E quando os maus tratos não são visíveis? – A responsabilidade e dificuldade dos Médicos Clínicos e dos Peritos Médico-Legais nos casos de violência doméstica contra crianças

Share Embed


Descrição do Produto

E QUANDO OS MAUS TRATOS NÃO SÃO VISÍVEIS? – A RESPONSABILIDADE E DIFICULDADE DOS MÉDICOS CLÍNICOS E DOS PERITOS MÉDICO-LEGAIS NOS CASOS DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA CRIANÇAS Daniel Willyam da Silva Cordeiro Mestrando em Direito, especialização em Ciências Jurídico-Forenses E-mail: [email protected]

Abstract

Crime de Violência Doméstica – os maus tratos psíquicos

A tradição de punição doméstica tem atravessado séculos e está fortemente enraizada na nossa sociedade. Contudo, hoje em dia ela está prevista e punida no nosso Código Penal, no artigo 152.º como crime de Violência Doméstica. Para que se verifique o crime de Violência doméstica é, portanto, necessário que tenha sido infligido, dentro de uma relação intrafamiliar, maus tratos físicos ou psicológicos. Ora, nesta comunicação, importar-nos-á apenas os maus tratos psicológicos porque estes constituem a base do iceberg, ou seja, a parte não visível (mas igualmente destruidora) da violência doméstica. Actualmente, muitos médicos clínicos e também peritos médico-legais enfrentam várias dificuldades ao nível da avaliação

O crime de violência doméstica tipificado autonomamente desde 2007, no art.º 152.º do CP, consubstancia-se no facto de: “quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais…”. Em grande parte dos casos de violência doméstica, os filhos menores são vítimas directas, mas também indirectas, nomeadamente quando são obrigadas a ver os seus progenitores vítimas directas. Neste estudo, pretendemos focar-nos apenas nos maus tratos psíquicos sofridos pelas crianças (quer como vítimas directas ou indirectas) pois estes correspondem à parte não visível dos danos sofridos.

psicológica de crianças que, muitas vezes não percebem a nossa linguagem, não querem falar ou facilmente se distraem, não deixando estes profissionais perceberem o que sucedeu e, se efectivamente sucedeu.

Responsabilidade dos médicos clínicos e peritos médico-legais

Estes profissionais vivem, por isso, um sério dilema no que concerne, por um lado, à responsabilidade (decorrente dos seus códigos deontológicos) de denunciarem situações e violência doméstica e, por outro lado, a dificuldade de conseguir que as crianças falem e posteriormente, saber se ela falou a verdade; podendo-se cair no erro de diagnóstico e denunciar uma situação bera.

A ocorrência dos maus tratos ou mesmo a suspeita de ocorrência implica a necessidade de medidas que conduzam à proteção da criança ou adolescente. Quer isto dizer que, um médico clínico que consulte uma criança, e se aperceba que a mesma foi alvo de

Palavras-Chave: Maus tratos psicológicos; violência doméstica; crianças; perícia médico-legal; médico clínico

maus tratos psíquicos deve denunciar esta situação. Ora, o código deontológico da Ordem dos Médicos dispõe no seu art. 86.º n.º 2 que “o segredo [médico] abrange todos os factos que tenham chegado ao conhecimento do médico no exercício da sua profissão ou por causa dela e compreende especialmente: b) Os factos apercebidos pelo médico, provenientes ou não da observação clínica do doente ou de terceiros”, complementando o art.

Introdução Considerando a recente proliferação de casos de violência doméstica contra crianças em Portugal, importa conhecer o papel que os médicos clínicos, numa primeira fase, e os peritos médico-legais, numa fase posterior, desempenham neste âmbito, concretamente quando os maus tratos sofridos pela criança não são visíveis. É daqui que partimos para discutir, por um lado, a responsabilidade que estes profissionais exercem, nomeadamente no levantamento do sigilo médico para denunciar qualquer indício de violência doméstica (até porque

88.º deste mesmo diploma que “excluem o dever de segredo médico: b) O que for absolutamente necessário à defesa da dignidade, da honra e dos legítimos interesses do médico ou do doente, não podendo em qualquer destes casos o médico revelar mais do que o necessário, nem o podendo fazer sem prévia autorização do Presidente da Ordem”. Tendo, por isso, a seu cargo, uma obrigação de conservar a informação obtida na consulta, esta obrigação é anulada pelo dever de denunciar os indícios de violência doméstica, devendo, para o efeito, pedir o levantamento do sigilo médico junto do Presidente da Ordem dos Médicos; tudo isto justificado pelo facto de o crime de violência doméstica revestir uma natureza de crime público, o que significa que, para desencadear o respectivo processo-crime, poderá qualquer pessoa denunciar essa situação.

este crime reveste uma natureza pública); por outro lado, no que concerne à dificuldade de avaliação psicológica

Dificuldades experienciadas por estes profissionais

forense da criança e à credibilidade do seu relato. Importa ainda debater o problema ou consequência possível que advém da actividade destes profissionais: erros de diagnóstico. Não será possível uma criança conseguir enganar um médico clínico ou um perito médicolegal de forma a desencadear todo o processo-crime associado? É nesta esteira que a tarefa destes profissionais pode ser ingrata, na medida que poderão denunciar uma

Para que efectivamente se consiga avaliar os danos psicológicos sofridos pelas crianças, é imperativo realizar-se um exame com base em entrevista clínica que corresponde à Avaliação Psicológica Forense (APF) que, numa primeira fase, descreverá a avaliação psicológica da personalidade da criança, de forma a determinar a capacidade de testemunho da criança; numa segunda fase, estabelecerá a credibilidade do testemunho da criança.

situação que efectivamente não existe.

Para tal, o perito deve ter uma atitude e disponibilidade activas, sendo capaz de compreender as dificuldades de percepção, interpretação e aceitação dos factos, assim como a dificuldade de revelação por parte da criança, tendo em conta o estado de desenvolvi-

Metodologia Este estudo foi construído sobretudo com base em revisão literária, abrangendo pesquisa doutrinal, consulta e análise de artigos científicos e códigos deontológicos.

mento, níveis de stress e cultural desta vítima, respeitando o ritmo próprio da criança, sem preconceitos e admitindo possíveis lacunas e contradições. Será nesta APS que o perito procederá à sistematização, análise e interpretação de todos os dados recolhidos, contudo, tendo em conta que as crianças podem ser muito influenciáveis, sugestivas e até criativas, cremos que poderão surgir casos onde os peritos que realizam esta APF sejam enganados e, consequentemente, existir um enviesamento dos resultados, contribuindo para o desencadeamento de um processo-crime em fundamento para tal.

Conclusão Os médicos e peritos médico-legais são profissionais de extrema responsabilidade social neste problema que é a violência doméstica contra crianças. São eles que, no caso de os maus tratos revestirem natureza psicológica, melhor estão habilitados a reconhecer esta situação e tirar as melhores conclusões da análise da criança. Os erros de diagnóstico cometidos por estes profissionais são de número reduzido (pelo menos que haja conhecimentos deles), isto porque, acreditamos que detém conhecimentos e experiência suficientes para tal. As crianças, como dissemos anteriormente, por motivo de conflito entre os seus progenitores, constituem uma arma de arremesso entre estes e, pela sua natural inocência poderão ser influenciados a criar uma situação que na verdade não existe.

Bibliografia - GONÇALVES, Rui Abrunhosa – Psicologia Forense em Portugal: Uma história de responsabilidades e desafios. In Análise Psicológica, 1 (XXVIII) 2010: pp. 107 a 115; - MOURAZ, M. José; MAGALHÃES, Teresa – A perícia médico-legal em casos de violência nas relações de intimidade. Contributos para a qualidade. In Revista Portuguesa do Dano Corporal (21), 2010: pp. 9 a 35; - PRISZKULNIK, Léia – Violência contra crianças: desafios só para médicos?. In O Mundo da Saúde. São Paulo: 2009, 33 (1): pp. 58 a 63; - RIBAS, Carlos Alberto Barbosa Dias – A credibilidade do testemunho: a verdade e a mentira nos tribunais. Dissertação de Mestrado em Medicina Legal. Porto: Universidade do Porto, 2011; - PAIVA, Cristiane de; ZAHER, Vera Lúcia—Violência contra crianças: o atendimento médico e o atendimento pericial. In Saúde, Ética & Justiça, 2012, 17 (1): pp. 12—20.

- RIBEIRO, Ana A. [et al.] – Deteção da Mentira em crianças. In Journal of Child and Adolescent Psychology – Revista de Psicologia da Criança e do Adolescente. Lisboa, 5 (1) 2014: pp. 117 – 134. - RIBEIRO, Catarina; PEIXOTO, Carlos Eduardo – Avaliação Psicológica de crianças alegadamente vítimas de abuso. Abuso e Negligência. Coordenado por Teresa Magalhães e Duarte Vieira. Porto: Editora Specan. 2013. ISBN: 978-989-97275-19.

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.