E que tal um \"quimicalismo\" na filosofia da mente?

July 27, 2017 | Autor: Rogério Teza | Categoria: Philosophy of Mind, Philosophy of Science
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E QUE TAL UM ‘QUIMICALISMO’ PARA A FILOSOFIA DA MENTE?

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Rogério de Souza Teza

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Trabalho apresentado à disciplina de Teoria do Conhecimento e Filosofia da Ciência, ministrada pelo Prof. Dr. Osvaldo F. Pessoa Jr. em julho de 2014

Rogério S. Teza

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Um copo de cachaça me deixa torpe e não me permite duvidar que algumas substâncias afetam, de fato, a minha mente. Pela força do meu pensamento, não consigo agir contrariamente aos poderes dessa matéria e superar esse torpor. E sempre que repito essa experiência os efeitos se repetem. Ora, não é irrazoável que, a partir disso, se conceda todo poder causal à matéria e nenhum a mente. Àqueles que advogam por essa tese foi dado o título de materialistas, uma tese monista que significa na filosofia da mente conceber como único substrato para os fenômenos mentais a matéria. O monismo materialista, no entanto, se não fizer nenhuma consideração a respeito de como a matéria se arranja pode ter algumas dificuldades. Por exemplo, sabendo que é o etanol presente na cachaça que provoca me embriaguez, poderia dizer que são os átomos de carbono, oxigênio e hidrogênio, elementos que compõem o etanol, as verdadeiras causas do meu entorpecimento. Mas, se tomar um copo de caldo de cana, que também contém grandes quantidades de átomos desses mesmos elementos, não se sucede o mesmo efeito. Segue-se daí que o materialismo acrescentado do conhecimento das leis fundamentais de comportamento da matéria poderia ter mais sucesso nas suas explicações. Essa ideia nos levaria a um materialismo mais desenvolvido. O fisicalismo talvez seja esse tipo particular de materialismo mais desenvolvido, embora tenham uma história um tanto independentes. O próprio termo fisicalismo foi usado pela primeira vez bem mais recentemente (STOLJAR, 2009). De acordo com Jaegwon Kim (2005, p. 149-150), o fisicalismo é “a ideia de que todas as coisas que existem no mundo são partes de matéria e estruturas agregadas de partes de matéria, todas se comportando de acordo com as leis da física, e que qualquer fenômeno do mundo pode ser explicado pela Física se for o caso dele poder ser, de alguma forma, explicado”. Note-se que o fisicalismo é um anglicismo, advindo de physicalism. Physical não é, entretanto, traduzível por “fisical”, que é inexistente no nosso vernáculo; o correto seria “físico” para adjetivar aquilo que se relaciona à disciplina da “física”. Seria, pois, adequada a tradução por “fisicismo”. Ora, como o intuito deste artigo não é tratar de traduções ou precisões literárias, continuarei a usar o primeiro em vez do último. Mas é importante se guardar que o fisicalista é aquele que se preocupa em fornecer as explicações para os fenômenos mentis somente em termos das proposições da física. Pode-se dizer, a princípio, que o fisicalismo é relativamente bem sucedido para explicar a mente. Primeiro porque é uma teoria que prima pelo princípio da 1

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simplicidade: “a teoria com o menor número de pressupostos e postulando o menor número de entidades é a preferida dentre as teorias de igual poder explicativo”, o que lhe alguma vantagem sobre as demais, que apenas criariam sinônimos para os mesmos fenômenos da física. Depois, porque elimina o problema do dualismo de substância de tentar explicar a interação entre corpo e mente que praticamente derrotou Descartes (MASLIN 2009, p. 80-81). Mas o fisicalismo atraiu olhares suspeitos ao ser incapaz de explicar o que é, afinal, a consciência e toda a experiência subjetiva. Não foi só no âmbito da filosofia da mente, todavia, que a tentativa de reduzir o mundo às leis fundamentais da física foi questionada sobre seus limites. A química, há tempos, tem sofrido do mesmo problema. A fim de demarcar sua fronteira em relação à física e evitar sua redução, ela tem arrogado para si a exclusividade no estudo da estrutura das substâncias em correlação com as propriedades macroscópicas. Em função disso que o químico e filósofo da química Joseph E. Earley, da Universidade de Georgetown (EUA), escreveu o artigo “Como a Filosofia da Mente Precisa da Filosofia da Química” (2008). O Professor Earley mostrou nos últimos anos grande preocupação em salvar a química de uma dissolução na física e das lições que aprendeu sugeriu três questões, concernentes originariamente à química, que poderiam também salvar a filosofia da mente da redução fisicalista. O primeiro ponto de Earley, em seu artigo, é a respeito do problema da relação entre o todo e a parte. Alguns fisicalistas defendem a ideia da identidade de tipo entre mente e cérebro, isto é, cada evento mental teria um correlato preciso no cérebro passível da descrição em termos de exclusivamente da física. U.T. Place, por exemplo, advogava essa tese, e propôs uma analogia entre a explicação do que é um raio para explicar o que é a mente (PLACE, 1956, p.47). Earley diz que há, neste caso, um problema de “desenvolvimento de uma lógica de conjuntos e componentes (mereologia)” (EARLEY 2008, p. 19). Segundo Earley, os fisicalistas tendem, como no caso de Place, a reduzir o todo à soma das partes, considerando que os agregados preservam as propriedades das partes individuais e as propriedades resultantes não são diferentes de mera adição. Tornam-se, destarte, incapazes de explicar propriedades apresentadas pelo todo mas não encontradas em partes menores ou nos elementos singulares. A importância da estrutura além da simples composição já foi ressaltada no início de nosso artigo e é um tema muito caro à química no caso da isomeria molecular. 2

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Há casos como o de alguns aminoácidos cujos isômeros levógiros são nutritivos, enquanto os correspondentes dextrogiros são venenosos – em ambos as moléculas têm exatamente os mesmos componentes (EARLEY 2008, p. 9). Mas Earley emprega outro exemplo que retrata ainda melhor o problema da parte e do todo. É caso dos prótons, núcleo dos átomos de hidrogênio, quando participam de estruturas moleculares orgânicas. Dependendo de sua posição, seus spins sofrem diferentes reorientações com relação a um campo magnético externo (EARLEY 2008, p. 10-11). Segundo Earley, o estabelecimento de uma lógica do todos e da parte, uma mereologia, capaz de lidar com a combinação dos elementos e coerências de estruturas mais complexas “em circunstâncias em que a inclusão num todo [...] tem influência significativa sobre os componentes que dele fazem parte” (EARLEY 2008, p. 19) é uma tarefa própria da filosofia da química. Ele, assim, sugere que este programa de pesquisa de desenvolvimento da mereologia pode ser extendido e “seria uma importante contribuição à filosofia” (EARLEY 2008, p. 19). O segundo apontamento que Earley faz em seu artigo se refere ao princípio do fechamento causal no domínio físico (‘se um evento físico tem uma causa em t, ele tem uma causa física em t’ é a premissa mais básica do fisicalismo). Esse princípio tem aberto lacunas nas tentativas de explicar do “problema difícil da consciência”. Soluções para esse problema, como a de Chalmers (2002), comumente sugerem a criação de leis de ponte, isto é, leis que relacionariam os eventos físicos aos eventos psíquicos a fim de se obterem leis capazes de explicar os eventos físicos e os mentais ao mesmo tempo. A questão é de onde partir para se obterem tais leis correlacionadoras. Reconhecendo que a química enfrenta justamente a questão de relacionar as estruturas das substâncias às propriedades macroscópicas, Earley argumenta que determinados eventos requerem uma estratégia de explicação diferente da usualmente empregada pelo fisicalismo. Em vez de reduzir as explicações às teorias de ‘baixonível’, sugeridas pela física a partir do nível elementar, às vezes é conveniente empregar teorias de nível mais alto. É o caso, por exemplo, de quando se invocam as teorias da hidrodinâmica e da ótica geométrica em vez da dinâmica molecular e da teoria ondulatória da luz a fim de explicar a ocorrência dos arco-íris (EARLEY 2008, p. 12). Earley observa que na química este mesmo é preciso assumir esse mesmo pressuposto no estudo de macromoléculas.

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Na filosofia da mente, haveria uma situação semelhante, indica Earley. É o caso, por exemplo, das pesquisas com redes neurais no entendimento da cognição. Segundo ele, sistemas de redes neurais de escala muito grande costumam apresentar bons resultados, independentemente dos tipos de unidades básicas (nêurons). Para as redes neurais de larga escala, se os nêurons são de resposta linear ou logarítmica parecem ter pouca relevância para os resultados, chamando a atenção para a pouca importância dos níveis mais baixos. Por isso, Earley sugere que “qualquer filosofia adequada da mente deve ser capaz de lidar com a emergência de regularidades de nível superior que não são completamente determinados por propriedades de componentes microscópicos” (EARLEY 2008, p. 13), tal como a filosofia da química já é obrigada a reconhecer. O terceiro e último ponto de Earley é despertado por uma interpretação fisicalista não reducionista. Haja vista que o fisicalismo enfrenta a dificuldade de encontrar algum correlato específico para a consciência, ganhou força nas últimas três décadas uma interpretação chamada de superveniência. Nela, a consciência é uma característica que simplesmente emerge de um conjunto como propriedade global, à maneira de um epifenômeno. Assim, a superveniência complementa e, ao mesmo tempo, se mantém fiel ao fisicalismo, uma vez que sustenta a impossibilidade de dois mundos idênticos em suas propriedades físicas que sejam diferentes, de algum modo, em suas propriedades mentais (STOLJAR, 2009). Pode-se dizer que superveniência é uma relação causal que parte de um nível mais baixo para outro mais elevado (respectivamente as partículas elementares e a mente). Desta maneira, ela supõe a existência de uma relação causal sincrônica em vez de se restringir às relações de causalidade diacrônica (onde a causa necessariamente precede temporalmente o efeito). Esta, por sua vez, ocorreria apenas no nível elementar, enquanto entre dois estados mentais não haveria relações de causa e efeito, tal como ilustra a figura 1.

Figura 1: propriedade mental M invariavelmente precede a propriedade mental M*. Mas M é superveniente à propriedade física P, e M* sobrevém sobre propriedade física P* (EARLEY 2008, p. 3)

Earley contesta a fundamentação da superveniência partindo justamente da constatação de que, assim como muitas explicações científicas contemporâneas, 4

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também no funcionamento da mente, as investigações sobre as interações causais horizontais devem considerar intervalos temporais que variam de frações de segundos a anos. Isso destacaria que considerações sobre sincronia causal não são suficientemente rigorosas. Segundo ele, se a questão do tempo fosse levada mais a sério, se abririam os caminhos para se aceitar uma relação de causalidade também “descendente” (o exemplo utilizado é de como a dança do acasalamento é o fator determinante na evolução genética de algumas espécies de pássaros) (EARLEY 2000, p. 15). Com uma brecha para uma causação “descendente” aberta, Earley analisa como um problema análogo ocorrido na química. Ele descreve como o estudo de processos dissipativos, principalmente nos casos de modelagem quantitativa de complexas redes de processos tempo-dependentes, foi capaz de compreender como poderia se dar um caso em que a coerência dos sistemas de nível mais alto influenciaria a dinâmica do nível mais elementar. Além disso, Earley, com base em propostas feitas, por exemplo, por Sperry, enxerga aproximação entre o funcionamento mental e o funcionamento de estruturas dissipativas dos processos químicos. Sugere, então, que química pode ajudar elucidar, sem romper com o pressuposto do fisicalismo de uma correlação unívoca entre diferentes níveis, uma possível causalidade “descendente” (EARLEY 2000, p. 19). Isto é, o desenvolvimento das modelagens do funcionamento cerebral como um sistema dissipativo seria capaz de dar aceitação a algum tipo de poder causal da mente. Essas são as propostas que Earley apresenta como lições aprendidas pela a filosofia da química estendidas à filosofia da mente. Conquanto elas não sejam exatamente soluções conclusivas para os problemas, podem contribuir para superar as constrições levantadas pelo fisicalismo. Seu principal mérito, pois, é de apontar ou alargar caminhos e programas de pesquisa na área. Enfim, não sugerimos aqui que haja a recusa das teorias e das propostas que a física tem a oferecer para a filosofia da mente. Pelo contrário, aspiramos igualmente por desenvolvimentos nesta área. Mas, obstados pelo “problema difícil da consciência”, nos perguntamos: não seria razoável complementar a estratégia fisicalista com algum tipo de ‘quimicalismo’?

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BIBLIOGRAFIA 1. CHALMERS, D. J. “The puzzle of conscious experience”. Scientific American. Edição especial The Hidden Mind, abril de 2002 p. 90-100. 2. EARLEY, J. E. “How philosophy of mind needs philosophy of chemistry”. HYLE – International Journal for Philosophy of Chemistry, vol. 14 (1), 2008, pp 1-26. 3. MASLIN, K. T. Introdução à Filosofia da Mente. Porto Alegre: Artmed, 2009. 4. KIM, J. Physicalism, or Something Near Enough. Princeton: Princeton UP, 2005. 5. PLACE, U.T. “Is consciousness a brain process?”. British Journal of Psychology vol. 47 (1), fevereiro de 1956. pp. 44-50. 6. STOLJAR, D. "Physicalism". In: The Stanford Encyclopedia of Philosophy. Edição outono de 2009. Disponível em http://plato.stanford.edu/entries/physicalism Acesso em 27/06/2014.

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