Eça de Queirós e Luísa, de \"O Primo Basílio\": A Paixão pela Retórica

July 5, 2017 | Autor: Eliane Fittipaldi | Categoria: Retórica, Literatura Portuguesa, Teoria da literatura, Construção Da Personagem
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EÇA DE QUEIRÓS E LUÍSA DE O PRIMO BASÍLIO: A PAIXÃO PELA RETÓRICA

ELIANE FITTIPALDI

A paixão da ortodoxia doutrinária de Eça de Queirós sobrepõe-se à da caracterização: um exemplo disso é Luísa, sua personagem de O Primo Basílio. Cheia de vida e persuasiva apenas na qualidade de personagem-tipo, ela é descrita mais de fora que do interior, e sua ausência de complexidade psicológica encolhe-a dentro do molde pré-fabricado. Quando ocorre de o narrador penetrar-lhe o pensamento, detecta as mesmas inquietudes que povoam o universo mental de Ema Bovary, de Flaubert. O tédio, a vontade de conhecer Paris, a ideia de que falta paixão em seu casamento também lá estão. E em termos da trama, suas emoções não são menos intensas, seu sofrimento não é menor que o de Ema: Luísa se desespera, sonha, tem pesadelos, angustia-se, e sua angústia é tão forte que lhe determina a morte. Ocorre apenas que o limite do pensamento e da emoção de Luísa é o limite da linguagem de uma mulher de sua condição.

E, nisso, há coerência e verossimilhança. O Realismo

queirosiano não permite que a representante da superficialidade burguesa

seja

aprofundada

em

sua

psicologia.

Propondo

o

questionamento e a utópica reforma da sociedade de sua época, Eça prefere a representatividade da personagem plana à universalidade da personagem esférica, o tragicômico ao trágico, o que muito o diferencia de Flaubert, cujo pessimismo diante da vida, da história e da condição humana transcende o aqui-e-agora.

Machado critica Luísa por faltar-lhe "paixão”. Na verdade, a paixão de Luísa lá está, romanticamente excessiva, vista pela óptica distante e fria da autoridade moral lidando com as pequenas mazelas dos seres inferiores. A transfusão de emoções do autor para a personagem não é abundante, mas dosada pelas medidas restritas que o próprio viés ideológico determina. É o bastante para que ocorra o aptum do discurso. A paixão vigorosa de Eça, patente em todo O Primo Basílio, é de outra espécie: trata-se da paixão pela retórica, pela plasticidade e sonoridade da palavra, pelo brilhantismo da frase, pela linguagem encantatória

que

encobre

a

pouca

imaginação

temática

e

caracteriológica. Essa preocupação com a estética sobrepõe-se à apreensão do humano. Ela não é extraída de suas emoções, mas da observação direta de determinado tipo de criatura que não intriga e não possui o mistério feminino que Capitu, por exemplo, tem de sobra. Luísa é clara em seus motivos, em sua maneira de agir, em seu instinto. Essa pequena Ema Bovary, ao ser transposta para a realidade lisboeta, é aplainada em uma única faceta e torna-se monossignificativa; conserva-se, assim, viva e pitoresca. Reflexo da paixão pela retórica, encontra vigor na saborosa linguagem que a erige em literatura. A vantagem da personagem-tipo é ser facilmente lembrada pelo leitor e manter-se inalterada em sua memória, já que não se transforma com as circunstâncias. Por isso, Luísa serve aos propósitos didáticos que estão na raiz de sua criação: ela é exemplar como crítica personificada da futilidade e do adultério. Mas que espécie de realismo é esse, que aprisiona o ser fictício a uma fórmula prototípica e apriorística? Trata-se de um realismo relativo, embora Eça seja o único dentre os quatro escritores aqui

referidos que assumiu a filiação ao movimento Realista (ou talvez por isso mesmo). Ao desenfocar Luísa para enfatizar o gesto de desaprovação por detrás dela, ao buscar persuadir o leitor, não da sua veracidade humana, mas da moral que através dela se prega, demonstra uma paixão deformadora que, como espelho convexo, encolhe sua humanidade e devolve uma imagem contaminada pelo apego à causa social. Ao configurar a protagonista dO Primo Basílio, o olhar de Eça não está concentrado nela, mas desviado para uma ideologia que acaba por revelar-se romântica em sua utopia de reforma e para a linguagem que excita a percepção do leitor e o aproxima da realidade no que ela tem de epidérmico e sensorial. Em contraste com Luísa, Juliana é, em vários aspectos, uma personagem mais bem-sucedida. Ao criá-la, Eça não tem tanto em mente a opressão de sua classe, mas as fortes paixões que a agitam: ódio, inveja, ambição, vaidade reprimida. Por isso, embora ela tenha sido criada com a intenção da funcionalidade e seja secundária na economia da obra, acaba tornando-se mais autônoma que a protagonista e tem mais substância humana. Até algumas de suas características físicas chegam a tornar-se mais simbólicas que as de Luísa, com quem é confrontada: se o pé desta, por exemplo, representa nada mais que a graça libertina, o daquela condensa toda a projeção de sua expectativa amorosa e constitui o espelho narcísico em que o feio se vê belo. Considerar a realidade da ótica da ortodoxia doutrinária é viciar seu recorte, limitar a escolha da realidade a ser representada a fim de que ela justifique a ideologia pregada. Colocar ênfase no estilo é chamar a atenção para a maneira como as coisas são ditas em detrimento das próprias coisas que assim são ditas.

Sujeitar a

representação de uma personagem a uma ideia central é submeter o nocional ao funcional, é paralisá-la, o que de certa maneira constitui um movimento contrário à realidade, que está em constante movimento. Se nO Primo Basílio há realismo, ele consiste na representação figurativa das superfícies, no alto grau de probabilidade das situações, na vivacidade dos diálogos, na coerência entre o ideário e a história narrada.

O

realismo

de

Eça

não

é

aquele

que

capta

a

imprevisibilidade e variabilidade do real em seu moto contínuo, mas que o torna estático para poder analisá-lo. Nesse contexto, as paixões que movem os seres são apresentadas principalmente em suas manifestações exteriores. Acabam, porém, tornando-se atraentes e pitorescas sob um tratamento que, embora careça de imaginação quando se trata de conceber caracteres, é imaginativo, e muito, na elaboração verbal. O realismo, em O Primo Basílio, é principalmente, o realismo da linguagem: consiste ele em obter, através de complexo trabalho retórico, tal vitalidade, tal sensualidade e tal efeito de simplicidade no discurso, que o "real" assim "imitado" torna-se transparente, atraente e acessível. Ler esta obra hoje é ter acesso não apenas a um quadro da pequena burguesia lisboeta do século XIX, mas também à paixão ortodoxa de um artista pela causa defendida e, sobretudo, às transformações por que estavam passando os modos de expressão literária na busca de comunicação com um público maior, num momento em que a literatura buscava profissionalizar-se.

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