É tanta coisa que não cabe aqui

June 16, 2017 | Autor: Luiz Camillo Osorio | Categoria: Contemporary Art (Brazilian Studies)
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É TANTA COISA QUE NÃO CABE AQUI
(Publicado: Revista CULT Novembro 2015)

O objetivo deste artigo é retomar o diálogo com as obras dos três artistas que participaram da Bienal de Veneza de 2015, assumindo-as como um microcenário para se discutir a arte contemporânea brasileira e sua dimensão política. Importante ressaltar de saída que a curadoria do pavilhão foi feita por mim e por Cauê Alves, ou seja, este diálogo foi acontecendo desde o momento das escolhas dos nomes, ao longo do processo de preparação da exposição e isso continua intensamente depois da inauguração. O que se segue a partir daqui é uma releitura do texto que foi escrito para o catálogo tendo em vista a experiência da montagem, da própria exposição realizada e sua recepção. Os três artistas pertencem a gerações e contextos artísticos distintos, mas enfrentam destemidamente as urgências do tempo presente. Antonio Manuel, Berna Reale e André Komatsu traduzem esta urgência com enorme liberdade poética e contundência plástica.
"Todos os Futuros do Mundo" foi o título escolhido para a Bienal de Veneza de 2015 pelo curador Nigeriano Okwui Enwezor. Em uma conjuntura de incertezas, em que ameaças e conflitos disseminam-se desde a crise ambiental até a crise dos refugiados passando pelas desigualdades gritantes entre ricos e pobres, não são boas as perspectivas em relação ao que podemos imaginar como futuros cabíveis. Naturalmente, o foco recaiu sobre o hoje e os impedimentos em relação à nossa abertura imaginativa, recaindo sobre a arte a pergunta sobre sua capacidade de sinalizar com alguma potência inventiva ao estado atual das coisas. Seja como for, é no presente que possibilidades de futuro se desenharão. No que tange ao Brasil, como responder a este desafio da curadoria uma vez que o mote de país do futuro parece obscurecido por uma espécie de falência civilizacional? Ao mesmo tempo, como dar conta de tanta urgência política e social sem perda da dinâmica experimental da arte e da sua complexidade formal?
A frase que dá título ao pavilhão brasileiro – É tanta coisa que não cabe aqui - foi apropriada de um dos cartazes que ocuparam as ruas brasileiras em 2013, em manifestações massivas cujas reinvindicações eram ao mesmo tempo contundentes e generalizadas. Não havia uma questão mobilizadora, mas um mal-estar disseminado. Usar as manifestações como acontecimento curatorial era diagnosticar um momento de intervenção política desvinculado de lastro ideológico convencional, que assumia um desejo militante diferenciado por fora das representações partidárias. Cada cartaz era uma voz, cada voz um ator que ia produzindo em conjunto um mundo comum específico, urgente e partilhável. Eram muitos "vinte centavos" a serem reivindicados no fazer das lutas pontuais: redução da tarifa dos ônibus, cadê o Amarildo, desmilitarização da polícia, fora Cabral, gastos abusivos para a copa, (des)ocupação militar da Maré, leis de exceção contra ativistas etc. A participação de artistas/ativistas naqueles meses de conflito foi fundamental, constituindo estratégias de participação que foram produzindo estéticas singulares. A performatividade irreverente dos ativistas abria formas de conflito novas e desconstruía modelos convencionais de ação. A título de exemplo - haveria muitos outros - destacaria a contundência poético-política do coletivo projetação com suas frases poéticas e provocativas projetadas nos prédios (amar é / a maré / Amarildo).
Paralelamente a uma estética que se constituiu no embate das ruas abrindo novas formas de perceber e configurar as lutas, devemos analisar também, talvez de forma menos colada aos acontecimentos das ruas, mas mantendo com eles relações indiretas, as formas de política propostas pela arte. Dentro ou fora das instituições. Qual o papel da arte além ou junto à militância política? Como ela pode ser política sem instrumentalizar-se nem sucumbir à urgência da ação imediata? A escolha dos três artistas do pavilhão apontava para formas de fazer política a contrapelo de uma discursividade ilustrativa e no limite tênue e arriscado entre experimentar e denunciar. Limite que não se define a priori, mas no dar-se de uma presença plástica, de um aparecer que desloca as evidências da aparência.
Ao deixarem-se atravessar pelas inquietações de seu tempo, os artistas querem produzir deslocamentos poéticos que nos fazem imaginar outras formas de perceber o mundo a nossa volta. A dimensão política da arte não implica a representação direta de temas políticos. Ao menos, não seria por qualquer tipo de adequação ideológica, de adaptação programática a formas de pensar já instituídas, que nos interessava assumir uma política na arte. O importante, acima de tudo é a produção de atrito e complexidade onde consensos tendem a naturalizar as diferenças e aplainá-las. Desestabilizando qualquer evidência interpretativa, a força do acontecimento artístico deve nos seduzir e, simultaneamente, nos desorientar.
Diferentemente das vanguardas históricas que acreditavam em modelos alternativos cuja realização não caberia no interior das instituições constituídas, a arte contemporânea, assumida certa deflação utópica, resiste de dentro das instituições sem, todavia, deixar-se acomodar aos padrões instituídos nem ao desencanto niilista. Se não parece haver um novo modelo de sociedade cabe à arte produzir pequenas alteridades, abrindo brechas nas normatividades que inviabilizam a criação de outras formas de estar no mundo.
Vivemos desde 1989 divididos entre a procura de aberturas democráticas, a inquietação diante de consensos inibidores e a angústia de que o fim do mundo não é mais uma divagação ficcional, mas o desdobramento natural do desenvolvimento econômico e tecnológico. Ao mesmo tempo, a desigualdade e o deserto crescem. A entropia amplia tensões sociais e inviabiliza a convivência na diferença. O que podemos esperar do futuro? O que nos dizem as obras de Antonio Manuel, Berna e Komatsu?
Em 1970, o artista Antonio Manuel realizou O corpo é a obra, uma "performance" no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro em que, inesperadamente, no dia da abertura do Salão Nacional de Arte Moderna em que fora recusado, despiu-se e fez do seu corpo nu um gesto de resistência à exclusão. Resistência afirmada enquanto obra, obra constituída como corpo – um corpo nu, frágil, desarmado. Diante da polêmica gerada e da ameaça de prisão do artista (o Brasil vivia uma ditadura militar violenta) o crítico Mario Pedrosa declarava em entrevista concedida ao artista que a arte seria a única coisa contra a entropia do mundo. É pela fragilidade de um corpo solitário, na recusa de projetos autoritários e/ou utópicos unidimensionais, que a arte parece resistir e deixar entrever uma linha de fuga possível.
Antonio Manuel pertence a uma geração de artistas brasileiros que se formou na resistência à ditadura nos anos 1960 e 1970, articulando estratégias conceituais, rigor construtivo e engajamento político. Suas obras atuam tanto no enfrentamento do espaço arquitetônico, como se apropriam das imagens jornalísticas para resignificá-las fora do contexto narrativo convencional. O atrito é um elemento plástico e político. O atrito alia-se ao pensamento da forma, ao modo como a estrutura geométrica organiza nossa visualidade e distribui democraticamente lugares na superfície do plano. Para além do apelo purista que a tradição construtiva assumiu em alguns de seus desdobramentos do pós-guerra, em Antonio Manuel, assim como no neoconcretismo que o precedeu e influenciou, o apreço da forma contamina-se com a materialidade precária do real.
O atrito formal se apresenta no diálogo com o espaço arquitetônico, como ocorreu, por exemplo, em sua versão original de Ocupações e Descobrimentos, 1999, no MAC de Niterói, reconstituído agora em Veneza com a escala do pavilhão. No prédio futurista de Oscar Niemeyer, plantado como um disco voador diante da paisagem estonteante da baía de Guanabara e do Pão de Açúcar, ele ocupou o espaço da varanda apostando no embate com a natureza. Construiu ali sete muros reproduzindo o movimento das curvas do prédio e bloqueando a promenade arquitetônica. Foram abertos buracos a marretadas pelo artista e através deles o público circulava. Importante frisar que os muros/paredes eram, de um lado, pintados ou de branco, ou de amarelo ou de vermelho e, do outro, ficavam os tijolos aparentes. Os buracos abriam passagem e juntavam o elemento construtivo da parede ao elemento concreto do tijolo, o desejo de forma da arquitetura moderna à forma do desejo de um obstáculo rompido, integrando Brasília à favela, o Brasil utópico e o Brasil distópico.
Esta mesma tensão distópica está presente nos três muros construídos em Veneza, integrando-se e atritando com a arquitetura brutalista do Pavilhão. As cores primárias e construtivas – vermelho, amarelo e branco – estampavam-se uma em cada muro, gritando sua presença em movimentos levemente torcidos que impediam a circulação fluente do visitante. No meio de cada um destes muros, o buraco rompido libera a passagem dos corpos, um de cada vez, apertando-se pela brecha, visando o movimento possível. Entre cada um dos muros, no espaço situado no intervalo, ele introduziu duas instalações recentes que lidavam com a imagem e seu velamento. Nave e Até que a Imagem Desapareça, ambas de 2013, foram readaptadas para este novo contexto e acabaram poderosamente integradas ao espaço dos muros, fazendo uma só instalação composta de três trabalhos. Elementos importantes na sua trajetória como o jornal e a imagem são utilizados ali só que respondendo a uma lógica poética distinta. Ao contrário da estratégia dos antigos Flans (final dos anos 1960), que revelavam imagens reprimidas pela censura, nesta obra o artista vai velando as imagens, cada vez mais excessivas e acachapantes de nosso cotidiano, através das gotas de água que borram o monitor (Nave) ou que pingam sobre as próprias serigrafias (Até que a imagem desapareça). De certo modo, estes jogos de velamento e desvelamento, de impedimentos e linhas de fuga, perpassam sua poética dando-lhe uma indeterminação e uma abertura que nos engajam sem imposição de qualquer ordem.
É em estreita conversa com esta dinâmica e atritos que surgem as obras da paraense Berna Reale e do paulista André Komatsu. Nos dois artistas destacam-se o mesmo destemor no uso da imagem, do corpo, da arquitetura e da materialidade crua à nossa volta, trazendo à luz o que fica à margem do visível, mas que revela os conflitos de um país e de um mundo fragmentado e brutal. As duas pequenas salas contíguas na entrada do pavilhão apresentam dois vídeos, separados por quase quarenta anos, que revelam a tragédia de nossa atávica exclusão. De um lado, os corpos massacrados de Semi-ótica (1975) de Antonio Manuel, apresenta imagens retiradas dos arquivos da seção policial de jornais na década de 1970, cujo dilaceramento é potencializado pela música de Guilherme Vaz. Do outro lado, vemos o corpo solitário de Berna Reale que percorre, em Americano, 2013, uma prisão no interior do país carregando solenemente uma tocha olímpica. Nos dois casos, revela-se uma situação de exclusão contínua e persistente, que inviabiliza as condições mínimas para uma cidadania compartilhada.
Para além do aprisionamento de jovens excluídos e à margem de qualquer sociabilidade, as grades e muros espalhados pelas cidades brasileiras naturalizam a segregação, deslocando tragicamente este sentimento para o ambiente cotidiano. Transitar pelas ruas é um choque contínuo de diferenças, que ora se integram, ora se excluem, produzindo uma contradança de contrastes em que a alegria do improviso e a dor do preconceito continuamente se tocam. O equilíbrio precário destes contrastes, sempre à beira de uma desagregação, perpassa muitas das instalações de Komatsu, cuja materialidade bruta interage, em seus pontos decisivos de equilíbrio, com elementos delicados no limite do colapso. Toda uma instabilidade social é visualizável nos blocos de concreto equilibrados sobre pequenos copos de cachaça. Em Status Quo, 2015, feito para a Bienal, Komatsu construíu dentro da galeria um enorme cercado de arame. Indo praticamente até o teto, este trabalho trazia plástico branco translúcido, pendurados de cima vedando parte da visão do interior. Esta opção do plástico foi encontrada pelo artista no processo de montagem, uma vez que no projeto inicial havia apenas a cerca. Esta opção produziu certo mistério, apesar de não velar totalmente a situação interior, incitando o público a chegar mais perto. Com isso, seguia-se por um corredor até o fundo daquela galeria-jaula, com o corpo cada vez mais espremido, até encontrar o buraco no qual se tem acesso à parte de dentro. Ali dentro, enclausurado, pode então, paradoxalmente, sentir-se livre. Experiência que traduz nossa condição paradoxal no Brasil, nossa agorafobia constitutiva em que tememos a rua, a convivência e os conflitos públicos, nos encastelando dentro de grades e vidros pretos para sentirmo-nos seguros.
Quando preparávamos o material do catálogo oficial da Bienal enviei um SMS para Berna para pedir-lhe umas imagens. Sua resposta veio rapidamente: "estou na viatura, à noite te envio sem falta". A viatura, no caso, era da polícia, onde a artista trabalha como perita criminal. Trabalhar aí lhe garantiu contato com a realidade sórdida do submundo brasileiro, que em uma cidade como Belém do Pará ganha tonalidades dramáticas. Foi assim também que teve acesso a espaços como um presídio masculino, em que jamais entraria não fosse ela daquele meio. Importante ressaltar, todavia, que este facilitador não significaria nada artisticamente sem a potência estética e simbólica de suas performances e filmes. Americano revela, por um lado, a solidão de uma corrida sombria no interior de uma prisão arruinada. A fragilidade de um corpo frente a forças opressoras ancestrais. Por outro, é uma crítica contundente às condições sub-humanas dos presos no Brasil, solidarizando-se com os excluídos. O silêncio e a calma de seu trajeto potencializam as tensões deixadas à sombra no percurso e que se insinuam por vozes dissonantes, nas mãos e pequenos espelhos postos para fora das grades pelos presos curiosos com a cena singular. Os contrastes de luz e sombra explicitam o abismo de nossas desigualdades.
Todos os trabalhos no pavilhão brasileiro explicitam uma sensação de constrangimento, situações que sugerem uma cidadania interrompida que exclui a participação impessoal em nome dos arranjos paternalistas cheios de afetos ambivalentes – uma espécie de cordialidade opressora. Do lado de fora do pavilhão instalamos a última-primeira obra. A bandeira/alegoria de Komatsu, O estado das coisas 2, de 2011, formada por um par de tênis velhos que fica pendurado a um mastro fincado na empena. Esta bandeira informal, ladeada pela bandeira oficial do Brasil – somos dos poucos países cujo pavilhão mantém este símbolo nacional – põe em evidência um gesto corriqueiro e comum de demarcação de território. Todos os que não cabem e não se deixam representar no Brasil oficial, estariam, mesmo que indiretamente, simbolizados por aquele par de tênis pendurado no mastro. Os dilemas de uma liberdade controlada por grades e muros e de corpos excluídos de um mínimo de dignidade civilizada nos levam de volta ao pôster das manifestações: É tanta coisa que não cabe aqui.
A partir desta realidade adversa a arte procura resistir e mobilizar energias de transformação. O futuro depende destas energias e de nossa capacidade de ainda nos deixarmos surpreender e incomodar.

Luiz Camillo Osorio
PUC-Rio e MAM-Rio



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