E se “humano” fosse no feminino?: contribuições das epistemologias feministas para pensar sobre músicas no plural

July 1, 2017 | Autor: Laila Rosa | Categoria: Music, Etnomusicologia, Epistemologías Feministas
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E se “humano” fosse no feminino?: contribuições das epistemologias feministas para pensar sobre músicas no plural1 Laila Rosa Resumo: Neste artigo proponho uma discussão sobre a relevância e abrangência oferecidas pelas teorias feministas para pensar sobre pessoas, cultura e sociedade, considerando a pluralidade da totalidade sem negar, no entanto, as especificidades concernentes a questões de gênero, sexualidade, raça e etnia, classe e geração, assim como, nas inter-relações entre tais categorias na produção cultural e musical de modo geral. Para tanto, me baseio na experiência de campo que tive sobre música e mulheres no universo religioso dos cultos aos orixás e da jurema em Pernambuco, assim como, das minhas pesquisas e atuação no campo dos estudos feministas. Proponho, portanto, um deslocamento de referencial do masculino para o feminino. O mesmo não consiste na mera sobreposição de um (feminino) sobre o outro (masculino), mas num exercício de reflexão que este suposto deslocamento possa oferecer para nossas pesquisas. O artigo se divide em três partes: na primeira proponho uma breve incursão nas categorias analíticas supracitadas e nas possíveis contribuições que a inclusão das mesmas enquanto categorias musicais podem suscitar para o campo dos estudos de música e performance de forma ampla; na segunda parte, abordo como procurei estabelecer tais parâmetros nas minhas próprias pesquisas; na terceira e última parte, apresento mais reflexões e indagações que propriamente conclusões fechadas, para pensar sobre a possibilidade de novas epistemologias e práticas nas nossas pesquisas e atuações junto às pessoas e contextos musicais com os quais trabalhamos. Palavras-chave: Etnomusicologia - Epistemologias Feministas – Música Religiosa

1. Epistemologias feministas em música: será possível? Os estudos sobre música, de modo geral, tendem a homogeneizar, naturalizar ou não problematizar os diferentes (e muitas vezes desiguais) lugares que ocupam mulheres e homens na sociedade, na produção e visibilidade de fazer música, dentre outras coisas. Esse já não é um debate novo e já existem discussões acerca do tema através da inclusão da discussão do tema gênero em música, levantado nos trabalhos de SEGATO (1995 e 1999), MELLO (2005) e também no meu (ROSA, 2005). Com o passar dos anos e graças à contribuição de outras vozes na construção de epistemologias feministas mais amplas, emergiram as questões raciais e étnicas pelas não brancas2, assim como a questão da sexualidade, pelas lésbicas e 1 Trabalho apresentado no II Encontro Regional Nordeste da Associação Brasileira de Etnomusicologia (ABET) na Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, 2010. 2 Sobre raça, música e nação WADE (2000, p. vii) destaca que estudar a história da música colombiana foi fundamental para compreender questões sobre identidade nacional e ideologias de raça, classe, região (regionalismos), sexualidade e gênero presentes na mesma. Concordo também com RADANO e BOHLMAN (2000, p. 5) de que “a imaginação de raça” tanto pode informar percepções da prática musical, como, de uma só vez, pode ser constituída dentro e projetada num social através do som. Logo, é muito importante interseccionar o musical ao discursivo, fazendo o exercício de ‘ouvir racialmente’ não de forma naturalizada, mas como construção cultural definidoras de performances (idem).

que, por sua vez, também se consolidou com a teoria Queer e o movimento LGBTT. Trabalhos como o de NASCIMENTO (2010), PALOMBINI (2007) e TROTTA (2008) abordam a temática sexualidade na música. A categoria classe já é um clássico Marxista teoricamente consolidado, que, no entanto, é muitas vezes tomado sem conexão com as demais categorias, como se ela sozinha, pudesse explicar todas as desigualdades, o que já vem sendo discutido e refutado por boa parte das teóricas feministas. Por fim, geração emerge como importante categoria para situar as diferentes vozes, como é possível observar no trabalho de TANAKA (2008). Esses são apenas alguns exemplos de estudos no campo da música. Como é possível, então, pensar em epistemologias que dêem conta desses diferentes lugares? Muitas autoras têm proposto novas categorias analíticas, novos olhares, como é o caso de HISAMA (2000, p. 1288) que propõe uma perspectiva que mescla desde elementos da análise musical à própria experiência de quem analisa a música ou contexto musical: Meu interesse em desenvolver um ramo de teoria da música que é marcadamente feminista tem me levado a considerar elementos não tipicamente incorporados à análise musical. (...) Minhas análises, acima de tudo, não falam com uma autoridade despersonificada; elas são marcadas pela minha própria identidade. Em virtude da crescida visibilidade do feminismo e suas correntes tentativas de aceitação em pesquisas de música, eu me beneficio da liberdade de trabalhar na música fora do cânone analítico e desenvolver caminhos feministas de escuta e análise musical sem me sentir obrigada a escrever em tópicos mais tradicionais. (HISAMA, 2000, p. 1288).3 SARKISSIAN (1992, p. 338-42) aponta alguns temas recorrentes levantados por estudos feministas: 1. Sobre a importância da performance musical no processo de socialização tanto expressando como moldando a ordem social; 2. Segregação dos mundos musicais femininos e masculinos como parte da uma tendência de oposição binária; 3. Estudos dos comportamentos musicais como indicador de relações de poder baseadas em gênero; 4. Estudos de música e gênero sobre estilos vocais;

3

“My interest in developing a branch of music theory that is markedly feminist has led me to consider elements not typically incorporated into music analysis. (...) Mv analyses, moreover, do not speak with a disembodied authority; they are marked by my own identity. By virtue of feminism's increased visibility and its current tentative acceptance in music scholarship, I enjoy the freedom to work on music outside the analytical canon and to develop feminist ways of hearing and analyzing music without feeling obligated to write on more traditional topics.” (HISAMA, 2000, p. 1288).

5. Público e privado e comportamento musical, diferentes domínios musicais; 6. Relações de gênero entre o real e o sobrenatural; 7. Dicotomias natureza e cultura; 8. Relações assimétricas de poder; A minha pesquisa sobre as entidades femininas da jurema, seus repertórios musicais, suas performances em diálogo com o contexto religioso e suas relações de gênero e de poder se inspira pelos tópicos citados acima, considerando além do gênero, sexualidade, raça e etnia, classe e geração como categorias que fornecem importantes ferramentas analíticas e interseccionais que devem ser observadas nas descrições e análises realizadas.

2. Identidades sonoras e roteiros de escuta do feminino no culto da jurema A pesquisa focalizou o repertório musical das entidades femininas do culto da jurema para discutir representações de feminino a partir das categorias analíticas em questão (ROSA, 2009). Estas foram fundamentais para compreender tanto estas representações de feminino, como as relações de gênero nos diferentes repertórios e performances das entidades espirituais e das pessoas. São quatro grandes categorias religiosas e uma que classifico como interseccional: Direita

1. Caboclas – janeiro.

Interseccional

2. Pretas-velhas – maio

Ciganas – por vezes em maio

Esquerda

3. Mestras – Março e/ou novembro

4. Pombagiras – agosto

Cada entidade possui o seu repertório musical específico constituído por linhas ou pontos cantados4 que representam narrativas das entidades, de suas histórias e características particulares5 que CARVALHO (1990, p. 135) considera como “claras histórias de anti-heróis”:

Cada uma dessas entidades tem não só uma ou mais canções que a identifica, como também fala longamente e conta sua história de vida, com um vocabulário extremamente explícito e invariavelmente ligado à marginalidade e à prostituição. São claras histórias de anti-heróis: ladrões, 4 Os cantos das entidades são chamados de linhas ou pontos, termos que também são utilizados no contexto musical da umbanda (BORGES, 2005), o que indica também o diálogo não somente religioso, como musical entre ambas as religiões. 5 Os pontos falam também sobre os territórios, as moradas místicas das entidades. Esta territorialidade sagrada na jurema é representada pelas matas, encruzilhadas, mares, rios e até mesmo países, caso dos ciganos e das ciganas.

assassinos, rufiães, putas, donas de cabaré, capangas, enfim, “anti-sociais” de todo tipo e lugar (idem). A partir deste panorama, propus um “roteiro de escuta”: a escuta de trechos de gravações realizadas em campo sugeridas para auxiliar na compreensão do universo sonoro da jurema e das performances das pessoas e das entidades femininas. Minha abordagem musical sobre o feminino e a interseccionalidades com gênero das diferentes categorias foi construída a partir das seguintes observações: 1. Gênero – das representações de feminino, do transgênero que pode ser vivenciado no transe, das relações de poder e assimetrias entre homens e mulheres no culto. 2. Raça e etnia – das identidades raciais e étnicas que marcam o culto da jurema e suas entidades que são consideradas negras, indígenas e/ou mestiças. Cada categoria vai se expressar de forma específica tanto na fala como musicalmente, onde as possibilidades de inversão são várias; 3. Classe social – da questão econômica e social que situa os sujeitos da jurema, grande maioria mulheres negras de classe econômica mais baixa, e também das suas entidades. O transe representa um veículo de inversão onde uma mulher ou mesmo um homem negro e pobre pode ser uma pombagira que tem acesso a artigos finos e caros que não fazem parte do seu cotidiano; uma mulher branca e de classe média alta pode se tornar uma preta-velha escravizada e com recursos financeiros mínimos. 4. Geração – das representações geracionais e inversões que ocorrem quando no transe, onde jovens se tornam velhos e vice-versa; 5. Sexualidade - Das inversões de gênero e de sexualidade onde entidades podem ser assexuadas ou hipersexualizadas; homens podem ser mulheres e vice-versa, redefinindo ou legitimando experiências e papéis. Em seguida, discuti de que forma uma categoria interfere na outra: 1. Gênero e geração – relação determinante para sexualidade e suas representações musicais e erotização ou não das performances – se jovem ou velha são em geral consideradas como assexuadas, ou, pelo menos, não há nenhuma referência à sua sexualidade; representação de feminino ‘pura’; a geração e sexualidade juntos serão determinantes para as performances das entidades, tanto em seu

gestual, como em sua vocalidade. Existe uma neutralização na diferenças de gênero por conta das representações geracionais; 2. Gênero e raça/etnia - determinantes na performance enquanto formas de vocalidade, gestual, adereços, temáticas dos pontos e dos padrões rítmicos. Junto com gênero, vai definir vocabulário utilizado pelas entidades nas suas falas e pontos cantados, instrumentos a serem utilizados; 3. Gênero e classe - vão definir questões referentes à delicadeza material de seus adereços, comidas e preferências que são narradas nos pontos cantados. Classe interseccionalizada com gênero vai atuar nas representações materiais das entidades. Junto à raça e etnia classe é uma categoria historicamente empobrecida ou completamente fora das relações de classe, como o caso das entidades indígenas que vivem nas matas. O lugar das entidades africanas é de subalternidade de classe, como entidades que foram escravizadas ou filhas(os) de africanas escravizadas. As entidades não negras ou indígenas em geral (as mestras), ostentam maior poder aquisitivo e exigências consideradas mais caras e sofisticadas. As ciganas também são uma categoria especial em relação à classe. Algumas ciganas exigem cristais, frutas finas e ouro. Porém o lugar étnico-racial das ciganas é diferenciado daquele ocupado pelas entidades africanas e indígenas, historicamente bem situadas na história brasileira como categorias de maior lugar de desigualdade social. A seguir, para finalizar, apresento um panorama geral das interseccionalidades das categorias nas performances musicais das entidades femininas: Música e performance – voz e corporalidades 1. Gênero, música e geração

Gênero, música e sexualidade 3. Gênero, música e raça/etnia

4. Gênero, música e classe social

Agudo erotizado/infantil/crianças - pulam e brincam e mulheres jovens - Dançam rodando a saia, requebram os quadris e mexem os ombros – grave e falha/velhas – dançam agachadas Estéticas do erótico/ jovens/voz e dança – assexuado/infantil e velho Vocabulário indígena – sons sibilantes das matas – instrumentos/padrões rítmicos– maracas- abê, coco/toré- africano/ macumba/samba - ‘regional’ – coco A questão de classe já é mais difícil de ser avaliada musicalmente. Neste sentido, considero que os aspectos de classe estão representados através dos aspectos raciais e étnicos, visto que a questão da africanidade representada pelas entidades pretasvelhas, ou pelas indígenas e mestras , conferem diferentes sonoridades. Estas entidades estão de alguma forma inseridas também numa perspectiva de classe.

Através do panorama geral apresentado sobre as entidades espirituais do culto da jurema, suas características, músicas, performances e narrativas foi possível perceber como as diferentes entidades são classificadas também como diferentes ‘linhas’ ou ‘correntes’ espirituais. Estas possuem sexo e representações muito bem definidas de gênero, de raça/etnia e classe social, geração e sexualidade que foram avaliados a partir de parâmetros propostos pelas teorias feministas, que, por sua vez, trazem para o campo da produção de conhecimento feminista em música o reconhecimento de gênero como importante categoria analítica, assim como na riqueza da sua interseção com as demais categorias.

3. Conclusões abertas: humana no feminino e por que não? Longe de propor generalizações acredito que os parâmetros adotados na pesquisa em questão podem servir para outros contextos musicais, considerando que humano tanto pode ser considerada como uma categoria universal, como, se considerada a partir de suas especificidades, pode, igualmente ser feminina, afinal, a experiência de um gênero jamais poderá sobrepor ao do outro, e, esta é uma das grandes contribuições das teorias feministas em música: trazer essas vozes silenciadas pelo olhar masculino que sempre buscou o seu semelhante. É inegável que muito foi feito no campo da etnomusicologia e temos que agradecer aos estudos pioneiros da área. Contudo, como foi possível observar no feminino do culto da jurema, estes não podem pretender ser universais enquanto modelo de um grupo ou de uma sociedade como um todo, do mesmo modo em que o feminino não poderia. E essa é a reflexão que gostaria de deixar por agora.

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