É tudo vivo, a política dos artistas ou como se aprende numa pedagogia huni kuin (IX Simpósio de Linguagens e Identidades, UFAC, 2015)

June 9, 2017 | Autor: Amilton Mattos | Categoria: Visual Anthropology, Ethnomusicology, Ethnography, Minor Literature, Literatura Menor
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A política dos artistas ou Como se aprende e ensina em uma pedagogia huni kuin? Amilton Pelegrino de Mattos Apresentado no IX Simpósio Linguagens e Identidades – PPGLI – UFAC, 2015

Sobre o título: tanto o título da mesa, como de minha fala devoram conceitos que vem sendo elaborados ao longo dos anos por Ibã: política dos artistas e pedagogia huni kuin. A natureza deste texto assim como do filme não é explicar, interpretar, mas de experimentação e bricolagem. Não se trata de compreender mas de colocar os textos um ao lado do outro, como as imagens dos cantos huni meka: nai mãpu yubekã. Parataxe, bricolagem. É importante que se entenda que este projeto é um projeto independente da Universidade. E é importante também que se entenda que também é universidade. Não universidade institucionalizada, mas universidade nômade, Universidade da floresta (e todas as universidades são universidades da floresta, sejam amazônicas ou não) da única maneira que pode existir: nômade. Ibã é indígena, seu pensamento não foi integrado pela academia, mas também não pode ser pensado como algo externo à academia, que possamos tomar como algo que pode vir a ser feito e pensado em termos acadêmicos, pois ele já está fazendo. Isso pode ser chamado de antropologia reversa, quando nós ocidentais ou nosso pensamento somos olhados por uma antropologia nativa. E não só está fazendo como está nos chamando para um... não gosto da ideia de diálogo, mas para uma composição, uma experimentação conosco. Sua maneira de fortalecer sua língua e seus cantos não é se voltar para um narcisismo identitário, mas buscar no outro, na troca, roubo, no confronto, no aliado-inimigo, sua possibilidade de aprender, sua possibilidade de fazer-se huni kuin. Só me interessa o que não é meu. Ele aprende conosco na universidade, no mundo da arte, no mundo dos brancos como aprendiam seus antepassados com os estrangeiros: o jacaré, a jiboia, o cipó... Além de aprender, também ensina. Nos ensina não romanticamente a sermos mais sensíveis ou esse outros clichês estigmatizantes. Nos ensina a buscarmos nos pressupostos do nosso pensamento (na epistemologia, na ontologia, em nossa relação com a escrita, nossa imagem do subjetividade etc) a origem do narcisismo que nos trouxe aqui, a esse grande impasse. Pois havemos que concordar que há um impasse. É por isso que para falar do nosso trabalho no projeto Espírito da Floresta e no MAHKU, não vou falar de Ibã, não vou explicar o que fazem, encerrando-os de novo como objetos de meu discurso, mas também preciso falar de nós ocidentais e do nosso pensamento.

Agradeço a Edson Kayapo a interlocução das ideias desse texto e, como ele disse que devemos ouvir os sábios, dedico esta fala a Ana Pizarro, por sua generosidade.

Quando se fala em civilizado, eu não quero esse tipo de civilização. Valdelice Veron Esta sopa de lama tóxica que desce no rio Doce e descerá por alguns anos toda vez que houver chuvas fortes e irá para a região litorânea do ES, espalhando-se por uns 3.000 km2 no litoral norte e uns 7000 km2 no litoral ao sul, atingindo três UCs marinhas – Comboios, APA Costa das Algas e Refúgio de Vida Silvestre de Santa Cruz, que juntos somam uns 200.000 ha no mar. Os minerais mais tóxicos e que estão em pequenas quantidades na massa total da lama, aparecerão concentrados na cadeia alimentar por muitos anos, talvez uns 100 anos. Refúgio de Vida Silverstre de Santa Cruz é um dos mais importantes criadouros marinhos do Oceano Atlântico. 1 hectare de criadouro marinho equivale a 100 ha de floresta tropical primária. Isto significa que o impacto no mar equivale a uma descarga tóxica que contaminaria uma área terrestre de de 20.000.000 de hectares ou 200.000 km2 de floresta tropical primária. E a mata ciliar também tem valor em dobro. Considerando as duas margens são 1.500 km lineares x 2 = 3.000 km2 ou 300.000 hectares de floresta tropical primária. Voces não fazem ideia. O fluxo de nutrientes de toda a cadeia alimentar de 1/3 da região sudeste e o eixo de ½ do Oceano Atlântico Sul está comprometido e pouco funcional por no mínimo 100 anos! Conclusão: esta empresa tem que fechar. Além de pagar pelo assassinato da 5ª maior bacia hidrográfica brasileira. Eles debocharam da prevenção e são reincidentes em diversos casos. Demonstram incapacidade de operação crassa e com consequências trágicas e incomensuráveis. Como não fechar? Representam perigo para a segurança da nação! O que restava de biodiversidade castigada pela seca agora terminou de ir. Quem sobreviverá? Quais espécies de peixes, anfíbios, moluscos, anelídeos, insetos aquáticos jamais serão vistas novamente? A lista de espécies desaparecidas foram quantas? Se alguém tiver informações, ajudariam a pensar. Barragens e lagoas de contenção de dejetos necessitam ter barragens de emergência e plano de contingência. Como licenciar o projeto sem estes quesitos cumpridos? Qual a legalidade da licença para operação sem a garantia de segurança para a sociedade e o meio ambiente? Mar de lama... mas não seria melhor evitar que a lama chegasse ao mar? Quem teve a brilhante ideia de abrir as comportas das barragens rio abaixo em vez de fechá-las para conter a lama e depois retirar a lama da calha do rio? Quem ainda pensa que o mar tem o poder de diluição da poluição? Isto é um retrocesso da ciência de mais de 1 século!!!!! Sendo Rio Federal a juridição é do governo federal portanto os encaminhamentos devem serem feitos ao MPF. André Ruschi Estação Biologia Marinha Augusto Ruschi Aracruz, Santa Cruz, ES

No dia 05 de Novembro, na cidade de Mariana/MG, duas barragens de rejeitos da Samarco Mineração e Vale se romperam peram, causando uma enxurrada de lama que destruiu o distrito de Bento Rodrigues, causando mortes,

desaparecimentos, destruindo famílias, e trazendo pânico àquela população. Mas o estrago não para por aí! Essa lama, comprovada que é tóxica, veio passando por diversas outras cidades... e chegou aqui, na Princesa do Vale, invadiu o nosso Rio, acabou com nossa água. A cidade não tem água! É isso mesmo gente: NÃO TEM ÁGUA! Nem no Rio, nem nas torneiras... não há abastecimento de água e a previsão é que isso irá durar no mínimo 30 dias! E o que é ainda pior.... Não temos água nem para comprar! Sim! É verdade! Acabaram os estoques dos supermercados! Estamos todos desesperados por água! É fácil saber quando chega algum caminhão com água...há filas kilométricas com pessoas e seus galões para comprar água, que muitas vezes são limitadas as vendas a 1 ou 2 galões por pessoa. É surreal! As pessoas brigam por água! Boletins de ocorrência são feitos por causas das desavenças. Ladrões agora roubam água... é perigoso andar na rua com galão de água. Estão roubando mesmo! E além dos ladrões descarados, há também aqueles que se aproveitam do momento, comerciantes sacanas que elevaram o preço do galão para obter lucro exorbitante dessa população que tanto sofre. Os caminhões com água que chegam a Valadares, estão vindo escoltados pela Polícia! Acha que é exagero? Não é não! Saquearam carga de galões de água! Valadares vive dias de puro terror! O clima é de medo, apreensão, incertezas, desespero e muita tristeza. Universidades, escolas, comércios, estão parados! A cidade fede! As pessoas vão para as pontes ver o antigo Rio, incrédulas, e saem de lá na mais profunda tristeza ao ver milhares de peixes agonizando, sem água, e não sabendo como será Valadares no futuro! Thatiane Carvalhais , moradora de Governador Valadares.

Cosmopolítica Quando saí de casa na semana passada, pensava vir aqui falar do trabalho que vimos realizando há anos Ibã, os artistas huni kuin e eu de uma perspectiva literária e linguística, porém, algo mudou no caminho. E a Terra entrou na minha fala de maneira devastadora. A grande filósofa belga Isabelle Stengers cunhou uma expressão para referir-se o que estamos vivendo no planeta e nas ciências humanas: intrusão de Gaia, isto é a intrusão da Terra. Como não falar hoje sobre isso, se a Terra irrompe como problema urgente. Estou falando da tragédia da Vale sim, mas também dessa lama do código de mineração que vem arrastando IIRSA, Belo Monte, PEC 215 etc. E não se trata de falar de ecologismo ou jornalismo ambiental (duas competências que não suporto) . Estamos tratando de outro assunto. Se o humano e sua força destrutiva se tornam uma potência geológica isso é sim um problema para as ciências humanas também. Isso pode ser pensado inclusive como o grande problema das ciências humanas, pois como pensar a perspectiva e os pressupostos com que olhamos os outros povos, as outras espécies. É em relação a esse etnocentrismo e esse especismo que gostaria aqui de apresentar o trabalho do MAHKU e o tipo de pacto etnográfico ou a TAZ (zona autônoma temporária) que pensamos resultar dessa zona de vizinhança (o termo de Deleuze e Guattari) entre distintos regimes de pensamento. Mas espera, o que tem a ver arte e ecologia. Será que é porque

desenhamos animais e plantas? Não, não é o fato de desenharmos animais e plantas, não é disso que se trata. Pensamos que operamos numa ecologia que não se restringe ao que se costuma chamar de natureza (em oposição à cultura, separação que constitui o mito por excelência do pensamento ocidental), mas numa ecologia que atravessa as subjetividades, as socialidades, a ciência. Talvez uma cosmopolítica, já que começamos com Stengers, termo também referido por Gersem em sua fala. Desse modo o que quero fazer a partir daí é começar a tratar do MAHKU (e do projeto Espírito da Floresta) a partir de um diálogo com a obra recém-publicada de Bruce Albert e Davi Yanomami, A queda do céu. Esse livro que levou quase trinta anos para ser escrito consiste basicamente num exercício xamânico em que Davi nos descreve detalhadamente com os xapiri veem o mundo e principalmente com veem os brancos. Ele também consiste de certa forma em um totem para uma antropologia contemporânea que articula na noção de cosmopolítica dois problemas: o perspectivismo ameríndio e o Antropoceno. Cosmopolítica seria uma outra maneira de ver aquilo que chamamos um dia de animismo para de certa forma zombar do pensamento indígena por que nos diziam que tudo o que sabiam aprenderam e aprendem no exercício dessa cosmopolítica.

Feridas Narcísicas Quero contar uma experiência que tive quando estive pela primeira vez entre os Kaiowa em 2000, em Dourados, Mato Grosso do Sul. Passei um mês acompanhando o trabalho dos professores nas escolas e escrevi um relatório. Quando estava indo embora, a professora Edina Souza, filha do grande líder guarani Marçal de Souza, assassinado em 1983 pelo agronegócio, coordenadora do projeto me presenteou com Nhande Rembypy, um grande acervo das artes verbais Kaiowa. Nesse livro ela escreveu uma epígrafe em que dizia que esperava que eu fosse uma estrela brilhante para o meu povo. O leve desapontamento que tive na hora (visto que esperava ser uma estrela brilhante para os Guarani) guardo até hoje como a grande lição que ela me deu então: nós não precisamos de ajuda, vocês precisam. O crime da Vale escancara de vez como funcionam os quatro poderes no capitalismo. Além do marco de um dos maiores, senão o maior, crime socioambiental de nossa história, estamos diante de um outro marco, acredito. Trata-se de um marco de linguagem: o modo como a empresa pode se servir dos meios de comunicação que possuem concessão do Estado como sua gerência de relações públicas. À mídia foi delegada a função de manter imaculado de lama o novo código de mineração em preparação. Mas e a Universidade? Não a Universidade enquanto parte da sociedade (solidária às vítimas desse crime), mas enquanto potência de pensamento? E essa Universidade de resultados, está comprometida com quem? Como lidar hoje com o prêmio sustentabilidade da Capes patrocinado pela Vale? É disso que se trata, é isso que precisamos refletir quando nos dispomos a “ajudar” os povos indígenas. Quem realmente precisa de quem? Como disse Marcela não tenho respostas, apenas perguntas. Sabemos que o antropólogo Pierre Clastres, quando revolucionou a antropologia política cunhando a termo Sociedades contra o Estado, referia-se não simplesmente a como se organizavam os povos ameríndios, mas à maneira de percebermos esses povos do continente

sempre como povos a quem falta algo: Sociedades sem escrita, sem história, sem Estado. Sem fé, sem lei, sem rei. Porém, quando as tomamos como Sociedades contra Estado, afirmamos sua positividade (a possibilidade da multiplicidade, de um outro movimento que não leva necessariamente até nós, os civilizados), já que são aquelas sociedades de criam dispositivos para inviabilizar a concentração do poder, isto é, o Estado e tudo o mais que vem com ele. Com esse movimento, Clastres propunha que o pensamento selvagem, no sentido que o antropólogo Claude Lévi-Strauss dá ao termo, não era um instrumento para explicarmos, amansarmos ou até defendermos os indígenas, e sim um instrumento para percebermos, a partir da perspectiva indígena, como o Estado está impregnado em nosso pensamento acadêmico, em nossa percepção, em nossa linguagem. Vou contar outra história. Ela está no Sonho. É rápida, talvez não se perceba bem. Em 2012 fomos convidados a falar no CESTA, Centro de Estudos Ameríndios, na USP. Quero que me entendam, não falo de pessoas, falo de uma mentalidade que pode nos ensinar algo. E reitero que isso não é uma denúncia, não nos estou vitimizando, só quero apresentar como se dá o conflito de pensamentos em uma experiência prática. O vídeo está disponível na íntegra na página do CESTA, no Vimeo. A professora e antropóloga que coordena o grupo pergunta a Ibã, que está ao meu lado:

Dominique: Vou te dizer que minha pergunta é de muita curiosidade, por que em geral na Amazônia os programas de formação de pesquisadores indígenas na universidade não são lá muito bons. Eu queria entender o que que você sentiu, qual foi a diferença, se a universidade te trouxe novas ideias de fazer pesquisa, ou se você continua pesquisando como você aprendeu no começo? Ibã: Realmente a universidade é uma instituição maior, mas ao mesmo tempo a universidade tem que aprender comigo... (...) Não satisfeitos com a resposta de Ibã, prosseguiram:

Aluna: Você falou que a Universidade tem aprender com você. Eu queria saber como que isso acontece? Ibã: Meus conhecimentos são diferentes, mas mesminho conhecimento, eu sou da cultura diferente; eu aprendo com a Universidade, a universidade tem que aprender comigo, é isso que eu tô olhando; eu tô vendo isso acontecer; Um aluno e Dominique: Dá um exemplo Ibã! Ibã: ‘Eu falo na minha língua: Nai mãpu yubekã, você entende?’ ‘Não’ Aí você tem que me perguntar. (Risos) Dominique: Mas você criou alguma disciplina nova ou você e os outros índios tem que se encaixar dentro das disciplinas que os acadêmicos... é isso que eu queria entender, se você

criou, se a universidade aprende com você, a universidade mudou o seu programa com base na tua sugestão ou ainda são vocês que se encaixam dentro do... Ibã: nós se encaixa dentro do...

Literatura indígena “Quantas pessoas hoje vivem em uma língua que não é a sua? Ou então não conhecem mesmo mais a sua, ou não ainda, e conhecem mal a língua maior de que são forçados a se servir? Problema dos imigrados, e sobretudo de seus filhos. Problema das minorias. Problema de uma literatura menor, mas também para nós todos: como arrancar de sua própria língua uma literatura menor, capaz de escavar a linguagem, e de faze-la escoar seguindo uma linha revolucionária sóbria? Como devir o nômade e o imigrante e o cigano de sua própria língua? Kafka diz: roubar a criança no berço, dançar sobre a corda bamba.” (DeG, PLM) Falando de literatura, vou enfocar rapidamente uma noção que me parece central para fazer uma articulação entre o que entendemos por literatura e a imagem que podemos fazer do MAHKU: trata-se da noção de autor. A noção de autoria sofreu um grande golpe com a polifonia que Bakhtin souber ler e explorar como conceito na literatura de Dostoievski. Outro golpe na ideia de autor que nos interessa aqui marcar é aquele sofrido pela obra de Foucault, que se interessa por ela não mais apenas no escopo literário, mas também na ciência e em toda produção do pensamento ocidental. O problema: o que é um sujeito, o que define uma pessoa? colocado insistentemente por Foucault é ainda retomado por Deleuze e Guattari, quando recebe seu golpe final no século passado. Penso que sua noção de literatura menor, conceito elaborado a partir da obra do escritor tcheco Franz Kafka, assim como o conceito de agenciamento coletivo de enunciação radicalizam antropologicamente, se posso dizer, o conceito de autor já fraturado por Bakhtin e Foucault. Em que consiste um sujeito, o que é uma pessoa? Esse é hoje também um dos problemas fundamentais para aqueles que, da perspectiva ocidental, se dedicam a dialogar com ou entender o pensamento ameríndio e que com essa perspectiva indígena se voltam para o que sobrou de nossa imagem do sujeito. O que é uma pessoa, quem é pessoa, quem pode dizer nós, os humanos; o que se quer dizer com o huni kuin casou com a jiboia, aprendeu com jiboia? O que os huni kuin podem estar nos dizendo quando cantam os ensinamentos que vieram da boca jiboia, ou do pensamentomúsica do cipó nixi pae? Quem são os integrantes do MAHKU, são apenas as pessoas aqui pintando, são apenas os indígenas ou podemos ser, sobretudo de maneira molecular, todos MAHKU? O que é nosso e o que é deles quando dizemos que o animismo ameríndio se explica pela noção de crença? E se alçássemos essa crença ao status de pensamento? O que veríamos nas paredes dessa sala quando ecoam os cantos huni meka em termos de conhecimento? O certo

é que se trata sempre de nos voltarmos para os nossos pressupostos quando nos dispomos a julgar esse outro conhecimento, esse conhecimento que se volta para interagir com o nosso apesar de todas as nossas negativas. Quando nos aproximamos de um regime de criação em que nossos recursos (escrita alfabética, artes visuais, pesquisa acadêmica, audiovisual, arte eletrônica) interagem com o xamanismo, ou ainda, quando tais recursos operam ou são apropriados por um pensamento selvagem ou xamânico, nossas noções de arte, autoria, leitura entre outras precisam ser vistas com um certo cuidado, pois tais termos podem já não dizer a mesma coisa. Enquanto buscamos entender suas artes verbais para encaixar em nosso cânone, instituir prêmios literários, realizar traduções, criar leis para obrigar a adoção de obras indígenas, disponibilizar nas escolas como política pública etc dificilmente vamos entender que ponte é essa em que consiste o MAHKU. Dificilmente vamos entender que não se trata de uma ponte metafórica (como disse Joaquim Mana). Trata-se da possibilidade de interagirmos com outro pensamento em termos que já não são os nossos.

Pensamento selvagem O antropólogo Pierre Clastres em um pequeno texto (Entre o silêncio e o diálogo, Lévi-Strauss, L’arc. São Paulo, Documentos, 1968) trata de uma questão que me parece que o persegue por toda sua obra. De que natureza é “nossa” incapacidade de “nos” comunicarmos com os povos originários deste continente. O uso que ele faz do “nós” merece atenção. Nós somos os ocidentais, os colonizadores, os antropólogos etc. Porém, cuidado aqui. Trata-se de um texto sobre Lévi-Strauss, o que muda a natureza desse pronome nós. Quando nos referimos a nós e eles a partir de Lévi-Strauss, falamos de pensamento de uma maneira muito distinta da que se falava até então. Até então, década de 60, quando escreve o pensamento selvagem, os indígenas eram considerados primitivos ou como se estivessem numa espécie de infância do pensamento. Com Lévi-Strauss e a ideia de pensamento selvagem isso muda e abrimos uma dimensão em nossa tradição epistêmica (e ontológica) para imaginar imaginações diferentes da nossa. Voltando a Clastres, a ele interessa justamente isso. Como podemos imaginar uma outra imaginação se o que define o nosso pensamento é a violência com o outro, o silenciamento violento da alteridade justamente no plano do pensamento. Para resumir, Clastres conclui apontando para as monumentais Mitológicas de Lévi-Strauss, que se trata de criar uma nova linguagem. Percebam, essa nova linguagem me interessa pois penso que ela funciona como uma chave não para explicar o que Ibã está fazendo, mas para que nos demos conta da dificuldade que é para nós sairmos do cerco instaurado por nossa imagem do pensamento. Trata-se, portanto, de uma chave que nos permite saber ao menos em que consiste imaginar uma outra imaginação, ou compreender o que acontece quando nosso pensamento se encontra e se confronta com um pensamento outro, já que esse é o problema fundamental que atravessa o obra de Lévi-Strauss.

Não quero, portanto, aqui incorrer no erro de explicar Ibã, explicar o MAHKU, explicar os huni kuin. O que pretendo é criar referências para que nós que estamos aqui possamos interagir com esse tipo de cosmopolítica que esses pajés-artistas constroem com seus aliados acadêmicos ou artistas (aliado que é sempre o inimigo possível) por um lado, e com seus aliados espíritos por outro, para dar continuidade à sua velha guerra pela supervivência. Por isso acredito que se trata sim de literatura. Porém não de uma literatura entendida em nossa tradição representacional em que o livro é a imagem do mundo, mas buscar o rizoma que abre o livro para todas as conexões cósmicas, um livro vivo, um livro cantado, um livro ritual com toda suas as dimensões semióticas: corpo, tempo, espaço, velocidade, sons, imagens etc. Dizia a Ana Pizarro que retomaria sua fala de onde parou porque penso que outras maneiras de ler a literatura se abrem em momentos de uma revolução tecnológica dos meios, uma revolução de tantas dimensões como esta que passamos na qual se redefine completamente a nossa relação com a linguagem, mas que redefine sobretudo o que somos. Penso que vivemos uma revolução nas proporções da que viveram os gregos com a invenção e prática do sistema alfabético. Assim como aquela transformou a percepção do mundo, o corpo e a própria “realidade”, instaurando uma ontologia própria, nesta revolução que vivemos, aprender a ler implica transformar a percepção e transformar o que entendemos por mundo, corpo, percepção, humano. Nesse processo, aproveitando-se dessa revolução os huni kuin veem aqui uma brecha, uma entrada para o mundo até então fechado para essas outras “línguas” e esses outros pensamentos humanos e extra-humanos, como a fala da jiboia, do jacaré, do cipó nixi pae e tantos outros espíritos yuxibu que nos incitam a experimentar as delícias da terra, assim como nos incitam a nos impactarmos com o mar morte da mineradora Vale/Samarco.

BIBLIOGRAFIA Clastres, Pierre. Entre o silêncio e o diálogo, Lévi-Strauss, L’arc. São Paulo, Documentos, 1968. Deleuze, Gilles; Guattari, Felix. Kafka, Por uma literatura menor. Tradução Cíntia Vieira da Silva. Belo Horizonte: Autêntica editora, 2014. Goldman, Marcio. Políticas e Subjetividades nos “Novos Movimentos Culturais”. Ilha – Revista de Antropologia, UFSC, V. 9, n. 1, 2, 2007. IBÃ, Huni Kuin (Isaias Sales). Nixi pae, O espírito da floresta, Rio Branco, CPI/OPIAC, 2006. ___________. Huni Meka, Os cantos do cipó. IPHAN/CPI, 2007. Kopenawa, Davi; Albert, Bruce. A queda do céu: Palavras de um xamã. tradução Beatriz Perrone-Moisés. Prefácio de Eduardo Viveiros de Castro, São Paulo: Companhia das Letras, 2015. Mattos, Amilton; Huni Kuin, Ibã. Quem é quem no pensamento huni kuin? O Movimento dos Artistas Huni Kuin. Cadernos de Subjetividade.

______________. “Curva dos encantos” In: WANNER, Maria Celeste A.; GONDIM, Raoni; ALMEIDA, Tarcisio (Orgs.) Pó Boi Pedra – Percografias, Salvador, Cian Gráfica, 2014. ________________. “Transformações da música entre os Huni Kuin: O MAHKU – Movimento dos Artistas Huni Kuin” In: DOMINGUEZ, M. E. (Org.) Anais do VII ENABET, Florianópolis, PPGAS/UFSC, 2015. _______________. “Lecciones de la investigación indígena: el MAHKU – Movimiento de los Artistas Huni Kuin” In: Index Revista de Arte Contemporáneo. Carrera de Artes Visuales, FADA, PUCE, Quito, http://revistaindex.net/, 2015. _______________. “O sonho do nixi pae. A arte do MAHKU – Movimento dos Artistas Huni Kuin”. In: Revista ACENO (Dossiê: Políticas e Poéticas do Audiovisual na contemporaneidade: por uma antropologia do cinema) Vol. 2, N. 3, 2015. VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo B. A inconstância da alma selvagem e outros ensaios de antropologia, São Paulo, Cosac & Naify, 2002. ________________. “O nativo relativo”. MANA 8(1):113-148, 2002. _________________. “Perspectival Anthropology and the Method of Controlled Equivocation”. Tipití, 2004, 2(1): 3–22.

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