifestamente, ainda não acon­tecia em Angola ou Moçambique39. Aliás, o embaixador brasileiro40 em Lisboa partilhava o ponto de vista do seu colega britânico. Parecia­‑lhe que a liderança do governo português estava preparada «para admi­tir a possibilidade de indepen‑ dência» para as províncias de Angola e Moçambique, pelo que eram «sinceras» as referências feitas por Salazar na sua entrevista à Life. Simplesmente, quando o Diário de Lisboa sublinhara o óbvio, o che‑ fe do governo fora obrigado pelos «extremistas», nomeadamente os ministros do Interior e do Exército41, a desmentir­‑se, por recear que, face às pressões externas e à alienação de apoios internos, as suas de‑ clarações pudessem desencadear uma acumulação de concessões que conduzissem ao desmoronamento da «frente interna»42. Como sugeria o embaixador britânico, a presumível intenção de mudança da política ultramarina, tão evidente junto de vários apoian‑ tes do regime, e a que Salazar dera voz na entrevista à Life, resultava da perda de Goa e do facto de este acontecimento ter produzido uma espé‑ cie de cisão quanto àquela que poderia ser a melhor op­ção estratégica na política ultramarina43. À mercê de pressões que geravam conflitos, Oliveira Salazar terá con­siderado ser politicamente sensato abandonar o tradicional 39  Daí que, por exemplo, à pergunta sobre se seria possível determinar a data em que Angola e Moçambique poderiam estar «preparados para tomar o seu lugar, por si mes‑ mos, na comunidade das nações», Salazar respondesse não com uma negativa indiscutí‑ vel, mas com um «se»: «Se ‘‘por si mesmos’’ V. Ex.ª quer significar ‘‘como Estados sobera‑ nos’’, devo dizer que não sei responder.» TNA­‑FO371­‑161630, relatório da embaixada do RU em Lisboa, 8 de Maio de 1962. Ver ainda A Voz, 6 de Maio de 1962, p. 1, 1.ª coluna e p. 5, 2.ª coluna, e Diário da Manhã, 5 de Maio de 1962, editorial de Barradas de Oliveira. 40  O embaixador dos EUA tinha opinião idêntica à do seu colega brasileiro. 41  Alfredo Rodrigues dos Santos Júnior e Mário José Pereira da Silva, respectivamente. 42  TNA­‑FO371­‑161630, relatório da embaixada do RU em Lisboa, 8 de Maio de 1962. 43  Ibidem.

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imobilismo e «ventilar a possibilidade de uma independência even‑ tual», sublinhando ao «mesmo tempo» que essa independência ape‑ nas poderia ter lugar quando «um número de condições altamente problemáticas fossem preenchidas». Neste sentido, as suas decla‑ rações eram tanto um «pedido» de tempo, como de «compreensão e assistência material». Restava agora saber que espécie de An­gola, que não aquela então existente com base no «princípio da integra‑ ção», poderia o chefe do governo estar a preparar para que outros viessem a trabalhá­‑la. Fosse como fosse, o representante do RU em Lisboa recordava as palavras do ministro Franco Nogueira proferi‑ das no Verão de 1961 e segundo as quais as reformas postas então em prática pelo seu governo poderiam levar a «qualquer tipo de so‑ lução, mas que o governo esperava, certamente, que ela fosse uma solução portuguesa». Para o diplomata britânico, o re­curso a uma «linguagem ambígua como esta, e que apesar de tudo não era mo‑ nopólio português», seria afinal de contas o que se poderia esperar à luz daquelas que eram então as «condições do mundo»44. Visto isto, é possível definir um pouco melhor os grupos em confronto e a posição relativa de Salazar face àquelas que eram as opções possíveis na política ultramarina. Os «ultraconservadores», para quem «por natureza» o presidente do Conselho se «inclinava», opunham­‑se a «qualquer avanço na política colonial», porque esta poderia vir a alterar o «essencial» no relacionamento entre «Portu‑ gal e as suas províncias ultra­marinas» ou ainda, o que seria talvez mais importante, conduzir a um enfraquecimento da «estrutura do Estado Novo». Os «ultraconservadores» caracterizavam­‑se por ser «anti­‑Nações Unidas e mais ou menos antiamericanos e antibritâni‑ cos». Por outro lado, os «progressistas» preocupavam­‑se em garantir a promoção de «mudanças ordeiras» que poderiam vir a «preservar o conteúdo essencial, senão mesmo a forma das relações de Portugal com os seus territórios ultra­marinos», mas poupando à metrópole as «consequências de uma guerra colonial prolon­gada», que equiva‑ lia a um esbanjamento das reservas do país em termos financeiros, em recursos humanos e naquilo que seria um relacionamento polí‑ tico normal com as potên­cias amigas. O resultado deste confronto estava presente na entrevista à Life ou nas movi­mentações «cautelosas» e muito «ambíguas» que o governo 44  Ibidem.

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português ia realizando e que várias chancelarias registaram. Essa mesma vontade de mudança encontrava­‑se ainda na legislação que o ministério do Ultramar aprovou no Verão de 1961 (merecendo parti‑ cular relevância a abolição do indigenato) ou na aprovação, em Abril de 1962, do novo Código do Trabalho Indígena. Daí que a remodelação governamental ocorrida a 4 de Dezem‑ bro de 1962, e que causou «no público incerteza e confusão», fosse interpretada «como viragem para a direita», sobretudo pelo facto de o rosto das reformas ultramarinas, Adriano Moreira, ter sido afasta‑ do do ministério do Ultramar e do governo. Mas esta «viragem» foi também interpretada como equivalendo à derrota do regime e de Salazar. Aquele estaria a enfraquecer irreversivelmente, enquanto Salazar teria entrado no seu «ocaso»45. Porém, o significado da remodelação era outro. A  saída de Adriano Moreira do governo não equivaleu ao fim do reformismo colonial.

A revisão da lei orgânica do Ultramar português No início de 1962, Salazar decidiu auscultar a opinião de algumas fi‑ guras destacadas do regime sobre a política colonial46. Ao que parece, o pretexto imediato para esta consulta foi proporcionado por Sar‑ mento Rodrigues, governador­‑geral de Moçambique, que colocou o «problema» da «revisão do sistema do governo das províncias ultra‑ marinas, em especial Angola e Moçambique». Sarmento Rodrigues, que fora ministro do Ultramar (1950­‑ 55), sugeriu que fossem toma‑ das medi­das de «desconcentração de poderes», de «descentralização ou delegação de compe­tências, [ou ainda] a criação de postos de ‘‘ministro de Estado’’ no Ultramar […]»47. Colidissem, ou não, estas propostas com a constituição a prazo de uma «soberania portuguesa 45  Ibidem, 48. 46  Franco Nogueira, Salazar: A resistência (1958­‑1964), s.e., s.l., vol v, Liv. Civilização Ed., s.d., p. 394. 47  Franco Nogueira parece referir­‑se à «reunião de um restrito Conselho de Ministros» para a qual Sarmento Rodrigues foi convidado. No decorrer daquela, o governador­ ‑geral de Moçambique fez uma «distraída proposta» em que afirmou «que todos os serviços nacionais deveriam ser subordinados a um vice­‑presidente do Conselho, que lhe parecia dever ser o ministro do Ultramar, dirigindo um ministério de simples coor‑ denação das administrações autónomas das Províncias». Adriano Moreira, A Espuma do Tempo. Memórias do tempo de vésperas, s.e., Coimbra, Almedina, 2008, p. 279.

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pluricontinental» ou com a preservação do «carácter unitário do Es‑ tado português», a verdade é que Salazar enten­deu que todo «o pro‑ blema, no plano do governo e do Estado», deveria «ser ponderado sem restrições»48. Seguindo a sugestão do presidente do Conselho49, Adriano Mo‑ reira submeteu as «ideias» de Sarmento Ro­drigues «aos antigos mi‑ nistros do Ultramar, aos antigos governadores ultramarinos, aos membros do Conselho Ultramarino; e a todos» foi pedido «parecer fundamentado». As respostas não terão dado «sugestões espectacu‑ lares nem ideias surpreen­dentes». Iam «desde uma integração abso‑ luta até […] uma larga auto­nomia no governo local», o que confir‑ mava a ausência de sintonia no seio do Estado Novo quanto ao que deviam ser os princípios, meios e objectivos da política ultrama­ rina, sendo de supor que, caso tivesse sido suscitada, sem quais‑ quer constrangimentos, a hipótese de uma mais ou menos imediata independência das colónias, ela tivesse registado apoios50. Ao que parece, e vistos os pare­ceres, Salazar concluiu que, «nas suas linhas fundamentais», se devia «prosseguir a política actual no Ultramar.» Além das reformas já executadas por Adriano Moreira, havia «que actualizar e modernizar o quadro geral da admi­nistração e do go‑ verno local nas províncias de além­‑mar» — ou seja, rever a LOUP, o que veio a ser feito51, tendo como pano de fundo o facto de a es‑ colha feita, em Abril de 1961, por Oliveira Salazar e por um núcleo político­‑militar do regime, para lidar com a questão colonial, con‑ tinuar a merecer fortes críticas de figuras destacadas do regime52, 48  Segundo Adriano Moreira, Salazar não «concebia que algum dia a estrutura nacional pudesse ser diferente, embora pudesse reformular a definição». Idem, ibidem, p. 187. 49  Embora Adriano Moreira garanta que convocou aquilo que «foi o Último Plená‑ rio do Conselho Ultramarino, que decorreu em Outubro de 1962, acto para o qual me dispensei de pedir concordâncias e amparo». Idem, ibidem, p. 278. 50  Sobre a erosão acelerada do apoio à política colonial do Estado Novo entre os apoiantes de Salazar e de Marcelo Caetano, ver Rui Ramos, «O Império Que nun‑ ca Existiu. A cultura da descolonização em Portugal, c. 1960­‑c. 1980», in Revista de História das Ideias, vol. 28 (2007), pp. 436­‑38­. Sobre a «descolonização retórica e insti‑ tucional» «sob o Estado Novo», idem, ibidem, pp. 459­‑ 65. Sobre a ausência de «mono‑ litismo do regime português em torno da defesa da integridade do Império Colonial Português»,ver Fernando Tavares Pimenta, Angola, os Brancos e a Independência, s.e., Porto, Ed. Afrontamento, 2008, pp. 276 e ss. 51  Franco Nogueira, op. cit., pp. 395­‑ 96. 52  Adriano Moreira recordou que «não havia correntes portuguesas que votassem na eternidade da estrutura imperial de 1961, porque a história dava a mesma lição a to‑ dos. Mas havia referências fundamentais que dividiriam para sempre os responsáveis».

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desde Marcelo Caetano53 até uma importante fatia das chefias mili‑ tares personificadas no general Botelho Moniz54. Estas tensões manifestaram­‑se moderadamente no Conselho Ultramarino, onde tiveram lugar as discussões que antecederam a aprovação de uma proposta de revisão da LOUP a apresentar ao governo. Iniciados a 22 de Setembro de 1962, os trabalhos tiveram uma fase preparatória em que «participaram, embora sem voto, os vogais dos Conselhos Legislativos e do governo de todas as pro‑ víncias e os representantes das actividades económicas de Angola e Moçambique, e que teve também a assistência de alguns anti‑ gos ministros e subsecretários de Estado do Ultramar»55. Conclu‑ ídos aqueles, foi produzido um parecer em que a «descentralização O ex­‑ministro do Ultramar identifica uma, «que mantinha o destino do Brasil como exemplo repetível e inevitável, sempre acolhida e até glorificada pelos regimes e governo anteriores à intervenção da ONU, incluindo Salazar, Marcelo Caetano, e o cardeal Cere‑ jeira, ensinada nas escolas, e animada pelo projecto de uma solidariedade futura em no‑ vas formas». A segunda referência, sustentada pelo próprio Adriano Moreira, «enfrentan‑ do a conjuntura, lutava pela reposição do factor tempo que a Carta da ONU estabelecera e fora posto de lado». Fazendo uso do «reformismo», avançava «pela via da ‘‘autonomia progressiva e irreversível’’». Por fim, havia a «fórmula que Salazar aceitou na recta final do seu governo, vinda da frente diplomática [i.e. de Franco Nogueira], segundo a qual a paz militar estava estabelecida, quem vence não reforma, a crise este­‑oeste acabaria por obrigar os ocidentais a ajudar a resistência portuguesa». Adriano Moreira, op. cit., p. 253. 53  O relatório redigido por Marcelo Caetano sobre os rumos da política ultramari‑ na encontra­‑se reproduzido em João Paulo Guerra, Memória das Guerras Coloniais, s.e., Porto, Ed. Afrontamento, 1994, p. 333. Nele, Marcelo Caetano, numa altura em que os‑ tensivamente se afastou de Salazar e do regime ao demitir­‑se de reitor da Universidade de Lisboa, imediatamente após o início da crise académica que deflagrou em Março de 1962, defendeu a opção por uma «modificação constitucional» que transformasse o «es‑ tado unitário […] em Estado Federal». Segundo Marcelo Caetano, a «revisão do sistema governativo das províncias ultramarinas, especialmente de Angola e Moçambique», de‑ via «satisfazer três condições: 1.º) Permitir à diplomacia portuguesa obter a melhoria do ambiente internacional, sobretudo entre os governos amigos; 2.º) Não comprometer os interesses nacionais […]; 3.º) Ser administrativamente eficaz». Segundo Adriano Morei‑ ra, este parecer de Marcelo Caetano não só não lhe teria sido pedido por Salazar, como Salazar não apreciou a sua «circulação». Por outro lado, o mesmo Adriano Moreira ora manifesta sérias dúvidas sobre a autoria do documento (Adriano Moreira, op. cit., p. 280), ora afirma, ironicamente, «que o celebrado documento umas vezes não existe, outra é parecer solicitado, outra é cabala, e finalmente agora [nos primeiros meses de 1971] era carta particular [ao ministro do Ultramar, Adriano Moreira].» 54  José Medeiros Ferreira, O Comportamento Político dos Militares: Forças Armadas e regimes políticos em Portugal no século xx, 1.ª ed., Lisboa, Ed. Estampa, 1992, pp. 255­‑ 77. 55  O Conselho elaborou um parecer que foi aprovado por unanimidade e que serviu de base à posterior proposta enviada pelo governo à AN. «Lei Orgânica do Ultramar. 1. Relatório da proposta do governo», in Ultramar, n.º 11­‑12, ano iv, vol. vi Janeiro­ ‑Junho de 1963, p. 189.

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administrativa», a «especialidade das leis e a intervenção directa dos residentes na província na gestão da vida provincial» constituí‑ ram o essencial das reivindicações. O parecer materializar­‑se­‑ia em «propostas de alterações» à LOUP que, na sua «generalidade», fo‑ ram aceites pelo Conselho Ultramarino. Numa fase posterior, este órgão produziu o seu próprio parecer que, com a excepção de um ponto (cujo conteúdo seria de «âmbito constitucional»)56, foi incor‑ porado no projecto da nova LOUP recebido e aceite pelo Governo e depois enviado à AN e à CC57. Há, no entanto, que notar o facto de a reunião do Conselho Ul‑ tramarino, convocada com o objectivo de rever a LOUP, ter sido ensombrada pelo facto de Sarmento Rodrigues ter sugerido, em carta dirigida a Adriano Moreira, que a reforma da política ultra‑ marina deveria passar por uma alteração do «sistema de governo de Angola e Moçambique», no sentido de favorecer a autonomia daquelas «províncias», ao mesmo tempo que os respectivos go‑ vernadores deveriam ter a «categoria de ministros de Estado», o que, entre outras prerrogativas, lhes permitiria terem assento no Conselho de Estado. A  justificação para a apresentação destas propostas residiu no facto de a sua adopção poder proporcionar uma «administração eficiente», ao mesmo tempo que «impediria o agravamento da campanha» que contra Portugal se desenvolvia na ONU, «ao sabor da corrente anticolonialista que cada vez mais se afirmava na sociedade internacional». Porém, a revisão da LOUP (e talvez por isso alguns tenham considerado precipitada a con‑ vocatória do Conselho Ultramarino)58, fez­‑se para, embora sem êxito e com as consequências que se conhecem, procurar estan‑ car a perda de autoridade política (e, se possível, depois restaurá­ ‑la em Angola, Moçambique, e talvez também na metrópole) por parte de Adriano Moreira junto dos colonos angolanos (mas tam‑

56  «[…] os governadores­‑gerais passariam a fazer parte de um Conselho de Minis‑ tros para o Ultramar». Álvaro da Silva Tavares, «A Revisão da Lei Orgânica do Ultra‑ mar», in Ultramar, n.º 11­‑12, vol. iv, Janeiro­‑Junho de 1963, p. 5. 57  Idem, ibidem, pp. 3­‑ 5. Sobre a revisão da LOUP, veja­‑se ainda Revisão da Lei Orgâ­ nica do Ultramar. Reunião Extraordinária do Conselho Ultramarino, s.e., Lisboa, Ed. da Academia Internacional da Cultura Portuguesa, 1988. 58  «[…] à decisão tão solenemente anunciada não correspondia qualquer estudo, nem sequer um anteprojecto de revisão da Lei Orgânica em vigor». Silva Cunha, op. cit., p. 92.

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bém moçambicanos59), após o confronto que o opôs ao general Venâncio Deslandes60. A passagem da LOUP pelo conselho de Ministros, a 25 de Janeiro de 1963, produziu um aceso debate que reproduziu, uma vez mais, as diferentes opiniões existentes no seio do governo e do regime sobre o que devia ser a política ultramarina61. O projecto da nova LOUP pareceu a vários membros do governo muito mais descentralizador do que seria desejável. Isto apesar do então ministro do Ultramar, Peixoto Correia, garantir que o documento por ele ali apresentado estava «de harmonia com a sessão magna do Conselho Ultra­marino». Convidados a pronunciarem­‑se sobre o projecto, ouviram­‑se opi‑ niões para todos os gostos. O ministro Correia de Oliveira62 via no

59  Manuel João Correia, deputado eleito por Moçambique, aquando do debate na AN sobre o projecto da nova LOUP, recordou que criara em torno desta «um ambien‑ te de verdadeira curiosidade e expectativa. […] Quem, como eu, viveu em Moçambi‑ que os dias de excitação e ansiedade em que decorreram as sessões do Conselho Ultra‑ marino, na segunda quinzena de Outubro último, foi testemunha desse momento his‑ tórico em que o problema da descentralização administrativa do Ultramar português foi largamente debatido naquele alto órgão da administração ultramarina. O Ultramar estava cansado de um sistema administrativo que não lhe permitia o livre desenvolvimento das suas aspirações de progresso e viu, portanto, na decisão do minis‑ tro do Ultramar, ao convocar o Conselho Ultramarino para pronunciar­‑se acerca da re‑ visão da Lei Orgânica, um farol de esperança que se acendeu na noite profunda das suas preocupações.» Diário das Sessões, viii legislatura, sessão n.º 89, 4 de Abril de 1963, p. 2270. 60  Silva Cunha, op. cit., pp. 90­‑ 91. O conflito entre Adriano Moreira e o general Ve‑ nâncio Deslandes, nomeado por Salazar governador­‑geral e comandante­‑em­‑chefe das Forças Armadas portuguesas estacionadas em Angola, teve como ponto alto a criação por aquele, à revelia do ministro do Ultramar, dos Centros de Estudos Universitários naquela província (21 de Abril de 1962). Mas o essencial do confronto dizia respeito ao facto de Deslandes, por razões ainda hoje pouco conhecidas, ter exercido o seu cargo excedendo as competências que lhe eram atribuídas por lei. Além da ambição pessoal e do escasso tacto político, o comportamento político de Deslandes terá sido também reflexo da sua permeabilidade às pressões exercidas por grupos de colonos social e po‑ liticamente influentes e historicamente sequiosos de uma maior descentralização polí‑ tica e administrativa na governação de Angola. Há inclusivamente factos que permitem pensar que muitos colonos terão parcialmente convencido o general sobre a bondade de uma solução política que fosse exercida com grande grau de autonomia política, sendo esta a clara antecâmara de uma declaração branca de independência política de Angola. Veja­‑se, para uma descrição do conflito do ponto de vista do então ministro do Ultra‑ mar, Adriano Moreira, op. cit., pp. 237­‑263. Veja­‑se igualmente Fernando Tavares Pimenta, op. cit., capítulo 5. 61  Um primeiro exame do projecto teve lugar a 16 de Janeiro. As  discussões «de fundo» aconteceram a 25 e 26 daquele mês. Franco Nogueira, Salazar: A resistência (1958­‑1964), s.e., s.l., vol. v, Liv. Civilização Ed., s.d., p. 457. 62  Ministro de Estado adjunto do presidente do Con­selho.

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projecto algo de «monstruoso, de traição à pátria». Antu­nes Varela63 considerou­‑o «duvidoso nos seus princí­pios, defeituoso na sua for‑ ma». Pedro Soares Martinez64 afirmou­‑se «desgostoso» e desconhece‑ dor dos «motivos externos ou internos» que o justificariam. Por outro lado, «Galvão Teles65, Quintanilha66, Santos Júnior67, Carlos Ribeiro68 e Gonçalves de Proença»69 assumiram uma «posição moderada», defendendo que o pro­jecto deveria, desde logo, ser enviado à AN. O ministro das Obras Públicas, Arantes e Oliveira, apoiou o projec‑ to para em seguida admitir a «independência de Angola e Moçam‑ bique», uma vez que considerava «irreversível o anticolonialismo»70. Teixeira Pinto, responsável pela pasta das Finanças, e Franco Noguei‑ ra consideraram o projecto em discussão apenas «político», pelo que deveria ser enviado de imediato à AN71. Gomes Araújo e Luz Cunha, ministros da Defesa e do Exército, respectivamente, mostraram­‑se «muito prudentes, e cautelosos», receando «eventuais reacções» das FA. Perante um conselho de Ministros dividido, e manifestando­‑se muitas opiniões contrárias à revisão da LOUP nos termos propostos, Silva Cunha, que excepcionalmente, na qualidade de subsecretário de Estado da Administração Ultramarina, participou na reunião, terá segredado a Franco Nogueira a intenção de se demitir caso o texto fosse recusado. Salazar, o último a emitir uma opinião, considerou que «com as pequenas alterações sugeridas» ficava «decidido enviar o projecto» à CC e à AN. No entanto, o chefe de governo, que com Silva Cunha preparara a versão final do projecto, apesar da opinião favorável do Con­selho Ultramarino e de apenas parte dos ministros reunidos se terem manifestado frontalmente contra, consentiu num ligeiro recuo no espírito e na letra da LOUP (reformulando os princí‑ pios que concediam «maior descentralização e autonomia»), por não pretender provocar qualquer reacção dos sectores mais conservado‑ res e, especialmente, das FA. 63  Ministro da Justiça. 64  Ministro da Saúde e Assistência. 65  Ministro da Educação. 66  Ministro da Marinha. 67  Ministro do Interior. 68  Ministro das Comunicações. 69  Ministro das Corporações e Previdência Social. 70  Neste momento, Salazar terá declarado não ter ouvido bem as palavras de Aran‑ tes e Oliveira, pe­dindo­‑lhe, por isso, que repetisse. O ministro fê­‑lo «sem titubear». 71  Silva Cunha, autor do projecto e presente na reunião de Conselho de Ministros nessa qualidade, apresentou um retrato algo diferente daquilo que se passou.

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Este recuo fazia com que o MNE perdesse alguns argumentos que poderiam ser apresentados na ONU e junto dos aliados da OTAN/ NATO. O ministro do Ultramar, por seu lado, teria, num futuro mais ou menos próximo, de enfrentar o descontentamento dos colonos e dos seus representantes políticos e administrativos. No entanto, por não pretender enfrentar os «integracionistas»72, e por considerar po‑ liticamente demasiado temerária uma reforma da LOUP que parecia descentralizadora em demasia, Salazar decidiu­‑se por enviar à AN e à CC uma proposta que ficava um pouco aquém daquilo que lhe ha‑ via sido proposto pelo Conselho Ultramarino e que ele próprio con‑ sentira nas reuniões de redacção da LOUP que mantivera com Silva Cunha. Isto apesar de, e segundo o testemunho de Silva Cunha, Salazar ter defendido o princípio de autonomia (que estaria aliás presente no Acto Colonial) e respeitado «as características próprias de cada territó‑ rio, sem prejuízo da unidade política»73. «Unidade na diversidade» seria a «fórmula» usada por Salazar «para sintetizar o sistema a que deveria obedecer a organização do Estado português, formado pela metrópo‑ le e pelas províncias ultramarinas». Segundo o subsecretário de Esta‑ do, Salazar era apenas «intransigente […] no que respeitava à unidade nacional, de cuja conservação era instrumento a política de defesa», 72  Franco Nogueira, Um Político Confessa­‑se (Diário: 1960­‑1968), 3.ª ed., Barcelos, Liv. Civilização Ed., p. 55 e idem, Salazar: A resistência (1958­‑1964), s.e., s.l., vol. v, Liv. Ci‑ vilização Ed., pp. 457­‑ 58. Silva Cunha definiu os «integracionistas», entre 1961 e 1974, como todos aqueles «que consideravam inadequada às […] tradições [portuguesas], e às circunstâncias, a orgânica política do Ultramar e defendiam um sistema de com‑ pleta assimilação (ou integração), em que as atribuições do ministério do Ultramar fossem distribuídas, conforme a sua natureza, pelos outros departamentos do Estado e as Províncias Ultramarinas se regessem pelas leis da metrópole». Ainda segundo Silva Cunha, no «campo das ideias, o principal defensor desta solução foi o dr. Pacheco de Amorim». O integracionismo possuía «numerosos adeptos, mesmo entre membros do governo […]». Eram eles Correia de Oliveira e Antunes Varela. Já Franco Nogueira, «a princípio adepto do alargamento da autonomia do Ultramar e um dos principais de‑ fensores da reforma da LOUP em 1963, a pouco e pouco foi evoluindo, aproximando­ ‑se» da «concepção» integracionista. «Os partidários desta orientação, […] criticavam e atacavam duramente o governo por, diziam, não ser suficientemente firme na defesa do Ultramar e por não levar até às últimas consequências a forma unitária do Estado prescrita no art.º 5.º da Constituição Política de 1933.» Silva Cunha, op. cit., pp. 265­‑ 66. 73  Segundo o mesmo Silva Cunha, a Carta Orgânica do Império Colonial Português, reformada em 1946 quando Marcelo Caetano fora ministro das Colónias, assumira uma filosofia que favorecia «a autonomia dos governos provinciais e a descentralização e desconcentração de funções em matéria administrativa». No entanto, e até 1963, esta «orientação» não tivera «seguimento». Aliás, e por causa do vigor da «corrente anticolo‑ nialista», tudo foi feito, revisão constitucional incluída, para «acentuar a unidade entre a metrópole e os territórios ultramarinos». Silva Cunha, op. cit., p. 89.

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embora compreendesse «a necessidade de respeitar as autonomias lo‑ cais». Por isso, e ainda segundo Silva Cunha, a política de autonomia progressiva, consumada pela aprovação, em 1963, da nova LOUP, re‑ flectia o pensamento de Salazar, uma vez que não afectava o «princípio de unidade essencial da nação portuguesa», no que até anteciparia as alterações introduzidas na Constituição, em 1971 e na LOUP de 197274. Fosse como fosse, a nova LOUP era politicamente reformista e autonomista. Tendo­‑se receado que, após a saída de Adriano Mo‑ reira do ministério do Ultramar, no início de Dezembro de 1962, as recomen­dações avançadas pelo Conselho Ultramarino a favor de uma aposta na descentralização política aquando da revisão da LOUP75 não fossem tidas em conta por políticos e por burocratas do ministério do Ultramar76, a verdade é que a suspeita não se con‑ firmou, tendo competido apenas ao governo, quando se reuniu para apreciar o projecto, propor somente alterações ligeiras77. Muito em‑ bora a nova LOUP tivesse acabado por não satisfizer nem integra‑ cionistas nem autonomistas, e muito menos boa parte dos colonos, revelou­‑se ainda assim um movimento em direcção às pretensões de colonos e de autonomistas, e não uma paralisação ou um recuo que favorecesse as aspirações dos integracionistas78. Como escreveu um diplomata estrangeiro, a proposta de lei era «um primeiro passo cauteloso na direcção certa». Garantia a atribui‑ ção de uma maior autonomia financeira aos governadores das pro‑ víncias ultramarinas, ao mesmo tempo que concedia às Assembleias Legislativas daque­les territórios poderes que seriam usados ao nível da administração local. Simultaneamente, o texto apresentava a von‑ tade de melhorar a situação socioeconómica dos territórios. Tudo mudanças que iam ao encon­tro das aspirações das populações bran‑ cas de Angola e Moçambique, mas não dos «nativos», suspeitando­‑se 74  Silva Cunha, Ainda o «25 de Abril», s.e., Lisboa, Centro do Livro Brasileiro, 1984, pp. 42­‑43. 75  Numa reunião extraordinária realizada a 22 de Setembro. Silva Cunha, O Ultra­ mar, a Nação e o «25 de Abril», s.e., Coimbra, Atlântida Editora, 1977, p. 90. 76  O processo de revisão da LOUP, iniciado pelo Conselho Ultramarino por deci‑ são do ministro do Ultramar, Adriano Moreira, pode ser lido em Revisão da Lei Orgâ­ nica do Ultramar. Reunião Extraordinária do Conselho Ultramarino, Lisboa, 1988. Veja­‑se ainda Silva Cunha, op. cit., pp. 90­‑ 98 e Álvaro da Silva Tavares, op. cit. 77  TNA­‑FO371­‑169465, File1511/1, telegrama da embaixada do RU em Lisboa para o FO, 11 de Ja­neiro de 1963. 78  Na linha de Adriano Moreira, Fernando Tavares Pimenta sustenta que a demissão do ministro do Ultramar e a LOUP aprovada em 1963 equivaleram a um recuo do refor‑ mismo na política colonial portuguesa. Fernando Tavares Pimenta, op. cit., pp. 302­‑03.

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de que os seus aspectos mais progressistas eram inspirados no pen‑ samento e na acção de Adriano Moreira e de Sarmento Rodrigues, mas, também, na força das circunstâncias políticas vividas nas duas maiores colónias portuguesas. Caso a aprovação da LOUP ocorresse em 1963, como sucedeu, poder­‑se­‑ia concluir que o Governo estava interessado em prosseguir um programa de reformas79. No fim de Abril, o projecto foi «adoptado». Foi alvo de uma pequena parte das poucas emendas que a AN e a CC sugeriram, sendo promul‑ gado como lei no dia 24 de Junho. Embora o texto aprovado fosse subs‑ tancialmente o mesmo que tinha sido «submetido» à AN em Fevereiro, a verdade é que tanto os discursos dos deputados, como as alterações introduzidas revelaram que a AN e a CC era integracionistas. Por isso, e ao contrário do disposto na proposta entregue aos deputados, alguns dos poderes foram devolvidos ao ministro do Ultramar, sendo limitado aquele que previa a atribuição aos Conselhos Legislativos Provinciais de poderes para fazerem aprovar legislação contrária à vontade dos governa­dores­­‑gerais. Por outro lado, os conselhos de Governo provin‑ cial, que o projecto­‑lei decidira abolir nas províncias que dispunham de governador­­‑geral, acabaram por ser mantidos, sendo­‑lhes garantido, no entanto, poderes consultivos. O  texto final da LOUP exprimia natu‑ ralmente o equilíbrio pos­sível entre os «integracionistas» e os defensores de uma maior «descentralização admi­nistrativa». E ainda que as alterações introduzidas favorecessem os primeiros, o certo é que se tratavam de mudanças de «ênfase mais do que de substân­cia»80. Em suma, a nova LOUP mostrou que o Estado Novo não era avesso à mudança, nem sequer imune à força das circunstâncias. A partir do Verão de 1963, as colónias passaram a ser governadas num regime de maior autonomia e descentra‑ lização político­‑administrativa, cumprindo­‑se mais um desejo expresso no non­‑paper do MNE apresentado e discutido no início de 1962.

Salazar faz um discurso e promete uma «consulta» (Verão de 1963) O período que se estendeu entre a Primavera e o Outono de 1963 deu continuidade a uma política colonial reformista que procurava obter 79  TNA­‑FO371­‑169465, File1511/2, relatório da embaixada do RU em Lisboa para o FO, 13 de Março de 1963. 80  TNA­‑FO371­‑169465, File1511/2, relatório da embaixada do RU em Lisboa para o FO, 3 de Julho de 1963.

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dividendos na frente interna, ultramarina e internacional. Parale‑ lamente, e já desde 1962, tomou forma a possibilidade de o governo português conseguir obter a compreensão norte­‑americana para a sua política ultramarina, embora Lisboa devesse apresentar como con‑ trapartida o reconhecimento e consequente aplicação do conceito de autodeterminação nos seus territórios ultramarinos africanos, sendo que o conceito português de autodeterminação não tinha que coinci‑ dir com a concepção norte­‑americana, das NU ou dos afro­‑asiáticos, embora devesse possuir uma dimensão democrática. Durante este pe‑ ríodo, a posição portu­guesa evoluiu e a administração norte­‑americana pareceu ganhar um outro entendi­mento das opções de Salazar81. No seio do bloco afro­‑asiático, apesar da criação da Organização de Unidade Africana (OUA) em Maio de 1963, em Adis Abeba, e dos es‑ forços para a consolidação de um movimento de países não­‑alinhados, apresentaram­‑se opiniões diversas sobre a questão colonial portugue‑ sa, das quais emergiu uma sensibilidade disposta a dialogar com Lis‑ boa. O próprio Secretariado das NU entendeu que não podia, ou pelo menos não devia, fechar­‑se à proposta ocidental de criação da figura de um relator que analisasse a situação nos territórios portugueses em África, da mesma forma que deveria responder favoravelmente às soli‑ citações de diálogo provenientes de Portugal. No início de Agosto, Salazar estava optimista. Considerava que o governo se havia ba­tido bem nos confrontos do CS em Julho. Va‑ lorizava o facto de terem tido lugar, «para além dos debates públi‑ cos», contactos entre delegados portugueses e afri­canos por inicia‑ tiva destes. Estas conversas, como confessou Franco Nogueira ao embaixador britânico em Lisboa, tinham revelado a «compreensão, nalguns casos concordância com a atitude portuguesa [...]», embora fosse «sobretudo» com a administração norte­‑americana que se de‑ senvolviam «contactos mais estreitos», e de onde surgiam, desde os 81  Independentemente da importância que a questão dos Açores ganhou na mudança da política dos EUA em relação a Portugal, é igualmente verdade que a política africana de Kennedy foi «errática». Burton I. Kaufman, «John F. Kennedy as World Leader: A per‑ spective on literature», in Michael J. Hogan (ed.), America in the World: The historiography of American foreign relations since 1941, 1.ª ed., Nova Iorque, Cambridge University Press, 1996, p. 354. A política africana de Kennedy também foi condicionada pela evolução da questão da luta pelos direitos dos afro­‑americanos nos EUA entre 1961 e 1963. Odd Arne Westad, op. cit., pp. 131­‑35 e 143. Lyndon Johnson, tal como Kennedy, também não deixou de olhar para a África negra como um instrumento útil a ser utilizado «para cultivar as boas graças dos eleitores negros e liberais». witney w. Schneidman, op. cit., pp. 119­‑20.

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finais de Maio82, indicações de maior abertura. Além disso, vistos os resultados da votação em Julho, no CS83, era convicção do governo português que tinham sido definidos os limites até onde a pressão afro­‑asiática podia ser exercida, uma vez que estava fora de causa o apoio ou a apro­vação, por parte do RU, da França ou dos EUA, de resoluções que impusessem sanções económicas ou políticas, nome‑ adamente, o embargo total de venda de armas a Portugal84. Foi neste cenário que Salazar preparou «um discurso político so‑ bre o problema de Áfri­ca», proferido a 12 de Agosto, aos microfones da rádio e perante as câmaras da televisão85. Um discurso feito e dito para cumprir a necessidade de se entender a «nação portuguesa», o «Estado português em face dos Estados africanos» e «Portugal não diante do mundo — que seria pretensioso —, mas diante da tentativa de governo universal» que se procurava exercer «através da ONU». O discurso continha, porém, uma afirma­ção de alcance pouco nítido: […] o povo que trabalha e luta não precisará de largas discussões para se orientar sobre o seu destino. Mas eu só vejo vantagem em que se pronun‑ cie em acto solene e público sobre o que pensa da política ultramarina que o governo tem prosseguido.86 Após o discurso houve «por todo o país, na metrópole e no Ultramar, [...] um renovar de mística nacional.87

Segundo as palavras do embaixador britânico em Lisboa, o discurso pretendera contri­buir para o processo de clarificação do pensamento de Salazar. Como o embaixador Ross veio a confirmar junto de Franco Nogueira, o presidente do Conselho pretendia realizar um «plebiscito no Portugal metropolitano e nas províncias ultramarinas». Porém, e 82  Patente, segundo um dos interlocutores, na conversa entre o presidente Kennedy e o ministro dos Negócios Estrangeiros português. Franco Nogueira, Diálogos Interditos. Parte primeira (1961­‑1962­‑1963), s.e., Braga­‑Lisboa, Ed. Intervenção, 1979, pp. 246­‑ 50. 83  Segundo Franco Nogueira, o DE seguira com «minúcia» os debates no CS, e Ken‑ nedy mandou «dizer aos delegados portugueses que tomou um interesse pessoal pelo assunto». Franco Nogueira, Salazar: A resistência (1958­‑1964), s.e., s.l., vol. v, Liv. Civi‑ lização Ed., s.d., pp. 503­‑ 04. 84  Idem, ibidem, pp. 502­‑ 04. Sobre os pormenores político­‑diplomáticos que leva‑ ram à rejeição da resolução pelos EUA, ver witney w. Schneidman, op. cit., pp. 94­‑ 95. 85  Oliveira Salazar, «Declaração sobre Política Ultramarina» in Discursos e Notas Po­ líticas, 1959­‑1966, 6.º vol., 1.ª ed., Coimbra, Coim­bra Ed., 1967, pp. 287­‑335. 86  Idem, ibidem, p. 335. 87  Franco Nogueira, op. cit., p. 509.

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apesar de, para o embaixador, nada no discurso poder ser considerado novo, merecia ser sublinhado o facto de a sugestão de realização de um acto pú­blico e solene, em que o povo português se pronunciasse sobre a política ultramarina, não ter sido comentada em nenhum dos «jornais adulatórios» do regime, apesar de estar a ser discutida em privado um pouco por todo o lado. Segundo informações recolhidas, a referência a um acto público e solene fora uma sugestão inserida por Salazar no seu discurso «no último minuto», acrescentando que tal­vez por isso tivesse acabado por ser gravado e difundido «duas horas e meia mais tarde» do que o previsto. A alteração podia ter sido uma resposta às declarações de Craveiro Lopes publicadas no Diário de Lisboa, na edição de 10 de Agosto e nas quais o antigo presidente da República afirmara que «os aspectos fundamentais da política geral, a evolução da vida económica e os pro‑ blemas coloniais deveriam ser discutidos livre e publicamente». Ross, que «rejeitara» imediatamente, após o conhecimento do dis­curso, qual‑ quer hipótese de realização de um plebiscito, ficou surpreen­dido com as confidências de Franco Nogueira, quando este lhe garantiu que por trás das palavras do presidente do Conselho estava a intenção de avan‑ çar com um plebiscito88. Aliás, a ideia da realização de um referendo ou plebiscito, ao contrário do que suspeitava o em­baixador britânico, não teria sido incluída, mas sim retirada à última hora. Por outro lado, era uma hipó­tese que Salazar ponderava seriamente e que sectores mode‑ rados do regime, em que Franco Nogueira nesta altura se incluía, defen‑ diam. O ministro dos Negócios Estrangeiros vinha persua­dindo Salazar das vantagens de realização de um plebiscito, e uma vez convencido de que iria realizar­‑se era natural que transmitisse essa informação a Ross. Fosse como fosse, em meados de Agosto ninguém podia dizer quando se 88  Franco Nogueira afirmou: «Eu havia pessoalmente sugerido a Salazar, com empenho, o anúncio da realiza­ção de um plebiscito ou referendo que, abrangendo coerentemente toda a nação, não punha em causa a sua unidade, nem podia ser invocado contra esta: seria como se se plebiscitasse uma constituição. Não havia dúvidas quanto aos seus resul­tados, tanto mais que o peso eleitoral da metrópole teria de ser decisivo pela natureza das coisas. E seria difícil aos ou­ tros países, sobretudo aos ociden­tais, negar o valor político e legal de um plebiscito. Poderia mes­ mo, embora rejei­tando toda e qualquer interferência da ONU (que aliás nunca aceitaria fazê­‑lo senão nos seus próprios termos), solicitar­‑se de governos e jornalistas amigos e independentes que enviassem observadores a título meramente oficioso. Salazar acolheu a ideia na primeira versão do seu discurso. Mas sentiu receio no último minuto e substituiu a palavra ‘‘plebiscito’’ por ‘‘acto solene e público’’, sem o definir. Desenvolvimentos ulteriores, na ONU e meios afro­‑asiáticos, vieram demonstrar que teria sido por estes considerado irrelevante qualquer plebiscito, por mais ge­nuíno que fosse, desde que o resultado não fosse favorável às teses das Nações Unidas e dos governos africanos.» Franco Nogueira, op. cit.. p. 509n. Destaque nosso.

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realizaria tal plebiscito, embora Franco Nogueira tivesse «confirmado» a Ross que «qualquer pessoa qualifi­cada para votar nas eleições parlamen‑ tares» poderia votar no plebiscito. Caso este viesse a ter lugar, seria ne‑ cessária «grande coragem e imaginação da parte do governo» para permi‑ tir uma livre expressão de opiniões. Sobretudo porque, daí para a frente, e ao contrário daquilo que era habitual em Portugal, todas as opiniões passariam a ser «consideradas construtivas», sendo possível a partir delas retirar «conclusões válidas» que seriam úteis àqueles que no «estrangeiro [...] julgavam Portugal». As dificuldades eram consideradas de tal forma «grandes» pelo embaixador britânico, que este apenas estava disposto a «acreditar» no plebiscito na altura em que o visse89. Aos olhos de Ross, o momento escolhido para o pronunciamen‑ to do discurso tinha sido o mais correcto, sobretudo se se tivessem presentes alguns factos que pareciam impor­tantes. Tinham passado 18 meses sobre a última vez que Salazar se dirigira à «nação»90, não contando com a pequena alocução de Maio de 1962 às Forças Ar‑ madas91. A «opinião pública» encontrava­‑se anormalmente agitada pela situação vivi­da nas províncias ultramarinas, particularmente na Guiné (tendo em conta os custos crescentes das operações mi‑ litares que aí tinham lugar) e em Angola, mas também pelas deten‑ ções «intermitentes» de opositores ao regime. O discurso procurava assim dar resposta ao «sentimento» generalizado de que o «povo» não vinha sendo consultado, ou pelo menos devidamente informa‑ do, acerca dos acontecimentos que o afectavam de forma «vital». Por outro lado, a declaração de Salazar devia ser entendida como uma antecipação a uma convocação do CS, que se previa próxima e no decurso da qual, mais uma vez, seria tratada a questão colonial portuguesa. Neste contexto, ouvir Salazar podia ser necessário para restabelecer as forças do país num momento em que se vivia um mal­‑estar pior do que o habitual, ficando por sa­ber qual o efeito do discurso na metrópole e no Ultramar92. 89  TNA­‑FO371­‑169465, File1511/8, relatório da embaixada do RU em Lisboa para o FO, 14 de Agos­to de 1963. 90  No dia 3 de Janeiro de 1962, perante a AN, Mário Figueiredo lera o discurso de Salazar: «Invasão e Ocupação de Goa pela União Indiana», in Oliveira Salazar, Discursos e Notas Políticas, 1959­‑1966, 6.º vol., 1.ª ed., Coimbra, Coim­bra Ed., 1967, pp. 175­‑211. 91  «Unidade das Forças Armadas e Consciência Nacional», in idem, ibidem, 1967, pp. 337­‑41. 92  TNA­‑FO371­‑169465, File1511/8, relatório da embaixada do RU em Lisboa para o FO, 14 de Agos­to de 1963.

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Depois do discurso de 12 de Agosto tiveram lugar acontecimentos que pareciam preparar o terreno com o objectivo de substituir o «acto solene e público» que muitos pensavam ser um plebiscito. Assim, no dia 23, «nos Passos Perdidos da Assembleia Nacional [...], os três ramos das Forças Arma­das» exprimiram «o seu apoio ao governo na políti‑ ca de África»93. Imediatamente a seguir, a propósito desta ceri­mónia, choveram telegramas provenientes de «todos os comandos insulares e ultra­marinos [...] a afirmar a sua lealdade e apoio ao governo.»94 Qua‑ tro dias mais tarde, a 27, teve lugar uma manifestação multitudinária. Perante centenas de milhares de pessoas, Salazar afirmou que «não temos só o dever de merecer os mortos; mas também o dever de ser orgulhosos dos vivos»95. Terminada a manifestação, o chefe do governo partiu para o Forte do Estoril. Ficara tão «emocionado» com a manifes‑ tação que não lhe fora possível «trabalhar no resto da tarde»96. Transmitida pela televisão, a manifestação de dia 27 encheu o Terreiro do Paço com gente que «ordeiramente» para lá se deslocou ao longo do dia. Discursaram o presidente da câmara municipal de Coimbra (cidade onde aparentemente nascera a ideia de todos os distritos de Portugal se manifestarem em Lisboa, demonstrando a sua «lealdade» ao re­gime e à política ultramarina); um «negro», pre‑ sidente da câmara municipal de Nampula (Moçambique); um estu‑ dante; um oficial do Exército; e, para «surpresa da maioria», o próprio Salazar. Os jornais calcularam em 300 mil o número de participantes chegados a Lisboa em comboios, autocarros e meios de transporte privados. Porém, e segundo a embaixada britânica, era difícil vislum‑ brar aquilo que se ganhara com a realização da manifestação de 27 de Agosto. O sentimento geral que ficara era o de que havia «sido dado um passo em frente» ou, pelo menos, «cerradas fileiras». O aconteci‑ mento podia ainda ser inter­pretado como uma prova da «unidade do povo português e dos seus líderes», embora fosse de notar que, segun‑ do as palavras do general Câmara Pina, a manifes­tação, como a ho‑ menagem das chefias militares ao chefe de governo que decorrera no dia 23, diziam «exclusivamente» respeito à política ultramarina, não implicando a aprovação de quaisquer outros domínios da política 93  Franco Nogueira, op. cit., p. 510. 94  Idem, ibidem, p. 510n. 95  Oliveira Salazar, «Temos também o Dever de Ser Orgulhosos dos Vivos», in op. cit., pp. 343­‑47. 96  Franco Nogueira, op. cit., p. 512.

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governamental. Mas não houve qualquer sinal de que a manifestação substituísse o plebiscito de cuja realização Salazar falara no discurso do dia 12, apesar de os jornais se lhe referirem como tendo sido a «resposta de Portugal» ou que «Portugal estivera em Lisboa para dizer ‘‘Não’’ às Nações Unidas e para tudo ofe­recer à pátria imortal»97. A probabilidade de realização de um plebiscito fez com que se avo‑ lumassem «as interrogações em torno da política de África». A ideia de que uma consulta viesse de facto a realizar­‑se tornou­‑se numa qua‑ se «certeza política». Para tal contribuiriam ainda as conversas com George Ball e Amachree, que a imprensa publicitou e os contactos estabelecidos com a Frente de Libertação e Independência Nacional da Guiné (FLING)98. Simplesmente, em muitos «meios» ligados ao governo ou «havidos como de extrema­‑direita», a hipótese plebisci‑ tária provocou «vigorosa reacção». Foi o caso do director do Diário de Notícias, Augusto de Castro, que redigiu um ar­tigo para publicação no seu jornal e que intitulou «Um plebiscito?». Retido pela censura, o artigo chegou às mãos de Salazar, que assim tomou conhecimento das duras críticas que um velho confidente e colaborador seu reserva‑ va à proposta ventilada em Agosto. Augusto de Castro escrevera que:

97  TNA­‑FO371­‑169465, File1511/9, relatório da embaixada do RU em Lisboa para o FO, 28 de Agos­to de 1963. 98  Aquando do discurso de Salazar de 12 de Agosto, Silva Cunha acabara de che‑ gar à Guiné­‑Bissau, onde iria encontrar­‑se com Benjamim Pinto Bull. Membro da FLING, Pinto Bull deslocara­‑se semanas antes a Lisboa, onde se encontrou com o presidente do Conselho, Peixoto Correia e Silva Cunha. Nessa altura expôs­‑lhes a vontade de colaboração da FLING com o governo português e afirmou que contava com o apoio de Senghor para prosseguir esta estratégia. Insistiu na adopção, por Portugal, de uma política de intensificação da «africanização dos quadros» da Guiné, devendo­‑se confiar «alguns lugares a gente da FLING». Salazar terá aceite, «em prin‑ cípio», o plano de Pinto Bull. Para prosseguir e aprofundar a colaboração entre Por‑ tugal e a FLING, Salazar solicitou a Silva Cunha que se deslocasse à Guiné em Agos‑ to e aí acompanhasse Pinto Bull durante a sua estada na Guiné, com o objectivo de incrementar e consolidar a colaboração entre a FLING e as autoridades portugue‑ sas. Por razões não totalmente esclarecidas — receios de Senghor ou as repercussões negativas do discurso de Salazar de 12 de Agosto junto de Senghor e da FLING —, os contactos previstos acabaram por abortar. Mais tarde, e com a FLING com uma influência ainda mais limitada na Guiné, seriam irrelevantes os contactos ocorridos entre representantes do Estado português e aquela organização. Silva Cunha, op. cit., pp. 108­‑11. Nesta altura, James, irmão de Benjamim, foi nomeado secretário­‑geral da Guiné, facto que terá provocado curiosidade e aprovação junto das embaixadas do RU e da França. Franco Nogueira, Diálogos Interditos. Parte primeira (1961­‑1962­‑1963), s.e., Braga­‑Lisboa, Ed. Intervenção, 1979, p. 252.

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um plebiscito seria indispensável para ceder, revogando direitos inaliená‑ veis. Nunca para manter direitos incontestáveis. [...] Podem plebiscitar­ ‑se dúvidas para as transformarmos em certezas. Mas não se plebiscitam certezas para as transformar em dúvidas. Deus não se plebiscita. A honra não se plebiscita. A Pá­tria não se plebiscita.99

Não tendo o presidente do Conselho dado andamento ao artigo, decidindo se era, ou não, publicável, foi o próprio Augusto de Cas‑ tro que, impaciente, escreveu a Salazar solici­tando­‑lhe uma respos‑ ta. Esta seria dada em termos que faziam transparecer as dúvidas do chefe do governo. Salazar lera o texto e reconhecia não haver qualquer «observação» a fazer «à doutrina nele defendida e que» pa‑ recia «certa». Quanto à sua publicação, havia que aguardar. De mo‑ mento, o governo estava «em posição de deixar cair a ideia» do ple‑ biscito «ou de aproveitá­‑la», desde que não viesse a «atentar con‑ tra coisas essenciais». Caso a pergunta da consulta fosse «Aprova a política ultramarina do governo?», poderia «ser interpretada como referindo­‑se não à defesa do Ultramar ou à afirmação dos direitos de Portugal», mas somente como fazendo alusão «à forma como o governo tem orientado essa defesa». Em seguida, Salazar criticou tanto os mais firmes integracionistas como os mais abertos advo‑ gados de uma crescente e irreversível descentralização política na governação do Ultramar. Segundo o chefe do governo, sob o ponto de vista da política in­terna, uma resposta favorável àquela pergunta «teria a vantagem de pôr de lado o sector que na oposição» vinha contestando «os termos segundo os quais» o governo vinha agindo, já que, «no fundo», queriam «outra coisa, ou seja, a entrega». Além disso, Salazar tinha presente que nos «meios internacionais não se tirava resultado» da realização de uma consulta, uma vez que se di‑ ria «que os brancos» votavam «exactamente [pel]a continuação do seu domínio sobre os pretos, embora» as «consultas plebiscitárias» causassem «sempre algum abalo», sobretudo no caso de se consul‑ tar o «Ultramar», o que aliás se pensava fazer. Quanto às «críticas» que os «nacionalistas» portugueses vinham fazendo, valia a pena recordar­‑lhes que um plebiscito precedera «a sua entronização»100. 99  Franco Nogueira, Salazar: A resistência (1958­‑1964), s.e., s.l., vol v, Liv. Civilização Ed., s.d., p. 523. 100  Referência ao plebiscito que, em Março de 1933, aprovara e legitimara a Cons‑ tituição do regime ainda em vigor.

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Portanto, «nada» estava «assente ou definido. Mas a «fazer­‑se algu‑ ma coisa», deveria ser depois de terminada a «visita do chefe de Es‑ tado a Angola»101. Apesar do conteúdo da resposta a Augusto de Castro, para Sala‑ zar ganhou peso o argumento de que a realização de um plebiscito podia «envol­ver riscos graves»102. A hipótese da sua concretização arrastou­‑se por mais uma meia­ dúzia de dias, sendo que a 30 de Setembro Franco Nogueira colocou as cartas na mesa. Em conver‑ sa off the record, confidenciou a uma «fonte britânica de confiança» sentir­‑se desgostoso pela «falta de atenção que as agências inter‑ nacionais e repórteres» haviam dado à visita de Américo Thomaz a Angola, uma vez que os aplausos nela rece­bidos «equivaliam ao acto público e solene» de que Salazar falara a 12 de Agosto. Pela primeira vez, o ministro dos Negócios Estrangeiros abandonara, «mesmo em privado, a teoria de que as palavras de Salazar» haviam que­rido «significar» a realização de «um plebiscito formal» e não outra coisa103. De facto, Salazar considerou seriamente a possibilidade de reali‑ zação de um plebiscito que poderia equivaler a uma refundação do regime através da renovação e rejuvenescimento da sua legitimidade. No entanto, e ao contrário das circunstâncias globalmente favorá‑ veis que conduziram à convocação de um plebiscito para aprovar e legitimar a Constituição do Estado Novo, as circunstâncias externas e internas do ano de 1963, além da própria natureza do problema co‑ lonial, pareceram a Salazar comportar mais riscos do que vantagens. O plebiscito, solução política tão do agrado dos regimes autoritários, não foi desta vez a opção encontrada para resolver aquele que, possi‑ velmente, foi o mais grave problema político com que o Estado Novo se confrontou ao longo de toda a sua história.

101  Citado em Franco Nogueira, op. cit., p. 524n. A carta de Salazar data de 24 de Setembro de 1963. 102  Franco Nogueira, op. cit., pp. 523­‑25. 103  TNA­‑FO371­‑169465. File1511/10, telegrama da embaixada do RU em Lisboa para o FO, 2 de Ou­tubro de 1963.

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As missões de George Ball e de Godfrey Amachree e as conversas com os africanos104 Nos derradeiros dias de Agosto de 1963, o subse­cretário de Estado Ge‑ orge Ball encontrou­‑se com Franco Nogueira e Salazar em Lisboa105. Ball veio a Lisboa confirmar a mudança verificada na orientação da política norte­‑americana em relação à questão colonial portuguesa106, tomar conhecimento daquelas que neste domínio eram as propostas portuguesas e apresentar a posição dos EUA perante um problema que tardava em resolver­‑se. Ball vinha deixar claro que Washington não cederia num ponto: qualquer solução encontrada para a questão colo‑ nial portuguesa deveria ter em conta as aspirações dos povos coloniais sempre que se manifestassem ambições de cunho nacionalista. O não reconhecimento pelas autoridades portuguesas deste pressuposto conduziria fatalmente à instalação do caos, facto que abriria as por‑ tas para a exclusão do Ocidente da África portuguesa, reforçando­‑se a ameaça de concre­tização do domínio comunista. George Ball devia explicar as vantagens decorrentes de um diálogo directo com chefes «africanos moderados» e de se «cooperar» com o SG das NU, «incluin‑ do um convite para este visitar Portugal e possivelmente os territórios africanos» — ou seja, Ball deveria fazer com que: […] dentro da aceitação do princípio da auto­determinação e de um período de tempo indicado, Portugal executasse um plano que: 104  A missão, Godfrey Amachree, enviado do SG U Thant a Lisboa, é um exemplo do exercício da função de «bons ofícios» informalmente atribuída aos secretários gerais da ONU desde a fundação desta. Thomas M. Franck e Georg Nolte, «The Good Offices Functions of the UN Secretary­‑ General», in Adam Roberts e Benedict Kingsbury (eds.), United Nations, Divided World: The UN’s roles in international rela­ tions, 2.ª ed., Oxford, Clarendon Press, 1993, pp. 143­‑ 82. 105  George Ball foi um dos mais influentes e notáveis conselheiros de política ex‑ terna do presidente Kennedy. Pertenceu à equipa do DE liderada por Rusk. Rusk atribuiu a Ball a responsabilidade de conduzir a política norte­‑americana no Congo, o que sucedeu em 1961, após o início da guerra civil que se seguiu à independência proclamada em Junho de 1960. A experiência adquirida por Ball no decurso da crise do Congo, a par do conhecimento que tinha da política europeia e da sua larga ex‑ periência político­‑diplomática, fez com que fosse escolhido para se encontrar com Salazar e Franco Nogueira e com eles discutir uma solução para o problema colonial português em África. James A. Bill, George Ball: Behind the scenes in U. S. foreign policy, s.e., New Haven e Londres, Yale University Press, 1997, passim. Sobre as conversa‑ ções, seu relato e significado, Luís Nuno Rodrigues, op. cit., pp. 292­‑301. 106  Sobre a viragem dos EUA face à questão colonial portuguesa, Luís Nuno Ro‑ drigues, op. cit., cap. 4.

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a) entregasse poderes efectivos às assembleias locais; b) ampliasse progres­sivamente as oportunidades de voto; c) colocasse um número crescente de africanos no governo; d) alargasse e expandisse a educação.; e) e previsse a discussão de todo o programa com chefes africanos (do governo ou, se viável, naciona­listas).107

George Ball devia ainda informar os seus interlocutores de que não deveriam usar em África ma­terial de guerra fornecido pelos EUA. Finalmente, e caso fosse levantado por Lis­boa o problema dos Aço‑ res, deveria ser comunicado o desejo que Washington tinha em ver concluídas as «negociações no contexto de uma forte aliança da NATO e de uma defesa efectiva do mundo livre» e não num plano bilateral. Na conversa havida entre George Ball e Franco Nogueira, nos dias 29 e 30 de Agosto108, teceram­‑se considerações de natureza ge‑ ral sobre a questão colonial portuguesa e a política externa dos EUA. Neste «quadro», o continente africano assumia um papel de grande relevo. Sublinhando que os EUA não tinham ali quaisquer «interesses directos», isso não significava que se pudessem «ignorar as forças políti­ cas» que por lá se agitavam. O «nacionalismo africano» era um «facto» e possuía uma força que os EUA consideravam «irresistível». Nestas cir‑ cunstâncias, era opinião da adminis­tração norte­‑americana não ser possível a Lisboa continuar uma política intran­sigente. Dever­‑se­‑ia optar por fórmulas flexíveis, as mais «adequadas para um encaminha‑ mento ordeiro», salvaguardando­‑se a liderança política dos «chefes afri­canos moderados [...] pró­‑ocidentais» e os «valores e os interesses do próprio Ocidente». Caso contrário, abria­‑se a porta à «penetra‑ ção comunista em África», o que havia acontecido no Congo e pro‑ vocara a intervenção norte­‑americana. George Ball discorreu depois sobre o «papel de Portugal em África». Os EUA consideravam muito «importante tal papel» e estavam dispostos a patrocinar a «presen‑ ça, a influência e a manutenção dos interesses portugueses». Resta‑ va saber se era possível chegar a uma plata­forma de entendimento 107  TNA­‑FO371­‑169441, File1015/15, relatório da embaixada do RU em Lisboa para o FO, 12 de Se­tembro de 1963. Destaque nosso. 108  O programa da visita de George Ball era o seguinte: chegada prevista a Lisboa às 8 horas do dia 29. Encontro com Franco Nogueira, e almoço no Ritz às 13 horas. Encontro com Salazar em S. Bento às 18 horas. No dia 30, de manhã, antes da partida de Ball para o Paquistão, teria lugar uma última reunião deste com Salazar e Franco Nogueira.

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sublinhando­‑se os «objectivos comuns» e colocando­‑se de parte as «diferenças» conhecidas. Do lado português, Franco Nogueira referiu­‑se ao «abandono eu‑ ropeu» de África e ao facto deste ter sido, em grande parte, fruto da acção dos EUA. O ministro português sublinhou a importância «da penetração russa» e o contributo dado pela ONU para que África se encontrasse num estado deplorável, do mesmo modo que evocou os «resultados» a que havia conduzido a política africana do «Ocidente». A isto Ball respondeu reco­nhecendo que haviam sido «prematuras» algumas das independências concedidas. Numa segunda etapa da conversa, George Ball destacou que a solu‑ ção do problema colonial português dependia da gestão que se fizesse do «tempo». Daí que, para os EUA, a questão relativa ao estabeleci‑ mento de prazos equivalesse à tentativa de encontrar uma plataforma comum na qual, «sem sacri­fício dos respectivos princípios», EUA e Portugal «pudessem entender­‑se», sendo que, nessas condições, seria possível a Washington apoiar Lisboa. Propunha­‑se então que o gover‑ no português definisse o seu conceito de autodeterminação e estabe‑ lecesse o prazo dentro qual daria luz verde para que os seus territórios africanos acedessem à indepen­dência. Era óbvio que com uma pro‑ posta destas em cima da mesa, e caso as autoridades norte­‑americanas nela insistissem, qualquer avanço nas negociações estava condenado ao fracasso. E de facto assim foi. A partir daqui tudo o resto se tornou política e diplomaticamente pouco relevante. Apesar de Franco No‑ gueira demonstrar certa compreensão pelo «factor tempo», procurou mostrar que era convicção de Lisboa que aquele corria a seu «favor». Porém, mesmo que assim não fosse, dever­‑se­‑ia concluir que o «tem‑ po corria igual­mente para todos», pelo que ficava claro que os proble‑ mas existentes no continente africano não se resolviam com a política seguida até então. Além disso, «não estava» no horizonte político de Lisboa «marcar prazos», porque na metrópole e nas provín­cias ultra‑ marinas existiam «sentimentos muito fortes» contra qualquer solução indepen­dentista. Por outro lado, seria irrealista pensar que, depois de estabelecido um prazo, o «terrorismo» cessaria e a «ONU não se im‑ portaria» mais com Portugal, deixando de debater o seu «caso»109.

109  Franco Nogueira, Diálogos Interditos. Parte primeira (1961­‑1962­‑1963), s.e., Braga­ ‑Lisboa, Ed. Intervenção, 1979, pp. 261­‑ 68.

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Salazar olhou para a visita de Ball e para a mudança registada na política dos EUA em relação à questão colonial portuguesa com enorme desconfiança. Sustentou sempre que o objectivo dos EUA se resumia a pretenderem expulsar Portugal de Angola e de Moçambi‑ que para posteriormente ali poderem defender, sem qualquer estor‑ vo, os seus interesses económicos. Daí que tivesse a convicção de que apenas preservando laços políticos fortes podia Portugal ambicionar sustentar e defender os seus interesses naqueles dois territórios. Por outro lado, e segundo o mesmo Salazar, a obsessão norte­‑americana com a definição de um prazo para a resolução da questão colonial não era mais do que a manifestação da vontade de retirar ao governo português qualquer possibilidade de controlar a evolução do proces‑ so político nas colónias, tanto do ponto de vista do confronto com os inimigos internos como com os inimigos externos. Em resumo, para Salazar, a atitude norte­‑americana apenas reflectia a vontade de anestesiar e impelir o governo português «para um plano inclinado» de cedências e abandono definitivo daquela que era a pedra angular da sua política. Mas Salazar reflectiu ainda sobre as consequências de um acordo com Washington que impusesse o abandono do Ultramar. Era evidente que numa primeira fase iriam chover umas «centenas de milhões». Simplesmente, os «dólares» ir­‑se­‑iam «num instante, dei‑ xavam umas fábricas e umas pontes, e depois começava a miséria». O «ouro» poderia durar «dois ou três anos», mas seguir­‑se­‑ia a «mi‑ séria» e a «dependência do estrangeiro». Ao presidente do Conselho restava apenas a esperança de que «os americanos fizessem mais uma pequena evolução, dessem mais um pequeno salto» e que com isso fosse possível tirar «o carro do atoleiro». Salazar afirmou ainda que deveria ser posta «à prova a boa­‑fé dos americanos», o que se faria explorando o princípio, repetido por Dean Rusk e reiterado por George Ball, segundo o qual a autodeter‑ minação era «o consentimento dos governados à forma de governo». Neste caso, e segundo Salazar, seria desejável des­cobrir uma «fór‑ mula» capaz de comprovar que «toda a nação portuguesa, aderindo à forma de governo» existente, se encontrava «autodeterminada», e portanto, «nesse sen­tido», praticava «actos» que o demonstravam.110 110  Idem, Um Político Confessa­‑se (Diário: 1960­‑1968), 3.ª ed., Barcelos, Liv. Civilização Ed., 1986, pp. 74­‑ 77. Ou seja, a possibilidade de realização de um plebiscito não desa‑ parecera com a manifestação de 23 de Agosto.

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No encontro do dia 30, o subsecretário de Estado sugeriu a subs‑ tituição do princípio do estabelecimento de um prazo pelo enunciar de «‘‘fases’’, ou ‘‘estádios’’ ou ‘‘sequências’’ políticas». Através deste processo passar­‑se­‑ia a uma acção que pretendia «atingir um determi‑ nado objectivo». Franco Nogueira entendeu ser esta ideia meritória e merecedora de um estudo aprofundado, pelo que ficou decidida a elaboração de dois memorandos, nos quais se definiriam as posições de Lisboa e de Washington, ficando agendada a continuação das con‑ versas em Nova Iorque, quando Franco Nogueira ali se deslocasse para participar nos trabalhos da XVIII AG das NU111. Após os contactos mantidos em Lisboa, o encarregado de negó‑ cios da embaixada dos EUA na capital portuguesa confidenciou ao seu colega britânico que George Ball lhe «parecera» sinceramente satisfeito com a troca de pontos de vista com Franco Nogueira e Oli‑ veira Salazar. Não lhe parecia terem permanecido junto dos dois po‑ líticos portu­gueses quaisquer dúvidas quanto à forma como os EUA viam o desenvolvimento polí­tico de África e ficara­‑lhe a ideia de ser Salazar um homem difícil de com­preender, sendo que algumas das suas expressões eram francamente «sibilinas», ao mesmo tempo que havia deixado «suficientemente claro» não pretender alterar a polí‑ tica ultramarina que vinha seguindo e não parecera impressionado com as experiências francesas e britânicas em África. O  encon­tro servira para que as partes apresentassem as suas posições com firme‑ za, ficando por saber em que medida Franco Nogueira, na sua próxi‑ ma deslocação aos EUA, seria capaz de proporcionar um «avanço no sentido de um maior entendimento», embora «a atitude inflexível» de Salazar não justificasse «qualquer optimismo»112. Os memorandos elaborados por Portugal e EUA reforçaram os pontos de divergência existentes113. Segundo a opinião expressa pelas Necessidades, não deviam ser marcados prazos nem exercidas pressões em torno da evolução política dos territórios ultrama­rinos portugue‑ ses. Sob o ponto de vista da administração Kennedy, o tempo escassea‑ va e a margem de manobra política portuguesa tendia a diminuir, pelo 111  Idem, Diálogos Interditos. Parte primeira (1961­‑1962­‑1963), s.e., Braga­‑Lisboa, Ed. Intervenção, 1979, pp. 268­‑ 70. 112  TNA­‑FO371­‑167462, File1224/10, relatório da embaixada do RU em Lisboa para o FO, 11 de Se­tembro de 1963. 113  Os memorandos citados encontram­‑se publicados em Diogo Freitas do Amaral, A Tentativa Falhada de Um Acordo Portugal­‑EUA sobre o Futuro do Ultramar Português (1963), Coimbra, Coimbra Editora, 1994, pp. 61­‑ 83.

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que era fundamental a tomada de medidas que dessem aos chefes e organizações nacionalistas dos territórios africanos sob admi­nistração portuguesa, à OUA e à ONU, sinais claros de uma vontade de evoluir no sentido daquilo que seria uma adaptação portuguesa à realidade po‑ lítica que se vinha impondo em África e no mundo. A carta enviada por Salazar a George Ball, em Fevereiro de 1964, parecia confirmar a impossibilidade de qualquer entendimento, ape‑ sar de o documento chamar a atenção para as contradições da políti‑ ca norte­‑americana naquilo que dizia respeito à classificação e iden‑ tificação dos movimentos e das circunstâncias políticas em que, no universo afro­‑asiático, o «ocidente» enfrentava nacionalistas benig‑ nos ou comunistas malignos114. No entanto, o impasse nas relações bilaterais tendo como causa a questão colonial portuguesa deveu­‑se não apenas à cristalização das posições do governo de Lisboa, mas também a um investimento político cada vez maior de Washington em outras áreas do universo afro­‑asiático, nomeadamente no Viet‑ name, e ainda ao desinteresse que a administração Johnson sempre demonstrou pelas questões de política internacional115. Após a estada de Ball em Lisboa, e na sequência de um convite di‑ rigido ao SG das NU para que visitasse Portugal e discutisse com o go‑ verno português os problemas levantados na reunião de Julho de 1963 do CS, U Thant enviou à capital portuguesa um emissário. Trata­va­‑se de Godfrey Amachree, nigeriano, fun­cionário das NU e especialista em assuntos relativos aos territórios não­‑autónomos e sob tutela116. Antes da entrevista com Salazar, encontrou­‑se, a 10 de Setembro, com Franco Nogueira. Nesta primeira troca de impressões, Amachree re‑ cordou que na resolução S/5380, aprovada pelo CS a 31 de Julho de 1963, o SG havia sido encarregue de «fornecer» a «assistência» necessária para assegurar a implementação do disposto naquele texto. Amachree tinha como missão relatar tão­‑somente a U Thant o conteúdo das con‑ versas mantidas em Lisboa, não lhe cabendo tomar qualquer decisão.

114  Idem, ibidem, pp. 85­‑ 98. 115  Ainda assim, em 1965, o almirante George Whelan Anderson, Jr., nomeado embai‑ xador dos EUA em Lisboa na Primavera de 1963, esforçou­‑se por promover um entendi‑ mento bilateral em torno da questão colonial portuguesa. Pela sua natureza e cronologia, não merece tratamento neste texto. Mas veja­‑se witney w. Schneidman, op. cit., pp. 114­ ‑17 e Luís Nuno Rodrigues, «“Missão Impossível”: O Plano Anderson e a questão colonial portuguesa em 1965», in Relações Internacionais, n.º 1, Março de 2004, pp. 99­‑112. 116  Under‑Secretary for Trusteeship and Non­‑ Self‑Governing Territories.

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Franco Nogueira, por seu lado, recordou que, em termos gerais, o seu governo se «submetia» às «disposições», ao «espírito» e à «ideo­‑ logia» subjacentes à Carta das NU. Mas Portugal, tal como outros Estados, possuía uma interpretação própria do conteúdo daque‑ le docu­mento. Daí que, segundo Franco Nogueira, na reunião de Julho do CS se tivesse produzido uma resolução contrária à Carta (aos «seus princípios e disposições»), «ilegal», que estava para lá das competências do CS e era inaceitável para o seu go­verno. O ministro aproveitou o encontro para descrever o momento militar na Guiné e em Angola, procurando demonstrar que não se vivia uma situação de insubordinação generalizada naqueles dois territórios e que os actos de guerra que ali decorriam eram alimentados a partir do exterior. Observada a baixa intensidade dos confrontos militares, e ainda se‑ gundo o ministro, a situação vivida em todo o Ultramar português não podia ser interpretada como uma ameaça à segurança e à paz. Porém, caso os países africanos vizinhos de Angola, Moçambique e Guiné duvi­dassem da boa­‑fé portuguesa, Lisboa disponibilizava­ ‑se para com eles dialogar e nego­ciar soluções e garantias político­ ‑jurídicas. Foi depois recordada a proposta portuguesa de criação da figura de relator imparcial, nomeado pelas NU, que se desloca‑ ria aos territórios ultra­marinos portugueses e aí analisaria a situação (proposta esta que o CS e a AG tinham recusado). Existiam ainda, da parte do governo português, propostas de contactos, bem como convites dirigidos a represen­tantes de países africanos para visitarem aqueles territórios e contactarem directamente as suas populações. E uma vez que o governo português acusava as NU de, através das suas forças presentes no Congo (Léopoldville), apoiarem as forças «terroristas» ali estacionadas que actuavam em Angola, Franco No‑ gueira frisou ser este um caso mais em que Portugal se encontrava na situação de vítima. Face ao disposto no capítulo viii da Carta das NU117, o ministro português denunciou a ilegalidade das medidas pu‑ nitivas de que Portugal vinha sendo alvo, especificamente as adopta‑ das na resolução aprovada pela OUA no mês de Maio de 1963. Para Amachree, e apesar da recusa portuguesa em cumprir a reso‑ lução S/5380, era importante o facto de, no discurso de Salazar de 12 de Agosto, ter sido perceptível a disponibilidade portuguesa para um 117  O artigo 53.º estipula que «nenhuma acção coerciva será, no entanto, levada a efeito em conformi­dade com acordos ou organizações regionais sem autorização do Conselho de Segurança [...]».

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entendimento com os países africanos. Recordando a recusa de vários Estados africanos relativamente aos convites que lhes tinham sido diri‑ gidos por Lisboa, tanto para se realizarem conversações como para vi‑ sitarem os territórios africanos administrados por Portugal, Amachree sugeriu que esses convites passassem a ser dirigidos à OUA118. No seu encontro com Salazar, Godfrey Amachree garantiu que o SG «estava ansioso por prestar toda a assistência», para que fosse pos‑ sível chegar a uma solu­ção política para o problema dos territórios portugueses em África. Amachree pretendia saber em que medida o governo de Lisboa estava disposto a aceitar a ajuda que o SG das NU considerasse necessária. Salazar, tal como Franco Nogueira, respondeu afirmando que não cabia ao governo português dizer ao SG aquilo que ele deveria fazer. O governo a que presidia considerava U Thant «guar‑ dião» da Carta e, por isso, estava disponível para aceitar a sua ajuda. Amachree colocou sobre a mesa a possibilidade de o seu governo iniciar conversações com a OUA, tendo o presidente do Conselho re‑ cordado que Lisboa já havia manifestado a intenção de dialogar com os países vizinhos dos seus territórios em África, e com os quais havia muitos assuntos em comum a tratar. Porém, Portugal não conseguia ver de que forma Estados como a República Árabe Unida (Egipto e Síria) ou a Argélia poderiam ter quaisquer interesses legítimos nos territórios portugueses em África, uma vez que estes se encontravam tão distantes daqueles. O representante do SG fez depois referência à entrevista de Oliveira Salazar à revista Life, mostrando interesse em ouvir a opinião do seu interlocutor sobre as afirmações proferidas na Primavera de 1962. A resposta de Salazar resumiu­‑se a reiterar que «era impossível para Portugal» desenvolver uma política que tivesse como objectivo «a independência dos seus territórios», embora o facto de um determinado território reclamar a sua independência fosse «um fenómeno reconhecível nas sociedades humanas». Fora, aliás, o que acontecera com o Brasil. No entanto, era impossível esta­belecer um «calendário» para este tipo de fenómeno, sendo que «ninguém» poderia saber onde e quando um facto desta natureza poderia ter lugar.

118  United Nations Archives (UNA), Nova Iorque, Fundos: DAG­‑1. 5.2.4. caixa 14. Mission of Mr. Amachree to Portugal. United Nations — Nations Unies. «Interof‑ fice Memorandum. To Secretary­‑ General. From Godfrey K.J. Amachree», 16 de Se‑ tembro de 1963.

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No relatório apresentado em Nova Iorque119, Amachree deu nota da sua satisfação com o resultado da missão. Sentia­‑se encorajado por perceber que o governo português estava disposto a receber a ajuda que o SG consi­derasse adequada. Da  apreciação das conver‑ sas mantidas resultara a conclusão de que, embora o governo por‑ tuguês rejeitasse liminarmente a resolução S/5380, Franco Nogueira manifestara a preocupação de analisar o seu texto «em detalhe, pará­ grafo por parágrafo». Uma vez que ficara assente a disponibilidade portu­guesa para a realização de conversações com países africanos, seria aconselhável a não inclusão naquelas de certos Estados conheci‑ dos pelas suas posições radicais (casos da Argélia ou RAU), por pode‑ rem ser «inaceitáveis» para as autoridades portuguesas. De sublinhar era ainda o facto de o governo português parecer estar «encostado à parede», embora ainda não em condições de alterar de forma re‑ pentina a sua política. Por isso, interessava a Lisboa a «intervenção» de alguém que não estivesse «pessoalmente interessado» na «dis‑ puta que opunha Portugal aos países africanos». Se tal acontecesse e as conversas entre portugueses e africanos se realizassem, talvez, con­forme afirmara Franco Nogueira, «se chegasse ao inesperado». Por isso, confessou Amachree, e embora pudesse estar enganado, parecia­‑lhe que o go­verno português começava a acusar as pressões de que vinha sendo alvo no sentido de ser alterada a sua política co‑ lonial. Naquele momento, a maior dificuldade das autoridades por‑ tuguesas estava em «aceitar a opinião mundial sem perder a face». Por último, Lisboa clamava por um prazo que lhe permitisse execu‑ tar as reformas recentemente anunciadas e assegurar que, uma vez chegada a independência aos seus territórios ultramarinos, neles não desa­pareceria a influência de Portugal. Neste sentido, segun‑ do Amachree, as propostas portuguesas para conversações com al‑ guns países africanos não deviam ser vistas como um simples acto de propaganda. O governo português estava perfeitamente a «par da si­tuação explosiva em África», percebendo também que, caso a guer‑ rilha existente em Angola e na Guiné se espalhasse, estaria de um momento para o outro «a lutar em vá­rias frentes contra 32 países afri‑ canos». Ora Lisboa estava consciente de que se registaria uma «inter‑ venção activa» por parte de potências não africanas caso se iniciasse 119  UNA, Nova Iorque, Fundos: DAG­‑1. 5.2.4. caixa 14. Portuguese Territories. Mission of Mr. Amachree to Portugal, «Summary of Meeting Between Mr. Ama‑ chree and Dr. Salazar», 11 Septem­ber [1963], 12.30 p.m.

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um conflito militar directo entre Portugal e países africanos indepen‑ dentes, sendo que, se esse cenário se confirmasse, se veria na con‑ tingência de combater sem qualquer aliado. Independentemente da duração dessa luta, era opinião de Amachree que Portugal a perderia e que o go­verno de Salazar já percebera que caso «persistisse» com a sua «atitude as consequências» seriam «graves»120. Amachree aconselhou que a ajuda a prestar pelo SG passasse por um convite dirigido a representantes de Portugal e de vários países africanos para que se encontrassem e iniciassem conversações tra‑ tando um assunto genérico e que a todos pudesse interessar, nomea­‑ damente se incluído na reso­lução aprovada pelo CS a 31 de Julho. No caso, poder­‑se­‑ia tratar do problema da «ameaça à paz e segurança no con­tinente africano» (§4.º), sendo que o SG deveria alertar os países africanos para o facto de o governo português não se sentir responsá‑ vel por qualquer ameaça à paz ou à segurança e até, segundo informa‑ ções por ele fornecidas, afirmar serem alguns dos países acu­sadores os eventuais responsáveis por violações da Carta, uma vez que autori‑ zavam a instalação, nos seus territórios, de bases para os movimentos que actuavam em Angola e na Guiné. E, de facto, o governo português e vários congéneres africanos mostraram­‑se dispostos a aceitar a realização de um encontro em Nova Iorque. Um diplomata africano chegou a dizer a Amachree que deveriam ser explorados todos os sinais de abertura que «os portu‑ gueses pudessem oferecer», para que se não continuasse a «adoptar uma linha dura». Garantida uma escolha acertada dos países africa‑ nos e assegurada dessa forma a participação portuguesa, Amachree convenceu­‑se de que estariam reunidas as condições para serem ob‑ tidos «alguns resultados»121. Apesar de, no início de Outubro, os países africanos não terem ainda decidido se iriam conferenciar com o governo português, Amachree, em conversa com um dos membros da delegação norte­ ‑americana na ONU, chegou a afirmar «ser possível evitar qualquer 120  Por exemplo, Amachree ficara bem impressionado pelo facto de Salazar e Fran‑ co Nogueira nunca terem questionado a competência do SG para executar o seu mandato ao abrigo do §7.º (operativo) da resolução do CS aprovada a 31 de Julho. 121  UNA, Nova Iorque, Fundos: DAG­‑1. 5.2.4. caixa 14. Mission of Mr. Amachree to Portugal. United Nations — Nations Unies. «Interoffice Memorandum. To Secretary­‑ General. From Godfrey K.J. Amachree», 17 de Setembro de 1963. «Some observations on my recent talks, as the represen­tative of the Secretary­‑ General, with the Portuguese Government».

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discussão dos territórios portugueses» durante a reali­zação da xviii sessão da AG e no CS. Seguindo ainda aquilo que tinha sido apura‑ do pelo DE, U Thant confessara a Amachree estar na disposição (no caso do grupo africano na ONU não se decidir rapidamente quan‑ to a uma participação em conversas com o governo português) de convidar para tomarem parte nas conversações os quatro países que tinham apresentado uma memória sobre os territórios portugueses no decurso do debate do CS, em Julho. No momento de indefinição, e segundo a embaixada britânica em Washington, a administração norte­‑americana mostrou­‑se dese‑ josa de que esse diálogo se verificasse o mais rapidamente possível, uma vez que o DE considerava ser altamente «improvável» que não se verificasse «qualquer progresso de substância» através do «tipo de mediação» que vinha levando a cabo através do subsecretário de Estado George Ball. Washington informou Amachree de que, caso alguns representantes de países africanos concordassem em «falar com Nogueira», o problema da autodeterminação deveria ser tratado posteriormente e tendo presente que aquele conceito, para os portu‑ gueses, incluía não apenas a possibilidade de independência dos seus territórios africanos, mas também a eventualidade destes poderem optar pela per­manência de uma qualquer espécie de laço político com Portugal. Ao que parece, Amachree afirmou compreender esta posição, pela qual os norte­‑americanos estavam na disposição de se bater politicamente. Finalmente, a nova atitude do DE fazia com que o seu African Bureau se sentisse de alguma forma deprimido «nos úl‑ timos três meses», por estar consciente de que devia diminuir a sua actividade e com isso evitar quais­quer incidentes que impedissem um encontro afro­‑português ou, sobretudo, que a sua actuação frus‑ trasse «a rene­gociação do acordo dos Açores»122. Apreciado o relatório Amachree, o SG das NU contactou infor‑ malmente alguns representantes de países africanos com o objecti‑ vo de promover um encontro luso­‑africano. Uma vez iniciado o tão aguardado encontro, U Thant evocou as van­tagens de um comporta‑ mento moderado por parte dos circunstantes123. A declaração inicial 122  TNA­‑FO371­‑167458, File2251/26, relatório da embaixada do RU em Washington para o FO, 4 de Outubro de 1963. 123  Estiveram presentes, além de Franco Nogueira, os ministros dos Negócios Es‑ trangeiros da Libéria, Madagáscar, Serra Leoa, Tunísia, Nigéria e Tanganica, bem como os chefes das representações da Guiné­‑ Conacri, Gana e Marrocos nas NU.

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de Franco Nogueira negou a possibilidade da política portuguesa em África constituir uma ameaça à paz e à segurança naquele continen‑ te. Portu­gal encontrava­‑se, isso sim, na condição de país ameaçado. Enunciou depois as condi­ções socioeconómicas e políticas existen‑ tes nos territórios africanos administrados pelo governo de Lisboa. Finalmente, apresentou a definição portuguesa do conceito de auto‑ determinação, reiterando a sua oposição a qualquer concepção que estabelecesse previamente os resul­tados daquela ou ignorasse todos os actos que podiam contribuir para a sua definição. Não acreditava que a autodeterminação pudesse ser determinada a priori, por consi‑ derar existir mais do que uma modalidade de autodeterminação, tal como existia mais do que uma fórmula de administração de um Es‑ tado. O conceito equivalia ao acordo e consentimento124 dados pela população de uma determinada «estrutura política, tipo de Estado e organização administrativa». Para ilustrar a posi­ção portuguesa perante a «questão da autodeterminação», so­correu­‑se da entrevista dada por Salazar à Life. Como forma de conhecimento e avaliação, pela comunidade internacional, da situação existente nas colónias portuguesas, Franco Nogueira reiterou a sua concordância com a proposta norte­‑americana de nomeação de dois relatores indepen‑ dentes, embora reafirmasse a impossibilidade de se poder deslocar àqueles territórios qualquer missão das NU se constituída a partir dos comités criados para actuarem em territórios não­‑autónomos ou sob tutela, uma vez que o go­verno português não lhes reconhecia existência legal por considerar que a sua criação e actividade excedia o espírito e a letra da Carta das NU. No dia seguinte, os representantes africanos centraram as suas in‑ tervenções no problema da autodeterminação. Pretendiam saber até que ponto Portugal estava disposto a assumir as obriga­ções naquele domínio, sobretudo a partir do momento em que havia aceite como instrumento político­‑jurídico o texto da Carta das NU (art.º 1.º, §2.º). Afirmaram também ser impor­tante saber se o governo português in‑ cluía, de facto, no seu conceito de autode­terminação, o direito a uma opção que permitisse a secessão dos territórios ultramarinos. A con‑ tinuação das conversas foi adiada para o dia 28 de Outubro, três dias antes da data prevista para a apresen­tação do relatório do SG ao CS. 124  Este «consentimento» manifestava­‑se na participação das populações na admi‑ nistração e vida política.

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A  28, Franco Nogueira levou à reunião um memorando com várias propostas, entre as quais se des­tacava a possibilidade de realização de um plebiscito em todo o território português (metropolitano e ultramarino) e através do qual as populações poderiam exprimir a sua opinião sobre a política ultramarina seguida pelo governo. Porém, no dia 1 de Novembro, os países africa­nos decidiram sus‑ pender definitivamente os contactos com o governo português quan‑ do, até ao último dia da primeira ronda — 29 de Outubro —, ficara decidido o reata­mento das conversas a 21 de Novembro. Em docu‑ mento de 6 de Novembro, os representantes africanos, afirmaram que quaisquer contactos futuros com Portugal passariam necessaria‑ mente pela OUA. A moderação, e a vontade expressa por U Thant para que os contactos continuassem, desagradaram aos africanos, tal como a persistência portuguesa na defi­nição do seu conceito de auto‑ determinação125. Como é óbvio, a intransigência de posições não era portuguesa ou, pelo menos, não era apenas portuguesa. A partir de Novembro de 1963, estavam esgotadas as iniciativas po‑ líticas nas NU que pudessem ir para além da votação de resoluções con‑ denando Portugal no CS, na AG, na Quarta Comissão ou em comités ad­‑hoc sobre questões coloniais. Em todas elas, o mínimo denominador comum era a exigência de concessão da independência imediata e sem condições por Portugal à globalidade dos seus territórios ultramarinos, sendo que os únicos intérpretes e interlo­cutores válidos para a outor‑ ga dessa mesma independência eram os movimentos de liber­tação 125  UNA, Nova Iorque, Fundos: DAG­‑1. 5.2.4. caixa 14. Afro­‑Portuguese Conver‑ sations. United Nations — Nations Unies. «Interoffice Memorandum. To Secretary­ ‑General. From Godfrey K.J. Amachree, Under­‑ Secretary Department of Trus‑ teeship and Information from Non­‑ Self­‑ Governing Territories», 15, 16, 22 e 23 de Outubro de 1963; 6 de Novembro de 1963, «Meeting Between Repre­sentatives of the African States and the Portuguese Government»; e Idem, «Summary of Meeting Between Representatives of the African States and the Portuguese Government. Held in the Secretary­‑ General’s Office», 17, 18, 21, 25, 28 e 29 de Outubro de 1963. «Terminadas as conversas luso­‑africanas em Nova Iorque, U Thant concluiu ter sido salutar o facto de o governo português não se ter manifestado contrário “ao princí­pio da autodeterminação”. Considerou também ser prematuro a adopção de uma posição optimista a partir dos resultados proporcionados pelas conversações. De qualquer modo, segundo a opinião do SG, o facto de representantes de vários países africanos e de o ministro dos Negócios Estrangeiros português se terem encontrado era, em si, um “desenvolvimento encora­jador”. “Outros assuntos vitais” ficavam por discutir em encontros futuros que se realizariam a curto prazo e da forma que as partes acordas‑ sem.» TNA­‑FO371­‑167462, File2281/74, telegrama da missão do RU na ONU para o FO, 5 de No­vembro de 1963.

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reconhecidos pela OUA — ou seja, a existir, a intransigência e o imo‑ bilismo político­‑diplomático manifestaram­‑se exuberantemente do lado africano. Assim, enquanto as autoridades portuguesas se compro‑ meteram a aceitar reconhecer que a autodeterminação dos seus ter‑ ritórios coloniais poderia resultar na respectiva independência, ainda que sem apresentação de calendário, os africanos nunca aceitaram a possibilidade de a autodeterminação da África portuguesa poder não resultar em independência. Aliás, tanto U Thant como vários governos europeus e ocidentais mostraram, em 1962 e 1963, a sua disponibilida‑ de para apoiar a solução portuguesa, que lhes parecia politicamente moderada, equilibrada e justa, nem que fosse como forma de permitir dar início e continuidade a negociações que se sabia que poderiam vir a ser prolongadas e redundariam sempre na independência dos prin‑ cipais territórios coloniais portugueses. Os africanos, pelo contrário, mostraram­‑se intransigentes. No imediato, a sua estratégia revelou­‑se um fracasso. A médio prazo, foi um êxito absoluto.

Conclusão Os anos de 1962 e 1963 registaram importantes mudanças na política colonial e na política externa do Estado português. Essas mudanças, particularmente expressivas nos domínios político, jurídico e admi‑ nistrativo no que à questão colonial diz respeito, mas também visí‑ veis na política externa e na acção diplomática, põem em causa parte daquilo que tem sido afirmado sobre a política externa e colonial nos anos finais do salazarismo (1961­‑ 68). Aliás, qualquer comparação en‑ tre a realidade do colonialismo português, e da sua política colonial, antes e depois do triénio 1961­‑ 63 demonstra inúmeras e substanciais diferenças. Não admira por isso que, em Portugal, tivessem abunda‑ do as reacções e as críticas à mudança, ao reformismo. Ocorreram no seio do regime (na AN e na CC), do governo e nas cúpulas das Forças Armadas, especialmente no Exército, sendo que as reacções e críti‑ cas à mudança se materializavam no facto de as alterações propostas e executadas serem sempre consideradas demasiado arrojadas e colo‑ carem em causa a continuidade e a integridade do Estado português «pluricontinental» e «plurirracial». No entanto, não foi por razões in‑ ternas que as iniciativas políticas portuguesas desenvolvidas entre o início de 1962 e finais de 1963 fracassaram.

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Resta agora tentar perceber a razão — ou razões — que contribuiu para que as mudanças políticas adoptadas, as declarações proferidas e os entendimentos procurados externamente pela liderança de Oli‑ veira Salazar não tivessem atingido o objectivo que se propunham e que se resumia em resolver diplomática e politicamente um proble‑ ma que, a partir de Fevereiro­‑Março de 1961, adquiriu uma dimensão militar que seria politicamente decisiva. A resposta a esta interroga‑ ção não é difícil, nem sequer totalmente original. As mudanças efec‑ tuadas, as declarações proferidas e as negociações e conversações encetadas pelo Estado português com diversos interlocutores ex‑ ternos nunca mostraram capacidade para resolver a questão colonial portuguesa pela simples razão de as diversas partes em confronto, e eram várias (não se pretendeu sequer enunciar aqui todas elas, a começar pelo nacionalismo político, que abriu e manteve diversas frentes de luta armada em Angola, Guiné­‑Bissau e Moçambique), mostrarem, em determinados momentos­‑chave dos processos nego‑ ciais tentados, uma total intransigência de posições126. Esta intransi‑ gência que teve rostos (movimentos armados e governos de diversos países do chamado bloco afro­‑asiático, além dos governos, partidos e movimentos de países europeus, latino­‑americanos ou dos EUA), materializou­‑se numa noção estrita e particular dos seus interesses e, ao mesmo tempo, na convicção de que a resolução do problema co‑ lonial português em África sem recurso à negociação acabaria sem‑ pre por acontecer, ser aceitável e proporcionar resultados idênticos aos alcançados noutros territórios coloniais desde finais da Segunda Guerra Mundial127. E, de facto, assim acabou por ser, embora o preço a pagar depois de 1974, nomeadamente pelos EUA, tenha sido muito elevado128. Isto apesar de norte­‑americanos e a própria estrutura polí‑ tica das NU terem denotado em 1962 e, sobretudo, em 1963, uma dis‑ ponibilidade negocial apreciável. Outros factores, nomeadamente 126  «In international politics, negotiation, narrowly conceived, consists of discus‑ sion between officially designated representatives designed to achieve the formal agreement of their governments to the way forward on an issue that is either of shared concern or in dispute between them.» G.R. Berridge, Diplomacy: Teory and practice, 3.ª ed., Nova Iorque, Palgrave, 2005, p. 27. 127  Durante o período de vigência do marcelismo, a intransigência dos interlocu‑ tores de Portugal, nomeadamente dos movimentos de libertação, já foi sublinhada, embora, a meu ver, apenas timidamente. Pedro Aires Oliveira, «Política Externa», in Fernando Rosas e Pedro Aires Oliveira (coord.), A Transição Falhada. O Marcelismo e o fim do Estado Novo (1968­‑1974), 1.ª ed., Lisboa, Ed. Notícias, 2004, p. 332. 128  Odd Arne Westad, op. cit., pp. 207­‑49.

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a divisão do «Ocidente» quanto ao modo de tratar a questão colonial portuguesa, ou a crescente importância que o problema dos Açores assumiu para os EUA, aceleraram uma mudança de atitude por par‑ te dos adversários de Portugal no hemisfério ocidental, e ainda do próprio SG das NU, nada seduzido pelas posições radicais exibidas por muitos dos países membros do bloco afro­‑asiático129. Que, segun‑ do vários observadores e actores, o caminho prosseguido em 1962 e 1963 podia ter dado frutos, atesta­‑o facto de, após 1964, nem as au‑ toridades portuguesas se terem fechado à negociação da questão co‑ lonial, nem tão­‑pouco terem deixado de existir interlocutores reais ou potenciais dentro e fora de África com quem tratar da questão colonial. Simplesmente, apenas as autoridades portuguesas estavam na disposição de negociar, sendo que para o governo de Lisboa qual‑ quer processo negocial, mesmo em fase preparatória, teria sempre de parar onde tivesse início uma conduta por parte dos interlocutores que se materializava invariavelmente num Diktat equivalente àquele que se consumou depois de Abril de 1974. Apesar disso, ao contrário daquilo que se pode pensar e afirmar, e pelo menos a partir da déca‑ da de 60, o Estado português, tal como o fizeram outras potências coloniais europeias, deixou de praticar uma diplomacia de «sobrevi‑ vência imperial» e ensaiou uma diplomacia de «retirada colonial»130. O seu fracasso, porém, deveu­‑se ao simples facto de todas as nego‑ ciações, ou melhor será talvez dizer pré­‑negociações, não terem sido bem­‑sucedidas, nomeadamente, pelo facto de os interlocutores não terem sido capazes de se entender quanto a uma agenda mínima ou, quando tal aconteceu, não terem tido vontade ou oportunidade de dar continuidade ao processo negocial131.

129  Diplomaticamente, e por comparação com o seu antecessor, Dag Hammar‑ skjöld, o birmanês U Thant foi muito mais compreensivo para com as posições por‑ tuguesas e relativamente imune às pressões afro­‑asiáticas. 130  John Darwin, «Diplomacy and Decolonization», in The Journal of Imperial and Commonwealth History, vol. 28, n.º 3, 2000, p. 9. 131  No caso das conversas com G. Ball e G. Amachree, reconheceu­‑se a necessidade de negociar e que as condições eram as apropriadas. Acordou­‑se ainda uma parte da agenda do que se podia negociar. No caso das conversas com os países africanos, apenas Portugal reconheceu as vantagens de uma negociação, embora não a sua ne‑ cessidade. Portugal propôs, sendo aceite por U Thant e recusado pelos seus inter‑ locutores africanos, uma agenda parcelar. Sobre a teoria e prática das negociações diplomáticas, ver G.R. Berridge, op. cit., p. 27 e ss.

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