EATWOT–Pelos Muitos Caminhos de Deus V. Por uma Teologia Planetária.

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POR UMA TEOLOGIA PLANETÁRIA

José María Vigil (organizador) Michael AMALADOSS • Marcelo BARROS • Agenor BRIGHENTI • Edmund Kee-Fook CHIA • Amín EGEA • Paul F. KNITTER • David R. LOY • Laurenti MAGESA • Jacob NEUSNER • Teresa OKURE • Irían A. OMAR • Raimon PANIKKAR • Peter C. PHAN • Aloysius PIERIS • Richard RENSHAW • José Amando ROBLES • K. L. SESHAGIRI RAO • Afonso Maria Ligorio SOARES • Faustino TEIXEIRA • José María VIGIL A ssociação E cumênica

de

T eólogos/as

do

T erceiro M undo

POR UMA TEOLOGIA PLANETÁRIA

ASETT EATWOT

aulinas

Dados Internacionais de C atalogação n a Publicação (C IP) (C âm ara B rasileira do L ivro, SP, B rasil)

Sumário

Por uma teologia planetária / José Maria Vigil, (organizador) ; [tradução Cacilda R. Ferrante, Gilmar Saint’Clair Ribeiro e Vera Joscelyne].-São Paulo : Paulinas, 2011. Título original: Por los muchos caminos de Dios V : hacia una teología planetaria. Vários autores. ISBN 978-85-356-2870-8 1. Cristianismo e outras religiões José María.

2. Pluralismo religioso

3. Teologia

I. Vigil,

C onvite: C aminhando rumo a

11-09066

CDD-261.2

9

Os coautores

índice p a ra catálogo sistemático: 1. Teologia planetária: Pluralismo religioso

uma teologia planetária,

A B ER TA E L IV R E ..............................................................................................................................................

261.2

A presentação............................................................................................... 11 Título original da obra: Por los muchos caminos de Dios V -H acia una teologia planetaria © ASETT-LA (ASSOCIAÇÃO ECUMÊNICA DE TEÓLOGOS/AS DO TERCEIRO MUNDO - REGIÃO AMÉRICA LATINA) Direção-geral: Conselho editorial:

Editores responsáveis: Tradução: Copidesque: Coordenação de revisão: Revisão: Assistente de arte: Gerente de produção: Capa e diagramação:

Bernadete Boff Dr. Afonso M. L. Soares Dr. Antonio Francisco Lelo Ms. Luzia M. de Oliveira Sena Dra. María Alexandre de Oliveira Dr. Matthias Grenzer Dra. Vera Ivanise Bombonatto Vera Ivanise Bombonatto Afonso M. L. Soares Cacilda R. Ferrante, Gilmar Saint’Clair Ribeiro, Vera Joscelyne Cirano Dias Pelin Marina Mendonça Equipe Paulinas Sandra Braga Felício Calegaro Neto Manuel Rebelato Miramontes

José Maria Vigil A

consulta ....................................................................................................17

P onto de partida: R umo a uma teologia pluralista, inter- religiosa , laica , planetária ... O futuro da teologia COMO PONTO de partida de nossa pesquisa ............................................21

Comissão Teológica Internacional ASETT/EATWOT

As R E S P O S T A S .............................................................................................................................................. 45 Ser

um

c r is tã o - h in d u ............................................................................... 47

Michael Amaladoss A

frágil transparência do A bsoluto.

T eologia

para uma

espiritualidade transreligiosa............................................................... 55

Marcelo Barros Ia edição-2 0 1 1

T eologia

e pluralismo religioso.

Q uestões

metodológicas.......... 81

Agenor Brighenti Nenhuma parte desta obra poderá ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma e/ou quaisquer meios (eletrônico ou mecânico, incluindo fotocópia e gravação) ou arquivada em qualquer sistema ou banco de dados sem permissão escrita da Editora. Direitos reservados.

A SETT/EA TW O T

Paulinas

Associação Ecumênica de Teólogos/as do Terceiro Mundo Apartado 0823-03151 Panamá - República do Panamá http://www.eatwot.org/TheologicalCommission

Rua Dona Inácia Uchoa, 62 04110-020 - São Paulo - SP (Brasil) Tel.: (11)2125-3500 http://www.paulinas.org.br - [email protected] Telemarketing e SAC: 0800-7010081 © Pia Sociedade Filhas de São Paulo - São Paulo, 2011

A

teologia interconfessional é possível? ...........................................93

Edmund Kee-Fook Chia C ontribuição B ahá ’í para uma

teologia

“ transreligiosa” ......... 101

Amín Egea B ases

para uma teologia pluralista multiconfessional............... 111

Paul F. Knitter

R eflexões

budistas sobre a teologia interconfessional.............. 121

David R. Loy T eología

M arcos

de uma mística ínter- religiosa ............................................. 253

Faustino Teixeira

interconfessional: a contribuição nativa africana

para o debate.............................................................................................. 129

O SEDUTOR futuro DA TEOLOGIA............................................................ 267 José María Vigil

Laurenti Magesa C onclusão “R eligiões em geral?” É plausível uma teologia INTERCONFESSIONAL NA UNIVERSIDADE?................................................... 139

Jacob Neusner

A TEOLOGIA INTERCONFESSIONAL É POSSÍVEL? Se NÃO, POR QUÉ?....... 149 Teresa Okure T eología interconfessional mundial do pluralismo religioso: UMA PERSPECTIVA MUÇULMANA..................................................................163

Irfan A. Omar T eologia

da libertação e libertação da teología .......................... 173

Raimon Panikkar C ristologia

interconfessional: possibilidade ou aspiração?

.....181

Peter C. Phan F idelidade e imparcialidade na comunidade interconfessional: RUMO A UMA TEOLOGIA DE PLURALISMO RELIGIOSO.................................191

Aloysius Pieris A EXPERIÊNCIA RELIGIOSA COMO FUNDAMENTO PARA UMA POSSÍVEL TEOLOGIA INTERCONFESSIONAL.................................................................. 201

Richard Renshaw R umo a uma teología pós- confessional e pós- religiosa. E xperiência religiosa, símbolo e teología pós- religiosa ............. 215

José Amando Robles T eología

interconfessional: uma perspectiva hindu......................225

K. L. Seshagiri Rao O

SINCRETISMO À luz

de uma teología interconfessional:

algumas notas preliminares ................................................................. 239

Afonso Maria Ligorio Soares

aberta....................................................................................279

José María Vigil, Luiza E. Tomita e Marcelo Barros

Os coautores............................................................................................ 285

Convite: Caminhando rumo a uma teologia planetária, aberta e livre Este livro está escrito para todos aqueles que estão inquietos sobre o futuro da teologia: Para onde vai? Para onde pode ir? Para onde parece que irá? O resultado da pesquisa que este livro apresenta, dirigida a pessoas dedicadas à teologia em todo o mundo e nas diferentes religiões mundiais, faz um balanço não só positivo, mas entu­ siasmante: em que pese o que muitos acreditam, a teologia se move, está evoluindo, se arrisca, se autoquestiona, se pergunta sobre as transformações que tem de realizar para ser teologia de hoje, e teologia do futuro. Como disciplina religiosa que é, sempre esteve tingida por uma auréola de eternidade, de indiscutibilidade, de imutabili­ dade. Parecia que a teologia - ciência sagrada! - não poderia mudar de sua figura clássica como patrimônio das religiões e das Igrejas. Mas isso acabou. Faz décadas que alguns pioneiros fizeram a proposta de uma world theology, uma teologia mun­ dial - hoje diríamos uma “teologia planetária”, para incluir não apenas o mundo humano mas também o mundo cósmico, a Gaia. Era a proposta de avançar rumo a uma teologia que saísse do gueto de sua própria confissão religiosa, para ser capaz de falar a toda a sociedade, esta sociedade atual que cada vez é mais

C onvite : C aminhando rum o a um a teologia planetaria , aberta e livre

religiosamente plural. Neste mundo atual, a teologia estritamente monoconfessional está condenada a não ser ouvida, talvez até a não ser sequer entendida pela sociedade como conjunto. Perguntamos a estes(as) teólogos(as), e suas respostas nos deixam apresentar um atraente panorama: a teologia do futuro parece se encaminhar rumo a um modelo pluralista (sem o com­ plexo clássico de superioridade religiosa e sem a exclusividade da verdade que acompanhou tradicionalmente a teologia), rumo a uma teologia pluriconfessional, que poderíamos chamar tam­ bém inter-religiosa, ou multirreligiosa, ou (sempre que se matize bem a palavra) transreligiosa. Há os que falam também de uma teologia pós-religional (religiosa, porém além das religiões, em um plano mais profundo), laica nesse sentido, e com uma cons­ ciência planetária nesta nova sociedade do conhecimento que de alguma maneira está se fazendo presente pouco a pouco em todo o planeta, até mesmo nos lugares onde acreditam não notá-lo. Esses profissionais da teologia nos oferecem algumas páginas apaixonantes, dignas de serem estudadas e meditadas, com seus argumentos positivos e negativos, para um bom discernimento. Esperamos que a conclusão de leitores e leitoras seja, como a nossa, a de que correm bons tempos para a teologia, tempos de efervescência, de mutação, de novas propostas, de experiências arriscadas, de futuro aberto. Caminhamos a bom passo, não sem dificuldades, rumo a uma teologia aberta e livre. Acompanhe-nos para comprová-lo na leitura destas páginas. Os Coautores

Apresentação Por uma teologia planetária é o quinto e último volume do projeto “Pelos muitos caminhos de Deus”. Esta série de livros foi fruto de uma iniciativa a princípio organizada pela Comissão Teológica Latino-Americana da ASETT/EATWOT e assumida e completada neste último volume pela sua Comissão Teológica Internacional. A intenção que moveu desde o início este trabalho coletivo foi a de tentar “cruzar a teologia da libertação com a teologia do pluralismo religioso”, teologías que, quando come­ çamos este projeto de pesquisa, permaneciam cada uma em seu âmbito, sem contato nem diálogo. Hoje, ao concluir o projeto, vários anos depois, podemos dizer que a teologia da libertação e a teologia do pluralismo religioso não são duas desconhecidas, e sim que já existe muita reflexão pela frente que testemunha seu fecundo diálogo. Mas o objetivo de mútuo encontro e de diálogo entre essas duas teologías superou as expectativas que abrigávamos no tocante ao itinerário a percorrer. Depois de nos perguntarmos pelos “desafios do pluralismo religioso à teologia da libertação” (primeiro volume), e de dar a seguir os primeiros passos “rumo a uma teologia cristã e latino-americana do pluralismo religioso” (segundo), tivemos a ousadia de nos propormos e elaborar já um primeiro esboço daquilo que seria uma “teologia latino-ame­ ricana pluralista da libertação”, no terceiro volume. No quarto volume abrimos nossas janelas ao mundo para ampliar nosso projeto aos cinco continentes, à busca de uma “teologia cristã libertadora intercontinental do pluralismo religioso”. Havíamos chegado a uma meta de certa maneira insuperável, além da qual

José Maria Viqll

A presentação

não seria possível encontrar uma forma viável de “teologia”? Assim nos sugeriam muitos, afirmando que a teologia só pode se dar no interior de uma confissão religiosa concreta... Seria possível ampliar mais as perspectivas? A dinâmica que havia inspirado todo esse processo gradual de busca acenava para uma última meta, pelo que, ao menos, haveria de se perguntar, a saber, a de uma teologia que já não fosse monorreligiosa e confessional, e sim multirreligiosa, interfaith, talvez nem sequer religional, ou seja, nem sequer vinculada ou limitada ao marco das religiões, mas aberta às perguntas mera e simplesmente humanas, e abarcando não só o antropocentricamente humano como o integralmente biocêntrico e cósmico, planetário... Definitivamente, a pergunta última que ficava por enfrentar e responder era: para onde está, talvez, caminhando a teologia que se propõe sincera e corajosamente as exigências da evolução radical desta sociedade não só plural e pluralista, mas também unida e em vias de unificação cada vez maior entre si e com a natureza e com o cosmos? Qual seria o último estrato ou nível da teologia a que hoje nos é permitido sonhar, embora certamente não nos seja permitido ainda ter acesso? Com esse objetivo em mente, pusemos em marcha o processo de consulta e seu resultado é este volume que o leitor tem em suas mãos. Com os sonhos aos quais este livro dá expressão, coroa-se o processo de busca que a série representa. Obviamen­ te, como o leitor notará em seguida, o panorama resultante não oferece um roteiro concreto e delimitado do que seja ou será essa “teologia planetária” que se deixa intuir... O panorama é, antes, o de uma intuição brumosa que se adivinha entre as muitas formas de ver diversas, e em evolução constante. Será preciso dar tempo ao tempo, para que o horizonte vá se esclarecendo, mas, em todo caso, acreditamos que a busca que este volume

representa significa a atualização desse debate, já clássico na ágora teológica, e constituirá uma contribuição positiva a esta já longa tarefa de ajudar a teologia a dar respostas o mais acer­ tadas possível à nova e sempre cambiante situação de nosso mundo atual. Embora a busca que representa este quinto volume esteja precedida pela dos anteriores, o volume é, como tal, inteiramente autônomo e suscetível de ser lido independentemente, com pleno sentido, sem necessitar da leitura dos volumes anteriores. Não obstante, para concluir esta apresentação, fazemos memória sucinta dos livros da série, tanto para facilitar sua visão geral para quem não os conhece como para fazer presente o panorama completo que emoldura este volume: 1. O primeiro livro, publicado em 2003, se subintitulou “Desafios do pluralismo religioso à teologia da libertação”.1Só pretendia desbastar esse novo caminho indicando os principais desafios que deveriam ser encarados. Em português, foi publi­ cado pela editora Rede.1 23A Editrice Missionária Italiana (EMI), de Bolonha, o publicou sob o título de I volti del Dio liberatore? 2 .0 segundo livro, publicado em 2004, se subintitula “Rumo a uma teologia cristã latino-americana do pluralismo religioso” e pretendeu dar algumas “primeiras respostas” àqueles desafios.4 Sua publicação é sempre dupla, em espanhol, no Equador, e 1

2 3

4

ASETT. Por los muchos caminos de Dios. Desafios delpluralismo religioso a la teología de la liberación. Quito: Verbo Divino, 2 0 0 3 .1 87p. (Colección “Tiempo Axial”, n. 1.) ASETT. Pelos muitos caminhos de Deus. Desafios do pluralismo religioso à teologia da libertação. Goiás: Rede, 2003. 160p. BARROS, M.; TOMITA, L. E.; VIGIL, J. M. (a cura). I volti del Dio liberatore. Le sfide del pluralismo religioso. Bologna: Editrice Missionaria Italiana, 2004. 160p. Veja: . VIGIL, J. M .; TOMITA, L. E.; BARROS, M. (orgs.). Por los muchos caminos de

Dios. Hacia una teología cristiana y latinoamericana del pluralismo religioso. Quito: Abya Yala, 2004. 239p. (Colección “Tiempo Axial”, n. 3.)

A presentação

em português, no Brasil.5 Apareceu também em italiano, pela mesma editora de Bolonha,6com um amplo “epílogo” do teólogo Cario Molari,7 que, desse modo, deu início a um diálogo a um só tempo crítico e acolhedor dos teólogos europeus com os(as) teólogos(as) latino-americanos(as). 3. O terceiro livro, concluído em 2005, pretendeu ser uma primeira tentativa de uma inicial “Teologia latino-americana pluralista da libertação”.8Também foi publicado em português, no Brasil,9e está em processo de publicação em italiano,101com uma participação de Maurilio Guaseo, continuando o já iniciado diálogo italiano com a teologia do Terceiro Mundo. 4. O quarto livro apareceu em 2006 e pretende avaliar que momento atravessa no mundo a construção da “teologia plu­ ralista da libertação”, a partir de um âmbito intercontinental, portanto já não só latino-americano.11 Também foi publicado no Brasil.12 5. Como dissemos, na gradação de níveis em que a série foi concebida este último livro coroa a série, tratando da questão de 5

TOMITA, L. E.; BARROS, M.; VIGIL, J. M. Pluralismo e libertação. Por uma teologia latino-americana pluralista a partir da f é cristã. São Paulo: Loyola,

2005. 23 lp. BARROS, M.; TOMITA, L. E.; VIGIL, J. M. (a cura). Verso una teologia dei pluralismo religioso. Postfazione di Cario Molari. Bologna: Editrice Missionária Italiana, 2005. 270p. 7 Ibidem, pp. 239-267. 3 VIGIL, J. M.; TOMITA, L. E.; BARROS, M. Por los muchos caminos de Dios. Teología latinoamericana pluralista de la liberación. Quito: Abya Yala, 2006. 207p. (Colección “Tiempo Axial”, n. 6.) 9 TOMITA, L. E.; BARROS, M.; VIGIL, J. M. (orgs.). Teologia latino-americana pluralista da libertação. São Paulo: Paulinas, 2006. 309p. 10 Pela Pazzini Editore, de Rimini, Itália. 11 VIGIL, J. M.; TOMITA, L. E.; BARROS, M. Por los muchos caminos de Dios. Teologia liberadora intercontinental del pluralismo religioso. Quito: Abya Yala, 2007. 255p. (Colección “Tiempo Axial”, n. 8.) 12 VIGIL, J. M.; TOMITA, L. E.; BARROS, M. Teologia pluralista libertadora intercontinental. São Paulo: Paulinas, 2007. 390p. 6

losé María Viqil

uma possível “teologia multirreligiosa e pluralista da libertação”, a partir de urna perspectiva obviamente mundial. Por “multir­ religiosa” queremos entender algo mais que “inter-religiosa”, algo mais também que uma teologia dirigida à preocupação do “diálogo inter-religioso”. Ao fim e ao cabo, o diálogo não pode ser mais que um meio, que apontará para um fim ulterior. Como será a teologia quando o diálogo inter-religioso tiver alcançado seu fim, embora não alcance seu final? Alguns a chamam teologia interfaith, world theology, teologia mundial, multirreligiosa, global, planetária... A esse sonho e à sua pro­ blemática está dedicado este quinto livro. Obviamente, de um modo também multirreligioso. Quanto à sua publicação em papel e em espanhol, esta série “Por los muchos caminos de Dios” foi publicada dentro da coleção teológica “Tiempo Axial”, pela Editora Abya Yala, em Quito, Equador, e tem sua página na rede: . Como dissemos em outras ocasiões, a gradação do iti­ nerário seguido pela série dos cinco livros salta à vista, quase graficamente, em seus cinco níveis: • o primeiro livro se limita a apontar os desafios; os quatro seguintes tratam de construir positivamente uma teologia nova; • os dois primeiros estão à busca do “paradigma pluralista”, enquanto os três últimos já o assumem conscientemente. • os três primeiros são “latino-americanos” e fazem teologia latino-americana; os dois últimos superam esse âmbito geocultural situando-se em uma perspectiva intercontinental e mundial. • os quatro primeiros são de teologia “cristã”, enquanto o quinto já é teologia “multirreligiosa”;

A presentação

• os cinco livros são teologia da libertação a partir de uma perspectiva pluralista, cruzando, pois, a teologia da libertação com a teologia do pluralismo religioso, objetivo da série “Por los muchos caminos de Dios”. Não podemos terminar sem expressar nosso agradecimento muito sincero a todos(as) os(as) autores(as), que, aceitando o desafio, tornaram possível esta obra coletiva, e renunciaram aos seus direitos autorais para fazer este livro o mais acessível possível ao público. Queremos agradecer uma vez mais ao Missionswissenschaftliches Instituí, de Aachen, por seu apoio na realização da edição deste volume. E, sem dúvida, a Paulinas Editora, do Brasil, que, mais uma vez, generosamente abre um importante espaço em sua programação para colaborar com a ampliação do debate aqui proposto. E agradecemos, finalmente, aos leitores, aos interlocutores, também a nossos críticos..., sua compreensão, suas críticas e sugestões para continuarmos avançando na construção dessa teologia nova, planetária, que se elabora “pelos muitos caminhos de Deus” e que, esperamos, a cada dia seja mais conhecida e reconhecida. A própria realização de um livro como este supõe o exercício concreto do diálogo como caminho espiritual e humano, que, esperamos, possa ser um dia a prática cotidiana de todas as religiões da humanidade. José María VIGIL Comissão Teológica Internacional (2006-2011) da Associação de Teólogos(as) do Terceiro Mundo (ASETT)/ Ecumenical Association o f Third World Theologians (EATWOT).

A consulta A pesquisa que veicula este livro foi elaborada mediante uma consulta dirigida a uma seleção de teólogas(os) de diferentes religiões, de todo o mundo, por meio das quatro Comissões Teológicas continentais da EATWOT (asiática, africana, latino-americana e a representante das minorias dos Estados Unidos). A consulta foi realizada nestes termos: Nos livros anteriores desta série foi estudada a longa ca­ minhada do Cristianismo e da teologia, desde os estágios ar­ caicos do exclusivismo, passando pelo atualmente hegemônico inclusivismo, caminhando para um “pluralismo de princípio” e rumo a uma releitura pluralista do Cristianismo. Suposta esta opção básica por uma teologia sinceramente pluralista por princípio, a pergunta que nos propomos - específicamente sobre a teologia - é a seguinte: Existe na evolução prevista da teologia algum estágio além da “teologia confessional pluralista”? E suficiente a chamada “teologia comparativa", aquela na qual um(a) teólogo(a), enraizado(a) em sua própria tradição, desenvolve uma teologia do pluralismo em diálogo com outras tradições religiosas? É possível pensar em uma teologia pluralista que se baseie em, e trabalhe com, categorias, fontes, princípios, imagens e metáforas não só de uma religião, mas de várias? E possível uma teologia não monoconfessional, mas aberta epluriconfessional, além de pluralista?

A CONSULTA

Que papel teriam nela os pobres, a regra de ouro e a opção pelos pobres? Finalmente, se o mais importante no mundo de boje é urna ação urgente diante:

José Maria Viqil

negativamente. O variado leque de respostas coligidas dá testemunho disso. Obviamente, este volume recolhe todas as respostas que nos chegaram, sem nenhum filtro.

• da pobreza e da injustiça que sofre meia humanidade, • dos choques de civilizações e dosfundamentalismos religio­ sos que impedem a paz, • da ameaça iminente de uma catástrofe ecológica planetária, como teria de ser a teologia de que hoje o mundo necessita para conseguir que as religiões se decidam por primeira vez na historia a unir-se para trabalhar pela salvação da humanidade e da natureza? A consulta foi resumida em algumas perguntas concisas: • É possível uma “teologia inter-religiosa, multirreligiosa”, planetária, world theology.,.1 • Há elementos concretos, temas e sugestões para desenvolver uma teologia interfaithl • Qual a relação entre a teologia interfaith, a universal “regra de ouro” e a opção pelos pobres? • É possível uma espiritualidade interfaithl Além de pluralista, ela será laica e pós-religional? O processo de envio e recepção de respostas foi mais traba­ lhoso e demorado do que o previsto. Não poucas das pessoas consultadas estiveram à vontade com as perguntas: algumas as consideraram inusuais e desconcertantes; outras as rejeitaram, como improcedentes. Com outras foi preciso entabular um diálogo de esclarecimento. É claro que houve quem as tenha considerado pertinentes, tanto para responder positiva como ■RI

Ponto de partida: Rumo a uma teologia pluralista, inter-religiosa, laica, planetária... O futuro da teologia como ponto de partida de nossa pesquisa O itinerário histórico-teológico que os precedentes volu­ mes da série “Por los muchos caminos de Dios” nos fizeram percorrer pôs diante de nossos olhos, por um lado, a profunda evolução que a teologia experimentou nos últimos tempos ao ritmo de seu encontro com as outras religiões e, por outro lado, nos faz suspeitar que essa evolução não se concluiu, mas que, antes, novas eprofundas transformações esperam a teologia no futuro. É a própria evolução das sociedades e da humanidade global que está impulsionando essa transformação incessante da teologia. É essa visão e essa intuição que inspiraram e guiaram a pesquisa que este quinto volume recolhe. Nós a expomos de um modo “histórico-genético”, sabendo que não pretende defender nenhuma tese, mas apenasfazer presente o contexto a partir do qual realizamos essa pesquisa, e criar um marco que permita deixar voar livremente a imaginação criadora.

Comissão Teológica Internacional ASETVEATWOT

P onto de partida

As palavras em negrito ao longo deste texto indicam os mar­ cos principais da evolução que está experimentando a teologia.

Tradicionalmente, em princípio, as teologias experimentaram a mesma evolução que as religiões às quais pertencem: quando essas religiões eram exclusivistas e pensavam que “extra me nulla salus”, que fora delas não havia salvação, também as teolo­ gias se sentiram exclusivistas e pensaram que fora de cada uma delas não havia outra teologia verdadeira, nem sequer verdadeira teologia. Nessa etapa exclusivista, a teologia de cada religião era um mundo fechado, circunscrito à própria religião, embora cada teologia pensasse que fosse - isso sim - uma teologia universal, e única (dotada de unicidade salvífica). Paradoxal­ mente, as teologias exclusivistas mais fechadas se sentiam e se pensavam a si mesmas com a maior universalidade imaginável: elas e só elas eram “a única teologia verdadeira neste mundo”. A comunicação e o diálogo entre teologias era, naquela etapa, verdadeiramente impensável. Há algumas décadas, pouco a pouco, as perspectivas e atitu­ des exclusivistas deram lugar, em todas as latitudes do mundo, a outras de cunho inclusivista, tanto nas religiões como em suas teologias. As teologias passavam a considerar a existência de outras teologias, embora as olhassem a partir de uma perspectiva de “superioridade includente”. O inclusivismo traz dentro de si uma boa dose de exclusivismo, ainda que atemperado. Por isso, um verdadeiro diálogo, com essas outras teologias, continuava sendo quase impossível, já que não podia haver “paridade” entre os interlocutores que o fizesse possível. Também no âmbito do inclusivismo, cada teologia segue exclusivamente o caminho de sua própria religião. BI

O passado século XX foi o século do ecumenismo cristão. A Conferência de Edimburgo de 1910 marcou o início de uma verdadeira eclosão neste campo.1Embora se tratasse de um fe­ nômeno intracristão, portanto não propriamente inter-religioso, oferece lições muito interessantes para o âmbito inter-religioso. O ecumenismo cristão não só melhorou as relações entre as Igre­ jas cristãs, mas permitiu o surgimento de uma espiritualidade e de uma teologia ecumênicas, comuns, já não privativas de uma determinada confissão. Sem perder a adscrição à sua própria confissão, teólogos e teólogas chegavam a compartilhar e a viver uma espiritualidade verdadeira e sinceramente ecumênica, e chegaram a produzir em muitos casos teologia verdadeiramen­ te interconfessional, realmente ecumênica, sem sinais de uma confessionalidade exclusiva, uma teologia que estava dirigida a um público cristão que incluía as diferentes confissões. Diante dessa experiência do ecumenismo, devemos nos fazer uma pergunta provocativa: não poderia dar-se algo semelhante, paralelamente, no âmbito inter-religioso? Podemos imaginar um suposto “ecumenismo inter-religioso” que chegasse a fazer possível o surgimento de uma “teologia inter-religiosa”, ver­ dadeiramente tal, sem limites de confessionalidade religiosa, dirigida a todas as pessoas religiosas em conjunto? Antes de responder, vejamos que a evolução da teologia tinha diante de si um longo caminho. Como um passo ulterior, e muito diferente do ecumenismo intracristão, deve-se destacar o que se chamou de macroecumenismo, característico da teologia latino-americana da1*

1

LATOURETTE, Kenneth. Ecumenical Bearing o f the Missionary Movement and the International Missionary Council. In: ROUSE, Ruth; NEILL, Stephen (orgs.). A History o f the Ecumenical Movement. Genève: World Council o f the Churches, 1986.

P onto de partida

Comissão Teológica Internacional ASETT/EATWOT

libertação.2Não era um simplesmente intracristão, mas abrangia também outras religiões, e até, de modo mais chamativo, incluía o ateísmo militante e comprometido. Muitos textos e livros de teologia da libertação - macroecumênica por natureza - foram não só “ecumênicos” (transversalmente comuns às diferentes confissões e denominações cristãs), mas “macroecumênicos”, isto é, dirigidos a um público no qual cabiam pessoas que de fato não eram cristãs, mas de alguma outra religião, ou até mesmo pessoas positivamente “ateias”, que compartilhavam a paixão por uma Utopia libertadora e humanizadora, sobre cujo nome e natureza nem elas nem nós sentíamos necessidade de discutir. Essa Utopia mobilizava recursos espirituais capazes de unir as pessoas em uma esperança comum, com um discurso, a “teologia macroecumênica”, que não só não separava, mas que possibilitava uma união muito poderosa. Também aqui uma pergunta: não chegará a dar-se algo se­ melhante na teologia mundial, quando as condições de infraestruturas e espirituais da sociedade tornem possível um discurso religioso que se responsabilize pela unidade de destino e de esperança que une toda a humanidade e as suas religiões? Não chegará a haver algum dia uma teologia “macroecumênica, mas a um nível inter-religioso”? A teologia da libertação do século passado foi espontanea­ mente inclusivista. Nas décadas em que nasceu não era pensável outra coisa, pois não havia sido sequer tematizada a perspectiva pluralista na área geográfica onde nasceu a teologia da liberta­ ção naqueles anos 1960-1980. Esta tematização, e a elaboração inicial da teologia pluralista do pluralismo religioso, se fez por 2

CASALDÁLIGA, Pedro; VIGIL, José María. Espiritualidad de la liberación. Managua; Editora Envio, 1992. capitulo “Macroecumenismo”, p. 218. The Spirituality o f Liberation. London: Bums & Oates, 1994. chapter “Macro-Ecumenism”, p. 165. Id., Political Holiness. Maryknoll: Orbis, 1994.

m

aqueles mesmos anos na área anglo-saxã e asiática. Nos últi­ mos anos do século XX se deu o encontro entre alguns(mas) teólogos(as) latino-americanos(as) com a teologia anglo-saxã do pluralismo religioso. E só a partir de 2000 - até onde sabemos - uma entidade como a EATWOT assumiu, em sua Assembléia Geral, realizada precisamente na América Latina, provocar um encontro e uma mútua fecundação da teologia da libertação com a teologia do pluralismo religioso. Como provavelmente o leitor conhecerá, tal projeto cristalizou na série “Por los mu­ chos caminos de Dios”,3 em uma ordem gradual progressiva, de encontro, diálogo, união e fecundidade, cujo último volume é este que o leitor está lendo. O primeiro processo de encontro e de união deu logo lugar à teologia da libertação pluralista,4 ou teologia do pluralismo libertadora, urna forma de fazer teologia que se instala na pers­ pectiva pluralista, por um lado, e, por outro lado, está enraizada também no “lugar social” da opção pelos pobres, não só em ámbito latino-americano, mas intercontinental, mundial. Especialmente nesse âmbito mundial, a convivência religiosa é religiosamente plural. A sociedade mundial, os países - até mesmo aqueles tradicionalmente monorreligiosos - , as socieda­ des, as cidades, os bairros, os blocos de moradias... se fizeram decididamente multirreligiosos. Não é possível querer dirigir-se à sociedade atual e pretender fazê-lo a partir de urna perspectiva monoconfessional. Já não é possível entabular um debate de qualquer tipo com a opinião pública da sociedade como conjunto e pretender fazê-lo a partir das referências exclusivas de urna religião ou confissão. Um tal discurso ficaria simplesmente fora de contexto histórico, deslocado, por desconhecimento da

3 4

Publicados por Abya Yala, Quito, a partir de 2003. Assim o testemunham os volumes II e III da coleção.

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PomoDE PARTIDA

configuração inevitavelmente plural da sociedade atual. Igual­ mente, uma teologia que queira dirigir sua palavra à sociedade, ao mundo, à humanidade, já não pode fazê-lo se limitando e utilizando apenas as referências provincianas de sua própria con­ fissão, levando em consideração somente sua visão confessional, utilizando somente as referências ao seu próprio patrimônio simbólico... Expõe-se não só a não ser atendida, mas a não ser sequer entendida. A sociedade é plural, e a consciência social, e a opinião pública - e até, diríamos, o “subconsciente coletivo social” - introjetaram tanto o fato inevitável da pluralidade como os direitos e obrigações do pluralismo. Quem quiser se colocar fora desse reconhecimento se automarginaliza, não será atendido, e provavelmente também não será entendido. Já o dizia faz alguns anos Paul Knitter: Hoje os teólogos têm de reconhecer, teórica e praticamen­ te, que a teologia já não pode ser estudada nem elaborada a partir de dentro de uma única tradição religiosa. Certa­ mente, os teólogos têm de estar enraizados na fé de uma religião, mas, se permanecem só dentro dela, não estarão à altura daquilo que seu trabalho exige deles. Não estarão fazendo teologia no mundo, neste mundo pluralista de hoje; não estarão perseguindo a verdade que inclui, mas a que exclui a outros. Hoje, não se pode estar em busca da verdade, não pode sequer conhecer-se a si mesmo nem conhecer sua própria religião, a menos que conheça a de outros.5

pronunciou uma conferência na qual - o testemunho é de Mircea Elíade - “declarou que, se tivesse tido tempo, teria escrito uma nova Teologia sistemática orientada para toda a história das religiões e em diálogo com ela”.6 É sabido que a experiência e o contato com o pluralismo religioso transformam a própria vivência religiosa e levam a um novo modo de compreender o panorama religioso, e, consequentemente, à necessidade de re­ escrever a teologia, como confessou Tillich. Hoje está claro para nós que uma teologia que elabore seu discurso a partir de umas categorias estritamente confessionais, de seu próprio domínio doméstico, desconhecendo a pluralidade e as regras e direitos do pluralismo, será uma teologia de outro tempo, que não estará à altura das condições reais das sociedades do mundo atual. A partir dessa consciência de multirreligiosidade, logo se le­ vantou a possibilidade de uma teologia universal das religiões, que deveria transcender e integrar ao mesmo tempo a identi­ dade de cada religião. Seria uma teologia mundial, adequada a toda a humanidade e sem vinculação especifica a nenhuma comunidade religiosa particular, mas uma teologia que receberia contribuições de todas as tradições religiosas.7 Não podemos deixar de citar aqui Wilfred Cantwell Smith, um dos teólogos que mais se destacou na defesa dessa linha de evolução rumo a uma “teologia mundial” ou world theology:8*

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O havia dito também Paul Tillich, poucos dias antes de sua imprevista morte. Durante dois anos, com Mircea Elíade, estivera dirigindo um seminário sobre história das religiões, uma temática que o afetou profundamente. Em 12 de outubro de 1965, 5

KNITTER, Paul. No Other Name? Maryknoll: Orbis, 1985. p. 224.

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ELÍADE, Mircea. Paul Tillich y la historia de las religiones, ensayo introductorio a P. Tillich. Elfuturo de las religiones. Buenos Aires: Aurora, 1976. TEIXEIRA, Faustino. Teología de las religiones. Una visión panorámica. Quito: Abya Yala, 2005. p. 14. (Colección “Tiempo axial”, n. 4.) CANTWELL SMITH, Wilfred. Towards a World Theology. Maryknoll: Orbis, 1986 (publicado anteriormente por Macmillan Press, London, 1981). Também: SWIDLER, L. Interreligious and Interideological Dialogue. In: SWIDLER, L. (ed.). Toward a Universal Theology o f Religión. N ew York: Orbis Books 1987. p. 5-50.

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Chegará logo o dia em que um teólogo que tente elaborar sua teologia sem se dar conta de que o faz como mem­ bro de uma sociedade mundial na qual outros teólogos, igualmente inteligentes, igualmente piedosos, são hindus, budistas, muçulmanos, e sem se dar conta de que seus leitores provavelmente são budistas, ou têm uma esposa muçulmana ou têm colegas de trabalho hindus, tal te­ ólogo estará desatualizado, como quem tenta elaborar seu pensamento sem conhecer o que pensou Aristóteles sobre o mundo, ou que os existencialistas suscitaram novas questões.9 Ewert Cousins concorda: A teologia cristã sistemática permaneceu enclausurada na cultura ocidental e em sua história intelectual [...]. A teologia cristã continua impermeável à maioria das religiões do mundo [...]. Esta situação deve acabar. O encontro das religiões do mundo reclama a construção de uma teologia sistemática que possa abraçar dentro de seu horizonte a experiência religiosa do conjunto da humanidade [...] É uma tarefa inédita. Nunca antes na história do Cristianismo se nos apresentou esse desafio.10 Esta tarefa de reescrever a teologia, e/ou de recriar seu con­ teúdo, não implica apenas uma novidade no objeto, mas exige também uma novidade no sujeito, isto é, faz-se mister um novo tipo de teólogo, com um novo tipo de consciência, uma cons­ ciência multidimensional, intercultural.11 9 Id., Faith o f Other Man, p. 123. 10 COUSINS, E. Raimundo Panikkar and the Christian Systematic Theology o f the Future. Cross Currenis 29(1979)145-146. Ver também: SLATER, Peter. Towards a responsive Theology o f Religions. Studies in Religión 6(1977)507-514. " “Esta nova teologia pede um novo tipo de teólogo, com um novo tipo de cons­ ciência: uma consciência intercultural multidimensional”: COUSINS, ibid.

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Na evolução atual, cada vez mais podemos dizer que vamos rumo a uma sociedade na qual já não existe uma “religião local” que exclui outras, mas que se trata de sociedades multirreligiosas, plurais, nas quais pode haver uma religião majoritária, mas não uma religião excludente. A pluralidade veio para ficar, e para ficar com todos os direitos. E a sociedade culta moderna já assumiu esses direitos. Além de sua própria confissão reli­ giosa particular, uma sociedade culta - seja na universidade, na política, nos meios de comunicação, ou na opinião pública - j á não se conforma com levar em consideração a posição de uma religião sobre os problemas, mas quer conhecer e levar em conta as distintas posições e opiniões adotadas pelas diferentes religiões a respeito desses problemas.12No âmbito da teologia isso dá lugar à chamada teologia comparada,13*que não é um sucedâneo menor do enciclopedismo nem implica sincretismo, mas uma abertura democraticamente conseqüente rumo à pluralidade religiosa da sociedade. Trata-se de uma teologia à altura da sociedade onde está, que quer levar em consideração a condição real de seu contexto social e histórico, que quer participar de modo responsável na sociedade, e para tanto reco­ nhece sinceramente o interlocutor, sem pretender que seja este interlocutor -a sociedade à qual se dirige - que deva se acomodar às peculiaridades únicas de uma teologia confessional.

12 KNITTER, ibid., p. 2ss. 13 Wilffed CANTWELL SMITH (ibid., p. 126) define assim a teologia compara­ tiva: “A comunidade à qual, como pessoas religiosas, cada um de nós estamos começando a pertencer, é agora a comunidade da humanidade. Os seres humanos fomos religiosos em uma grande quantidade de formas. A variedade da fé foi prodigiosa. A tarefa que daí decorre é precisamente a de que algum pensador que tente formular uma teologia que interprete e reflita essa nossa multiforme fé. Obviamente, ainda não é possível descrever adequadamente uma tal teologia: a teologia comparativa das religiões ainda não foi escrita. N o entanto, ela é a tarefa pendente. E eu assino embaixo”.

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Mas há mais variações neste itinerário. Embora seja algo temido por não poucas religiões, já é muito antigo o fato de que a multirreligiosidade produz não raro inter-religiosidade. Há crentes que conhecem e vivem tão a fundo a multirreligiosidade que sentem sinceramente que estão vivendo sua espiritualidade não só no seio da religião na qual nasceram e cresceram, mas no seio também da religião ou religiões que estão conhecendo de perto. Não é aqui o lugar para discernir o discutido fenômeno da dupla pertença, ou até da múltipla pertença, para distingui­ do do sempre presente fantasma do sincretismo teórico, ou do sincretismo prático da religiosidade utilitarista que, em certos estratos populares, lança mão indiscriminadamente de todos os recursos religiosos que produzam efeitos sanadores ou curativos. Estamos nos referindo antes ao fenômeno da dupla ou múltipla pertença, que explorou e documentou numerosas e muito sérias figuras dos últimos tempos,14bem como também ao fenômeno que se dá, massivamente até mesmo em zonas populacionais do mundo com presença multirreligiosa, em zonas - por exemplo - de população indígena “evangelizadas” antigamente pelo Cris­ tianismo, mas que conservam e recuperam de forma crescente as marcas de sua religião ancestral, e não sentem a necessidade de renunciar a nenhum de seus componentes religiosos herdados. Ou, também, a pertença múltipla que se vive em grandes setores asiáticos e africanos - por dar outro exemplo - onde essa dupla pertença é vivida desde sempre com a maior naturalidade. Sem chegar a ser dupla pertença, é bem conhecida a experiência da enorme influência que as religiões orientais em geral estão exercendo nas últimas décadas sobre o Ocidente cristão: são legiões os cristãos que incorporaram métodos de oração e vias 14 Os monges beneditinos Henri Le Saux e Bede Griffiths são talvez os nomes mais reconhecidos neste campo.

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de espiritualidade das religiões orientais e se sentem muito à vontade e muito “identificados” com elas, com certa experiência de dupla pertença. É conhecida a abundante literatura existente em torno da necessária uniconfessionalidade da teologia,15 como a dificul­ dade de discernir a relação interna das várias pertenças com­ partilhadas na mesma pessoa:16há, por exemplo, pessoas que se sentem budistas cristãs e outras que se sentem cristãs budistas.17 Que religião representa o substantivo e qual o adjetivo? E o que significa na realidade essa diferença? Ou talvez exista, além das várias pertenças confessionais compatibilizadas pela dupla ou múltipla pertença, outra pertença, instalada em outro nível, mais além das confissões, e que é “única”, não múltipla?18 Esse fenômeno da múltipla pertença, ou - digamos de ou­ tra maneira - o fenômeno da identidade religiosa que chega a transcender sua identidade confessional concreta e se instala além dela e se sente igualmente bem com outras pertenças 15 “Uma teologia não pode ser ao mesmo tempo cristã, muçulmana e hindu. Tem de ser uma coisa ou outra. Com outras palavras, toda teologia é “confessional”, no melhor sentido da palavra, ou não é absolutamente nada. Aqui, o atributo ‘confessional’ indica a adesão de fé da pessoa ou da comunidade que é o tema do fazer teológico”: DUPUIS, J. Rumo a uma teologia cristã do pluralismo religioso. São Paulo: Paulinas, 1999. p. 19. Gesii Cristo incontro alie religioni. Assisi: Citadella editrice, 1991. p. 345-347. 16 Não entramos aqui no tema da inevitabilidade atual de certa inter-religiosidade, por uma espécie de “osmose sociorreligiosa” na sociedade plural atual. “Em uma sociedade pluralista como a da índia, a religião autêntica implica necessa­ riamente uma relação com as outras religiões [...]; em uma palavra: ser religioso é ser inter-religioso”: cf. Declaración de la Asociación Teológica Indiana, n. 36, citado por J. DUPUIS, Verso una teologia cristiana dei pluralismo religioso, Brescia: Queriniana, 1997, p. 19-20. Cf. também: PHAN, P. Being Religious Interreligiously. Asian Perspectives on Interfaith Dialogue. Maryknoll: Orbis, 2004. 17 Michael AM ALADOSS expressa e matiza sua própria experiência pessoal logo adiante, no artigo “Ser um cristão-hindu”. 18 Não é este o lugar para dirimir tal assunto.

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confessionais, não só é muito antigo, mas está aprovado pelo mais prestigioso dos testemunhos religiosos, o dos místicos. Ibn’Arabi expressou isso de modo inesquecível: Tempo houve em que eu rejeitava meu próximo se a sua religião não fosse como a minha. Agora, meu coração se transformou no receptáculo de todas as formas religiosas: é prado das gazelas e claustro de monges cristãos, templo de ídolos e caaba de peregrinos, Tábuas da Lei e Preces do Corão, porque professo a religião do Amor, e vou para onde quer que vá sua cavalgadura, pois o Amor é meu credo e minha fé.19 Se temos o testemunho, recente e antigo, de que é possível a inter-religiosidade, e de que a multirreligiosidade provoca com frequência que a identidade religiosa transcenda sua confissão concreta, e se eremos que isso não é só uma experiência de pessoas excepcionais que viveram em situações limite, ou de grandes missionários que viveram na fronteira inter-religiosa, se sabemos que esta é uma experiência relativamente freqüente, tanto religiosa como cultural, que se dá em muitas pessoas e em setores sociais não pequenos, que conseqüências isso pode ter para a teologia?20 Junto à teologia tradicional, elaborada por pessoas ou a partir de lugares com um acesso menor à

experiência de inter-religiosidade, não poderá dar-se outra “teologia”21 elaborada por pessoas que, mesmo radicadas pri­ mariamente na religião de sua confissão primária, vivem uma experiência religiosa transconfessional,22 uma experiência de alguma maneira de múltipla pertença, pelo que tal teologia não poderá exibir uma confessionalidade convencional? Será possí­ vel também uma teologia transconfessional,23uma teologia que se atreva a falar teologicamente às pessoas de hoje, mas não às de uma determinada confissão religiosa (a do próprio teólogo), e sim às pessoas que já vivem um tipo de experiência religiosa inter-religiosa ou transreligiosa? Insistamos aqui também: não terá de ser este “o” novo modelo para a teologia; não terá de substituir as formas tradicionais teológicas correspondentes a necessidades e tarefas mais pequenas;24*mas sim poderá ser reconhecido como uma nova forma de teologia que vai ter via­ bilidade e plausibilidade na sociedade crescentemente plural e multirreligiosa em que vivemos. E esclareçamos também: esta transconfessionalidade não tem só o aspecto de superação dos limites confessionais, mas também, positivamente, a capacidade para refletir abarcando e

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19 Ibn’ARABI, Murcia, España, 1165-1240. Cf. GALINDO, Emilio. Pluralismo religioso de los místicos sufíes, in: Agenda Latinoamericana 2003 - disponível em: . 20 Na realidade, a partir deste momento da evolução da teologia, terá de deixar de ser, de alguma maneira “teo”-”logia”, no sentido em que a concebeu a racio­ nalidade grega, porque já não será necessariamente “teísta” nem porá seu eixo principal no “logos”. A partir deste momento, ainda que continuemos falando de “teologia” para nos entendermos, é óbvio que estamos utilizando um termo que fica mais curto para nós.

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Embora falemos de “teologia” para nos entendermos, é claro que estamos nos referindo a essa reflexão que tem esse nome no Cristianismo, mas que tem outros nomes e outras características em outras religiões. 22 Não damos ao prefixo “trans” o sentido de superação e abandono da confissão religiosa, mas só o de libertação das amarras que a vinculam em exclusiva. 23 Insistimos que não se trata de uma teologia que abandona a confessionalidade, e sim que a transcende até assumi-la em pluralidade. 24 Por exemplo: a formulação teológica da visão de cada religião, a elaboração de seus correspondentes “tratados teológicos” destinados, por exemplo, à formação teológica dentro de cada religião... Essas formas teológicas, confessionais e particularistas por natureza, sempre serão necessárias dentro de cada religião e sempre terão cabimento. A teologia ampla, aberta, à altura da evolução religio­ sa da sociedade, a teologia de vanguarda, cujas fronteiras estamos tratando de discernir, não nega tais formas menores, com as quais se terá de conviver.

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agrupando as religiões, levando-as e ajudando-as a passar a urna perspectiva nova onde é conatural a cooperação e a unidade. Existe urna frente de evolução que surge e evolui por um itinerário distinto ao que até aqui vimos dando seguimento. Referimo-nos à proposta recorrente e crescente de superação das religiões. Como dissemos, é uma proposta já antiga, que aparece e reaparece, cada vez com uma profundidade nova e maior. Formas últimas de que se revestiu esta proposta foram a mal chamada teologia da morte de Deus, as interpretações várias do fenômeno da secularização, o “pós-teísmo”.25 Para evitar um debate teológico no qual não podemos entrar aqui a respeito de todas essas posições teológicas, podemos pro­ por o desafio a partir de um terreno exterior à teologia, como o da antropologia cultural. Estudos dessa natureza sugerem que estamos em um momento de transição cultural muito profundo, semelhante àquele outro fenômeno histórico que Karl Jaspers chamou de “tempo axial”, que se deu aproximadamente entre os anos 800 e 200 a.C. Foi o “momento” em que se transformou a consciência do ser humano e surgiu uma nova consciência reli­ giosa da humanidade, que se deu em toda a franja de realizações filosófico-religiosas da época, desde os filósofos da Grécia, os profetas de Israel, Zaratustra na Pérsia, Confúcio e Lao-tse na China, os Upanixades e Buda na índia... É o momento em que surgem aquelas que chamamos “grandes religiões”, que ainda hoje perduram e de cujo legado nós ainda estamos vivendo. Essas religiões - afirma tal interpretação antropológico-cultural - são a plasmação concreta da religiosidade humana correspondente à idade agrária, neolítica, por isso é que hoje 23 O expoente atual mais significativo da proposta de superação do teísmo é pro­ vavelmente John Shelby SPONG, com sua prolífica produção como escritor e como conferencista. Cf. A New Christianityfo r a New World. N ew York: HarperSanFrancisco, 2000.

estão em uma crise: porque a mudança que a sociedade atual está experimentando consiste precisamente nisto, em que está se acabando a sociedade agrária que vem do neolítico. Os últi­ mos trezentos anos de industrialização foram o preâmbulo da grande crise atual, provocada pela chegada do fim da sociedade agrária, impulsionada pela “sociedade do conhecimento”, que já está se formando. As religiões que conhecemos, enquanto “religiões agrárias”, não são representativas da “espiritualidade do ser humano” sem mais nem menos, mas representam a forma concreta que tal espiritualidade assumiu na sociedade agrária. A dimensão espiritual do ser humano foi vivida durante muitos milênios sem religiões. As “religiões” (agrárias) são fundamen­ talmente a configuração sócio-histórica concreta que a socie­ dade humana adotou com o período agrário, articuladas sobre a base das “crenças”, e incluindo em si mesmas a função de “programar” a sociedade precisamente mediante o mecanismo da “submissão” do ser humano nas crenças. Essa conhecida (hipó)tese antropológico-cultural26 sugere o seguinte: as “religiões” são uma configuração sócio-histórica humana congruente com o período “agrário” da humanidade, período que está precisamente se encerrando ao ser substituído progressivamente pela “sociedade do conhecimento”. Não sabe­ mos quanto tempo pode durar esta transição, mas a hipótese é que já estamos nela, e que um futuro “não religional”27 começa a se fazer presente em muitos lugares: de uma maneira clara e chamativa na Europa, mas também um pouco por todo o plane­ ta, se se sabe ver bem. Obviamente, a humanidade continuará

26 Para uma visão sintética da mesma recomendamos: CORBÍ, Marià. Religión sin religión. Madrid: PPC, 1996 - disponível em: . 27 Utilizamos este neologismo para distingui-lo de pós-religioso e não dar lugar a equívocos: pode-se estar para além das religiões que aqui chamamos “agrárias”, sem deixar de ser muito religioso no sentido profundo.

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sendo “religiosa”, no sentido de “espiritual”,2*28 mas tudo indica que as “religiões agrárias” irão agonizando, ao ritmo da própria superação do período agrário e da implantação da sociedade do conhecimento. Forçadas por esta conjuntura inédita, poderão as atuais re­ ligiões mundiais se transformar, transmutar-se radicalmente, e passar a ser a configuração sociorreligiosa da espiritualidade do ser humano na futura sociedade do conhecimento? Não sa­ bemos. A julgar pelo comportamento que até hoje estão tendo, a resposta parece se adivinhar como negativa: resistem com todas as suas forças, como por reação de sua própria genética, a se úvms-mutar.29 Diante desse futuro que vislumbra hipoteticamente a antro­ pologia cultural atual, que será da teologia? Como já dissemos, as formas tradicionais de teologia também terão seu lugar e seu sentido, mas é possível pensar que - se esta transição epocal da sociedade agrária para uma sociedade pós-religional é certa - surgirá uma teologia nova e inaugurará uma nova via: uma teologia pós-religional, ou seja, uma teologia para além das religiões (agrárias). Não só além de “uma” religião concreta,30 mas para além das formas próprias das religiões agrárias en­ quanto tais, isto é: uma teologia sem “crenças”,31sem submissão, sem programação social, sem dogmas, sem leis, sem verdades nem doutrinas. Teoricamente, é possível que as atuais religiões 2S Embora não seja uma palavra feliz, a utilizamos, por estar consagrada pelo uso. 29 Os analistas e fenomenólogos da religião insistem em que não é que a religio­ sidade esteja evoluindo ou se transformando, mas que está em uma profunda “metamorfose” (Cf. MARTÍN VELASCO, J. Metamorfosis de lo sagrado y futuro dei cristianismoç. Santander: Sal Terrae, 1999). Ao contrário, as religiões mostram sua história sempiterna, de sua “indefectibilidade até o fim dos séculos” e da fidelidade inquestionável que devem a suas origens. 30 Que foi o que provocou a transformação plural da sociedade. 31 Dizemos isso no sentido técnico com que emprega esta palavra a citada inter­ pretação antropológico-cultural.

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agrárias se transmutem para uma nova configuração, mas talvez isso não aconteça por continuidade institucional (instituições que acometam a tarefa de sua própria transformação), mas por substituição (desaparecerão as religiões agrícolas e aparecerão independentemente outras formas religiosas, o que já pareceria estar acontecendo). Nesse contexto, o que seria uma teologia pós-religional? Não é possível defini-la, mas podemos descrevê-la como uma teologia laica, simplesmente humana, centrada na própria religiosidade, na espiritualidade, libertada do serviço a uma “religião” enquanto instituição hierarquicamente sagrada com seu sistema de crenças e ritos e cânones. Uma teologia laica será uma teologia simplesmente humana, simplesmente para os seres humanos enquanto humanos, antes ou à margem de sua relação com um “sistema” religioso, antes ou à margem de qualquer religião. Será uma teologia que se refere à “religiosidade” (no sentido de espiritualidade) do ser humano enquanto tal, enquanto humano, pelo simples fato de ser humano, laicamente, antes ou à margem de qualquer religião institucional.32 Por seu próprio caminho, sem se responsabilizar pelas vá­ rias transformações que aqui vimos elencando, não obstante converge com essa teologia laica a chamada teologia pública, em algum sentido, enquanto quer serum discurso teológico re- situado no ambiente acadêmico, em diálogo com as ciências, e com uma implicação ativa nos debates que se desenvolvem na esfera pública da sociedade.33 32 Insistimos, como já dissemos em nota anterior, que esta nova forma maior da teologia não elimina nem substitui as teologías menores, sempre necessárias, isto é, a teologia interior a cada confissão, a teologia da educação teórica de cada religião ou confissão, em cada um dos ramos daquilo que seria seu “universa theologia”. 33 Cf. o programa de Teologia pública do Instituto Humanitas da Universidade Jesuíta de São Leopoldo (Unisinos). Esta teologia pública, originada no mundo

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Mas, paralelamente à evolução de estágios e de novas exi­ gências que a teologia poderá enfrentar no futuro por causa da evolução de nossa tomada de consciência religiosa, há outra dimensão que também vai incidir sobre a evolução da teologia, que é a irrupção da consciência planetária na sociedade atual. A sociedade humana vai tomando consciência de que formamos urna única espécie, de que habitamos um mesmo planeta, de que estamos ligados em um interligado sistema de sistemas, que conformam a trama da vida, e que, portanto, a forma fragmen­ tada e individualista de perceber a realidade que até agora nos acompanhou deve ser superada. Já não faz sentido contemplar a realidade e o mundo a partir de uma consciência fragmentária que divide o mundo em países, em raças, em culturas..., ou em religiões. Somos uma só humanidade, e sabemos que somos parte da comunidade de vida que surgiu neste planeta, uma parte indivisível, inseparável, não independente, absolutamente ligada com toda essa comunidade de vida que surgiu neste planeta “vivo”, Gaia, já não em uma rocha inerte errante pelo vazio do cosmos, como durante tanto tempo consideramos. Hoje reconhe­ cemos cada vez mais o planeta como Gaia, e nos sentimos mais conscientemente unidos aos seus dinamismos vitais profundos. Estamos voltando às nossas raízes naturais planetárias, voltando à nossa casa comum, ao nosso lar..., depois de ter estado muito tempo afastados dele.34Essa nova consciência emergente, a um anglo-saxão, praticamente desconhecida na América Latina, quer se apresentar como um prolongamento atual da teologia da libertação enquanto atualizaria essa “libertação” em termos de cidadania e democracia. Cf. VON SINNER, Rudolf. Da Teologia da Libertação para uma teologia da cidadania como teologia pública. Original em International Journal ofPublic Theology, anol, n. 3/4, p. 338-363, 2007. 34 A tese de que, como humanidade, nos equivocamos no momento evolutivo da revolução agrária, quando abandonamos a sinergia cósmica com a natureza, que caracterizava a espiritualidade do paleolítico, por uma dessacralização da natureza e uma projeção da sacralidade fora do mundo, cifrada em um “theos” sobrenatural e amundano, está sendo crescentemente aceita entre os estudiosos.

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só tempo planetária e ecológica, não terá conseqüências radicais para a teologia? Não será necessária uma teologia ecológica e planetária,35uma teologia elaborada a partir dessa consciência planetária nova na qual a humanidade está entrando? “Plane­ tária”, aí, quer significar, concentradamente, muitas coisas ao mesmo tempo: • planetária enquanto unindo a humanidade mundial; • planetária enquanto abarcando também todas as suas religi­ ões e posições espirituais; • planetária enquanto refletindo a nova consciência planetária; • planetária enquanto assumindo o planeta como o lar para onde a humanidade volta; • planetária enquanto o planeta (mais que o mundo, ou a humanidade, ou até mesmo a vida, simplesmente) pode ser considerado como o contexto, o sujeito e o marco de refe­ rência novos para uma teologia responsável e à altura dessa nova consciência. A visão ecológica e “ecozoica” de Thomas Berry já havia dito isso faz tempo: as religiões, como a humanidade, viveram uma “microfase” na qual cada tradição nasceu e cresceu em um relativo isolamento das demais; mas faz tempo que entramos em uma “macrofase” da história, na qual cada religião só vai poder sobreviver através do inter-relacionamento com as demais religiões.36Desse modo, a teologia reproduziria em si mesma a evolução irresistível que traz em seus próprios genes humanos. C f O’MURCHU, Diarmuid. Religión in Exile. A Spiritual Homecoming. New York: Crossroad, 2000. 35 Acreditamos que este seria o melhor nome da que tantas vezes já foi chamada de a World theology. 36 BERRY, Thomas. Religious Studies in the Global Community o f Man. An Integral View 1(1980)35-43.

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A partir do cosmos surge a Terra, e a partir da geosfera e sua atmosfera surge a biosfera, e nela a antropogénese, e, a partir do ser humano, a noosfera. O ser humano é aquele no qual a evolução dá um salto, e de ser biológica passa a ser cultural e espiritual. A noosfera, ao principio individualizada e fragmen­ tada pela separação dos grupos humanos, foi se unificando e “mundializando” entre si, e agora está se “planetizando”, com o planeta e toda a comunidade de vida, aos que a humanidade incorpora como seu próprio corpo e seu próprio lar, dos quais agora toma consciência e aos quais volta e se une com renovada consciência. A noosfera, essa esfera das coisas da mente, os saberes, as crenças, os mitos, as lendas, as idéias, nas quais os seres nascidos da mente, gênios, deuses, ideias-força, utopias... passaram a ser o novo âmbito referencial mais amplo e ao mesmo tempo mais profundo para a humanidade. E, portanto, para a teologia responsável. Uma teologia planetária seria uma teologia da noosfera, uma teologia noosférica, ou seja, com a noosfera como marco e como centro de gravitação, para além de visões medíocres fragmentadas em países, raças, culturas, religiões..., nem sequer com uma visão antropocêntrica ou limitada apenas ao humano, mas aberta à natureza, ao planeta, ao cosmos, ao mistério da realidade toda. Todavia, uma tal teologia pluralista, inter-religiosa, transconfessional, pós-religional, laica, planetária..., continuará sendo “teologia”? Certamente, não será nem “teo” nem “logia”, no sentido que já dissemos. Também não será essa disciplina teórica que fazia parte do sistema simbólico das instituições religiosas. Por certo, as antigas “teologias” confessionais oficiais continuarão existindo: têm tanta esperança de vida quanto as religiões “agrárias” das quais fazem parte. Tudo o que acaba­ mos de dizer não está contra essas antigas teologias. Mas o que se desprende dessa evolução que estamos querendo imaginar

e percorrer virtualmente é que a teologia essencial, a teologia profunda, aquilo que permanece quando a teologia já não é nem teo, nem logia, nem parte oficial de uma religião agrária, ou seja, a busca profunda de sentido no ser humano, na sociedade, na humanidade, no mundo, na vida, no planeta, e no cosmos, essa busca profunda que habitou e inspirou todas as teologias, terá se emancipado, e tomado a forma de uma nova teologia,37 agora “global, mundial, planetária, pós-religional, laica...”, que não pertencerá a nenhuma confissão concreta, e não se res­ ponsabilizará por outra “religiosidade” que não seja a própria humanidade e seu lar planetário. Gordon Kaufman38 afirma: Se meu conceito da teologia - como enraizada radical­ mente nas preocupações compartilhadas da experiência humana - é correto, a teologia tem uma significação cultural universal, e não existe motivo para que fique confinada nos estreitos limites paroquiais de uma religião ou para que seja vista como uma disciplina esotérica ou sub-racional. As preocupações profundas pelas quais as pessoas buscam a sabedoria teológica não são questões relacionadas com as religiões formais, mas, antes, com o sentido e com os fins nes­ te complexo mundo em que vivemos. Comumente, as pessoas chamam “religiosos” a esses temas. Essa “religião”, decidida­ mente, não está morta, não sucumbiu nas mãos do niilismo Pós-Modemo. O ser humano moderno não tem dificuldades com a vida espiritual, nem com a “sabedoria teológica”, e sim com a forma como as religiões a trataram e a apresentaram. 37 Na falta de outra palavra mais adequada, podemos continuar utilizando-a com as reservas já indicadas. 38 Citado por O’MURCHU, ibid., p. 218.

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A teologia - afirma Diarmuid O’Murchu - está experimen­ tando uma reconfiguração revolucionária. São cada vez mais leigos - e sobretudo leigas! - que a cultivam e diminui de modo chamativo a proporção de clérigos entre os teólogos. Ser membro de uma Igreja já não é tido como essencial, para a boa qualidade de uma teologia. E, por outro lado, para um número crescente de teólogos e teólogas, o serviço ao mundo, ao planeta e à hu­ manidade são considerados como critérios mais importantes, na hora de elaborar a teologia, que o critério do serviço a urna reflexão eclesiástica. As questões provenientes do mundo, de suas angústias e esperanças, e da difícil tarefa de humanizar a humanidade e trazê-la de novo para seu lar, para a placenta natural planetária da qual equivocadamente se separou nos tem­ pos da revolução agrário-urbana, são cada dia mais importantes para a nova sabedoria teológica que está emergindo em toda parte e que está entusiasmando as novas gerações de teólogos e teólogas. Talvez os represente bem Gordon Kaufman quando acrescenta: “Esteja a Igreja como instituição viva ou agonize, a teologia tem um importante papel a desempenhar”.39 Essas perspectivas de evolução da teologia que nos é dado contemplar imaginativamente ficam muito longe daquelas po­ sições que eram freqüentes entre nós faz apenas alguns anos, quando acreditávamos que não era possível pensar em uma teologia que não fosse confessional, que não estivesse ligada a uma religião40 e não fosse uma função a seu serviço. Amplas perspectivas, inabarcáveis para a teologia, são as que nos é dado contemplar. E esta visão prospectiva foi a “ponto de partida” para a pesquisa proposta à colaboração de especialistas de vários

39 Ibid. 40 Cf. supra.

B

lugares do mundo, escolhidos como representantes de diferentes religiões, tratando precisamente de abarcar o mais possível as diferentes tendências e possibilidades. Tivemos dificuldades sérias, e algumas quase insuperáveis, para obter a representatividade que desejávamos, embora fizés­ semos tudo o que era possível. Em todo caso, o mais importante são as contribuições e reflexões dessas pessoas especialistas. Elas vão nos ajudar a todos a vislumbrar mais claramente qual será o futuro da teologia que este ponto de partida tentou esboçar. Comissão Teológica Internacional ASETT/EATWOT

AS RESPOSTAS

Ser um cristão-hindu

M ic h a e l A m a l a d o s s

Interesse pelo Hinduísmo é uma coisa que tive desde a infân­ cia. Fui criado em aldeias hindus. Meus amigos e companheiros de brincadeiras eram meninos hindus. Para mim, eles não eram “outros”, e sim meus amigos. No colégio interno de jesuítas para onde fui com 11 anos, os hindus estavam ao meu redor como alunos e professores. Depois entrei para a Companhia de Jesus. Enquanto estudávamos filosofia, havia um interesse duplo: saber mais sobre a cultura e as artes indianas para nos tornarmos mais indiano e aprender mais sobre o Hinduísmo para que pudésse­ mos falar de Cristo para eles. Eu lia avidamente sobre filosofia hindu e arte indiana. Mais tarde comecei a freqüentar uma escola de música indiana. Eu era o único cristão na escola e aprendi a admirar meus professores hindus, para quem a música era um ato de devoção. Enquanto estudava teologia (1965-1969), fiz uma peregrinação com dois companheiros jesuítas para visitar ashrams (eremitérios) e centros de peregrinação hindus no Himalaia e ao longo do rio Ganges, e fiquei impressionado com muitos dos sannyasis (faquires) hindus. Minha preocupação já era como me tornar um cristão indiano, estendendo a mão de uma maneira positiva para os hindus. Dois de meus trabalhos escritos nessa época foram: Towards an Indian Christian Spirituality e Gan­ dirían Spirituality. Enquanto isso, o Concilio Vaticano II tinha ocorrido, trazendo com ele um espírito de abertura e diálogo. Em maio de 1969 participei, como representante dos estudantes, de um seminário nacional que tinha como foco fazer com que

S er um cristão- hindu

a Igreja se tornasse mais indiana. A orientação que recebemos era de estabelecer o diálogo com as culturas e religiões indianas. Depois de meus estudos para o doutorado (1969-1972), em Paris, em 1973-1974 fundei um grupo de diálogo inter-religioso no seminário em que estava ensinando, participei de um semi­ nário nacional sobre Inspiration of Non-Biblical Scriptures (A inspiração das escrituras não bíblicas), participei também de uma comissão que explorava maneiras de fazer com que a cele­ bração eucarística ficasse mais indiana e organizei um seminário de orações que buscava apresentar aos cristãos os métodos de orações indianos (hindus). Começamos usando informalmente textos escriturais hindus em paraliturgias. Tentávamos integrar símbolos no culto, distinguindo entre religião hindu e cultura indiana, ou dando uma interpretação cristã a símbolos hindus, tais como Om. Nossa meta era dialogar com os hindus e, ao mesmo tempo, promover a espiritualidade cristã indiana em um profundo diálogo com a tradição espiritual hindu. Ashrams cristãos indianos estavam sendo fundados e cursos sobre espiritualidade cristã indiana estavam sendo ministrados. Era comum que orássemos com hindus nos grupos de diálogo. Os jesuítas promoviam a inculturação na educação de uma maneira planejada concentrando no contexto social local (dos pobres) e nas línguas indianas. Colégios teológicos regionais ensinando a teologia contextual em línguas indianas foram inaugurados em 1979. Estive ativamente envolvido nesses projetos tanto criativa quanto administrativamente. Tive de me distanciar dessa área quando mudei para Roma (1983-1995). Mas minha pesquisa, meus escritos e minha prática pessoal na área da teologia e da espiritualidade indianas continuaram. Em virtude do meu diálogo contínuo com o Hinduísmo e com a cultura indiana, minha abordagem filosófica e teológica mu­ dou com o passar dos anos. Saí de uma teoria do conhecimento

Michael Amaladoss

grega, racional, conceituai, lógica, focada no objeto e dicotô­ mica (ou-ou) e fui para uma teoria do conhecimento indiana (asiática), simbólica, interpretativa, narrativa, focada no sujeito e inclusiva (ambos-e). Nisso também tive a ajuda da filosofia contemporânea europeia, com sua reviravolta para o “sujeito” e para a linguagem. Abandonei também uma metafísica baseada na física aristotélica a favor de uma ontologia baseada na pessoa, não dualista e relacionai. “Ser” é “inter-ser”. Já não falo de coi­ sas e causas, mas sim de pessoas e de relacionamentos que dão poder e transformam. Com essas novas abordagens, acho que é mais fácil dialogar não só com os hindus, budistas e taoístas asiáticos, mas também com os cristãos asiáticos. Meu último livro é The Asian Jesus (O Jesus asiático). E claro, isso não está facilitando minha vida intelectual, já que a Igreja “oficiar ainda está atada à epistemología neoescolástica e à metafísica. Começando com uma abordagem positiva às outras religiões como participantes do plano de salvação de Deus, tenho uma nova teologia de história que focaliza o Reino de Deus, com a Igreja passando a ser o símbolo e serviçal daquele Reino. Tenho também uma nova visão espiritual que busca uma integração pessoal e cósmica que expliquei detalhadamente em um livro chamado The Dancing Cosmos {O Cosmos que dança). Deus, o Espírito, o Verbo e Jesus são vivenciados e vistos de novas formas. Porém, os acontecimentos na índia não acompanharam o ritmo de pessoas como eu. A partir de mais ou menos 1978, a inculturação na área de liturgia foi sendo lentamente sufocada, embora o uso de música indiana na liturgia tenha se desenvol­ vido muito. Eu mesmo compus mais de cento e cinqüenta hinos, além de peças mais técnicas sobre temas cristãos para a dança clássica indiana. Mas a indianização na teologia e na espiritu­ alidade continuou. Embora ninguém, afinal de contas, possa

S er um cristão- hindu

controlar a maneira como pensamos e oramos, essas maneiras não se tornaram “oficiais”. Fui um teólogo profissional. Não sei o que teria feito e o que me teria tornado se estivesse em um ashram cristão indiano. Hoje me considero e me denomino cristão-hindu, dando ao termo um sentido especial. O termo “hindu” na frase não é um substantivo e sim um adjetivo. O processo não é hibridismo, e sim integração; não é pluralismo, e sim não dualismo. Social e institucionalmente sou um cristão, um padre, um jesuíta. Não procuro uma espécie de identidade híbrida de ser tanto hindu quanto cristão em um sentido social e comunitário. Mas para mim o Hinduísmo não é simplesmente uma “outra” religião. Ele é também uma parte da minha identidade. É a re­ ligião de meus antepassados. Deus falou a meus antepassados através dele e o que Deus disse a eles tem algum sentido para mim também - mesmo agora. Portanto, fico feliz de integrar perspectivas hindus como parte da minha visão e prática es­ pirituais. Isso não significa que me sinto obrigado a acreditar nas histórias mitológicas do Hinduísmo, ou honrar os deuses hindus, ou participar de rituais, ou tomar parte no culto religioso em templos hindus. Mas realmente me inspiro nas escrituras hindus, como os Upanishads, a Bhagavadgita, ou as canções devocionais dos santos shivaítas e vaishnavitas. Em um nível teológico-espiritual busco integrar a visão e a visão do mundo da advaita ou não dualismo. No nível da prática espiritual bus­ co usar a música, não apenas como algo decorativo, mas como sadhana, que ajuda a concentração e põe em prática a comu­ nhão. Técnicas de respiração e concentração da ioga também são úteis. Através dessas técnicas busco integrar o mundo mais amplo de energia (mais além da ciência) que faz a mediação entre o espírito, o corpo e o mundo. Algumas dessas técnicas não são especificamente hindus, embora o Hinduísmo as tenha

Michael Amaladoss

desenvolvido, e é do Hinduísmo que eu as estou aprendendo. Elas são usadas também pelos jainistas e budistas no Tibete, na China e no Japão. Será que sou uma pessoa interconfessional, ou estou fazen­ do teologia interconfessional, ou praticando espiritualidade interconfessional? Acho que não. Acho que paradigmas como “exclusivismo-inclusivismo-pluralismo” e “teologia interconfes­ sional” são abstratos. Eles olham para as religiões de fora, por assim dizer, não tendo tido contato vivo com membros dessas outras religiões. Não há nenhuma teologia universal ou inter­ confessional. Teólogos de religiões diferentes podem dialogar e ir na direção de um consenso sobre a defesa de valores humanos e espirituais comuns. Hoje é o que precisam fazer. Eu falaria, então, de teologia dialógica e, mais ainda, de espiritualidade. Quando estou realmente dialogando com um hindu no contexto sociopolítico da índia, o que parece crucial é o reco­ nhecimento das identidades baseadas na diferença e o respeito por elas. O diálogo não consiste em procurar um denominador comum e sim em desenvolver um consenso imbricado que possa animar uma ação sociopolítica comum. As religiões não são algo que os humanos criam e com as quais podem brincar. Para um hindu ou para um cristão, sua religião é uma maneira específi­ ca pela qual Deus estendeu a mão para ele ou ela. É uma coisa única sobre eles. Não procuramos fundi-las de alguma forma. Ao contrário, devemos celebrar a diferença. Aprender um com o outro, ser questionado e transformado pelo outro, integrar o outro é diferente de algum tipo de sincretismo que facilmente mistura mundos simbólicos. Eu teria uma justificativa para re-interpretar um símbolo como Om em um contexto cristão porque é um símbolo expresso por um som, mais básico até que a linguagem. Mas não posso pedir emprestados símbolos mitológicos hindus tais como Rama, Krishna ou Shiva. Eles são

S er um cristão- hindu

seus símbolos e eles os usarão para definir, proteger e celebrar sua identidade. Eu me relaciono com Deus por intermédio de Cristo e meu amigo hindu relaciona-se com Deus através de Krishna ou Shiva. Podemos comparar esses caminhos. Podemos até considerá-los homólogos. Podemos dizer algo sobre o Deus transcendente que nós dois estamos tentando alcançar por meio de nossos respectivos símbolos reais. Não vivenciamos Deus de alguma maneira não simbólica do próprio Deus. Cristo e Krishna não são meros símbolos para nós. São mediações. Represen­ tam uma história. Não podemos misturá-los para produzir um “Krishna-Cristo” inter-religioso! Ser membro de uma religião é como falar um idioma. Um idioma pode ser influenciado por outro. Pode pedir emprestadas frases e expressões do outro. Mas os idiomas são diferentes e incomensuráveis. Não podemos falar as duas línguas ao mesmo tempo, nem integrá-las de alguma forma que respeite as identi­ dades de ambas. A crioulização não é um processo enriquecedor. Assim como sou cristão-hindu - e há outros como eu na índia - alguns hindus, como Keshub Chandras Sem e Mahatma Gandhi - foram hindus-cristãos, profundamente influenciados pelo exemplo e ensinamentos de Cristo. Mahatma Gandhi disse que se ser cristão significava seguir os ensinamentos de Cristo, então ele era cristão. Mas obviamente ele se distanciava da comunidade cristã em um sentido social. Há hindus-cristãos semelhantes até mesmo nos dias de hoje. Respeitar as religiões e seus seguidores é respeitar também suas identidades e dife­ renças sociopolíticas. Acho que os cristãos-hindus como eu e os hindus-cristãos como Gandhi são pessoas liminares. Somos pessoas que es­ tão nas linhas fronteiriças, permanecendo dentro de nossas fronteiras e ainda assim abertas para outros, estendendo-lhes a mão. Podemos ser modelos e facilitadores do diálogo de uma

MichaelAmaladoss

maneira especial. Mas qualquer esforço para ter uma perna de cada lado da fronteira será um desastre. Brahmabandab Upadyaya se dizia um cristão-hindu - hindu socialmente e cristão religiosamente. Mas suas tentativas posteriores para se tornar um cristão-hindu religiosamente terminaram mal porque ele ultrapassou as fronteiras. Um exemplo mais recente, de alguém que viveu nessa tensão, foi Swami Abhishiktananda (Henri Le Saux). Swami continuou fiel à celebração da Eucaristia e recitou os salmos até o fim de sua vida. Mas durante muitos anos tentou ter a experiência de advaita ou não dualidade, que ele considerava “hindu”. Em seu diário afirma ter tido essa experiência - mais de uma vez. Seu diário narra a luta que ele enfrentou para reconciliar as duas experiências intelectualmente. Não acho que tenha tido êxito. Sua racionalidade lógica francesa e sua formação acadêmica podem ter sido o problema. Mas nos últimos meses de sua vida, depois de um infarto, ele parece ter superado essa tensão. Em seus últimos anos ele disse muitas vezes que tinha ido mais além dos símbolos e rituais de qualquer religião. Por isso, sua experiência da advaita ou não dualidade estava mais além de todas as religiões, todas “nome e forma” (namarupa). E possível que ele estivesse errado ao considerar a advaita como hindu e ao buscar integrá-la com sua namarupa cristã. Ao mesmo tempo, ele se sentiu livre para vivenciar o Absoluto por meio da namarupa cristã - a Eucaristia. Acho que naquele momento ele não estava praticando qualquer ritual (namarupa) hindu. E possível que, em seus últimos dias, tenha compreendido que estava vivenciando Deus —o Absoluto —de duas maneiras di­ ferentes e que não tinha de integrá-las racionalmente, mas sim apenas desfrutar a diversidade. Aliás, não há nada “hindu” a respeito da experiência advaitica, socialmente, ritualmente e institucionalmente, embora ela tampouco possa ser totalmente

S erumcristão - hinpu

A frágil transparência do Absoluto.Teologia para uma espiritualidade transreligiosa

separada da tradição espiritual hindu. Isso se aplicará a todas as experiências místicas que estão enraizadas em uma ou ou­ tra tradição. Teologías negativas são negativas com relação a alguma coisa positiva.

M arcelo B arros

Afirmar a fragilidade do Absoluto parece um absurdo, já que este sempre é apresentado como “Todo-Poderoso”. Como pode ser frágil? É preciso que nos entendamos. No século XVI, o rabino Isaac Luria dizia que, para criar o universo e possibi­ litar que este tivesse vida própria, o Eterno aceitou como que diminuir-se a si mesmo, ceder algo da sua perfeição. Retraiu-se para que a sua criatura pudesse existir como ser autônomo.1 Hoje, penso que esta visão de uma divindade que recua ou se contrai (a expressão hebraica é o Tzimtzum divino) pode ajudar no caminho do diálogo das religiões. Em si. Deus é mistério in­ decifrável. As religiões procuram representá-lo e até apresentá-lo ao mundo. Não esgotam o mistério, mas tentam torná-lo mais transparente. Isso o faz frágil, porque dependente da resposta que o seu apelo provoca. O seu chamado de amor é traduzido em mil linguagens e concretizado em todas as culturas. Quanto mais se identifica com o humano, mais se toma frágil.

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Cf. SCHOLEM, Gershom. A s grandes correntes da mística judaica. 3. ed. São Paulo: Ed. Perspectiva, 1995. p. 290- 293.

A

frágil transparencia do A bsoluto .T eologia para uma espiritualidade transreligiosa

Atualmente, o mundo assiste a certa busca espiritualista. Ao mesmo tempo, as religiões vivem uma crise que não abrange apenas questões de estrutura religiosa. Toca na própria fé. É tam­ bém crise sobre Deus. Assim sendo, as religiões provocam uma nova manifestação de fragilidade. Quando uma Igreja opta mais pelo dogmatismo do que pelo amor, ou quando uma corrente do Islã insiste na intolerância, o que está em jogo não é apenas a sobrevivência da religião, o que já seria grave. Trata-se de um testemunho sobre Deus que fragiliza a própria imagem divina, à qual a humanidade tem acesso. No campo de concentração de Auschwitz, a jovem judia Etty Hillesum escrevia: Se Deus não me ajuda, serei eu quem o ajudará. [...] Meu princípio será “ajudar a Deus” tanto quanto isso for possí­ vel. [...] Cada vez mais, a cada pulsação do meu coração, sinto que tu não podes nos ajudar. Somos nós que temos de ajudar-te e defender-te até o final na mansão que te guarda em nós.2 Hoje, esta oração de Etty Hillesum pode ser retomada não mais para defender a Deus do Holocausto nazista, mas para salvar a honra de Deus diante dos grupos fundamentalistas que apoiam guerras e imperialismos, como também para salvar a imagem divina, fragilizada por posturas pouco espirituais de certos líderes religiosos e por documentos pouco amorosos emanados de alguns hierarcas. Na linha do “ver, julgar e agir”, convido vocês a verificarmos como esta situação atinge os grupos inter-religiosos e associa­ ções consagradas ao diálogo entre as religiões. Aprofundaremos a teologia subjacente, presente nas organizações inter-religiosas

2

LEBEAU, Paul. Etty Hillesum, un itinéraire spirítuel. Namur: Ed. Racine, 1998. p. 110.

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Marcelo Barros

e proporemos uma teologia da libertação, pluralista e transreli­ giosa, para fundamentar o caminho das iniciativas interculturais e inter-religiosas.

Uma rápida história das iniciativas inter-religiosas A história das relações inter-religiosas sempre teve alguns profetas ou movimentos que buscaram o diálogo. Na Idade Média, homens de ciência filosófica, como Abelardo e Nicolau de Cusa, tomaram o diálogo como estilo. Embora fossem diálo­ gos inter-religiosos fictícios e na linha que Panikkar chama de “diálogo dialético”,3de qualquer modo revelavam a necessidade de expressar a fé como diálogo. Abelardo escreveu Dialogus inter philosophum, judaeum et christianum (1141). Nicolau de Cusa escreveu Dialogus de Deo abscondito inter christianus et gentilis (1453). No século XIII, enquanto a Igreja oficial pregava Cruzadas, o filósofo e místico Raimon Lull aprendeu o árabe e tentou convencer Roma a abrir cátedras de copta, árabe e grego nas universidades cristãs, para compreender o pensamento do outro.4 Na mesma época, Francisco de Assis assumiu uma atitude amo­ rosa com os muçulmanos. No início da Idade Moderna, Erasmo de Rotterdam é um cristão precursor do diálogo intercultural. No mundo muçulmano, vários místicos sufi, como Ibn’Arabi (século IX) e Rumi (século XI), viviam uma espiritualidade aberta a todas as religiões, assim como são famosos os diálogos promovidos por al-Haschim e al-Kindi sob o califa al-Ma’mun (813-834). 3 4

PANIKKAR, Raimon. Pace e interculturalità; una riflessionefilosófica. Milano: Jaca Book, 2002. p. 44. Ibid., p. 53.

Marcelo Barros

A FRAGIL transparencia do A bso lu to -T eo lo g ía p a ra um a esp iritu alid ad e tra n sre lig io sa

Na Abya Yala dos indios e dos negros trazidos da África, o contato com a religião dos dominadores se deu de maneira violenta e forçada, mas o próprio fato de que se tratavam de cultos pouco centralizados e não havia uma estrutura dogmática fixa ajudou a realizar um sincretismo que foi uma síntese de sabedoria espiritual. Apesar disso, as religiões não tiveram muitas experiências de diálogo. Somente a partir do final do século XIX surgiu a preo­ cupação sobre a contribuição das religiões para a construção da paz. Em 1893, em Chicago, por ocasião dos 400 anos da “desco­ berta da América”, o pastor presbiteriano John Henry Barrows, desautorizado por sua Igreja, fundou o Parlamento Mundial das Religiões, que, em sua sessão inaugural, conseguiu juntar quatro mil pessoas. Essa iniciativa não teve continuidade direta, mas, por todo o mundo, espalhou a ideia de que o diálogo entre as religiões pode ser útil para a construção da paz e da justiça no mundo. Na segunda metade do século XX, o Parlamento das Religiões pela Paz foi retomado. Sua quarta assembléia geral ocorreu em julho de 2004 em Barcelona, com a participação de muitos grupos de base e muitos teólogos de várias tradições religiosas, comprometidos com a paz e a libertação. A Conferência Mundial das Religiões pela Paz, criada por cidadãos dos EUA, índia e Japão, teve sua primeira assembléia em Quioto, no Japão, em 1970, para tratar da questão da paz, do desarmamento, opor-se a qualquer discriminação, trabalhar contra o colonialismo e defender os direitos humanos. Ali se reuniram 139 participantes da Ásia e da África, assim como 77 ocidentais. Entre os conferencistas estavam Helder Câmara, Raimon Panikkar, Eugene Blake, Thich Nhat Hanh e o metro­ polita Galitski Filarete, de Moscou. Em 1999, William Swing, bispo anglicano de Los Angeles, o dalai-lama e o Conselho de Coordenação Inter-Religioso de

Israel lançaram a proposta de uma nova organização mundial das religiões, semelhante à das Nações Unidas. Criaram a Or­ ganização das Religiões Unidas (URI).5 Na América Latina, no contexto da celebração dos 500 anos da conquista, grupos ligados a Igrejas e religiões populares se uniram em um encontro continental e criaram um processo que se chamou Assembléia do Povo de Deus (APD). Essa iniciativa oficializou o termo macroecumenismo como “um ecumenismo que vai além da busca de unidade das Igrejas e além do mero diálogo entre as religiões para reunir religiões e Igrejas na de­ núncia profética contra o neoliberalismo e no aprofundamento de uma espiritualidade macroecumênica”. A teologia inerente ao processo da APD pensava, ainda, de certo modo, as relações a partir do Cristianismo latino-americano (teologia da libertação). Por se nutrir de uma teologia aberta ao outro, mas implicita­ mente de tendência inclusivista, não conseguiu aprofundar a espiritualidade macroecumênica proposta. No começo do pro­ cesso, o diálogo com as religiões populares se deu pela abertura ao sincretismo com o Cristianismo, ou pela capacidade desses grupos de conviverem com a cultura corrente no Cristianismo. Quando o caminho avançou mais, grupos afros e indígenas mais autônomos não se sentiram representados. Como as autoridades eclesiásticas cristãs também nunca assumiram o processo da APD, pouco a pouco este se esvaziou. Fizeram-se três encontros internacionais (Quito, 1992; Bogotá, 1996; e Santo Domingo, 2000) e, depois, o processo não conseguiu se articular mais. Nos anos de passagem do século (de 1999 a 2001), ocorreram inúmeros encontros e congressos inter-religiosos. Diversas enti­ dades com o objetivo do diálogo se manifestaram, mas também não conseguiram ir além dos grandes congressos. 5

Revista Rocca, n. 15, p. 7, ago./sett. 1999.

A FRÁGIL TRANSPARENCIA DO ABSOLUTO.TEOLOGIA PARA UMA ESPIRITUALIDADE TRANSRELIG10SA

No processo do Fórum Social Mundial, desde o segundo Fórum, em Porto Alegre, organismos ecuménicos e grupos consagrados ao trabalho pela paz uniram representantes de diversas tradições espirituais em um testemunho de unidade e compromisso pela justiça e paz. No Brasil, diversas ONGs educativas (a União Planetária, Unipaz e outras) organizaram dois fóruns com a pretensão de serem um “Fórum Espiritual Mundial”. Autoridades religiosas foram convidadas. Pouquís­ simas aceitaram, e para momentos muito específicos. Pastores da Igreja Católica e de outras Igrejas têm medo de sincretismo e mesmo de iniciativas que parecem “coisa de Nova Era”. Mesmo um teólogo como Michael Amaladoss, que se consi­ dera cristão-hindu, que é aberto à busca de um novo caminho, tem críticas a uma tentativa de diálogo inter-religioso que fosse como que a tentativa defalar duas línguas ao mesmo tempo.6Ele tem razão quanto a quem vive tal síntese espiritual e teológica entre duas tradições espirituais, comumente, não falar em dupla pertença, porque integra de forma original e única as tradições diversas em um só caminho espiritual. No mundo atual, quase nenhum de nós tem uma única identidade ou pertença cultural. Pertencemos a um determinado grupo cultural ou religioso, destacamo-nos como profissionais em outro grupo e como se fosse com uma identidade que nada tem a ver com a primeira pertença e, ainda, em outro contexto, somos conhecidos como pessoas de tal posição social e política. Quase todos nós somos, de certa forma, plurais e, ao mesmo tempo, sem deixar de ser uma pessoa única e original. Isso tem ocorrido cada vez mais no plano religioso e até mesmo em um nível transreligioso.

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Uma tentativa de compreender teologicamente a crise Diversos(as) estudiosos(as) do campo das ciências das reli­ giões e da teologia7apontam para o fato de, atualmente, existir um verdadeiro divórcio entre a maioria das sociedades e as religiões estabelecidas. As sociedades seculares são, cada vez mais, baseadas em inovações tecnológicas e de comunicação. As religiões se mantêm fiéis a linguagens antigas. Ao viver ele­ mentos desse desencontro, são tentadas a um restauracionismo nostálgico e a um fundamentalismo dogmático que as afastam do diálogo com a humanidade. Mesmo sociedades tradicionais, como indígenas e negras, também se revelam em crise. No passado, essas tradições populares foram vítimas de religiões que as condenaram e perseguiram. Agora, elas não querem se diluir na cultura de massas da “Modernidade líquida”, como chama Zygmunt Bauman. Esse esforço para consolidar costu­ mes tradicionais em uma sociedade fechada ao diferente leva, às vezes, tais grupos à tendência de se fecharem em seus ritos. Outra dificuldade é que, como todo diálogo, o contato inter-religioso supõe igualdade entre os parceiros. E difícil juntar padres e pastores vindos das universidades com xamãs indígenas e mães de santo de cultura oral e popular.8 7

8 6

Ver o artigo de Michael Amaladoss no presente livro.

Cf. FABRI DOS SANTOS, Márcio (org.). Teologia e novos paradigmas. São Paulo: Soter/Paulus, 1998. CORBI, Marià. Indagacions sobre elfutur. Barcelona: Centre Català de Prospectiva, 1991. Religión sin religión. Madrid: PPC, 1996. ROBLES, J. Amando. Repensar la religión. De la creencia al conocimiento, San José de Costa Rica: EUNA, 2001. E outros: BINGEMER, María Clara L. (org.). Violência e religião; três religiões em confronto e diálogo, Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio/LoyoIa, 2002. KURTZ, Lester R. Gods in the Global Village. The World's Religions in SociologicalPerspective. Thousand Oaks, Calif.: Pine Forge Press, 1995. U SA, London, N ew Delhi. Sobre a crise no Cristianismo: VV. AA. Cristianismo em crise? Revista Concilium 311 (2005/3). Os Encontros Intereclesiais de Comunidades de Base no Brasil são encontros nacionais de CEBs. Desde a década de 1970, tinham-se constituído como ecu-

A FRÁGIL TRANSPARÊNCIA DO ABSOLUTO. TE0L06IA PARA UMA ESPIRITUALIDADE TRANSREUGIOSA

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A teologia subjacente aos encontros oficiais

da proposta de encontrar-se “a partir de Jesus Cristo”, como propunha a encíclica Tertio Millenio Adveniente.

Apesar do risco de generalização, pode-se dizer que existem dois tipos fundamentais de iniciativa inter-religiosa. O primeiro é constituído por encontros promovidos por representantes oficiais das religiões e Igrejas. Esse modelo obedece aos projetos das instituições religiosas que o promovem. A referência é a própria teologia. Por exemplo: em 1996, o Papa João Paulo II convocou o Jubileu do Ano 2000, que visava uma nova evangelização do mundo e uma renovação da fé cristã nos ambientes católicos. No contexto do Jubileu, propôs um encontro inter-religioso que, por ocasião do ano 2000, unisse as religiões abraâmicas (judeus, cristãos e muçulmanos) para dar um sinal da fé comum no único Deus. Tal evento não chegou a ocorrer, mas foi pensado dentro do projeto do Jubileu, cujo conteúdo mais explícito era, ao lado de insistir no perdão das dívidas dos países pobres, receber em Roma uma multidão imensa de peregrinos que lá iriam para ganhar indulgências. O desejo ecumênico do papa em nenhum momento questionou a tradição católico-romana das romarias e das indulgências. O próprio fato de se tratar de um encontro das religiões abraâmicas para testemunhar a fé em um único Deus continha algo de depreciativo com relação a outros caminhos espirituais que não fariam essa mesma profissão de fé, assim como os próprios judeus e muçulmanos poderiam não gostar

A teologia subjacente a esses encontros parte da tradição de cada Igreja, principalmente daquela que os organiza. Não é possível nenhum passo adiante do que cada grupo religioso considera dogma. Ninguém aceita colocar em questão o seu modo de pensar. Por isso, os encontros se restringem às boas relações e ao desejo da paz.

mênicos e macroecumênicos, não tanto em sua definição de inter-religiosos, mas em sua composição popular de abertos a pessoas que fazem a síntese espiritual entre o Cristianismo e outras religiões. Em tempos recentes, tais encontros, co­ ordenados por bispos católicos anfitriões, têm revelado uma dificuldade cada vez maior de manter esta abertura. Quem se lembra do 8o Encontro Intereclesial de Santa Maria, Rio Grande do Sul, em 1992, sabe que os sacerdotes e sacerdotisas de cultos afros e indígenas foram impedidos de se apresentar como participantes do encontro. No 12o Encontro, em Porto Velho, em 2009, até mesmo pastores de Igrejas evangélicas tiveram tal dificuldade. Mais ainda pessoas ligadas a outras religiões.

Nos encontros inter-religiosos de oração pela paz, que o papa convocou para Assis, (1986-2003), os convites convoca­ tórios faziam questão de dizer que os líderes das religiões se encontravam para estar juntos e orar. Não oravam juntos, mas se encontravam juntos para orar. Havia momentos em comum e uma declaração final, mas as orações eram vividas separa­ damente. O fato de se encontrarem para orar mas não orarem juntos é salientado tanto que parece tão ou mais importante do que o próprio encontro. É como se, ao contrário da proposta do Papa João XXIII, se frisasse mais o que divide do que o que já pode unir. Em setembro de 2007,138 importantes personalidades mu­ çulmanas, entre as quais grandes muftis de 43 nacionalidades diferentes e até de correntes diversas do Islã, escreveram uma carta ao Papa Bento XVI. Nessa carta propuseram princípios de uma teologia comum: “O futuro do mundo depende da paz entre muçulmanos e cristãos. A base desta paz e desta compre­ ensão mútua já existe. Ela faz parte dos princípios que estão nas bases das duas religiões: o amor do Deus único e o amor do próximo...”.9 Até aqui, o Vaticano não respondeu. E o Cardeal Jean-Louis Tauran, que, no Vaticano, é o presidente do Conselho para o Diálogo Inter-Religioso, declarou publicamente: 9

L’appel au dialogue. La Vie 3243, semaine du 25 octobre 2007, p. 66.

Marcelo Barros

A FRAGIL TRANSPARENCIA DO A bSOLÜTO.TEOLOGIA PARA UMA ESPIRITUALIDADE TRANSREL1GIOSA

Esta carta (dos islamitas) apresenta os dois mandamentos fundamentais do amor de Deus e do amor ao próximo como palavra comum que oferece ao diálogo a base mais teológica possível. Entretanto, neste momento, não é possível um diálogo teológico com o Islã porque, contrariamente aos cristãos, que reconhecem a mediação humana na escritura da Bíblia, os muçulmanos conside­ ram que o Corão vem diretamente de Deus e não pode ser colocado em causa.101 Parece uma afirmação contraria ao que propunha Pierre Claverie, bispo mártir da Argélia: “O diálogo é um espirito pelo qual o outro me revela urna parte da verdade que ainda me falta”.11 Em alguns desses encontros oficiais, o cuidado principal parece ser o de respeitar os graus hierárquicos e que o encontro sirva, mais do que para unir grupos diferentes, para firmar o poder sagrado dos hierarcas presentes. Assim sendo, tudo é previsto de acordo com os dogmas de cada grupo e o cuidado com a hierarquia dos considerados mais “importantes” (existe uma hierarquia entre o papa e um babalorixá africano e esta deve ser respeitada). O dalai-lama também tem promovido encontros inter-religiosos que fortalecem o seu projeto de chamar a atenção do mundo para o drama do Tibet. A teologia dele é que as religiões são diversas e isso é bom. Cada pessoa siga a religião que mais o ajuda a ser um ser humano de compaixão. O normal para um tibetano é ser budista, como para um brasileiro é ser cristão. Essa teologia é simpática e inofensiva, mas não ajuda a colocar os grupos religiosos em processo de crescimento no encontro 10 Cf. La réponse du cardinal Jean-Louis Tauran. La Vie 3243, semaine du 25 octobre 2007, p. 67. 11 ESCAFFIT, Jean-Claude. Défis du débat interreligieux. La Vie 3223,7 juin 2007, p. 94.

com o outro. Cada grupo se dispõe a acolher, mas sem se co­ locar em questão. Em alguns países da África, autoridades muçulmanas con­ vocam representantes de outras religiões para comemorar datas importantes do calendário muçulmano, o que é ótimo como sinal de diálogo, mas, ao mesmo tempo, é limitado pelo próprio âmbito do encontro. • •

Teologías subjacentes a eventos inter-religiosos mais laicais O segundo tipo de encontros inter-religiosos é representado por iniciativas e fóruns realizados por organizações leigas (con­ sagradas à paz, por exemplo), ou por grupos espiritualistas de tendência transreligiosa. Nesse modelo, as pessoas se encontram como crentes e procuradores da comunhão e não como líderes ou representantes oficiais de cada religião. Esse próprio fato leva o encontro a ser mais livre e menos preocupado com a exatidão dos dogmas e os limites das normas canônicas. Nesse tipo de encontros, os participantes experimentam gestos e ritos muito expressivos e comoventes, como abraços de paz entre judeus e muçulmanos, ou celebrações, nas quais uma mãe de santo abençoa um pastor evangélico. Frequentemente, uma teologia subjacente a esses encontros é a de que as religiões são em si relativas e o mais importante é a espiritualidade que cada uma vive e testemunha. Todas as tradições religiosas têm uma riqueza e mais do que isso: na sua diversidade de linguagem ou de expressões culturais, todas, no plano mais profundo, propõem a mesma coisa, contêm a mesma verdade. Simplesmente se eqüivalem...

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Na maioria das vezes, esse julgamento teológico sobre as reli­ giões é emitido por quem, em geral, não pertence a nenhuma. Às vezes, parece quase uma forma de se desvencilhar da obrigação de avaliar cada religião em si mesma. Diz-se algo de todas, “de fora”, sem a preocupação de verdadeiramente aprofundar cada uma em sua originalidade. Mesmo que tal teologia não seja expressa em seus detalhes, no fundo as autoridades religiosas percebem que é este o pensa­ mento dominante nesses meios espiritualistas ou macroecumênicos mais livres. E vários, principalmente os líderes de Igrejas cristãs, as autoridades do Judaísmo tradicional e vários grupos do Islã, por princípio, os rejeitam ou têm com tais grupos uma relação de desconfiança e certo desprezo. Não os consideram grupos sérios. Por outro lado, como as pessoas que participam desses encontros mais abertos não representam o seu grupo religioso, nem pedem permissão a seus chefes para participar, não conseguem envolver a comunidade nesse caminho e difi­ cilmente tais encontros têm conseqüências concretas no avanço do caminho de diálogo e integração das religiões.

Uma breve apreciação dessas teologías Pode-se dizer que os encontros e fóruns inter-religiosos não conseguiram, ainda, explicitar uma teologia comum, ou, ao menos, uma base teórica que fundamente melhor a experiência dos encontros e possibilite avançar mais na direção da comunhão e da construção da paz. Não somente falta esta teologia inter-faith como é evidente que a teologia ainda vigente nos diversos grupos religiosos não favorece um encontro que vá além de uma colaboração comum para os problemas da sociedade e de relacionamentos cordiais por parte dos representantes religiosos. Por mais que se tenha boa vontade com o outro, o inclusivismo

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teológico não favorece a perspectiva espiritual de um aprender do outro. No caso da Igreja Católica, é preciso reconhecer que a escravidão, indígena ou negra, assim como a condenação das religiões populares, não foram iniciativas macabras de algum eclesiástico mais desumano do que os outros, mas sim uma decorrência natural da teologia vigente nos setores eclesiais. Se não se modifica tal patamar de teologías confessionais fechadas, como esperar que as novas experiências de diálogo inter-religioso possam ser aprofundadas? Tanto no primeiro modelo de encontros inter-religiosos aqui citados como no segundo tipo, esses eventos podem colaborar muito para a paz e a transformação do mundo, se as pessoas que deles participam o fazem por uma verdadeira espiritualidade do diálogo e da comunhão. Certos elementos dessa espiritualidade já fazem parte da experiência de muitos participantes. A ética do diálogo, a humildade de valorizar o outro e, enfim, a mística da paz, como uma utopia à qual servimos, são ferramentas neste caminho de construção do mundo transformado. A falta desses princípios espirituais fundamentais por parte de alguns participantes pode explicar fragilidades no processo de diálogo e encontro. A espiritualidade mais explícita evita que os encontros (qualquer que seja o modelo em que forem feitos) sejam como meros espetáculos ou instrumentos de propaganda para um determinado grupo religioso se autopromover. Nem se restringe a uma diplomacia tão cuidadosa que engessa a profecia. Em diversos encontros e cursos, é comum escutarmos mis­ sionários católicos que trabalham na Coréia do Sul e em alguns países da África declararem que, em seus esforços para dialogar e se integrar com outras religiões, não têm encontrado o mesmo interesse de diálogo e de trabalho em comum por parte de outras tradições espirituais. No diálogo inter-religioso, não é justo que uns definam os outros. Não nos compete dizer o que os outros

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pensam ou creem. Entretanto, não se pode negar que, algumas vezes, o diálogo inter-religioso parece ser mais do interesse dos cristãos do que de outras religiões. Quando lhes é pedido, há religiosos de outras tradições que aceitam a proposta do diálogo e de colaboração mais como concessão do que por convicção e compromisso espiritual ou teológico. É bom aprofundar as ra­ zões teológicas disso, seja na própria história (os cristãos vieram como colonizadores e agora querem dialogar?), seja também nos elementos da própria fé. Por exemplo: como religiões de caráter oral e de tradição mistérica (íntima ou secreta) podem dialogar com uma religião dominante, habituada à clareza doutrinai e que não tem percepção do segredo da fé? Além disso, comumente esses encontros são ligados a preocupações com a paz, a justiça e o cuidado com a natureza. Nem sempre o modo de as religiões expressarem a relação entre a fé e o cuidado com o social é o mesmo.

local, os que se propõem a encontros inter-religiosos tendem a valorizar a inserção sociopolítica. No entanto, em geral, ainda não existe uma linha de encontros inter-religiosos, a partir dos pressupostos e do jeito de ser das comunidades populares e da teologia da libertação. Não porque os grupos engajados em tais encontros rejeitem essa influência, mas porque os grupos popu­ lares ainda não se engajaram suficientemente em tal processo de encontros inter-religiosos e uns não conhecem suficientemente os outros.

Da parte das Igrejas cristãs há uma tendência a trabalhar pelo diálogo inter-religioso em países nos quais o Cristianismo é minoritário ou marginal (por exemplo, países nos quais o Islã é a religião oficial do Estado) e não ligar tanto ao diálogo com outras religiões quando a Igreja é majoritária. Na América Latina, alguns grupos de religião popular pensam que, depois de um tempo em que a Igreja os perseguia e condenava, esta agora os procura para cooptá-los. Como o Cristianismo parece perder terreno, as Igrejas estariam inventando pastoral afro ou indígena para reconduzir ao âmbito eclesial grupos e pessoas que estavam saindo.

Esboços fragmentados de teologías transreligiosas

Infelizmente, tanto nos encontros inter-religiosos, promovi­ dos por líderes religiosos como nos encontros de caráter mais livre, feitos por grupos espiritualistas ou de trabalho pela paz, a dimensão crítico-profética nem sempre é bastante forte. Nos ambientes dos fóruns sociais, de âmbito mundial, ou de caráter

É, então, um desafio urgente aprofundar elementos e instru­ mentos dessa espiritualidade transreligiosa a partir das opções da teologia da libertação. Ela é transreligiosa não no sentido de abolir as religiões ou de substituí-las, mas sim de ir além dos condicionamentos e limitações de cada uma.

Mesmo se não podemos dizer que existe “uma” teologia transreligiosa elaborada e comum a grupos ou entidades que atuam nesta área, é possível, sim, afirmar que, nos eventos macroecumênicos e em entidades consagradas a este assunto existem elementos teológicos que podem ser reunidos no esbo­ ço de uma teologia interespiritual (o termo é impróprio, mas expressa uma relação entre tradições espirituais diversas) que pode também ser transreligiosa (no sentido de unir elementos de várias religiões). Tradicionalmente, a teologia aprofunda a expressão de uma fé que é adesão a Deus em um caminho concreto. Como é expressão de um engajamento que é sempre pessoal e comunitário, a teologia comumente é cristã evangélica ou católica, muçulmana sunita ou budista tibetana. Quanto mais localizada e inserida, mais possível de se aprofundar. Por causa

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disso, há quem pense ser impossível falar de uma teologia trans­ religiosa. De um certo modo, isso é verdade. Aqui mesmo fiz uma alusão crítica a certa teologia que é negativa com relação às religiões, e é um pensamento desenvolvido por pessoas que não vivem a experiência em nenhuma comunidade religiosa concreta, portanto nem as conhece suficientemente para criticar. Uma teologia transreligiosa não parte desse tipo de pressupostos. Ela parte da experiência concreta de pessoas e grupos que vivem a fé e o engajamento de busca da intimidade divina na relação entre grupos religiosos e espirituais, situando-se na confluência do transreligioso. Quem conheceu o monge beneditino Bede Griffis, que foi abade do Mosteiro de Prinash (Inglaterra) e se tornou sanyasi na índia, sem deixar de ser monge cristão, sabe que ele viveu uma experiência transreligiosa não por desprezo ou desenraizamento de uma comunidade concreta, mas sim como vocação intercultural e interespiritual (no sentido que usamos aqui). No seu livro Retorno ao Centro, afirma: A lém de ser cristão, preciso ser hindu, budista, jainista, zoroastrista, sikh, m uçulm ano e judeu. Só desta m anei­ ra poderei conhecer a verdade e encontrar o ponto de reconciliação de todas as religiões... Esta é a revolução que se deve processar na m ente do ser hum ano ocidental. H á sécu los, ele vem se voltando para fora, perdendo-se no espaço exterior. A gora, precisa voltar-se para dentro e descobrir o seu ser; em preender a longa e difícil cam i­ nhada ao Centro, profundo interior do Ser.12

É importante saber que ele escreveu isso antes de todo o desenvolvimento da teologia pluralista. Ao reler a experiência de homens como Bede Griffis, como de tantos índios e negros que há séculos viveram, e ainda vivem, uma espiritualidade de 12 GRIFFITHS, Bede. Retorno ao Centro. São Paulo: Ibrasa, 1992. p. 9.

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pertença a duas ou três religiões, sem dualismos nem descompromisso para com nenhuma, podemos, então, compreender os fundamentos de uma teologia transreligiosa e interespiritual. Ela não será uma teologia desligada das teologias particulares de cada religião, mas poderá ir além delas. Não busca uma síntese artificial que acabaria sendo colonialista, mas convive com os fragmentos nem sempre unificáveis de cada caminho. Com todo o respeito pelo avanço positivo e profético que o esperanto significa para a babel de línguas no mundo, no campo das teo­ logias particulares uma teologia transreligiosa terá de ser mais do que uma espécie de “esperanto teológico”, porque ela parte de uma base e toma como objeto de reflexão experiências que são, muitas vezes, de grupos e crenças concretas que ela não pretende substituir, mas sim abrir mais ao outro e completar. Em resumo: ela se constitui como um conjunto de subsídios a serem somados às teologias particulares abertas ao pluralismo. Os elementos esparsos de teologias transreligiosas se refe­ rem, por exemplo, ao que se começa a chamar de ecoteologia e à espiritualidade ecológica a ela ligada. Se lermos livros sobre isso, descobriremos que cada tradição parte de elementos da sua cultura e sublinha aspectos complementares a outras. As reflexões vindas da tradição hindu ou budista sublinharão a sacralidade do universo e o principio da compaixão presente em todas as criaturas. As de tradição cristã, provavelmente, terão como base uma teologia bíblica da criação e uma refe­ rência à tradição patrística do Oriente muito mais aberta do que a teologia ocidental no que diz respeito à positividade da realidade do mundo. Se vierem de tradições afros, insistirão na sacramentalidade dos elementos naturais e na incorporação da divindade por cada pessoa. Entretanto, a partir desses pontos de partida específicos a teologia sobre o cuidado com o am­ biente se constrói de forma tão semelhante entre as tradições

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que podemos vislumbrar ali um elemento importante de urna teologia transreligiosa. O mesmo se poderá dizer sobre uma teologia da paz, sobre a busca de urna ética comum planetária e assim por diante.1314 Um dos principais elementos de uma teologia da libertação é partir sempre da prática. Uma teologia transreligiosa se refere à prática dos encontros interespirituais que reúnem pessoas de várias religiões, mas vai além disso. Não só reúnem pessoas que não são de nenhuma religião, como também convidam os próprios crentes das diversas tradições a irem além de suas confissões na formulação prática ou expressão de uma espiritualidade transreligiosa. O prefixo trans pode significar através de, como um transatlântico é um navio que atravessa o oceano Atlântico. É trans porque percorre as diversas tradições religiosas (portanto, não as rejeita ou supera), mas para levá-las além de si mesmas, como é a vocação espiritual de toda pessoa e todo grupo que quer ser de Deus. Esta teologia transreligiosa é na linha da teologia da libertação quando assume um caráter crítico com relação à realidade e se compromete em, partindo dos pequenos, inserir-se em sua caminhada de libertação. Esta teologia pode fazer de grandes desafios contemporâneos, como são a ecologia, a justiça internacional, a questão de gêneros e outras questões, caminhos de espiritualidade e, no caso, espi­ ritualidade transreligiosa ou que vá além da referência a uma religião apenas. O Espírito que chama a todos para além de si mesmos reúne pessoas e grupos em um espaço para além das instituições (transreligioso?)}4 13 BARROS, Marcelo; FREI BETTO. O amor fecunda o universo (ecologia e espiritualidade). São Paulo: Ed. Agir/Ediouro, 2009. p. 73 ss - principalmente o terceiro capítulo: O rosto divino da natureza. 14 Apesar da ambigüidade do termo “interespiritual”, emprego-o aqui no sentido de uma busca que integra não só caminhos religiosos, mas propostas mais livres e espirituais. Por exemplo: no encontro entre experiências espirituais cristãs e

Elementos de uma teologia transreligiosa Seguramente, se quem escrevesse estas páginas fosse de tra­ dição budista ou xintoísta, os elementos sublinhados, certamen­ te, seriam outros. Os aqui destacados são alguns entre outros e os valorizo apenas para iniciar certa classificação ainda provisória e a partir de minha experiência de trabalho e de compromisso com esta causa dos encontros e eventos interespirituais.

O caráter de uma teologia espiritual apofática Toda teologia, de qualquer religião que seja, é, antes de tudo, confissão de fé e adoração do Mistério uno e múltiplo que não pode ser contido por nenhuma tradição isolada. Uma teologia possível de ser chamada “transreligiosa”, mais do que qualquer outra, precisa assumir o caráter de teologia espiritual e apofática. Isso significa que ela parte da reverência silenciosa e não pretende explicar o inexplicável. O seu objetivo é aprofundar teologicamente as intuições e propostas da espiritualidade plu­ ralista e transreligiosa. Valoriza o pluralismo cultural e inter-religioso, não apenas como fato inevitável, mas como bênção divina para a humanidade. Valoriza a diversidade religiosa não apenas como direito humano, mas como valor espiritual. E se centra na interioridade. Este “interiorismo” não pode ser con­ fundido com um caminho meramente individual, menos ainda individualista. Não se trata de negar a dimensão comunitária e mesmo organizativa das tradições espirituais e sim de buscar um jeito de tirá-las de uma cultura autorreferente e autocentrada. budistas elas podem ser inter-religiosas, podem ser transreligiosas, além de serem interculturais. Uma busca de convergência entre experiências espirituais Xavante e Guarani não é em si inter-religiosa ou transreligiosa, já que elas têm por trás uma tradição cultural e espiritual, mas não uma ou duas religiões organizadas e estruturadas como religiões.

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Contemplação do mistério uno e m últiplo A pergunta sobre Deus tem de ser colocada sempre para ajudar as pessoas que se lançam neste caminho a superar certas estreitezas das tradições, como, por exemplo, querer definir se é monoteísta ou politeísta, ou panteísta, ou, ainda, sincretista. Tais catalogações simplificam demais os conceitos, podem cair em dogmatismos e não ser justas com a fé de muitas pessoas que não entram nesses esquemas. Em geral, as tradições indígenas e negras, por exemplo, reconhecem uma fonte única de tudo, um Mistério maior que seria um único Deus (Olorum, Zambi, ou Manitu, ou Tupã) e muitas manifestações e expressões deste Mistério divino.15 A Teologia Pluralista do Apofatismo tem, hoje, dificuldade com cultos que, de forma superficial ou quase vulgar, não he­ sitam em nomear Deus como Senhor Todo-Poderoso e reler os textos da tradição de forma fundamentalista. Nesse sentido, uma oração centrada na tradição vocal (recitar textos antigos) que, por muitos séculos, alimentou gerações, hoje não apenas põe problemas ecumênicos como pode não alimentar quem não se conforma só em repetir confissões feitas em outros contextos culturais. Na Europa, em alguns ambientes tocados pelo secularismo, grupos cristãos fizeram uma tradução adaptada dos salmos, tentando explicitar menos atributos divinos, como evitar desig­ nações patriarcalistas e exclusivistas. O esforço, ainda incipiente,

15 Sobre Deus, olhado nesta perspectiva pluralista e inter-religiosa, ver: BARROS, Marcelo; TOMITA, Luiza. Uno e múltiplo: Deus numa perspectiva pluralista.

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contém uma opção de amor e de cuidado com o outro que indica esta espiritualidade transreligiosa. Em muitas religiões, como em muitos eventos transreligiosos, a teologia subjacente e que pode ser desenvolvida é na linha de uma pneumatologia macroecumênica. Mesmo tradições não teístas conseguem sentir-se bem, quando se fala do mistério como “Espírito” e energia amorosa. É também uma abertura a uma teologia feminista macroecumênica que vê na figura do Espírito Mãe e Esposa uma imagem que sintetiza divindades femininas e o simbolismo de toda mulher.

Abrir-se aos novos sacramentos do outro O poeta e filósofo Paul Eluard afirmava: “Não convém ver a realidade tal como eu sou”.16Essa constatação filosófica vale ainda mais para o campo do encontro intercultural ou interes­ piritual. Infelizmente, a tendência das religiões é serem autossuficientes e autorreferentes. Isso faz com que grande parte das pessoas não consiga mais encontrar nelas aquilo que se espera. Em 1965, o Concilio Vaticano II afirmava: Os homens esperam das diversas religiões resposta para os enigmas da condição humana, os quais, hoje como ontem, profundamente preocupam seus corações: que é o homem? qual o sentido e a finalidade da vida? que é o pecado? donde provém o sofrimento, e para que serve? qual o caminho para alcançar a felicidade verdadeira? que é a morte, o juízo e a retribuição depois da morte? finalmente, que mistério último e inefável envolve a nossa existência, do qual vimos e para onde vamos? (Nostra Aetate, n. 1).

Teologia latino-americana pluralista da libertação. São Paulo: Paulinas, 2006. Terceiro livro da coleção “Pelos muitos caminhos de Deus”, da ASETT, publicado em português por Paulinas Editora. Serie original completa está disponível em: .

16 Cf. BACHELARD, Gastón. A psicanálise do fogo. São Paulo: Martins Fontes, 1999. p. 1.

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Se, hoje, as religiões não conseguem cumprir esta missão, não é o caso de pretender substituir isso por alguma estrutura transreligiosa ou intercultural. Seria uma nova religião transre­ ligiosa. Theo Sundermeier afirmava: “A religião é uma resposta coletiva dos seres humanos à experiência da transcendência que, concretamente, se expressa em ritos e em normas éticas”.17 E Raimon Panikkar diz: “A religião é o caminho que o ser humano toma para conseguir a meta da vida. Em resumo: a religião é o caminho da salvação”.18Ao afirmar isso, parece que ambos os teólogos se referem mais a uma experiência espiritual das pes­ soas, contida nas religiões, do que, em si, à estrutura religiosa. Uma teologia espiritual transreligiosa reafirma isso, mas trans­ põe essas afirmações para a experiência espiritual do outro. O que as religiões ofereciam para a salvação das pessoas, de certa forma, não lhes pertence. São elementos que, no Cristianismo, se chamam “sacramentos”, mas existem em todas as religiões. No Judaísmo, a circuncisão e o Yom Kipur têm características de sacramentos. No Islã, a esmola feita durante o Ramadã, a peregrinação a Meca e outros ritos têm densidade semelhante. No Candomblé, os ritos de iniciação e as festas que adoram òs Orixás nos diversos elementos da natureza... No Santo Daime, a bebida sagrada... Enfim, em todas as tradições há caminhos e instrumentos que nos religam ao Divino. Hoje, o diálogo interespiritual e o próprio encontro com o outro se constituem como sacramentos fundamentais desta espiritualidade nova. Tais eventos não são cotidianos e, para serem profundos e verdadeiros, supõem uma vida espiritual na qual a referência ao outro seja constante e estrutural. Os encontros e fóruns inter-religiosos podem nos tornar capazes 17 SUNDERMEIER, Theo. Was ist Religión? Religionswissenschaft im theologischen Kontext. Ein Studienbuch. Gütersioh, 1999. p. 27. 18 PANIKKAR, R. II dialogo interreligioso. Assisi: Cittadella, 2001. p. 166.

de nos alimentar dos sacramentos que vêm dos outros e podem nos ligar ao Amor Divino que se comunica conosco mais através do diferente do que de nossas próprias referências culturais e religiosas.

Uma mística centrada na Vida A teologia transreligiosa parte da mesma proposta da teologia da libertação de ligar profundamente fé e vida, espiritualidade e compromisso transformador. Isso ocorre quando os encontros inter-religiosos se centram em assuntos como paz, justiça e eco­ logia. Entretanto, não se trata apenas de grandes temas e sim do cuidado em testemunhar um tipo de espiritualidade aberto à vida e grávido de esperança. Atualmente, no mundo mais secularizado, para que isso possa se expressar de forma verdadeiramente ecumênica, tal tipo de expressões (encontros, atos inter-religiosos e cultos) terá de ser extremamente sóbrio e desapegado de certos estilos que não ajudam. Por questão de justiça e de opção pelos empobrecidos, essa teologia transreligiosa tem de valorizar prioritariamente as expressões espirituais e caminhos tradicionais dos grupos oprimidos. Na América Latina, mas certamente também na África, como na Austrália, os grupos tradicionais indígenas e de religiões autóctones sofreram todo tipo de perseguições. As próprias culturas dos índios e dos negros tinham sido pratica­ mente consideradas como em extinção. Há dez anos o Padre Comblin escrevia: “No Ocidente, a cultura ocidental moderna ainda não acabou de exterminar toda a cultura Pré-Moderna e ainda o movimento científico como tal entra em contradição com essa cultura tradicional e a expulsa irreversivelmente”.19 19 COMBLIN, J. Cristãos rumo ao século XXI. Nova caminhada de libertação. São Paulo: Paulus, 1996. p. 250- 268.

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Um sociólogo brasileiro confirmava: “O poder expansivo dos meios de comunicação parece ter abolido, em vários momentos e lugares, as manifestações da cultura popular, reduzindo-as à função de folclore para turismo”.20 Entretanto, apesar de tudo isso, essas culturas não só resistem como até se fortalecem. Esse movimento transreligioso aprende muito da vitalidade espiritual e da abertura intercultural dessas expressões. Mesmo se elas também precisam sempre ser reli­ das, nada disso diminuirá a dimensão do mistério contido no amor e no respeito profundo ao outro, que toma mesmo uma fisionomia mística.

Martelo Barros

O rabino Abraham Heschel expressa tal realidade quando escreve: É o sentido do sublime que devemos considerar como a raiz das atividades criativas do ser humano nas artes, no pensamento e na nobreza da vida. [...] A tentativa de comunicar o que vemos e não conseguimos dizer é o eterno tema da sinfonia inacabada da humanidade. É uma aventura cuja realizaçãojamais será consumada. Somente aqueles que vivem de palavras emprestadas acreditam na sua capacidade de expressão. Uma pessoa sensível sabe que o intrínseco, o mais essencial, nunca é expresso.22

O filósofo e espiritualista italiano Ernesto Balducci assim se expressou: Depois do universalismo político do Império Romano, tivemos o universalismo teocrático. Roma passou a ser o papado. Não se esqueçam que foi a autoridade do papa que legitimou e tomou cristã a invasão da América e o genocídio que ali se cometeu. Depois, chegamos ao uni­ versalismo moderno, laical e republicano, mas igualmente autorreferente e sem sentido do Outro. Martin Buber dizia que o homem de hoje é um homem sem casa. Mas será que aceitamos este empobrecimento, ou procuramos seguranças artificiais nos sistemas que nos prometem reforçar a identidade, mas sem nenhum senso de alteridade?21

20 BOSI, A. Dialética da colonização. 3. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. p. 328. 21 BALDUCCI, Ernesto. L 'altro, im orizzonteprofético. Firenze: Ed. Cultura delia Pace, 1996. p. 13ss.

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22 HESCHEL, A. O homem não está só. São Paulo: Paulus, 1974. p. 16.

Teologia e pluralismo religioso. Questões metodológicas

A

g en o r

B

r ig h e n t i

A abordagem em questão apresenta uma dificuldade inicial: ao relacionar “pluralismo” e “teologia” se poderia pressupor, de antemão, a pluralidade de teologías como um fato já legitimado. Entretanto, a pergunta primeira endereçada à própria teologia é se ela pode ser plural e, em particular, no caso da teologia no seio da Igreja Católica, se é possível a coexistência de diversas teologías, sem comprometer a unidade ou a catolicidade da fé. Outra questão, sem entrar no mérito da discussão do fenômeno do pluralismo em si, está em precisar o que se entende por “teolo­ gia” e como situá-la no contexto de pluralismo religioso atual. A terceira se refere às condições de possibilidade de uma teologia plurirreligiosa ou pluriconfessional, ou, mais radicalmente, de uma teologia transreligiosa ou transconfessional. Questão esta que remete, entretanto, a outra dificuldade que lhe é subjacente: dado que todo saber é contextualizado e que a religião é a alma de uma cultura, é preciso perguntar antes sobre as condições de possibilidade de uma teologia pluricultural ou transcultural. A pluriculturalidade precede a pluriconfessionalidade, assim como uma possível transculturalidade precede as condições de possibilidade de uma teologia transconfessional. Como se pode perceber, são questões que nos remetem à semântica (“o quê”) e à sintática (“o como”) da teologia.

T eología e pluralismo religioso. Q uestões metodológicas

Agenor Briqhenti

Entretanto, dado os limites destas poucas páginas disponíveis, nossa reflexão não pode pretender ser tão abrangente. Vamos nos limitar ao âmbito da semântica da teologia em relação ao pluralismo religioso e, por força das circunstâncias, ao plura­ lismo cultural. Assim, além de deixarmos descoberto o campo da sintaxe, o da semântica estará longe de ser esgotado. É que o objetivo destas reflexões, mais do que pretender tirar conclusões programáticas, quer simplesmente trazer elementos para o deba­ te, que certamente ainda por muito tempo continuará em aberto.

Cristianismo.2 Falar em teologia era referir-se ao discurso regrado e normatizado da fé no seio das Igrejas cristãs. E, de modo mais estreito ainda, por “teologia” não se entendia nem mesmo a teologia cristã, mas tão somente a teologia elaborada pelo Cristianismo ocidental, e, ainda, no Primeiro Mundo.3Em outras palavras, o termo “teologia” se restringia não só a um eclesiocentrismo tributário de uma postura monorreligiosa, resquício da teocracia medieval, como era acaparado por um eurocentrismo, fruto de uma miopia etnocêntrica, que desem­ bocava em um Cristianismo monocultural.

I. Pluralismo e teologia

Felizmente, a irrupção da pluriculturalidade e da plurirreli­ giosidade na Modernidade tardia implodiu a semântica teoló­ gica tradicional, obrigando a Igreja e os teólogos a alargarem o conceito de teologia, de tal modo que ela pudesse abrigar sob suas asas as novas realidades emergentes. E nisto estamos ainda hoje, com resultados parciais, ainda que uns mais satisfatórios que outros.

Segundo Mircea Eliade, a maior descoberta do século XX foi a existência das culturas1 e, com ela, a descoberta da reli­ gião do outro, a alma de sua cultura. Em decorrência, pouco a pouco foram adquirindo carta de cidadania a pluriculturalidade e a plurirreligiosidade, com conseqüências irredutíveis para os paradigmas da racionalidade moderna - para as ciências em geral, incluída a teologia. A conseqüência mediata para a ciência teológica é sua refundação epistemológica e metodológica, certamente a mais desafiante tarefa no futuro próximo da teologia, mas já em franca atividade. Tarefa esta que começa pela reformulação do próprio conceito de teologia. A refundação de sua sintaxe pressupõe a refundação de sua semântica.

Um desses resultados é uma semântica teológica que passa de uma teologia monorreligiosa e monocultural ao outro extremo: uma teologia transconfessional ou transreligiosa.4 Trata-se da posição de W. Cantwel Smith: a passagem de uma “teologia cristã” a uma “teologia mundial”, a um metarrelato elaborado a partir da interação das várias tradições religiosas existentes no planeta.5*Seria uma teologia para a qual as diferentes expressões religiosas são sujeito e não objeto de um discurso reflexo das

Durante muito tempo, o termo “teologia”, nos círculos cristãos, foi considerado como propriedade exclusiva do

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1

Cf. COMBLIN, J. Evangelização e inculturação. Implicações pastorais. In: FABRI DOS ANJOS, M. (org.). Teologia da inculturalção e inculturação da teologia. Petrópolis: Vozes/Soter, 1995. p. 57-89 - aqui, p. 57.

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5

Cf. METZ, J. B. La teología en el ocaso de la modernidad. Concilium 191(1984) 31-39. DUPUIS, J. Rumo a uma teologia cristã do pluralismo religioso. São Paulo: Paulinas, 1999. p. 18. Às vezes, dá a impressão que, historicamente, não há como escapar da “lei do pêndulo”. Cf. CANTWEL SMITH, W. Towards a World Theology: Faith and the Comparative History o f Religión. Philadelphia: Westminster, 1981.

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Aqenor Briqhenti

T eologia e pluralismo religioso. Q uestões metodológicas

mesmas e na qual todas as religiões e todas as comunidades religiosas do mundo se reconheceriam.6 Tal projeto consistiria numa teologia “da fé em todas as suas formas” ou em uma “teologia da história religiosa da humanidade”.7Nessa hipótese de trabalho, não é que uma teologia transconfessional ou trans­ religiosa não fosse uma teologia cristã, seria antes uma teologia de todos - de cristãos e não cristãos, ou seja, uma teologia “também” cristã, uma vez que é igualmente judaica, islâmica, hinduísta, budista etc. Ora, um tal pluralismo teológico esbarra em dois obstácu­ los: de um lado está a singularidade das diversas experiências religiosas, de outro lado está a singularidade das múltiplas ma­ trizes culturais que dão suporte a tais experiências. Em outras palavras, se já não fosse pequeno o desafio da singularidade das diversas tradições religiosas, soma-se a ele a singularidade das múltiplas matrizes culturais, não só em relação às diferentes confissões, como no seio de cada confessionalidade. Por isso, um caminho mais satisfatório seria partir da hipótese, não da transconfessionalidade e da transculturalidade da teologia, mas do pressuposto da pluriconfessionalidade e da pluriculturalidade da teologia. Uma teologia transconfessional e transcultural per­ deria de vista tanto a singularidade e a especificidade de cada

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Ibid., p. 124. Ibid., p. 125. Numa perspectiva similar, alguns teólogos europeus e norte-ameri­ canos, como H. Küng, J. Moltman, Tracy, Fox, assumindo o vazio de sujeito no contexto de Pós-Modemidade, têm postulado a necessidade de uma refundação da teologia numa teologia não confessional, mas ecumênica e macroecumênica, ecológica e holística. Sobre o paradigma “crítico-ecuménico” de H. Küng, ver: KÜNG, H. Teología para Ia postmodernidad. Fundamentación ecuménica. Madrid: Alianza Editorial, 1989. Ver também: A la búsqueda de un ethos básico universal de las grandes religiones. Concilium 228 (1990) 289-309. Sobre apos­ tura de Tracy, ver: TRACY, D. Más allá del relativismo y del fundamentalismo? La hermenéutica y el nuevo ecumenismo. Concilium 240 (1992) 143-153. Dar nombre al presente. Concilium 227 (1990) 81-107.

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confissão religiosa como a singularidade e a especificidade de cada cultura, até mesmo no seio de uma mesma tradição religiosa.

2. Confessionalidade e teologia Em primeiro lugar, do lado da religião, um metarrelato trans­ confessional mundial tipo “teologia da religião comparada” ou “teologia mundial”, construido por todos, esbarra no fato da existência de “fés religiosas”,8 que se distinguem por seu con­ teúdo próprio, o que faz com que a diversidade dos conteúdos das várias expressões de fé dê origem, inevitavelmente, a uma diversidade de teologías confessionais. Como discurso regrado e normatizado da fé, a teologia não pode deixar de ser confes­ sional, uma vez que o conteúdo próprio de cada experiência religiosa se dá na adesão de fé da pessoa ou da comunidade, e aqui se constitui, em última instância, o objeto da teologia.9* É evidente que o caráter confessional de toda teologia não se esgota na própria confessionalidade. Ao contrário, a con­ fessionalidade própria se explicitará melhor na medida em que estiver aberta à totalidade da experiência religiosa da hu­ manidade. O confessional, sem um horizonte auténticamente universal, desemboca em um confessionalismo, caminho para o fundamentalismo, incapaz de reconhecer e de se reconhecer

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Entendemos aquí por “fé” a experiência pessoal e comunitária de Deus, no seio de uma comunidade religiosa. Ainda que o objeto da teologia seja Deus, como diz Tomás de Aquino, como não temos dele senão uma compreensão da revelação à nossa medida, na prática, o objeto da teologia acaba sendo a experiência pessoal e comunitária de Deus. Daí, de modo tão acertado, a teologia latino-americana entender-se como ato segundo - “reflexão da práxis da fé” ou da “práxis dos cristãos e das pessoas em geral”, como gostava de dizer Clodovis Boff.

Agenor Briqhenti

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nas demais denominações religiosas e de se enriquecer com outras teologías confessionais.10

na medida em que sua elaboração não escaparia da contingência do sujeito a uma determinada cultura.

Entretanto, como bem aponta R. Panikkar, dado que as “fés” diferem de modo substancial, assim também o farão as teologías. Segundo ele, na base do imperativo atual de um pluralismo teológico não está a necessidade de uma “teologia comum”, que nivele as diferenças e desemboque em um denominador comum, mas a obrigatoriedade da admissão da pluralidade e da diversidade de crenças e da aceitação recíproca, em uma relação de alteridade gratuita e de enriquecimento mútuo. Em lugar da assimilação recíproca, mediante um possível reducionismo do conteúdo da fé das diferentes denominações religiosas, antes se impõe a necessidade de uma abertura dialogal que permita o enriquecimento mútuo no contexto da diversidade de tradi­ ções.11Isso não anula a possibilidade de uma “teologia geral das religiões” que enfoque todas em seu conjunto. Mas, nesse caso, inevitavelmente, será uma teologia de “todas” as confissões des­ de uma experiência religiosa em particular: uma teologia cristã das religiões ou uma teologia judaica, hindu ou muçulmana das religiões e não uma teologia transreligiosa ou transconfessional.

Por isso, as teologías não só são confessionais como são culturais, em uma relação de pluriconfessionalidade e de pluriculturalidade, mas não de transconfessionalidade e de transculturalidade. Por uma dupla razão: primeiro, porque toda confessionalidade se dá num contexto cultural e pluricultural; segundo, porque toda experiência religiosa, mesmo no interior de uma mesma confessionalidade, também acontece em um contexto cultural singular, distinto do contexto da experiên­ cia religiosa de outras comunidades, no interior da mesma confessionalidade.

3. Culturalidade e teologia Do lado da cultura, um metarrelato confessional transcultural mundial esbarra na pluriculturalidade das experiências religio­ sas das diversas confissões religiosas, até mesmo no interior de uma mesma confessionalidade. Uma pretensa teologia confessio­ nal transcultural não deixaria de ser uma teologia monocultural, fruto da universalização de uma determinada particularidade, 10 Aqui reside a importância do diálogo ecumênico e macroecumênico para a teologia. 11 Cf. PANIKKAR, R. II dialogo intrareligioso. Assisi: Cittadella, 1988.

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É que os conteúdos revelados da fé, é verdade, são transculturais, mas são sempre recebidos e transmitidos por sujeitos contextualizados. Isso lembra o axioma tomista - “cognita sunt in cognoscente secundum modum cognoscentis”.12Não existe “revelação” não inculturada, o que faz da teologia um discurso “sobre” o Absoluto e não um discurso absoluto. A teologia é sempre um produto humano, inevitavelmente ligado ao “para­ digma de uma época”, como afirma Thomas Kuhn.13Por mais que queira, ela jamais poderá prescindir daquele conjunto de convicções, valores, modos de pensar e de agir partilhado por uma determinada comunidade.14Isso desqualifica toda e qual­ quer pretensão de uma versão de Cristianismo não inculturada ou transcultural e de uma apreensão da mensagem revelada 12 TOMÁS DE AQUINO. Suma teológica, II-II, q. 1, a. 2c - “as coisas conhecidas estão no sujeito que conhece, segundo seu próprio modo de conhecer”. 13 Cf. KUHN, Thomas. La struttura delle rivoluzioni scientifiche. Torino, 1969. [Ed. bras.: :A estrutura das revoluções científicas. Trad. de Beatriz Vianna Boeira e Nelson Boeira. São Paulo: Editora Perspectiva, 1994.] 14 BELLINO, Francesco. Filosofia da ciência e religião. Panorama. In: PENZO, Giorgio; GIBELLINI, Rosino (org.). Deus nafilosofia do século XX. São Paulo: Loyola, 1998. p. 567.

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Agenor Briqhenti

independente das contingências em que estão inseridos os receptores da mesma. O que não empobrece em nada a revela­ ção, pelo contrário, livra-a de tornar-se uma ideologia. Como também livra a teologia de constituir-se num discurso genérico ou fundamentalista.

objetividade total. Todo ponto de vista é uma visão a partir de um ponto. Por sua vez, a contingência dos lugares rompe com a pretensão de universalismo; toda produção teórica é uma prática contextualizada. E a contingência do interesse rompe com a pretensão de neutralidade; todo discurso é de certa forma ideológico, no sentido de interessado.

4. Pluralismo teológico e unidade da fé

Por outro lado, a fé é sempre maior que a teologia, é verda­ de, mas não absolutamente inefável e, por isso, capaz de ser experienciada e refletida criticamente. E, ao ser experienciada, torna-se cultura. Consequentemente, enquanto reflexão da ex­ periência de fé, toda e qualquer teologia é um produto cultural, e toda teologia é uma determinada versão de uma confessionalidade, expressão de uma forma de inculturação da fé e, em conseqüência, um discurso particular. Por isso, as comunidades confessionais, no seio das diversas culturas, não só podem como estão condicionadas a ter sua própria teologia sem, em princípio, atentar contra a unidade da fé. Pois, se uma é a fé, muitas são as vivências da mesma (Anselmo) e, consequentemente, muitas serão as teologias. A diversidade de teologías não só é legítima como se fazem necessárias várias teologias para enriquecer, com novas perspectivas, a superabundância de sentido do texto revelado, acolhido em múltiplas experiências de fé.

O Concilio Vaticano II funda na “catolicidade da Igreja” as “legítimas diversidades”, pelo fato de a obra evangelizadora assumir “os costumes dos povos”, ou seja, suas culturas (cf. LG, n. 13). A legítima diversidade litúrgica, espiritual, disciplinar, diz o Concilio, se estende também “em relação à enunciação teológica das doutrinas” que, “em vez de se oporem, não poucas vezes se completam mutuamente” (UR, n. 17,1). A legitimidade do pluralismo teológico se deve a dois fato­ res. Por um lado, ao fato de a realidade da fé ser transcultural, mas de sua formulação e expressão serem sempre culturais ou contextuáis.15Do lado do mistério da fé está a superabundância de sentido do texto revelado, que ultrapassa as possibilidades de toda e qualquer apreensão e interpretação. Do lado de sua formulação está a inevitabilidade das condições materiais de toda prática, incluída a prática teórica e, portanto, também a prática teológica, como são as contingências dos sujeitos, dos lugares e do interesse.16Como bem explicitaram os filósofos da práxis, a contingência dos sujeitos rompe com a pretensão de 15 Neste particular, seguirei de perto C. BOFF, Teoria do método teológico. Petrópolis: Vozes, 1998. p. 493-521. Ver também: RAHNER, K. El pluralismo en teología y la unidad de confesión de la Iglesia. Concilium 49/50 (1969) 427-448. GEFFRÉ, C. Diversidad de teologías y unidad de fe. In: AA.VV. Iniciación a la práctica de la teología. Madrid: Cristiandad, 1984. p. 123-148. 16 LIBANIO, J. B. Teología de la liberación. Guia didáctica para su estudio. Santander: Editorial Sal Terrae, 1989. p. 116. (Col. Presencia Teológica 55.)

Entretanto, o pluralismo teológico não pode cair num relati­ vismo teológico, sob pena de comprometer a transculturalidade da mensagem revelada. Neste caso, não só a teologia seria um produto cultural como reduziria a revelação a um dado mera­ mente cultural, comprometendo sua transcendentalidade. Diante da crise dos metarrelatos, não pode a teologia resignar-se ou confinar-se em minirrelatos fragmentados e autônomos entre si. Não se pode perder de vista que a unidade é o pivô sobre o qual se movem as diferenças, o que faz com que uma teologia só seja legítima quando está em consonância com o conteúdo

T eologia e pluralismo religioso . Q uestões metodológicas

essencial da revelação.17 É sobre o essencial que as diferenças precisam estar alicerçadas. No interior do mistério revelado, nem tudo tem o mesmo valor e implica o mesmo grau de vinculação. Um sadio pluralismo teológico precisa fundar-se nas bases universais da fé, de tal modo que estas sirvam de padrão de mediação da unidade confessional, que se constrói sempre em torno da verdade, não que possuímos ou possuiremos, mas que nos possui.

Considerações finais Tendo presente o que acabamos de expor, tudo parece indicar que, do lado da religião, é problemática uma teologia transconfessional, mas possível e necessária uma teologia pluriconfessional. Por isso, ainda que o termo “teologia” seja de origem cristã, do ponto de vista religioso, quando hebreus, muçulmanos ou hindus constroem a própria interpretação da fé, seja em relação à própria confissão, seja em relação ao pluralismo das tradições religiosas, também fazem teologia. E dado que, do ponto de vista cultural, essas interpretações intraconfessionais, incluída a cristã, são feitas desde matrizes culturais diversas, mergulhamos na inevitabilidade de uma teologia, além de pluriconfessional, também pluricultural.

17 Cf. RAHNER, K. O pluralismo teológico e a unidade da Igreja. Concilium 6 (1969). LIBANIO, J. B.; M URAD, A. Introdução à teologia. Perfil, enfoques, tarefas. Sâo Paulo: Loyola, 1996 - de modo especial, p. 245-284. DELHAYE, Philippe. Unité de foi et pluralisme des théologies dans les récents documents pontificaux. Esprit et Vie 82 (1972) 561-569.

Agenor Briqhenti

O que há de diferente em uma teologia de caráter plurirreligioso e pluricultural com relação a uma teologia transconfessional e transcultural é que se busca priorizar a realidade à abstração, a existência à essência, enfim, a experiência viva das pessoas em suas comunidades, nas circunstâncias concretas, aos conceitos e generalidades, reflexos de uma miopia religiosa e cultural.

A teologia interconfessional é possível?

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A teologia inteconfessional (interfaith) é possível? Minha resposta instintiva é um não! enfático. Essa resposta, no entanto, terá de ser amenizada com um cuidadoso, mas persistente, sim! Tal é a tarefa deste texto. Discutirei por que acho que a noção de teologia interconfessional parece, em primeiro lugar, um oxímoro e, depois, continuarei para sugerir por que também a vejo muito como o caminho para o futuro.

A

te o lo g ia in te r c o n f e s s io n a l:

um oxímoro!

Comecemos, então, com a razão pela qual a teologia inter­ confessional parece uma contradição em termos. A teologia, se aceitarmos a definição tradicional anselmiana, é “a fé em busca de compreensão”. Ela pressupõe fé. Essa fé é, de um modo geral, paroquial, um produto de percepções confessionais da vida e da Realidade Ultima. Cada comunidade religiosa tem sUa fé específica. Essa fé é algo compartilhado apenas pelos membros do grupo, a saber, pelos cosseguidores. Fora disso a fé nãodaz sentido ou pode até parecer um absurdo. Acrescente o prefixo “inter” à palavra religião e temos o equivalente a algo entre religiões ou em meio a religiões. Assim, “inter-religioso” implica o cruzamento de tradições religiosas para desenvolver

Edmund Kee-Fook Chia

A TEOLOGIA INTERCONFESSIONAL É POSSÍVEL?

algo que abarque todas ou pelo menos várias religiões. A teolo­ gia interconfessional, portanto, é aquela teologia que pertence a todas, mas ao mesmo tempo não pertence a nenhuma. Virando o axioma sobre religião de Max Mueller de cabeça para baixo, a teologia interconfessional parece uma teologia que conhece todas, mas não conhece nenhuma. Ela é específica na medida em que afirma sua universalidade. Mas será que essa afirmação de universalidade elimina suas particularidades? Será que uma teologia interconfessional pode ser, ao mesmo tempo, uma teo­ logia cristã, islâmica ou hindu, ou ela passa a ser outro sistema teológico, uma entidade totalmente nova, um tertium quidl Voltando-nos especificamente para a questão da teologia, a pergunta mais crucial é: pode haver uma teologia que atravesse as tradições religiosas? Uma teologia que se desenvolve a partir de contextos específicos e com suas histórias, valores, visões do mundo e visões da vida próprias pode ser universalizada? Concretamente, se olharmos para a teologia como sendo - de acordo com a tradição helenística - o “estudo de Deus”, esse estudo é interpretado da mesma maneira por pessoas de religiões diferentes e por todas as tradições religiosas? Para começar, até mesmo o próprio conceito de Theos já não é reconhecido universalmente. Se nem sequer faz algum sentido, a teologia não faz nenhum sentido para tradições religiosas que são orga­ nizadas de forma diferente, especialmente aquelas que não têm conceitos teístas e que, ainda que os tenham, podem negar que o Theos pode algum dia ser estudado por meio de um discurso argumentado. Além disso, mesmo que a teologia seja compreendida mais genericamente como a reflexão disciplinada e sistemática da vida e do mundo em geral, ainda assim não teríamos um con­ senso a respeito da possibilidade de uma teologia interconfes­ sional Por certo, cada religião tem suas próprias epistemologías,

metafísica, cosmologías, antropologia, soteriologias, escatologias etc. Muitas dessas não têm uma correspondência exata entre si. Por exemplo: se a teologia cristã nos ajuda a entender o começo da vida com base no Gênesis, algumas religiões não têm concepções lineares do tempo e, assim, não têm qualquer alfa ou ômega. E mesmo que as tenham, seus mitos sobre a criação podem não envolver Adão e Eva ou até mesmo um Deus Criador. E mais: se a teologia cristã oferece uma explicação para o pecado e a necessidade de redenção em Jesus Cristo, algumas religiões têm suas próprias teorias sobre a negatividade e disfunção do mundo e, na maioria dos casos, a necessidade de um messias não faz parte de sua soteriologia, mesmo que, para começar, ela tenha uma. Por certo, a salvação como um fim religioso não é necessariamente uma doutrina universal.1Poderíamos continuar por horas nesse tipo de análise compare-e- contraste, mas basta dizer que teríamos dificuldade até de descobrir temas teológicos básicos que estivessem presentes em todas ou na maioria das tradições religiosas. E mesmo que os pudéssemos encontrar, um consenso sobre a atribuição teológica desses temas seria praticamente impossível. Sem nos aventurarmos a passar por várias tradições reli­ giosas, já vimos que, mesmo em uma única tradição religiosa, não existe algo como uma única interpretação teológica de uma variedade de questões. Pensem sobre os muitos debates inter-religiosos dentro da própria comunidade cristã, tais como a divindade de Jesus ou a necessidade de Cristo ou da Igreja para a salvação, ou o debate Criacionismo versus Evolução, ou as controvérsias morais sobre cremação versus enterro, ou a moralidade do homossexualismo ou da pesquisa com 1

Veja: HEIM, Mark. Salvations; Truth and Difference in Religión. Maryknoll: Orbis, 1995. HICK, John. An Interpretation o f Religión; Human Responses to the Transcendent. New Haven: Yale, 1989. p. 233-296.

A TEOLOGIA INTERCONFESSIONAL É POSSÍVEL?

EdmundKee-FookChia

células-tronco, ou o conflito entre pró-escolha e pró-vida. Urna vez mais, poderíamos continuar ad infinitum nessa lista e des­ cobrir que talvez exista mais diversidade interna nas tradições do que homogeneidade. E é por isso que é uma falácia falar do Cristianismo (ou do Islamismo, ou do Judaismo, ou do Siquismo) no singular, como se fosse um monolito ou como se houvesse apenas urna única versão de cada um deles.

T eo lo g ia in te r c o n f e s s io n a l:

boa ideia!

Não me interpretem mal. Apesar das dificuldades, não estou de forma alguma sugerindo que a ideia de uma teologia intercon­ fessional é ruim. Pelo contrário, acho que é urna ideia fabulosa e laudável. É especialmente bem-vinda em urna época em que as religiões continuam a ser lançadas umas contra as outras. Além disso, com relação ao Cristianismo, isso parece muito uma progressão lógica em sua teologia de outras religiões. Se em um determinado momento o Cristianismo viu as outras religiões como repositórios do mal esperando para serem conquistadas e depois, mais tarde, como versões incompletas da verdade à espera de complementação, agora estamos no estágio em que parece que os cristãos aceitam outras religiões como sendo basicamente verdadeiras mesmo que a questão de isso ser uma questão de fato {de facto) ou de princípio {de iure) ainda seja tema para muitos debates.2 Visto nesse contexto, o próprio ato de desenvolver uma teologia interconfessional sugere que não só a verdade dessas outras religiões já não está em questão, mas também que nós as vemos como locus theologicus para nossa própria teologia cristã. De certa forma, é um passo adiante, na 2

Veja a Declaração do Vaticano Dominus Iesus; On the unicity and salvific universality o f Jesus Christ and the Church. Veja também: DUPUIS, Jacques. Towards a Christian Theology ofReligious Pluralism. Maryknoll: Orbis, 1997. p. 9-13. KNITTER, Paul. Introducing Theologies ofReligions. Maryknoll: Orbis, 2002.

direção de distinguir como o Cristianismo precisa se compre­ ender à luz da realidade do pluralismo religioso. Observem que o exemplo que dei acima vem da tradição cristã. Foi de propósito. Não só porque estou mais familiarizado com a história da atitude do Cristianismo com relação a outras religiões, mas também porque considero a iniciativa da teolo­ gia interconfessional como uma tarefa específicamente cristã. Por quê? Porque outras religiões, especialmente as orientais, não têm essas preocupações. Não é que lhes falte consciência interconfessional, mas sim porque essa consciência já está pro­ fundamente enraizada em sua psique religiosa e construída em suas estruturas teológicas. O Hinduísmo, por exemplo, sempre aceitou bem o pluralismo religioso. É por isso que ele é chamado de religião de muitos deuses, 330 milhões deles para ser exato. O axioma de Rig Veda “a verdade é única, mas os sábios a chamam por muitos nomes” é muito citado para explicar a abertura do Hinduísmo para o pluralismo não só nas outras religiões, mas também internamente. Não há um único caminho para a verdade no Hinduísmo, assim como não há uma única religião verdadei­ ra, portanto nenhuma teologia para todas. Sugerir uma teologia interconfessional para os hindus, desse modo, é irrelevante, já que sua teologia, ao contrário da teologia do Cristianismo, tem como premissa a diversidade. Ora, se a proposta para uma teologia interconfessional é precisamente erradicar essa diversidade, então isso já é outra questão. Aqui, a pluralidade é considerada como ruim ou pelo menos difícil, e o ideal seria um sistema teológico abrangente que explique tudo, seja universal e aplicável a todos. Uma vez mais, essa é uma preocupação peculiarmente ocidental, seme­ lhante às obsessões com a criação de um governo mundial, uma única moeda, um mercado mundial, uma rede internacional de comunicação global, uma declaração universal de direitos

Edmund Kee-FookChia

A TEOLOGIA INTERCOMFESSIONAL f POSSÍVEL?

humanos, ou até mesmo um catecismo universal. Isso nos lem­ bra também dos muitos esforços para desenvolver uma teologia mundial, um esperanto ecumênico, uma teologia universal, uma ética mundial, e a multiplicação de centros para o Cristianismo global, todas elas iniciativas do Ocidente.3 O fio em comum que passa por todas essas ambições é a criação de um sistema singular que possa explicar os muitos e vários caminhos. Essa ânsia por universalidade é tanto uma ânsia por entendimento quanto uma ânsia por poder - poder para definir e controlar e poder para subordinar a variedade sob o guarda-chuva superestrutural da teologia interconfessionalX

T e o lo g ia in te r c o n f e s s io n a l:

teoria e método

Uma vez mais, não me interpretem mal! Não estou de forma alguma sugerindo que a teologia interconfessional esteja erra­ da. Na verdade, acho até que ela é absolutamente necessária, especialmente considerando a situação patética das relações interconfessionais na sociedade atual.4 Mas, em vez de imagi­ nar a teologia interconfessional como um produto da reflexão teológica, eu gostaria de considerá-la também como um pro­ cesso. Ela é tanto um método quanto uma teoria. A teologia interconfessional, portanto, é ao mesmo tempo uma metodolo­ gia para fazer teologia e uma teoria para captar a diversidade nas várias religiões. Como teoria e método ao mesmo tempo, a 3

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Veja: CANTWELL SMITH, Wilfred. Towards a World Theology. Philadelphia: Westminster Press, 1981. S WIDLER, Leonard (org.). Towarda Universal Theo­ logy o f Religión. Maryknoll: Orbis, 1987. KRIEGER, David. New Universalista; Foundations for a Global Theology. Maryknoll: Orbis, 1991. KÜNG, Hans. Global Responsibility; In Search o f a N ew World Ethic. N ew York: Crossroad, 1991. Veja: CHIA, Edmund; HEISIG, James (orgs.). A Longingfor Peace; The Chal­ lenge o f a Multicultural, Multireligious World. Bilbao: Association Haretxa, 2006.

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teologia interconfessional facilita as relações interconfessionais e especialmente o diálogo inter-religioso. Deixem-me enumerar quatro condições. Primeiro, a teologia interconfessional precisa ser feita de uma maneira interconfessional. Ela não pode ser fruto de um pesquisador solitário que passa os olhos pelas teologias das várias religiões e tenta ir fazendo uma síntese delas. Em vez disso, a teologia interconfessional deve ser feita em conjunto com membros de outras religiões. Ela é interconfessional no sentido de que seus intérpretes vêm de religiões diferentes, e estão todos em um diálogo mútuo na tentativa de identificar áreas de convergências e divergências. Segundo, a teologia interconfessional tem de acarretar neces­ sariamente um diálogo autêntico e holístico, não meramente no nível da mente, mas também no nível do coração. Cada parceiro no diálogo traz para a mesa não apenas doutrinas e teologias, mas também sua carne e seu sangue, experiências de vida, sen­ timentos e paixões. Todas essas coisas constituem a “matéria” do diálogo. Não é preciso dizer, a confiança e o respeito devem dominar esses encontros dialógicos. Terceiro, a teologia interconfessional tem suas limitações. Como mencionei antes, certos temas teológicos são provavel­ mente impossíveis de ser resolvidos em virtude de visões do mundo mutuamente irreconciliáveis. Questões tais como se há ou não um Deus, ou se Deus é pessoal ou não pessoal, ou se há vida após a morte, são tão radicalmente divergentes nas várias religiões que tentar sintetizá-las sob uma única narrativa grandiosa é, no melhor dos casos, reducionista. Portanto, a teo­ logia interconfessional deve cultivar um espírito de humildade epistêmica reconhecendo que fé e religião transcendem logos e compreensão, e que nossas mentes finitas não podem saber tudo.

A TEOLOGIA IKTERCONFESSIONAL É POSSÍVEL?

Quarto, a teologia interconfessional deve estar a serviço de preocupações comuns, especialmente aquelas que afetam as pessoas antes da morte. Questões como pobreza e opressão, injustiça e marginalização, são flagelos contra os quais todas as comunidades religiosas lutam. A libertação, afinal de contas, é um objetivo que provavelmente passa por todas as religiões. Mesmo se não existe consenso com relação à libertação depois da morte, certamente há uma clareza muito maior com relação ao que significa a libertação antes dela. Seguindo as chaves hermenêuticas desenvolvidas pelos teólogos da libertação, a teologia interconfessional fará muito bem se adotar uma opção preferencial pelos pobres e sofredores. Em conclusão, como teoria e método a teologia interconfes­ sional tem o potencial de aproximar as comunidades religiosas em situações de paz e harmonia e não em discórdia e conflito. O produto eventual desses diálogos deve enfatizar e cultivar atitudes de honestidade e confiança, respeito e tolerância e hu­ mildade e incondicionalidade. Essas são a “matéria” da teoria da teologia interconfessional. É essa teoria que deve moldar nossas reflexões sobre todos os outros aspectos da teologia.1

Contribuição Bahá’í para uma teologia “transreligiosa”

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A Fé Bahá’í é conhecida como a mais recente das religi­ ões independentes. Fundada nos meados do século XIX por Bahá’u’lláh, conta hoje com seguidores na totalidade do planeta.1 Seu princípio da unidade fundamental das religiões, sua teolo­ gia da revelação progressiva, sua visão do fenômeno religioso como motor impulsionador do progresso espiritual e social da civilização e como agente primordial na consecução da unidade do gênero humano oferecem uma perspectiva única e audaciosa, cujos elementos teológicos bem podem servir nos esforços por estabelecer pontes de entendimento, respeito e tolerância entre as tradições religiosas. Pontes especialmente necessárias em um contexto mundial como o atual, no qual as tensões e os conflitos religiosos estão na ordem do dia e ameaçam submergir ainda mais em seu abismo uma humanidade que soçobra. O presente texto tratará, precisamente, de introduzir suma­ riamente alguns elementos dessa teologia.

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A Fé Bahá’í conta com mais de cinco milhões de seguidores distribuídos em 236 Estados e territórios, 2.112 tribos, raças e grupos étnicos, e sua literatura foi traduzida para 802 idiomas.

Contribuição B ahá' í para uma teologia " transreligiosa"

O ponto de partida: Deus e o ser humano A partir da perspectiva bahá’í, a relação existente entre Deus e sua criação é uma relação de emanação. Não se trata de um emanacionismo de tipo panteísta. A criação procede da divin­ dade, mas Ele não faz parte desta.2 O ser humano é mais um elemento dessa criação e, no en­ tanto, se distingue dela por ser depositário de um propósito independente: chegar a conhecer seu criador. Deus, afirma Bahá’u’lláh, tendo criado o mundo e tudo o que nele vive e se move [...] optou por conferir ao homem a singular distinção e capacidade de conhecê-lo e amá-lo; uma capacidade que deve necessariamente ser considerada o impulso gerador e o objetivo primordial que sustenta a criação inteira.3 “Chegar à presença de Deus e reconhecê-lo” é a “mais excelsa graça conferida aos seres humanos”,4 é o “excelente objetivo” e a “meta suprema” que “todos os Livros celestiais e as importantes Escrituras divinamente reveladas testemu­ nham inequivocamente”.5 Junto ao dever de conhecer e amar ao seu criador, Bahá’u’lláh também indica que o propósito do ser humano é o de “levar adiante uma civilização em contí­ nuo progresso”.6 Ao mesmo tempo, as Escrituras bahá’ís são categóricas ao sublinhar que Deus é incognoscível e propõem 2

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“A aparição através da emanação é como o surgimento dos raios provenientes da luz dos horizontes do mundo. Ou seja, a santa essência do Sol da Verdade não se divide nem desce à condição das criaturas. De igual modo, o globo solar não se divide nem desce à terra, mas seus raios, que são seu dom, emanam dele e iluminam os corpos escuros”. Contestación a unas Preguntas, p. 249-250. Pasajes de los Escritos de Bahá ’u ‘lláh, 27:2. Kitáb-i-Iqán, p. 92. Pasajes de los Escritos de Bahá ’u 'lláh, 29:1. Ibid., 109:2.

Amín Eqea

claramente uma teologia apofática: “A porta do conhecimento do Antigo Ser sempre esteve fechada, e continuará para sempre fechada, à face dos homens. Nenhum entendimento humano alcançará jamais acesso à Sua sagrada corte”.7 “A ave do coração humano, por mais alto que remonte, nunca poderá esperar alcançar as alturas de Sua incognoscível Essência.”8 Como pode, então, o ser humano obter o propósito de sua existência se Deus é essencialmente incognoscível? Que é o que se pode conhecer de Deus e como? Pode um Deus “imen­ samente excelso acima de todo atributo humano” intervir na história? Bahá’u’lláh estabelece uma diferença entre a Essência e os “atributos” divinos. Estes últimos não são mais que uma emanação dessa Essência incognoscível: [...] se se tratasse de descrever-te por Teus nomes, em seguida reconheceria que o próprio reino desses nomes é criado pelo movimento de Teus dedos, e se estremece por temor a Ti. E se ousasse exaltar Teus atributos, estaria obrigado a admitir que esses atributos são uma criação Tua e se acham em Teu punho.9 Deus, portanto, permanece “santificado acima de todo atributo e consagrado acima de todo nome”.10 O que aqui nos interessa é que, a partir da perspectiva bahá’í, são essas quali­ dades divinas e não Sua Essência os susceptíveis de ser objeto de conhecimento para o ser humano. Alcançar a “presença” de Deus “significa conhecer e compreender os atributos divinos, não a Realidade de Deus”, e esse conhecimento - que, como 7 8 9 10

Ibid., 21:1. Ibid, 94:3.

Oraciones e Meditaciones, p. 236. Ibid, p. 276.

URI

Amln Eqea

C ontrib u ição Bahá'í p a ra um a teo lo g ia " tra n s re lig io s a "

vimos antes, é o propósito primordial da existência do ser hu­ mano - “não é algo absoluto, mas é proporcional à capacidade e poder do homem [o itálico é nosso] [...] Tudo quanto uma pessoa é capaz de entender são os atributos da Divindade, o esplendor dos quais aparece e se faz visível no mundo e dentro das almas dos seres humanos”.11

As “Manifestações de Deus”

pérolas de Seu conhecimento”,16“os vértices onde aparecem em todo seu esplendor os signos, os sinais e as perfeições daquela sagrada, dessa preexistente Realidade”, e dos quais “depende a vida perdurável da humanidade”.17 Esses mediadores entre a humanidade e Deus - os Funda­ dores, definitivamente, dos grandes sistemas religiosos - “são os recipientes e reveladores de todos os atributos inalteráveis e nomes de Deus”,18portanto é mediante eles que o ser humano pode alcançar certa compreensão da divindade:

Chegados a este ponto, será oportuno introduzir no esque­ ma um elemento que é pedra angular na teologia bahá’í. Deus intervém na história, mas não de forma direta: Estando assim fechada a porta do conhecimento do An­ tigo dos Dias à face de todos os seres, a Fonte de graça infinita fez que [...] apareçam do reino do espírito aquelas luminosas Joias de Santidade, na nobre forma do templo humano, e sejam reveladas a todos os homens, a fim de que comuniquem ao mundo os mistérios do Ser imutável e falem das sutilezas de Sua Essência imperecível.12 Esses Enviados de Deus são “todos e cada um, os Expoentes na terra dAquele que é o Astro central do universo, sua Essência e Propósito último”, “os tesouros do conhecimento divino e os Depósitos da sabedoria celestial” [o itálico é nosso].13 São os “espelhos primordiais que refletem a luz de glória imarcescível”, “expressões dAquele que é o Invisível dos Invisíveis”,14 “canais da graça de Deus, que tudo penetra”,15“repositórios das

11 12 13 14 15

Contestación a unas Preguntas, p. 269-270. Kitáb-i-Iqán, p. 68-69. Ibid., p. 69. Ibid., p. 71.

Pasajes de los Escritos de Bahá ’u ’lláh, 2 7 :4.

mu

O conhecimento da Realidade da Divindade é impossível e inalcançável; não assim o conhecimento das Manifes­ tações de Deus, que é equivalente ao conhecimento de Deus, já que as generosidades, esplendores e atributos divinos estão manifestos nelas. A pessoa que consegue conhecer as Manifestações de Deus alcança o conheci­ mento de Deus.19 Estão dotados, além disso, de uma dupla condição. Por um lado, são enviados à humanidade “na imagem de um homem mortal, com limitações tais como o comer e o beber, pobreza e riqueza, glória e humilhação, sono e vigília [.. .]”.20 Mas ao mesmo tempo manifestam perfeitamente as qualidades de Deus, tanto é assim que “tudo quanto é aplicável a eles é na realidade aplicável ao próprio Deus, que é o Visível e o Invisível”,21 de modo que, “se alguma das Manifestações de Deus, que tudo abarca, declarasse: ‘Eu sou Deus!’ diria certamente a verdade, e não caberia dúvida a esse respeito”, afirma Bahá’u’lláh, “já que 16 17 18 19 20 21

Epístola al Hijo do Lobo, p. 113.

Selección de los Escritos de 'Abdu 'l-Bahá, 21:12. Kitáb-i-Iqán, p. 95.

Contestación a unas Preguntas, p. 270-271. Kitáb-i-Iqán, p. 51.

Contestación a unas Preguntas, p. 271.

Contribuição B ahá' í paba uma teologia" transreligiosa"

repetidamente se demonstrou que mediante sua Revelação, seus atributos e nomes a Revelação de Deus, Seus nomes e atributos se manifestam no mundo”.22 Entre eles não existem graus ou distinção. É mais, existe uma unidade essencial tal que todos eles não são mais que uma pessoa, uma alma, um espírito, um ser, uma revelação. São todos a manifestação do ‘Prin­ cípio’ e o ‘Fim’, o ‘Primeiro’ e o ‘Último’, o ‘Visível’ e o ‘Oculto’, atributos todos que pertencem Àquele Que é o mais íntimo Espírito dos Espíritos e a eterna Essência das Essências.23

Amín Eqea

sutilezas de Sua Essência imperecível”,26 para limpar as almas “da escória e do pó das preocupações e limitações terrenas”,27 para educar os homens de tal maneira que “na hora de sua mor­ te ascendam, com a maior pureza e santidade e com absoluto desprendimento, rumo ao trono do Altíssimo”.28 Como promotores divinamente ordenados de uma civili­ zação humana em constante evolução, as Manifestações de Deus têm também a missão de “dotar os homens de retidão e entendimento, para que a paz e a tranqüilidade sejam firme­ mente estabelecidas entre eles”,29“proteger os interesses da raça humana, promover sua unidade, e estimular o espírito de amor e fraternidade entre os homens”,30 fazer que o mundo do homem chegue a ser o mundo de Deus; que este domínio inferior chegue a ser o Reino; esta escuridão, a luz; esta perversidade satânica, todas as virtudes do céu, e que a unidade, a irmandade e o amor sejam conquistados por toda a raça humana, que reapareça a unidade orgânica e as bases da discórdia sejam destruídas, e que a vida eterna e a graça sempiterna se transformem na colheita da humanidade.31

As religiões Por meio dessas teofanias, Deus se revela à humanidade para oferecer o guia que aproxime o ser humano do cumprimento de sua dupla finalidade ontológica: conhecer a Deus e fazer avançar uma civilização em contínuo progresso.24 Com pala­ vras de BaháVlláh, os Enviados de Deus foram encomendados com a missão de alimentar “as árvores da existência humana com as águas vivas da retidão e compreensão, para que possa surgir deles aquilo que Deus depositou em seu foro íntimo”,25 para comunicar ao mundo “os mistérios do Ser imutável” e “as

22 Ibid.,p. 117. 23 Kitáb-i-Iqán, p. 118. 24 “Deus tem dois propósitos ao enviar Suas [Manifestações] aos homens. O primeiro é livrar os filhos dos homens da escuridão da ignorância e guiá-los à luz do verdadeiro entendimento. O segundo é garantir a paz e a tranqüilidade do gênero humano e providenciar todos os m eios pelos quais estas possam ser estabelecidas.” Pasajes de los Escritos de Bahá ’u ’lláh, 34:5. 25 Kitáb-i-Aqdas, p. 16.

BaháVlláh, portanto, nem concebe as mensagens de cada um dos enviados de Deus como elementos desvinculados ou isolados entre si, nem estabelece diferenças em grau entre os fundadores das religiões. Todas as mensagens religiosas procedem de uma mesma fonte e têm uma finalidade comum e preestabelecida que encaixa dentro de um plano divino, universal e atemporal. 26 Pasajes de los Escritos de Bahá ’u ’lláh, 19:2. 27 28 29 30 31

Ibid., Ibid., Ibid., Ibid.,

27:4. 81:1. 101:1. 110:1.

Selección de los Escritos de ‘Abdu 7-Bahá, 15:4.

Amln Eqea

C ontribuição B ah A'í para uma teologia "tran srelig io sa"

A religião é “eterna no passado, eterna no futuro”.32Como se ex­ plicam então as diferenças entre as religiões? A Revelação Divina não se esgota em cada uma de suas Manifestações. Antes, está adaptada e limitada ao momento e ao lugar ao qual se destina: “O Médico Onisciente pôs Seu dedo no pulso da humanidade. Percebe a doença e em Sua infalível sabedoria prescreve o remé­ dio. Cada época tem seu próprio problema, e cada alma sua aspi­ ração particular”.33 Em conseqüência, cada revelação apresenta duas vertentes: uma essencial e comum a todas as religiões, que concerne aos aspectos espirituais da revelação (por exemplo: a regra de ouro, o ensinamento de um aspecto espiritual aos seres humanos etc.); e outra acidental e cambiante, que concerne aos aspectos sociais e materiais da revelação (por exemplo: normas relativas à alimentação, ao casamento etc.) e que estão vinculadas ao próprio contexto em que esta se faz ato. Mas também surgem diferenças entre as religiões por causa da “cega imitação e a in­ terpretação dogmática”34 dos próprios seguidores das religiões. Bahá’u’lláh descreve isso da seguinte maneira: Sem dúvida os povos do mundo, de qualquer raça ou reli­ gião, derivam sua inspiração de uma única Fonte celestial e são os súditos de um único Deus. A diferença entre as ordenanças sob as quais vivem deve ser atribuída aos requisitos e exigências variáveis da época em que foram reveladas. Todas elas, exceto algumas que são produto da perversidade humana, foram ordenadas por Deus e são o reflexo de Sua Vontade e Propósito. Levantai-vos e armai-vos com o poder da fé, despedaçai os deuses de vossas vãs imaginações, os semeadores de dissensão entre vós. Apegai-vos ao que vos aproxime e vos una.35 32 33 34 35

Pasajes de los Escritos de Bahá ’u ’lláh, 70:2.

Nesta época no devir humano, afirma Bahá’u’lláh, Deus volta a intervir na história através dele mesmo. Seu advento “foi anunciado em todas as Sagradas Escrituras”36 e o propósito de Sua revelação não é outro que o de [...] proclamar que já passaram as idades da infância e da criancice da raça humana, que as convulsões relacionadas com a atual época de adolescência a estão preparando lenta e penosamente para alcançar a idade adulta, e apregoam a proximidade dessa Idade de Idades em que as espadas se terão transformado em arados, e se tenha estabelecido o Reino prometido por Jesus Cristo e a paz do planeta estará garantida definitiva e permanentemente. Bahá’u’lláh também não pretende que Sua própria Re­ velação tenha um caráter definitivo, mas antes estipula que em épocas futuras deverá se desenvolver uma maior medida da verdade que o Todo-Poderoso lhe encomendou conceder à humanidade, em tão crítica conjuntura de seus destinos, como parte da evolução contínua e ilimitada da humanidade.37 * * *

Em uma mensagem dirigida em abril de 2002 às autoridades religiosas do mundo, a Casa Universal de Justiça - órgão de governo em nível mundial da Comunidade Internacional Bahá’í - declarava a respeito do discurso inter-religioso: [...] se quisermos que contribua significativamente para curar as feridas que afligem uma humanidade desespera­ da, deve com sinceridade e sem mais evasivas tratar das implicações da verdade fimdamentalíssima que suscitou

Ibid., 106:1.

La Promulgación de la Paz Universal. Citado na mensagem dirigida pela Casa Universal de Justiça às autoridades religiosas do mundo, abril de 2002.

36 Pasajes de los Escritos de Bahá 'u ’lláh, 3:1. 37 EFFENDI, Shoghi. A Fé de Bahá ’u ’lláh (Declaração perante a Comissão Especial das Nações Unidas sobre a Palestina, julho de 1947).

Contribuição Bahá' í para uma teología "tm n sreu g io sa"

Bases para uma teologia pluralista multiconfessional

todo este movimento inter-religioso: que Deus é um só e que, além da diversidade da expressão cultural e da interpretação humana, a religião é igualmente urna só.38 São esses, pois, alguns dos elementos com que uma teologia bahá’í pode contribuir com os esforços por entender a pluralida­ de religiosa e para dar vigor ao diálogo inter-religioso. Assumi­ dos não implica necessariamente “o abandono da fé no tocante às verdades fundamentais de nenhum dos grandes sistemas de crenças mundiais”,39mas sim entender que a verdade religiosa é relativa, que a Verdade é uma, mas que suas manifestações são múltiplas, e que, portanto, qualquer pretensão de exclusividade ou finalidade atenta, na realidade, contra a própria definição de religião e contra os princípios espirituais de camaradagem e pro­ gresso que promulga: “Cuidado, não aconteça que a convertais [a religião] em causa de dissensão entre vós. Estai firmemente assentados, como uma montanha inabalável, na Causa de vosso Senhor, o Forte, o Amoroso”.40

P aul

F. K n it t e r

A principal pergunta feita aos autores deste número da co­ leção “Pelos muitos caminhos de Deus” foi: “É possível pensar em uma teologia pluralista que se baseie em, e trabalhe com, ca­ tegorias, fontes, princípios, imagens e metáforas não só de uma religião, mas de várias? É possível uma teologia não monoconfessional, mas aberta e pluriconfessional, além de pluralista?”.1 Ou, nos termos usados por Wilfred Cantwell Smith, ao propor um projeto semelhante há mais de vinte e cinco anos: é possível ter uma “teologia mundial” que seja uma teologia pluralista?12* Embora o projeto de Smith tenha sido amplamente criticado com o passar dos anos e mais recentemente tenha sido jogado na cesta de lixo pelo Pós-Modernismo, eu realmente acredito que o projeto - que está sendo ressuscitado no projeto deste livro - não só é válido, mas é também urgente. Sem de forma alguma reduzir o perfil específico de cada religião, acredito que podemos encontrar “características familiares” em todas as religiões que fornecem a base para uma teologia mundial inter-religiosa, que deixa de lado as reivindicações de superioridade de uma religião sobre as demais e invoca todas as religiões a

38 Ibid. 39 Ibid. 40 Pasajes de los Escritos de Bahá ’u ’lláh, 70:3.

1 2

Cf. a proposta de projeto enviada por José Maria Vigil. Wilfred CANTWELL SMITH, Wilfred. Towards a World Theology; Faith and the Comparative History o f Religión. London: Macmillan, 1981.

B ases

se envolverem umas com as outras pelo bem-estar de todos os seres sencientes e do próprio planeta. Para defender meu argumento, seguirei a orientação da observação de Paul Tillich de que, das três “polaridades” em todas as religiões, é papel do “místico” e do “ético-profético” garantir que a polaridade “sacramental” não se absolutize e com isso passe a ser vítima do demoníaco.3

O místico em todas as religiões Todas as religiões reconhecem que, seja qual for a palavra ou imagem que elas possam usar para falar sobre aquilo que estão buscando, ou que vivenciaram, precisa ser precedida por um adjetivo: misteriosa. O Wakan Tanka —The Great Mysterious dos Lakotas. As religiões, por sua própria natureza, e eu acrescentaria por sua própria autodescrição, lidam com o Mis­ tério. São especialmente os místicos que fazem com que isso. seja óbvio. Eles lembram a si mesmos e a suas comunidades - especialmente aos líderes e hierarcas de suas comunidades que, para verdadeiramente vivenciar aquilo que a comunidade busca vivenciar, é (como expressa Tillich) preciso agarrar ou ser agarrado por uma Realidade que é “infinitamente apreensível, e no entanto nunca inteiramente compreensível”,4 tão miste­ riosa quanto real, tão verdadeiramente transcendente quanto é verdadeiramente imánente. Se os místicos escolhem falar sobre o conteúdo de sua experiência e, portanto, usar palavras como Deus, ou Tao ou 3

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Paul F.Knitter

para uma teologia p lu ra lista m ulticonfessional

TILLICH, Paul. The Significance o f the History o f Religions for the Systematic Theologian. In: BRAUER, Jerald C. (org.) The Future o f Religions. New York: Harper & Row, 1966. p. 86-87. Também: TILLICH, Paul. What is Religión? Trad. de James Luther Adams. N ew York: Harper & Row, 1969. p. 88-92. TILLICH, What is Religión?, p. 15.

Brahman, ou se querem falar apenas da própria experiência e, portanto, usam palavras como Iluminação, ou Vazio, ou o Nada - todos eles reconhecem que o que estão vivenciando é tanto real quanto inefável. É por esse motivo que os místicos cristãos falaram de Deus como o notum Ignotum —o conhecido Desconhecido. No próprio momento em que descobrem alguma coisa sobre o Mistério, ficam certos de que nunca poderão saber tudo sobre o Mistério. Algumas tradições religiosas são melhores que outras em reconhecer a natureza incompreensível e inefável daquilo com que estão lidando. Parece que religiões asiáticas têm uma me­ lhor trajetória de respeito ao Mistério. O Taoísmo lembra que aqueles que podem falar do Tao não sabem realmente sobre o que estão falando.5 O Hinduísmo adverte que devemos colo­ car a expressão “neti,neti” antes de tudo aquilo que dissermos sobre o Último - “nem isso, nem aquilo”. E os budistas Zen estiveram dispostos a queimar todas as escrituras e até a matar o Buda para que não ficassem presos a uma única maneira de falar ou de ensinar. Mas até mesmo as loquazes tradições abraâmicas, que as­ sociaram Verbo, Dabar, Logos, ou até mesmo um texto escrito a Deus, também admitiram, em seus melhores momentos, que Deus nunca pode ser captado por palavras. Para mim, alguns dos melhores desses momentos foram em 1215, no IV Concilio de Latrão, e, depois, em 1875, no Concilio Vaticano I, quando o Magistério católico oficialmente definiu a “incompreensibilidade de Deus”.6*Para nós, católicos, é um dogma definido que Deus nunca pode ser definido! (Tivemos uns poucos papas e teólogos que, parece, se esqueceram disso!) 5 6

Tao Te Ching, 1,1. DENZINGER-SCHÕNMETZER. Enchiridion Symbolorum Definitionum et Declarationum. Barcelona: Herder, 1963. n. 428 e 1782.

Ba s e para uma teolocia pluralista multiconfessional

Paul F.Knitter

Há uma tensão evidente, se não até uma contradição total, entre esse reconhecimento místico do Mistério em todas as religiões e a afirmação teológica de superioridade na maioria das religiões. Não podemos ficar com as duas alternativas. Não podemos ser místicos em nossa vida particular de orações e “superioristas” no discurso de nossa vida pública. Falando francamente: se o Mistério, por sua própria natureza, não pode ser plenamente, ou adequadamente, ou definitivamente, ou insuperavelmente, conhecido, então precisamos questionar, renovar ou tirar de uso séria e criativamente nossas teologías que afirmam que nossa revelação, ou nosso salvador, ou nosso mestre, é o meio único e final de conhecer o Grande Misterioso.

pode fazer intelectualmente ela faz existencialmente: embora não possa dar às nossas mentes um conhecimento absoluto sobre o Divino, ela reivindica absolutamente nossos corações. A mensagem de Jesus, os ensinamentos do Buda, as revelações de Maomé - por mais que tenham sido construídas de forma limitada, relativa ou até social - são capazes de dar uma revira­ volta na vida das pessoas. A conversão ou a iluminação é uma experiência na qual as pessoas recorrem naturalmente a uma linguagem absoluta ou superlativa: “Puxa! Que coisa incrível! Deus falou. A verdade chegou. Não pode haver um outro Deus ou um Deus superior”. A conversão nunca vem pela metade. Ela chega como uma explosão e domina tudo.

Em outras palavras, a linguagem mística sobre o Mistério supera a linguagem teológica sobre superioridade e finalidade. Nenhuma palavra, nenhuma revelação pode ser a palavra única e final sobre o Mistério. Há sempre algo mais por vir. (Acho que isso é o que a crença cristã em escatologia e a crença budista em impermanência e mudança constante implicam: não fique preso ao pensamento de que você chegou lá.)

Portanto, a linguagem religiosa, como sai do seio da ex­ periência, é, como Krister Stendahl observa, uma linguagem confessional ou amorosa.8*Ela brota, espontaneamente, com linguagem tanto superlativa quanto exclusivista. Em situações de intimidade, não basta dizer a seu(sua) amante que ele(ela) é “ótimo(a)”. O que você sente é “o(a) melhor” e “só meu(minha)”. E isso é o que você diz. Mas você usa essa linguagem não para diminuir os demais, ao contrário, para expressar o que você sente e pensa sobre a pessoa que, apesar de todas as suas limitações, reivindicou seu coração e o seu ser. Nós desonramos e insulta­ mos esse tipo de linguagem religiosa quando a transformamos em uma linguagem filosófica ou teológica e depois a usamos para excluir ou subordinar todas as outras figuras religiosas.

Mas se a experiência do Grande Misterioso, daquilo que é sempre mais do que podemos conhecer, está no coração da experiência religiosa, de onde vêm todas essas exclamações de “único” ou “pleno e final” que povoam os textos sagrados ou litúrgicos? Isso, como professores constrangidos costumam dizer, é tema para uma outra aula. Eu começaria essa aula com uma observação que Ernst Troeltsch fez em seu famoso livro The Absolutenèss o f Christianity? Troeltsch indicou que o fato de pessoas religiosas fazerem “afirmações absolutas” sobre sua experiência é tão natural quanto possivelmente ingênuo. Isso ocorre porque aquilo que a experiência religiosa ou mística não

O Mistério Sagrado toma forma e aparece ou encarna em lugares específicos, em pessoas específicas com poderes es­ pecíficos e, é verdade, com uma perspicácia única. Por isso podemos usar superlativos e talvez até anunciar que “só aqui” 8

7

The Absoluteness o f Christianity. Richmond: John Knox, 1971. p.131-163.

Notes forThreeBiblical Studies. In: ANDERSON, Gerald; STRANSKY, Thomas (oigs.).Christ’s LordshipandReligiousPluralism. Maryknoll,NY: Orbis Books, 1981. p. 14-15.

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B ases para uma teología pluralista multicomfessional

é que o Mistério Sagrado toma essa forma ou transmite essa mensagem. Mas esses têm de ser superlativos e “só aquis” que permitam outros superlativos e outros “só aquis”, e que estejam dispostos a aprender com eles.

O profético de todas as religiões Se os místicos nos lembram de que nunca podemos conhecer o Divino ou o Grande Misterioso plena e finalmente, os profetas garantem que não precisamos fazê-lo. O que estou sugerindo aqui pressupõe que os termos “místi­ cos” e “profetas” apontam para realidades que vamos encontrar em todas as religiões ou na maioria delas. Embora, como tentei explorar em outro texto,9precisemos ter cuidado para não fazer uma distinção muito nítida entre místicos e profetas (creio que eles são, na verdade, duas extremidades do mesmo contínuo, de forma que, se você arranhar um profeta, com certeza encon­ trará um místico) - mas ainda assim as distinções são válidas. Profetas são aquelas pessoas irritantes enviadas por Deus que, normalmente, passam a maior parte de suas vidas nas ruas ou nas aldeias e ficam nos lembrando de que, a menos que nossas “experiências místicas” de Deus ou iluminação estejam sendo vivenciadas em nossa vida cotidiana e, de alguma maneira, contribuindo para o bem-estar de outros, essas experiências são incompletas, ou nem sequer estão ocorrendo. A experiência mística que leva à transformação pessoal também deve abarcar a transformação comunitária, ou social, ou levar a ela.

9

Religiones, mysticismo y liberación. Diálogo entre la teología de liberación y la teología de las religiones. In: VIGIL, José María; TOMITA, Luiza E.; BARROS, Marcelo (orgs.) Por los muchos caminos de Dios II. Quito: Ediciones Abya-Yala, 2004. p. 91-108.

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Traduzindo a mensagem dos profetas na linguagem da filo­ sofía da religião, segundo John Hick, se a experiência religiosa não inclui uma mudança do egocentrismo para o “outrocentrismo”, provavelmente ela não será autêntica.101Ou, teologicamente falando, ela provavelmente não será fiel à mensagem original do fundador ou da tradição. (As feministas me lembrariam de que um mudança assim pressupõe, para começar, um “ego”.) É por isso que, para Jesus, os dois mandamentos principais são apenas duas maneiras de obedecer a um mandamento: você não pode amar a Deus a não ser que você esteja amando seu próximo. É por isso que, para o Buda, se suaprajna (sabedoria) não está produzindo karuna (benevolência), você não tem pra­ jna}11 E é por isso que, para Maomé, e também para Ezequiel, conhecer Alá é fazer justiça. Deixem que eu, uma vez mais, corra até aquele lugar onde os anjos Pós-Modernos temem pisar e dê um passo a frente. Arrisco-me a fazer essa meta-afirmação modesta: Segundo os profetas - ou você poderá dizer: os “ativistas” -, nas diferentes tradições religiosas, sejam abraâmicas, sejam asiáticas, sejam primitivas, é muito mais importante fazer a verdade fielmente do que “conhecê-la”plenamente. Embora a ortopraxis (ou agir corretamente) e a ortodoxia (acreditar corretamente) estejam intimamente relacionadas, os profetas afirmam que a ortopraxis tem uma certa prioridade. E se vocês me permitirem um aparte filosófico: acredito que essa prioridade é tanto epistemológica quanto ontológica. E fazendo a verdade da melhor maneira que sabemos e da me­ lhor maneira que podemos que chegaremos a conhecê-la cada 10 An Interpretation o f Religión; Human Responses to the Transcendent. New Haven: Yale University Press, 1989. p. 299-315. 11 Esta era a advertência na reforma do Budismo Mahayana.

B ases para uma teologia pluralista muuiconfessional

vez mais adequadamente. E é também fazendo a verdade da melhor maneira que sabemos, em comunidade com outros e com o Mistério Sagrado que criamos ou produzimos a verdade. É na vivência da verdade que a verdade se torna real, ou como diziam os escolásticos, ambos quoad nos et quoad se - tanto em nossa compreensão dela quanto na realidade. Seja qual for o valor dessas reflexões filosóficas, é claro que aqueles que desempenham esse papel ético de profetas nas várias religiões não só permitem que seus companheiros de religião deixem de lado as reivindicações de superioridade mas até re­ comendam que o façam. Pois é muito mais importante e urgente pôr em prática a mensagem de Jesus (ou de Maomé, ou do Buda, ou de Krishna) do que saber que essa mensagem é o único ou último caminho para a salvação. Com efeito, não é necessário saber com certeza que Jesus é o “único caminho” para que nos entreguemos totalmente a caminhar por ele. Realmente, gastar energia e tempo tentando nos convencer e convencer os demais de que Jesus é o único ou o melhor pode se tornar uma distração ou uma desculpa para não seguir Jesus na difícil tarefa de amar o próximo e reformular o mundo. Realmente, creio que insistir que “o nosso é o melhor” é um obstáculo para que “façamos o melhor”. Tentar ter certeza de que nosso “modelo” religioso é o melhor de todos pode facilmente nos distrair daquilo que realmente importa - entrar nele e sair dirigindo. Aqui o Corão Sagrado nos oferece um conselho sólido e realista: Se Alá assim quisesse, teria criado você como uma co­ munidade, mas [ele não fez isso] para que possa testar você naquilo que lhe deu; portanto compitam uns com os outros em obras caridosas. Para Deus todos vocês voltarão

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e ele lhes dirá a verdade sobre aquilo que vocês tinham estado brigando. (5:48) Portanto, podemos colocar nossas preocupações sobre qual religião é a melhor na prateleira com a etiqueta “escatologia”. Se essas perguntas irão ser respondidas algum dia, terá de ser mais tarde. Não pode ser agora. Agora temos de conversar juntos, caminhar juntos, atuar juntos e “competir nas obras caridosas”.

Reflexões budistas sobre a teologia interconfessional

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Nos dias de hoje uma teologia inter-religiosa não só é possível, mas também absolutamente necessária. De uma perspectiva bu­ dista, no entanto, a frase “teologia inter-religiosa” não expressa bem o que é necessário. Como o Budismo não é teístico, ele não tem uma teologia; dizer que o Budismo é uma crença também não é uma boa descrição, já que a ênfase não é na crença, mas sim em seguir um caminho espiritual. Mais importante que a frase, é claro, é o fato de todas as reli­ giões agora estarem enfrentando o mesmo desafio básico. Parte desse desafio são as outras religiões. Quer queira, quer não, toda religião se encontra cada vez mais em contato com as demais, o que significa que a “ponta que cresce” no desenvolvimento de cada uma é como ela responde às alternativas que solapam sua própria “naturalidade”. O que é que as coisas que dizemos ser verdade têm a ver com as coisas que elas dizem ser verdade? O outro já não pode ser ignorado: ou as religiões vão aprender umas com as outras ou vão terminar brigando entre si. Ao mesmo tempo, a humanidade globalizante enfrenta uma crise (ou um conjunto de crises) maior que qualquer coisa que vivenciamos antes. Não é exagero dizer que a própria sobrevi­ vência da civilização pode estar em jogo. Os sistemas ecológicos estão entrando em colapso e interagindo com problemas sociais,

David R.Lov

R eflexões budistas sobre a teologia interconfessional

até mesmo a superpopulação e a brecha crescente entre ricos e pobres. O futuro parece assustador se essa questão não pas­ sar a ser muito brevemente nossa preocupação e foco coletivo principal. É um erro ver esses desafíos como coisas separadas. As transformações tecnológicas e econômicas da Modernidade levaram a uma compreensão secular do mundo que ainda pode ser caracterizada como religiosa, na medida em que seu sistema de valores oferece a promessa de urna nova salvação na produção e no consumismo cada vez maior. Dessa perspectiva, a “religião do mercado” está rapidamente se tornando a primeira religião verdadeiramente mundial e o maior desafio para todas as outras religiões. Como devemos reagir a isso? Essa crise é também uma oportunidade. Para continuar sendo relevantes, as religiões tradicionais precisam se envolver em um autoexame abrangente, a fim de distinguir o que em seus ensinamentos e costumes é historicamente contingente (e, portanto, pode ser substituído) daquilo que continua a ser essencial (e, portanto, precisa ser re-enfatizado, talvez de novas maneiras). Como as instituições religiosas tendem a ser muito conservadoras, uma reavaliação desse tipo é muitas vezes um processo doloroso. No entanto, a alternativa é um declínio lento ou rápido na direção da insignificância. Para o Budismo, o Buda não é um deus e sim um modelo para aquilo que cada um de nós precisa alcançar. Ele enfatizou que seus ensinamentos não são “revelados” e que são valiosos apenas como um mapa rodoviário para ajudar-nos a chegar a algum lu­ gar. Ele também estimulou a dúvida investigativa em vez de uma fé inquestionável. O ponto importante é que as doutrinas e prá­ ticas budistas não são sagradas em si mesmas, mas funcionam como um instrumento para ajudar a autotransformação. Hoje,

está cada vez mais evidente que essa transformação individual também precisa ter uma dimensão coletiva. Uma abordagem assim corresponde bem àquilo que muitos estudiosos enfatizam hoje em dia: que a linguagem religiosa é metafórica. O que isso significa para a maneira como enten­ demos o Buda, Cristo, Satã..., até mesmo Deus? Segundo um provérbio Zen, “se você encontrar o Buda, mate-o!”. Em um de seus últimos sermões, Eckhart declarou: “Eu peço a Deus que me livre de Deus”. Se todos os conceitos são heurísticos, eles passam a ser idolatria quando os identificamos como sendo sacrossantos e não abertos a questionamentos. O que significa essa percepção para nossas concepções de salvação: nirvana, iluminação, céu e inferno? Em última ins­ tância, o critério é o tipo de pessoa em que nos transformamos quando seguimos um caminho espiritual. O Budismo enfatiza a sabedoria e a compaixão. A sabedoria envolve o “despertar” da ilusão de um ego-eu separado para compreender nossa inter­ dependência com outras pessoas e com a Terra. A compaixão é viver de maneira a manifestar essa compreensão. Se o Reino de Deus é bem aqui, e bem agora, o que precisamos hoje não é de uma versão da aposta de Pascal e sim de um recusa em apos­ tar numa vida após a morte que possa ou não ser literalmente verdadeira. Nos dois casos, a maneira como devo viver, aqui e agora, continua a mesma. A concepção de carma do Buda foi revolucionária à época porque dava ênfase à motivação. Embora muitas vezes compreendido de uma forma diferente hoje em dia (por exemplo: acumular mérito para um renascimento melhor), o carma é a chave para a autotransformação. A qualidade de minha vida pode ser melhorada agora transformando aquilo que me motiva agora: substituindo a avareza, a má vontade e a ilusão por generosidade, benevolência e a sabedoria que enfatiza BB

David R.loy

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nossa não dualidade. Fazer isso é vivenciar o mundo de uma maneira diferente. Isso certamente inclui viver pela Regra de Ouro, no entanto a perspectiva budista tem implicações especiais para como respondemos à difícil situação dos pobres e dos explorados que sofrem uma qualidade de vida degradante sem ter culpa disso. Hoje, a resposta tradicional budista - que eles estão colhendo os frutos de seus próprios erros em vidas passadas - já não é aceitável. Apesar disso, isso não significa que devemos nos identificar com os oprimidos e rejeitar o opressor. Queiramos ou não, somos não dualistas com os dois. Para o Budismo, a questão fundamental não é o bem lutando contra o mal, mas despertar da ignorância para compreender nossa interconexão essencial com todos os demais. Nossos esforços para sobrepujar o sofrimento dos explorados devem estar baseados em uma pre­ ocupação não apenas com os pobres, mas também com os ricos isolados e iludidos que não se importam com aqueles que vão dormir com fome. Somos encorajados a ter compaixão não só pelas vítimas da violência, mas até mesmo pelos autodestrutivos perpetradores da violência que se brutalizam ao brutalizarem os outros. Isso não implica que devamos nos relacionar com os dois lados da mesma maneira, no entanto identificar-se apenas com o oprimido tende a reproduzir o mesmo problema básico: a ignorância que os discrimina (os maus) de nós (os bons). Há algo irônico sobre nossa ansiedade por dialogar com outras religiões. É normalmente fácil relacionar com represen­ tantes de outras religiões que tenham a mente aberta. É mais difícil conversar com os membros mais conservadores de nos­ sas próprias tradições, que podem se sentir menos ameaçados por outras religiões do que pelas tendências liberais dentro da nossa própria. Será que o maior desafio, atualmente, não é o diálogo entre religiões, mas sim o diálogo dentro de uma mesma IBI

religião? O fato de essa brecha entre tradicionalistas e liberais, entre literal e metafórico, ficar se reproduzindo em quase todas as denominações sugere que a religiosidade humana envolve uma tensão entre duas funções diferentes. Ser autoconsciente é ser autoconsciente de sua mortalidade e - com poucas exceções - descobrir maneiras de resistir àquele destino inevitável. Uma visão religiosa é nossa maneira coletiva principal de resistir a ele. As religiões nos colocam dentro de uma realidade metafísica maior que nega a morte transcendendo-a. Nós não morremos realmente (ou não precisamos morrer realmente) quando morremos. E é por isso que outras religiões são uma ameaça assim tão grande: suas visões de mundo dife­ rentes desafiam nosso próprio projeto de imortalidade. Como isso implica, a negação da morte tem conseqüências importantes para a maneira como vivemos. Psicológica e tam­ bém logicamente, a vida e a morte são dois lados da mesma moeda: negar uma delas é negar ambas. “A ironia da condição do homem é que a maior necessidade é estar livre da ansiedade da morte e da extinção; mas é a própria vida que desperta essa ansiedade, portanto devemos nos esquivar de estar plenamente vivos” (Ernest Becker, The Denial o f Death). Isso acaba sendo uma crítica poderosa da religião..., mas será que a evasão coletiva da morte é seu único papel? As religiões não são apenas guarda-chuvas para fugir da verdade terrível, em seus melhores momentos elas nos ajudam a vencer a nega­ ção da morte vencendo o ego-eu que está tão apavorado com a morte. Concluo esboçando uma explicação budista sobre como isso ocorre, mas não existe nada específicamente budista sobre esse processo. Como outras religiões têm suas próprias formas de descrever algo que parece muito semelhante, acredito que elas compartilham um foco comum que poderia e deveria se tornar muito importante em qualquer teologia inter-religiosa.

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O Budismo enfatiza o relacionamento entre nossos dukkha (sofrimentos no sentido mais amplo) e a ilusão do eu. O fato de o sentido de eu (self) ser uma construção psicológica/social/ lingüística (como expressaríamos isso hoje) significa que ele, por definição, não tem uma base sólida e, portanto, é intrínse­ camente inseguro. Normalmente, ficamos conscientes dessa insegurança básica como uma sensação persistente de dificul­ dade ou dqfalta que nos persegue. Como resposta, sentimo-nos obrigados a (tentar) nos tornar mais reais de uma maneira ou de outra. Para as pessoas religiosas, isso muitas vezes significa se qualificar para a eternidade sendo bom para que Deus tome conta de nós e preencha nossa sensação defalta daqui em diante. Alternativas mais seculares envolvem perseguir uma realidade melhor, supostamente trazida pela possessão de muito dinheiro, poder, fama ou atratividade sexual. É importante compreender que essas preocupações religiosas ou seculares (ou obsessões) são maneiras diferentes de reagir ao mesmo problema básico: uma sensação de que algo está errado ou de que falta algo em nosso núcleo interior. O fato de a sensação de se/f ser uma construção implica que nosso problema fundamental não é realmente a morte - algo que nos ameaça no futuro - e sim nosso “vazio” bem agora no presente. Essa ênfase no aqui e agora indica uma solução possível: se a sensação de selfé uma construção, ela pode ser desconstruída? Reconstruída? A solução budista para essa dificuldade é bastante simples, embora normalmente não muito fácil de alcançar: em vez de fugir daquele vazio em nosso centro, nós nos entregamos a ele. A sensação inerentemente insegura do eu pode abandonar-se a si mesma, levando aquela “morte do ego” que a meditação (entre outras práticas religiosas) provoca. Isso permite uma “reviravolta” {paravrtti em sánscrito) que ocorre no centro de

David R.Loy

nossa consciência, onde se descobre que aquela falta de base que era tão desconfortável é o lugar onde uma sensação recons­ tituída do eu “pode começar a se relacionar com poderes além de si própria”, como diz Kierkegaard. No centro daquilo “que eu sou” está algo que está mais além de nome e de forma e que nunca pode ser captado ou entendido porque é a própria fonte de minha própria consciência. Palavra alguma pode expressar esse algo de maneira adequada, é claro, mas muitas delas já foram usadas: natureza de Buda, o Atman, Deus... O Budismo enfatiza esse despertar: “o Buda” literalmente significa “aquele que despertou”. Apesar disso, essa experiência não é em si mesma o fim do caminho espiritual. A sensação do eu não deve ser apenas desconstruída; é preciso que ela seja reconstruída, o que nos traz de volta à tarefa de transformar nossas motivações para que elas estejam coerentes com a perda da preocupação ego-eu. Aqui é que a busca religiosa pessoal se cruza com a preocupação por justiça social. “Despertar” é compreender que não somos seres separados e sim partes interdependentes entre si. Então, como é que “eu” posso estar plenamente iluminado a não ser que todas as pessoas também estejam? Como é que posso distinguir meu próprio sofrimento daquele dos demais? Viver de uma maneira iluminada é viver piedosamente. Essa perspectiva desmistificada do caminho espiritual sig­ nifica um desafío para o desenvolvimento do Budismo - mas não só para o Budismo. Outras religiões se deparam com a mesma escolha: ou continuam a ser instituições de negação da morte/negação da vida, com todo o dukkha-soíúvae.rú que isso implica, ou enfatizam seu papel transformador como caminhos espirituais que nos ajudam a despertar. .0

Dada a crise extraordinária de nossa época, que exige o melhor de nós em termos de resposta, está ficando cada vez RB

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mais evidente que as religiões precisam amadurecer encon­ trando novas abordagens que deem menos ênfase aos dogmas tradicionais e ao mundo futuro e mais ênfase à desconstrução e reconstrução do ego-eu aqui e agora. A menos que façamos isso agora, não vejo como podemos ter esperança de ter um futuro positivo para a humanidade. Será essa a tarefa primordial para uma teologia inter-religiosa?

Teologia interconfessional: a contribuição nativa africana para o debate

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Teologia, religião e crença Por definição a teologia não pode ser feita sem ter em mente algum tipo de “Ideia” divina ou, de forma ainda mais concreta, uma “Figura” divina. Da mesma maneira, a religião não pode existir como um fenômeno humano sem referência a essa Ideia ou Figura, expressa concretamente na oração ou no culto. De um modo geral, quando o(a) teólogo(a) trabalha, ele(ela) começa a partir de alguma(s) característica^) do Divino, que são mais ou menos definidas e que ele(ela) conhece. O que o(a) teólogo(a) elabora, portanto, são essas características ou atributos divinos, e aquilo que a Divindade (ou divindades) exige(m) ou não da humanidade e da criação na ordem prática da existência. As diferenças de teologia, e mais além, de religião (que é tanto uma manifestação quanto uma fonte da teologia) surgem precisamen­ te nesses dois pontos: primeiro, no momento da compreensão de Quem ou o Que a Divindade (ou Deus) é, e, segundo, no momento de reconhecer aquilo que a exigência de Deus envolve em termos de comportamento humano.

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Teologia interconfessional: a contribuição nativa africana para o debate

Uma religião é um fenômeno que expressa um grau de con­ cordância teológica e moral entre seus seguidores nessas duas áreas. Essa concordância é a crença, assim chamada porque muitas vezes não desfruta - e na verdade não pode desfrutar - de uma demonstração concreta na realidade física ou lógica, como no sentido restrito das ciências físicas. No entanto isso não significa que a crença e a religião são, ipso facto, irracionais. Ambas podem servir - e muitas vezes servem - a propósitos muito úteis e racionais na existência humana. Mas como não há uma única abordagem uniforme a Deus, há uma variedade de religiões, crenças e teologias no mundo. Infelizmente, essa variedade foi muitas vezes a origem de conflitos e de violência na história humana. E continua a ser. O problema para as crenças religiosas nesse mundo contemporâneo em que a violência entre as religiões se avultam cada vez mais é saber se esse é e deve continuar a ser um aspecto necessário da diferença religiosa. Será que a teologia interconfessional, cuja meta é a paz e a harmonia inter-religiosas, é possível? Ou, ao contrário, ela nada mais é que uma traição daquilo que a crença religiosa significa, uma traição em que nenhum(a) teólogo(a) que se respeite deve se envolver? O objeto desta breve discussão é mostrar, a partir da expe­ riência nativa africana, que a teologia interconfessional é tanto desejável quanto realmente possível. Hoje, já parece evidente que ela é necessária para a própria existência humana: a paz no mundo parece exigir a paz entre crenças e religiões. O que nós queremos descobrir aqui é a abordagem nativa africana à diferença religiosa como catalisadora da compreensão e da tolerância inter-religiosa.

Laurenti Maqesa

A situação atual: a religião com o ideologia Para fazer com que a teologia interconfessional seja possível, precisamos evitar transformar a religião em uma ideologia. O espaço entre a religião e a crença e a “ideologia” é muito curto e fácil de transpor. Com referência à crença, a ideologia implica transformar uma percepção específica da realidade divina em um programa de ação prática que não permite qualquer diversi­ dade e ao qual todos são obrigados a aderir. A ideologia requer que todos a vista (e potencialmente mais além) participem de sua percepção da realidade. Por certo, “ideologias” é aquilo em que muitas crenças religiosas se transformaram na prática, intencional e deliberadamente ou não. E isso é o que grande parte da atual teologia de muitas religiões acaba sendo: ela faz o Deus que contempla e tenta fazer dele um instrumento ide­ ológico, desejando apenas a conformidade ou a destruição do outro diferente. A compreensão, a tolerância e a coexistência são qualidades que quase nunca fazem parte desse cenário religioso. A maneira pela qual a violência passa a ser parte desse cenário deve ficar imediatamente evidente. Ela vem na forma de coerção, onde a liberdade religiosa é na verdade negada. A coerção pode ser psicológica e sutil, como no caso de um certo tipo de método proselitista, em que ameaças de castigo divino têm um papel proeminente como motivo para conversão. Talvez sem estar plenamente consciente da violência infringida nas pessoas, essa é e tem sido uma prática comum em várias cren­ ças importantes. Ela consiste também em chamar o diferente outro de vários nomes não muito elogiosos. Pior ainda, esses nomes implicam que as pessoas assim chamadas são perversas e moralmente depravadas. Sempre que a crença religiosa atin­ ge esse ponto no processo ideológico, a violência física aberta usada contra o “incrédulo” passa a ser não só uma possibilida­ de, mas uma probabilidade. Tragicamente, essa violência é, ao

T eología inthrconfessional; a contribuição nativa africana para o debate

mesmo tempo, considerada uma virtude por parte da pessoa que a impõe. Além da coerção psicológica (e, portanto, da violência), esta­ mos cientes da existência da coerção física na historia das reli­ giões, usada, internamente, contra os próprios membros daquela religião para que se amoldem, ou, externamente, contra outros para forçá-los a participar ou para eliminá-los. As duas formas de violência estão ressurgindo no mundo inteiro na fenomeno­ logía religiosa. Urna vez mais isso nada é senão conseqüência da “ideologização” da crença e da religião, a convicção total e absoluta da exatidão de certas posições mentais e morais que são intolerantes de qualquer outra. Na maioria das vezes, as posições ideológicas religiosas desse tipo são usadas também para fins políticos ou até econômicos. Isso ocorre porque a di­ ferença entre crença religiosa e oportunismo político tornou-se extremamente indistinta nos dias de hoje. Para uma verdadeira teologia interconfessional que possa levar a um diálogo entre as várias crenças e entre as várias religiões, e à compreensão e á paz entre as religiões, é absolutamente necessária uma de-ideologização da religião e da fé. A visão de mundo espiritual africana, a compreensão de Deus e a atitude para com Ele na África nativa pode contribuir para nos orientar para urna nova abordagem.

A percepção que os africanos têm de Deus, da religião e da teologia Geralmente, as ideologias são construções mentais, muitas vezes com muito pouca - ou nenhuma - base na realidade. A ideologia religiosa funciona da mesma maneira. Começa com especulação, com noções mentais ou filosóficas de Deus e a seguir aplica essas noções de uma maneira geral para a realidade

laurenti Maqesa

humana universalmente. Idéias de Deus e de salvação em muitas crenças missionárias na África agiram dessa maneira, e algumas religiões atuaram da mesma forma em sua obra evangelizadora. A reflexão africana sobre Deus, isso é, a teologia nativa africana, começa de uma maneira diferente. Ela não começa exatamente com a ideia de Deus e sim com a experiência da vida, ou, melhor ainda, com Deus percebido na vida e em re­ lação a ela em geral ou na vida humana e em relação a ela em particular. Aqui na vida a automanifestação de Deus se faz evidente, já que a espiritualidade africana sempre acreditou que o que Deus mais deseja para a humanidade é a “intensificação da vida na comunidade”. Assim, os africanos consideravam sagradas “aquelas coisas mais intimamente conectadas com a procriação”. A lista era ampla: “terra ou solo [...,] a plantação, a colheita [,] sangue, sexo, casamento, nascimento, segundo nascimento, relações entre as pessoas, cerimônias de iniciação que marcavam a entrada nos vários estágios da vida, os vários conselhos que mantinham a justiça e a paz, adivinhos, ferreiros e suas oficinas, contratos e juramentos, e coisas semelhantes” (veja: KIBICHO, S. G. God and Revelation in an African Context. Nairobi: Acton Books, 2006. p. 20). A religião celebrava essas experiências em rituais e instituía algumas delas como tabus para proteger sua natureza sagrada. Essa abordagem reduz de maneira significativa, mesmo que não elimine completamente, o elemento ideológico na ex­ periência da fé da religião, isso é, aquele elemento de rejeição total da validade de outras experiências religiosas. Observe que as experiências apreciadas aqui são, de várias maneiras, universais para todos os humanos. E se é através delas que a presença divina pode ser extrapolada com relativa certeza, como os africanos afirmavam, então a abordagem a Deus não pode ser privilégio exclusivo de uma pessoa ou de um grupo

T eología interconfessional: a contribuição nativa africana para o debate

de pessoas. A crença africana de que há apenas um Deus, mas manifestações diferentes dele e abordagens também diferentes a ele, tem aqui sua base. É importante mencionar, em conexão com a presença de Deus entre os seres humanos, que, embora exista uma crença inquebrantável na benevolência divina, no sentido de que Deus intervém nas coisas humanas para beneficio humano, ninguém - nem mesmo os adivinhos, que são os sacerdotes e teólogos das religiões tradicionais africanas - ousa predizer a maneira ou o momento em que isso vai ocorrer. A benevolência ou a ira dos antepassados pode ser mais ou menos predita, mas não a divina. Embora a ação dos antepassados entre os humanos esteja associada com a ação divina, as duas não são comparáveis. Em última análise, e especialmente com relação a Deus, a única atitude humana que é considerada “virtuosa” é a convicção total na presença benevolente de Deus: “Depende de Deus”. Deus é Deus, e os seres humanos são seres humanos. Deus age como Deus deseja e ninguém tem o direito de questionar esse desejo. Essa é uma visão que honra a majestade de Deus e reconhece que a mente humana e toda a realidade existente não pode abranger Deus completamente.

A inclusividade da abordagem africana nativa Essa percepção prevê uma abordagem mais inclusiva a Deus, que respeita ao mesmo tempo a majestade de Deus e a limita­ ção humana, especialmente com referência ao “conhecimento” humano de Deus. Ela aceita maneiras diferentes, mas válidas, da presença e da ação divinas no mundo como um dado e pode permitir mais facilmente, como na verdade permite, sem uma

Laurenti Maqesa

sensação de traição, mas com um sentido de cumprimento da fé, a possibilidade e a realidade de várias figuras do Salvador. Essa percepção admite a possibilidade e a existência real de pessoas entre as várias sociedades do mundo cuja característica central é indicar e contribuir para que se realize, da maneira mais profunda, a plenitude da vida que Deus deseja e inspira no mundo e que todas as pessoas esperam alcançar. Será que, como pode parecer à primeira vista, essa abordagem inclusiva é, por esse motivo, relativista? A resposta é não. Há uma diferença sutil aqui que o estudioso de religiões africanas intui, mas não articula com frequência. O relativismo diz que qualquer posição vale tanto quanto qualquer outra, que todas as religiões são igualmente boas ou salvíficas. A abordagem religiosa e teológica inclusiva não diz isso, pelo menos não em termos tão categóricos. Pelo contrário, ela afirma que a sua abordagem a Deus é boa se ela organiza a vida para você porque a meta é a vida humana e a boa ordem do universo. E ela exige que você respeite minha abordagem pela mesma razão. A mudança de posição na fé (ou aquilo que chamamos de “conversão”) de cada um de nós, nessa perspectiva, só pode vir de dentro, de nossa convicção interna, uma convicção que muitas vezes nasce da evidência concreta e observável de que a outra abordagem produz melhores “frutos” para a vida do que a minha. O elemento de liberdade no processo de conversão é aqui bastante evidente. Mas mesmo assim a conversão ou a mudança nessa percep­ ção muitas vezes não significa uma “descontinuidade radical e substituição”, como é exigido por muitas crenças e religiões ide­ ologicamente orientadas. Pelo contrário, como já mencionamos, ela é, fundamentalmente, uma mudança para a realização. Isso foi descrito adequadamente como a abordagem “ambos/e” à re­ alidade e a Deus, que completa e totaliza, em vez da abordagem

Laurenti Maqesa

T E O U O aA IHIERCOHFESSIONAI.: A CONTRIBUIÇÃO NATIVA AFRICANA PARA O DEBATE

“ou um ou outro”, que exclui totalmente (e consequentemente empobrece) a realidade. Em vez da competição, dominação e hegemonia subjacentes entre crenças e religiões, ela enfatiza a mutualidade e aquilo a que podemos nos referir como uma “fertilização cruzada” entre elas. Isso é o que conduz ao diálogo e à teologia inter-religiosos.

Ser responsáveis pela crença que possuímos Nessa abordagem africana à crença e à religião, há uma sen­ sação de “discriminação” inteligente, mas não da exclusividade hostil do diferente outro que, como em uma Cruzada, é carac­ terística da abordagem religiosa ideológica. Isso significa que, embora o crente comece a partir de um sentido de identidade, de um conhecimento e apreciação de sua própria crença e de um desejo de mantê-la porque lhe serviu bem na vida, ele ou ela não para aqui. Levando seriamente em consideração a grandeza de Deus, a pessoa reconhece que sua identidade religiosa, uma vez mais, não esgota e não pode esgotar a realidade de Deus. A pergunta que o crente deve se fazer constantemente quando encontra outra crença, outra religião, portanto, passa a ser de que maneira esses novos fenômenos vivenciam e expressam a presença de Deus. Será que, na prática, eles manifestam ele­ mentos para a realização da vida humana que a minha própria experiência religiosa e minha crença não possui ou não mostra tão claramente? O grau de profundidade dos elementos a favor da vida e da harmonia irá, portanto, determinar a direção da crença e da “conversão religiosa” de dentro dos participantes no diálogo. Mas o conceito de conversão é perigoso aqui em virtude de suas associações históricas religiosas ideológicas. Em um sentido que im

é instintivamente compreendido pelo estudioso das religiões africanas, a conversão não envolve primariamente um abandono de uma posição religiosa e sim um processo de “realização” própria naquelas coisas que importam mais na vida. Em suma, na religiosidade africana isso significa estar do lado direito de Deus e dos antepassados, de quem toda a vida depende. A conversão pode, portanto, ser parcial no sentido de amalgamar minha própria identidade religiosa atual. Mas ela pode também ser total no sentido de aceitar completamente outra identidade pela qual, por sua vez, devemos prestar contas por meio da experiência de vida.

Conclusão Embora haja muita verdade na afirmação de que a teologia é sempre “confessional” em virtude da identidade do(a) teólogo(a) e da necessidade de ser responsável pela fé que ele(ela) mantém, isso não significa necessariamente que a teologia precisa ser um processo ou sistema ideológico fechado. Se a percepção africa­ na nativa da crença e do processo religioso tem qualquer valor nessa questão, é demonstrar que o objetivo total da teologia, especialmente em nosso mundo multirreligioso, não é apenas falar sobre Deus e explicá-lo, mas também ouvir e aprender com aquilo que outros dizem sobre essa Realidade última. Um serviço importante que a teologia pode oferecer ao mundo moderno é levar a sério sua natureza de “palavra” ou história sobre Deus, uma história que deve ser compartilhada para que enriqueça e seja enriquecida. Essa é a essência do diálogo teológico inter-religioso, e a abordagem africana a Deus capta essa essência muito bem.

“Religiões em geral?” E plausível uma teologia interconfessional na universidade? r

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Argumentos a favor de decorar uma praça pública com sím­ bolos religiosos de caráter não sectário - renas, mas não uma creche; “confiamos em Deus”, mas nunca em nome de Jesus Cristo; e, por parte do Judaísmo, uma rosca especial do Chanuca, mas não um ritual religioso - sugerem a ideia de que possamos ser religiosos de um modo geral. Com essa ideia parece que as pessoas quererem dizer que existe algo como “religiosidade sem religião”, uma afirmação generalizada de que há um Deus no mundo sem qualquer afirmação de qualquer coisa sobre Deus. E é importante para as pessoas insistirem que é possível sermos religiosos sem ter aquela devoção específica relacionada a uma igreja, sinagoga, mesquita ou templo particulares, porque a religião é vista como algo individual em vez de social, pessoal em vez de cultural. Consequentemente, muitos indivíduos po­ dem compartilhar uma atitude um tanto generalizada e todos eles podem reagir com uma emoção comum em face de uma circunstância determinada. A religião, então, vista como indi­ vidual, não é divisiva, nem partidária, nem sectária - tampouco é muito importante. A religião genérica é sempre particular e

'R eligiões em geral ? " É plausível uma teologia interconeessional na universidade ?

individual, o que eu creio, o que você crê, e raramente invoca aquilo que nós temos em comum ou exige alguma coisa de nós em virtude daquilo que fazemos juntos. A religião genérica evita a responsabilidade. Dizemos que toda política é local. Com isso queremos dizer que o exercício do poder importa quando ele tem importância no aqui e no ago­ ra. O mesmo se aplica à religião: se toda política é local, toda religião é social. A religião que é puramente pessoal e privada não faz diferença no mundo, e é por isso que as pessoas em uma sociedade pluralista recorrem à privatização da religião, insistindo que ela é seja lá o que for que você, pessoalmente, faz com que ela seja. A religião genérica também contradiz o caráter religioso. E isso não é apenas porque aquilo que é importante para nós é sempre particular: é a cidade em que moramos, o trabalho que fazemos diariamente, e, no caso da religião, a família e a igreja ou sinagoga e o grupo social que personificam a religião parti­ cular que apoiamos. A razão é que nós podemos apontar, no aqui e no agora, para a religião apenas em suas particularidades, em sua expressão na localidade da vida cotidiana. É bem verdade que o Cristianismo protestante e o Judaísmo reformista dão muita ênfase ao indivíduo e ao encontro direto de Deus com ele ou ela. O Cristianismo católico e o Judaísmo ortodoxo dão muito mais ênfase à comunidade, que, em um acordo solene, põe-se diante de Deus em conjunto e é por Ele santificada. Mas tanto os protestantes quanto os ortodoxos e os cristãos católicos romanos, e tanto o Judaísmo ortodoxo quanto o conservador, formam igrejas e comunidades, insistem em uma doutrina com­ partilhada e tratam a religião como algo que importa porque é algo que fazem em conjunto. Mas a religião não é tratada como genérica ou privada porque as pessoas acreditam erroneamente que a natureza da religião

JacobNeusner

é corporativa e pública, sempre definindo o grupo social. Ao contrário, é precisamente porque realmente compreendem que a religião é social que desejam que fosse diferente, porque as religiões - e já não a religião - têm muita dificuldade de pensar sobre o outro, o intruso, e tendem a separar seus seguidores da sociedade comum. Quando, por exemplo, universidades de fundação católica, protestante ou judaica querem deixar de ser tão sectárias, o fazem com o objetivo de serem mais aceitas por um grupo mais amplo de estudantes e professores. No ano passado, por exemplo, a Universidade Brandéis começou a fornecer comida não kosher para estudantes não judeus; e a laicização de muitos colégios e universidades católicos é um exemplo desse mesmo movimento. Mas temos de nos perguntar se esses esforços para acomodar o pluralismo - e para explora­ do - removendo os símbolos daquilo que nos torna especiais e diferentes, realmente cumpre o objetivo desejado pela direção dos colégios e universidades judaicos, católicos e protestantes. Pois quando fingimos ser “religiosos em geral”, mas não em particular, negamos aquilo que é importante sobre nós mesmos: as famílias que fizeram com que existíssemos, as comunidades que nos aproximam uns dos outros, as coisas que evocam nossas lembranças e dão sentido às nossas vidas, que sem isso vêm de lugar nenhum e não fazem qualquer sentido. “Religião em geral” representa todas as religiões como sendo igualmente corretas, mas nenhuma religião em particular pode fazer uma concessão assim tão enganosa. Se Jesus Cristo ressurgiu dos mortos e é o Messias do mundo, então meu Judaísmo, que ainda espera pelo Messias, está errado. E se o sacrifício da missa serve de mediador entre o sangue e a carne de Deus e os fiéis, então os luteranos (e isso sem mencionar os batistas) estão terrivelmente errados. Refiro-me a questões de doutrina. Mas nas coisas que contam, como a política, qualquer afirmação de que as religiões

'R eiigi Oes em geral ? " É plausível uma teologia interconfessional na universidade ?

estão todas certas e, portanto, não importam e não deveriam nos dividir contradiz os fatos terríveis dos dez condados de Ulster, na Irlanda, onde protestantes e católicos se matam; do Oriente Médio, onde tipos diferentes de muçulmanos se matam; da Terra de Israel e Caxemira, onde judeus e muçulmanos, hindus e mu­ çulmanos, competem pelo mesmo território etc. Abra o jornal qualquer dia de manhã - e depois tente se persuadir de que “a religião em geral” é uma opção para interpretar o mundo que realmente enfrentamos! Mas se, como eu afirmo, a religião é sempre e somente par­ ticular, como vamos viver, então, no campus universitário em particular, com a diversidade, a pluralidade e a diferença religio­ sa? A solução que nos pede que neguemos a diferença também desafia a realidade da fé religiosa, mas o reconhecimento de que as religiões são sempre locais, sempre particulares, sempre divisivas em virtude de sua particularidade, não contribui exa­ tamente para responder à pergunta do aqui e agora. Na univer­ sidade, em particular, é melhor que enfrentemos essa questão, porque aqui temos a oportunidade, em plena racionalidade, de enfrentar os problemas da sociedade. Do lado do fora as con­ dições mal nos permitem fazer isso. Aqui podemos conversar de uma maneira razoável, negociar as diferenças, explorar as possibilidades e tentar alternativas. Nós, acadêmicos, estamos acostumados com argumentos e diferenças, e é parte de nosso repertório profissional experimentar as coisas: verificar esta possibilidade, explorar aquela alternativa. E os alunos no cam­ pus também têm uma vida inteira à sua frente. Aqui existem poucos riscos e, se você cometer um erro, pode aprender com ele. Fora do campus os riscos são maiores e as pessoas não estão de forma alguma acostumadas com experimentos que não dão certo e teorias que acabam sendo falsas - mas que, por isso mesmo, são frutíferos.

Jacob Neusner

Portanto, aqui, no campus, temos a oportunidade e também a tarefa de explorar como ser religioso em pleno confronto com a diferença religiosa. E isso, a meu ver, é o principal problema com que se deparam todas as religiões no século XXI: não o secularismo, mas sim o sucesso. Pois está claro que a onda do futuro não está com o materialismo ou o ateísmo, mas sim com as igrejas e sinagogas e mesquitas e templos. A religião sobreviveu a duzentos anos de secularismo militante, tanto na política quanto na vida intelectual. Mas será que o mundo pode sobreviver ao - agora manifesto - triunfo da religião e, portanto, das religiões? Aqui no campus é melhor lidarmos com essas questões e não existe lugar melhor que uma universidade como a de Redlands, que, afinal de contas, foi fundada por batistas americanos com a intenção de prover um ambiente cristão para a educação superior, mas, como Brandéis e Notre Dame e outras escolas, tem estado mais inclinada no passado recente a dar ên­ fase apenas à religião genérica (se isso). A oportunidade diante dos colégios e universidades protestantes, judaicas e católicas é demonstrar como podemos ser autênticos com nossa herança sem excluir o outro em virtude dessa diferença. Tendo definido o que considero como a questão mais urgente confrontando a religião - saber administrar a diferença - e o ambiente ideal para a experimentação com esse problema, que é o campus, voltemo-nos agora para as questões práticas que têm de ser enfrentadas. A meu ver, para começar, são três as questões que exigem nossa atenção. Primeiro, o que é que está além do relativismo, da noção de que todo mundo é certo para alguém, mas ninguém a não ser eu mesmo é certo para mim? Segundo, se não relativismo, como devo, então, interpretar a diferença? Terceiro, é possível que as pessoas aprendam juntas, divirtam-se juntas e trabalhem juntas se não podem orar juntas? Além do relativismo está a

"R eligiões em geral?" É plausível uma teologia interconfessional na universidade?

tarefa desconfortável de afirmar que estamos certos quando outras pessoas discordam: o relativismo nos poupou muito tra­ balho, mas esse artifício que poupa trabalho agora demonstrou ser caro demais para ser mantido. Mas nós, nas universidades, estamos acostumados com a diferença: discutimos uns com os outros o tempo todo se defendemos uma determinada posição e se estamos fazendo alguma coisa como acadêmicos. Se não relativismo, então como devo interpretar a diferença? Como um acadêmico eu comemoro a diferença, é ela que torna o trabalho interessante. Se, ao escrever meus livros, tudo que eu fizesse fosse ensaiar aquilo que li nos livros de outras pessoas, eu acharia que a vida é um tédio. E o mesmo se aplica a opini­ ões, e especialmente opinião e crença a respeito das coisas que importam. As pessoas religiosas evitaram completamente tudo aquilo que divide por tanto tempo que os católicos hoje falam menos sobre Maria do que gostariam; e os judeus tendem a não declarar sua crença profunda em Israel, no povo judeu como sendo sagrado e na aliança com Deus; e os cristãos protestantes começaram a achar constrangedor a insistência dos cristãos evangélicos, seguidores da Bíblia, sobre a verdade infalível das Escrituras. Mas o debate público sobre o que nos importa abre as portas para a honestidade e a evasão corrói no final. Nossas vidas em conjunto não são mais saudáveis quando negamos a diferença. Nós só começamos a viver juntos quando falamos a verdade sobre nós mesmos. Então, para o cerne da questão: o que pode ser feito, ou, como coloquei a pergunta, será que as pessoas podem apren­ der juntas, divertir-se juntas, trabalhar juntas, se não podem rezar juntas? Sim, há coisas que podemos fazer juntos, mesmo quando reconhecemos que existem outras coisas que não po­ demos compartilhar. Não irei comer algumas das comidas que você come, mas posso compartilhar com você o que significa

Jacob Neusner

viver uma vida em que cada refeição é ocasião para confirmar minha vida de acordo com a Torá. Meu romancista favorito e coautor, Padre Andrew Greeley, não se casará, mas ele pode lhe dizer muita coisa sobre o significado do amor e do sacrifício e do serviço por meio do celibato, tanto, na verdade, que em um diálogo com ele você irá se dar conta do significado de amar uma mulher de maneiras que seriam inimagináveis antes disso. Meu colega protestante, lutando com o dilema de obras em uma religião calvinista, pode contar-me coisas sobre a centralidade da graça que para mim abrem possibilidades cuja existência eu desconhecia totalmente. O que podemos fazer juntos quando não podemos orar juntos - reconhecendo a particularidade da vida religiosa - é aprender juntos e ensinar uns aos outros sobre as potencialidades e as escolhas que pessoas que não são iguais a nós fazem. Mas isso me parece precisamente aquilo que os colégios e as universida­ des fazem melhor: contar-nos coisas que não sabíamos, coisas que não poderíamos sequer imaginar, para assim abrir nossas mentes (e também nossos corações e almas) para mundos que de outra forma nunca teríamos conhecido, mundos que nos transformam quando ficamos cientes deles. Na sala de aula estudamos histórias que não são as nossas e ultrapassamos os limites do repertório estreito e provinciano das escolhas que acreditamos ter, na política e nas políticas públicas, por exem­ plo, e na organização da sociedade e da cultura. Na literatura vemos como a linguagem serve para personificar a imaginação além de nossa capacidade e a nos capacitar a sonhar e a dizer o que vimos. A diferença na religião, também, abre caminhos para fazer de nós, em toda nossa particularidade, mais do que sabíamos que éramos, e para nos tornamos mais do que aquilo que pensávamos que poderíamos ser. Na linguagem do Cristia­ nismo e do Judaísmo, que vê a humanidade “à nossa imagem e

“ R a iG IÕ E S

EM G ER A L?" É PLAUSÍVEL UMA TEOLOGIA IHTERCONFESSIONAL NA UNIVERSIDADE?

semelhança,” e procura Deus no rosto do ser humano, a diferença na religião nos mostra as várias maneiras pelas quais, bastante plausivelmente, as pessoas se propõem a ser “à nossa imagem e semelhança”. Afirmamos o relativismo e negamos a diferença na busca de uma base para a aceitação mútua. A universidade afirma buscar a verdade, portanto já não podemos dizer que todas as pessoas estão certas sobre uma quantidade de proposições mutuamente contraditórias e incoerentes relacionadas com questões últimas. A universidade afirma lidar com fatos, e já não podemos negar os fatos da diferença. Mas se todos os outros estão errados e eu estou certo - e essa proposição contém a crença que, até agora, ninguém ousou confessar pelo menos não em público - então como é que vou interpretar o outro? Minha resposta é, não posso transformar o outro à minha própria imagem e semelhança, mas tenho de aprender a ver nele uma outra forma de ser à imagem e semelhança de Deus. É bem verdade, essa é uma proposição desconfortável. Mas é honesta e necessária. E essa proposição demonstra ser extraordinariamente congruente com aquilo que estamos aqui para fazer juntos, neste local específico, a universidade, que é aprender. Afirmar a diferença porque com ela aprendemos formas das respostas religiosas mais belas às perguntas propostas quando reconhecemos que a religião, como a política, é sempre local. Não podemos ser religiosos em geral porque existem, lá fora, no mundo inteiro, apenas religiões e não religião. E o fato de religiões serem plural e nós sermos diferentes apresenta para as universidades o desafio de se tor­ narem aquilo que elas afirmam ser: lugares em que nutrimos uma variedade de propostas sobre vários assuntos, lugares em que somos um no diálogo, mas múltiplos na perspectiva, uni­ dos em respeito à razão, totalmente divididos em tudo mais. Argumentos existem para ser aproveitados com prazer e não

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evitados. E as diferenças de opinião para serem exploradas, não evitadas - e tudo isso por razões sólidas e teológicas: cada um de nós está, afinal de contas, “à nossa imagem e semelhança”, e da perspectiva de Deus na Escritura, mostrando exatamente como as coisas devem ser. E isso é, infelizmente, precisamente, da maneira que elas são.

A teologia interconfessional é possível? Se não, por quê?

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O conjunto de ensaios deste livro investiga a possibilidade de existir uma teologia interconfessional que fosse além do pluralismo e da inclusão, uma integração total ao tratar das necessidades do mundo contemporáneo. Tal teologia integrativa convocaria os povos de todas as crenças para colaborarem e fazerem seu discurso teológico tratar das necessidades comuns da raça humana que transcendem a crença, a filiação religiosa e todas as outras categorias humanas que contribuem para enfraquecer a unidade da raça humana. Apresento este breve ensaio à apreciação dos leitores, escrito sem ter oportunidade de recorrer a literatura complementar, esperando contribuir para uma teologia interconfessional do ponto de vista bíblico. Ele pergunta: o que é teologia? É possível haver uma teologia interconfessional da perspectiva bíblica? Se não, por quê? Em caso afirmativo, quais seriam as características dessa teologia; seria uma que atenderia as necessidades de toda a raça humana e convidaria seus participantes a focalizar essas necessidades como chaves hermenêuticas para o engajamento na teologia colaborativa? UH

Teresa Okure

A TEOLOGIA IMTERCONFESSIONAL É POSSÍVEL? S e NAO. POR QUÉ?

Etimológicamente, a teologia é a discussão humana ou a palavra sobre Deus (theos logos). Anselmo descreveu-a como “a fé procurando entendimento através da discussão filosófica”. Ele pertenceu a urna época em que a filosofia era considerada a serva da teologia. Contudo, no interior de toda filosofía existe uma dimensão cultural, o DNA de um determinado povo que informa sua perspectiva e compreensão da vida, da criação e de um Criador. A cultura molda como um determinado povo viven­ cia sua interconectividade com Deus, os outros seres humanos e a criação. Ela forma seus sistemas de valores, costumes, ritos e rituais e a soma total do que significa ser humano. O mesmo se aplica à teologia. Talvez hoje em dia preferíssemos definir, ou melhor, descrever a teologia como “a fé buscando entender Deus do ponto de vista dos sistemas de crença, com informações dos valores culturais de seus adeptos”. Enquanto a religião fala em geral sobre como alguém se relaciona com Deus, a teologia procura descobrir, aprofundar e desenvolver o conceito de Deus de alguém com base nos sistemas de crença do indivíduo.

Análise racional de uma teologia interconfessional Aqui examinamos duas razões fundamentais, mas que não são exclusivas para defender uma teologia interconfessional, isto é, o Deus que cria e a unidade do que Deus criou. Um Deus, Criador de tudo. No âmago da teologia está Deus, a respeito do qual trata o discurso humano. Por conseguinte, não importa quão limitada ou condicionada seja a teologia a partir da peculiaridade da cultura e sistemas de crença de al­ guém, ela possui em seu interior o caráter e escopo universal na medida em que seja uma discussão sobre Deus. Enquanto diferentes povos possam expressar sua compreensão de Deus de ffiS I

maneiras diversas, esse Deus permanece uma constante em cada teologização. Se no passado as pessoas acreditavam em deuses diferentes, o mundo se aproxima cada vez mais da crença de que existe apenas um Deus, embora seja conhecido por diferentes nomes em diferentes culturas e contextos por diferentes povos. Paulo lembrou os atenienses politeístas desse fato, citando seus próprios poetas em sua defesa (At 17,22-30). Portanto, a ideia e a possibilidade de uma teologia intercon­ fessional repousam em e pressupõem que haja somente um Deus, o qual é abordado por diferentes crenças de diferentes maneiras. Sem esse entendimento básico e comum seria impossível ima­ ginar uma teologia interconfessional, já que essa teologia care­ ceria de um denominador básico comum. As Escrituras, como eu disse em minha apresentação no I Fórum sobre Teologia e Libertação (WFTL), é o “Manual de Instruções de Deus” para a humanidade. Ele nos permite saber de onde viemos como es­ pécie humana, nossa identidade na criação e em relação a Deus, os desígnios de Deus ao nos criar e como acabamos sendo do jeito que somos agora: não somente diferentes, mas também desunidos. A história de Gn 1-11, chamada de pré-história, trata do mito de nossas origens como gênero humano. A seção his­ tórica da Bíblia, do Gn 12 em diante, nos aponta e conduz para frente no caminho até que os planos e propósitos de Deus para nós sejam realizados no novo céu e na nova terra (Ap 21-22).1 A raça humana. Outra base lógica para a teologia intercon­ fessional é a realidade da raça humana. A ideia de um gênero humano não é uma criação da imaginação nem uma invenção do século XXL É um dado nas Escrituras. Elas nos asseguram 1

OKURE, T. “Theology for another possible world”, um trabalho apresentado, in absencia, no primeiro WFTL. From Genesis to revelation: apocalyptic in biblical faith. In: FREYNE, Sean; SOWLE CAHILL, Lisa. Is The World Ending? Concilium (1998/4) 23-30.

A1HM6IAIHTERCONFESSIONAL É POSSÍVEL? S e NÃO. POR QÜÊ?

que a raça humana é uma espécie criada por um Deus a partir de uma só e mesma matéria-prima, criada masculina e feminina na “imagem e semelhança de Deus” (Gn 1,26; 26-27), e concedidos o mesmo dom e responsabilidade pela Terra. Embora as Escri­ turas sejam um livro das religiões judaica e crista, seu escopo ultrapassa essas duas religiões e abrange a criação inteira. A origem do livro é a origem e história de um povo específico, os israelitas como povo escolhido e especial de Deus. Para os cristãos, Jesus é o ápice de todas as promessas que Deus fez na Bíblia, tanto aos israelitas quanto à humanidade como um todo. Não obstante suas origens, a Bíblia não é um livro exclusiva­ mente judeu ou cristão. Quase em todas as fases que abarcam mais de dois mil anos de história, o livro manteve uma teologia subjacente aberta e totalmente abrangente do envolvimento de Deus com todas as nações. Não somente interesse. E mostrado como Deus incluiu os povos de outras nações no plano divino para salvar a humanidade de seus pecados, isto é, seus desvios do propósito original que Deus pretendeu para a criação. Também mostrou como Deus exige obras de justiça de todos na qualidade de povos feitos à imagem e semelhança de Deus, convocando todos a serem responsáveis por suas obras.2 Sobre o envolvimento dos não judeus na história bíblica, po­ demos pensar em personagens importantes como Agar e Ismael, seu filho com Abrão; as parteiras egípcias que desafiaram a ordem do próprio faraó para salvar os israelitas recém-nascidos, um dos quais era Moisés, chamado pela filha do faraó de o “promotor” da religião bíblica (Ex 2,1-10). Outras mulheres 2

Um exemplo notável aqui é que os livros proféticos, principalmente o Livro de Amós, que começa com profecias dirigidas contra os vizinhos de Israel por seus pecados de injustiça social: Damasco (1,3-5); Gaza e Filisteia (1,6-8); Tiro e Fenicia (1,9-10); Edom [Esaú] (1,11-12); Amon (1,12-15); Moabe (2,1-3); depois Judá (2,4-5) e, finalmente, Israel, o principal alvo da profecia de Amós (2,6-16).

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na vida de Moisés o salvaram em momentos difíceis: as filhas do sacerdote de Madiã e sua esposa cuchita. Pensamos no adi­ vinho mesopotâmico, que se tornou profeta, de quem proveio o primeiro oráculo messiânico (Nm 22-24). Na Assíria, que Deus chamou de “vara da minha ira” contra seu próprio povo (Is 10,5). Ou em Ciro, rei da Pérsia, que Deus chamou de seu servo, talvez o profeta pós-exílio, a primeira figura messiânica que mereça tal nome (Is 45,1-8). Há inumeráveis exemplos. Os salmos da criação (por exemplo, SI 24[23],1) sustentam que “do SENHOR é a terra com o que ela contém, o universo e os que nele habitam”. Provavelmente não é por acaso que no Novo Testamento a genealogia de Jesus, o Messias, tem quatro mulheres não ju­ dias, as quais, consideradas todas juntas, rompem seriamente o mito da pureza da raça judia mesmo antes da deportação para a Babilônia (onde essa pureza teria sido ainda mais diluída). Antes disso, os autores do Êxodo nos informam que, durante o próprio êxodo, um grupo inteiro de pessoas de outras nações se juntou à fuga ou expulsão dos israelitas (dependendo de qual versão tradicional do Êxodo seja adotada) quando eles deixaram o Egito (Ex 12,38). Logo, as próprias Escrituras não garantem a exclusiva pureza de raça do povo escolhido. O que elas garantem é a integração do ponto de vista divino, embora se possam interpretar as tradições e elas próprias possam que­ rer nos fazer acreditar que o povo escolhido era de uma única raça tribal. O Novo Testamento deixa ainda mais claro que o escopo da redenção de Deus é universal: “De fato, Deus amou tanto o mundo, que deu o seu Filho único, para que todo o que nele crer não pereça, mas tenha a vida eterna” (Jo 3,16). Paulo nos assegura mesmo que todos os seres humanos judeus e não judeus pecaram, se perderam, e que todos são salvos pelo ato de amor de Deus como uma graça (Rm 3,21-24).

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A TEOLOGIA INTERCONFESSIONAl t POSSÍVEL? Se NÃO. POR QUÉ?

Nos relatos sobre a infância, os magos do Oriente vieram procurar e adorar alguém que nasceu como “rei dos judeus” (Mt 2,2), não o próprio deus deles!, porque eles possuíam uma mente suficientemente aberta para reconhecer sua grandeza quando viram surgir sua estrela. Em contraposição, o povo do próprio Messias, que sabia onde ele nasceria e que tinha esperado por séculos sua vinda, foi aquele que o procurou para matar. Quando não conseguiram identificá-lo, eles mataram todos os meninos que tinham aproximadamente sua idade, nascidos em Belém, onde ele tinha nascido, e nos campos ao redor (Mt 2,1-18). Tudo que foi dito até agora serve simplesmente para cons­ cientizar a natureza integrativa da Bíblia em si e o chamado atual para redescobrirmos essa integridade, principalmente da perspectiva do Novo Testamento. O mesmo Deus que criou o mundo e a espécie humana é aquele que veio na pessoa de seu Deus-Verbo como um de nós (Jo 1,1-4) para nos redimir a todos. “[...] e não só pela nação [Israel], mas também para reunir os filhos de Deus dispersos” (Jo 11,52). Jesus elevou, glorificou, “atraiu todos os povos” para seu ser humano divino (cf. Jo 12,32). Ainda mais minuciosamente: “Deus estava em Cristo reconciliando o mundo com o ser divino e nos confiou as boas-novas de que eles se reconciliaram” (cf. 2Cor 5,18-20). É tudo obra de Deus.

Características da teologia interconfessional: Jesus com o mestre e modelo O propósito do precedente é que as próprias Escrituras, o “Manual de Instruções de Deus”, incitam-nos a fazer uma teo­ logia integrativa, uma que conduziria a raça humana a conhecer

e celebrar o fato de que Deus fez por nós na luta contra o pecado e o mal aquilo que nós possivelmente não poderíamos fazer sozinhos. Jesus veio para proclamar a bondade de Deus ou esta libertação, para ser ele próprio as boas-novas (Rm 1,1-4). Tendo terminado sua missão na terra, ele pediu a seus seguidores que não começassem a agir sozinhos, mas que esperassem até que fossem transformados e fortalecidos pelo Espírito Santo a fim de irem proclamar suas boas-novas aos confins do planeta (At 1,4); e fazê-lo da mesma forma que ele o proclamou - totalmente grátis (Jo 20,21-23). A teologia que se desenvolveu desse manda­ to ao longo dos anos talvez não tenha permanecido sempre fiel ao seu foco universalista e mandato. Talvez seja esse “desvio do Evangelho”, para citar a frase de João Paulo II, que tornou urgente para nós, no alvorecer do século XXI, buscar “fazer-se ao largo para a pesca” (“duc in altum”) para uma teologia interconfessional integrativa. Começar a pegar o peixe em plena luz do dia porque é Jesus, não os seres humanos, quem está mandando os peixes, uma operação de proclamação dos Evangelhos (ver Lc 5,1-113). Se é verdade que Jesus é o Verbo-Deus encarnado em nos­ so mundo, que veio por causa da humanidade como um todo, não somente para os crentes, então precisamos vê-lo e a seu exemplo pelo que significam no desenvolvimento da teologia interconfessional. Uma teologia que ajudaria toda a humanida­ de a se unir para trabalhar e fazer do mundo um lugar melhor para se viver, onde nenhum de seus membros (da raça humana) 3

Esse é o impulso ou leitmotiv da carta apostólica de João Paulo II Novo Millennio Ineunte (disponível em: ). O incidente acontecido na pesca dos discípulos de uma noite inteira, em Lc 5,1 -11, não trouxe resultados até que Jesus chegasse ao alvorecer para dirigir a operação. Da mesma forma, a Igreja, no alvorecer deste século, deve ouvir Jesus e fazer as coisas certas.

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A TEOLOGIA INTERCONFESSIONAL É POSSÍVEL? Se NAO. POR QUÉ?

seria um necessitado, onde a tendência gananciosa de espoliar e explorar a natureza e os pobres seria rejeitada e abandonada. Essa busca pode assumir diferentes dimensões. Uma importante seria estudar sua interação com aqueles que no juízo de Tiago e João deveriam ser consumidos pelo fogo por não aceitarem Jesus (Lc 9,54); ou quem, de acordo com seus discípulos, “não fosse um de nós”. Eles queriam fazê-los parar de expulsar demô­ nios em nome de Jesus, mas Jesus os proibiu dizendo-lhes que ninguém que expulse um demônio, um espírito impuro, em seu nome poderia logo falar mal dele. E acrescentou: “Quem não é contra nós, está a nosso favor” (Mc 9,38-40). Isto é diferente dos discípulos de estilo próprio que não seguem seus ensinamentos, mas que expulsam demônios em seu nome. Jesus diria deles: “[...] Jamais vos conheci. Afastai-vos de mim, vós que praticais a iniqüidade” (Mt 7,21-23). Expulsar os espíritos impuros em nome de Jesus é mais do que um ritual. É um chamado para fazer como Jesus fazia; para agir in persona de Jesus. Nos Evangelhos Jesus acolhe os não judeus, os forasteiros, e os elogia como modelos de uma fé que ele não encontra nem em Israel (Lc 7,9; 1-10: o centurião romano). Ele diz que o povo de Sodoma receberia um julgamento menos severo no dia do juízo final do que o povo escolhido porque eles não tiveram a oportunidade que o povo escolhido teve e jogou por terra (Mt 10,15; Lc 10,13-15); a rainha do Sul iria a julgamento por causa do povo escolhido porque sua fé a levou a procurar a sabedoria de Salomão, enquanto o povo tinha a própria Sabedoria em seu meio falando com eles, mas não prestou atenção (Mt 12,42). Jesus deixou-se comover pela teologização, a sabedoria nativa da mulher siro-fenícia (Mc 7,24-30; Mt 15,21-28). Ele pediu ao endemoniado de Gerasa, o qual ele havia curado de uma legião de espíritos impuros, que não se tornasse fisicamente seu discí­ pulo, mas permanecesse com seu povo e proclamasse a bondade

de Deus para com ele e para com eles também (Mc 5,1-20). Pois, enquanto o homem foi possuído, a cidade toda esteve sitiada por ele. Quando ele foi liberado, a cidade toda foi liberada, e todos se tornaram recipientes e ouvintes das boas-novas. Esses exemplos também poderiam ser multiplicados. De modo geral, é intrigante que o critério para o julgamento final que vai determinar se alguém é contado entre as ovelhas que passarão para a vida eterna ou que irão para o fogo eterno seja como ele satisfaz as necessidades, as necessidades básicas de cada ser humano. E como ser humano (filho do homem, que em meu idioma ibibio se diz “Eyen Owo”, literalmente: “o filho de um ser humano”) que Jesus vai julgar: eu, um ser humano, estava com fome e você me deu de comer; eu tinha sede e você me deu de beber, eu estava nu e você me vestiu, doente e na prisão e você me visitou”. Então, ele acrescentou: “Na medi­ da em que você o fez [ou se recusou a fazer] a algum desses pequeninos, você o fez [ou se recusou a fazer] a mim” (cf. Mt 25,31-46).4 Aqui temos uma teologia que torna a reunir e está situada na própria atividade sem fim de Deus de sustentação da vida, que Deus concedeu em primeiro lugar. É totalmente oposta à teologia do fundamentalismo, que mata, destrói a vida - que Deus deu livremente com tanto amor -, ironicamente em nome de Deus e da religião. No entanto, a religião, pelo seu próprio nome, é aquilo que reata as pessoas juntas ou que faz as pessoas escolherem de novo pertencer e reivindicar umas às outras como partes delas mesmas.5 4

5

Ver mais sobre isso em: OKURE, T. Bibel text 4: verpflichtet zur Gastfreundschaft zu Gast in Nigeria. Bibel Heute 4 (2004) 20-21. Original em inglês: Hospitality: a task exegesis o f Matthew 25,31-46). Há pouco tempo eu examinei isso em “Challenges o f reconciliation for the religious in Africa”, USG/UISG Comissão de Justiça, Paz e Integridade da Criação [JPIC] como parte do processo de participação no Segundo Sínodo Africano, “The Church in service to reconciliation, justice and peace: ‘V ós sois o sal da

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A TEOLOGIA IHTtRCONFESSIONAL í POSSÍVEL? $E NAO. POR QUÉ?

Tal critério para o julgamento final está vinculado com o conteúdo das Boas-Novas que Jesus encarregou seus discípulos de pregar, da forma que ele próprio o pregava: “O Espirito do Senhor está sobre mim, pois ele me ungiu, para anunciar a Boa-Nova aos pobres; enviou-me para proclamar a libertação aos presos e, aos cegos, a recuperação da vista; para dar liberdade aos oprimidos e proclamar um ano aceito da parte do Senhor” (Le 4,18-19). Nessa ótica de ano de jubileu todas as dividas serão canceladas (ver Lv 25). Inclui não somente a libertação dos escravos, mas também da própria terra, de forma que não seja explorada até a morte e espoliada, suas florestas devastadas pela industrialização irresponsável em nome do lucro, tudo isso para satisfazer a ganância humana e a compulsão de servir em vez de ser servido pelo dinheiro.

Caminho a seguir Estas breves reflexões estabelecem uma razão fundamental dada por Deus para uma teologia interconfessional. Mas como tudo isso se conecta com a necessidade de tornar a Terra um lugar mais habitável para os humanos e tratar do problema da injustiça para com a própria Terra, os pobres e outros setores da humanidade (aqueles do chamado dois terços do mundo, as mulheres e inválidos da sociedade)? Se todos aqueles que acreditam em Deus procurassem em suas diferentes tradições de crença descobrir um Deus que se importe com os pobres e os humildes, o qual fez e sustenta a Terra porque Deus a ama e a mantém (Sb 11,24-12,2; também Juliana de Norwich, Revelations o f Divine Lové), então os povos de todas as crenças fariam uma teologia que seria verdadeiramente integrada, não terra... Vós sois a luz do mundo’, Mateus 5,13-14)”, Vaticano, outubro 4-25, 2009.

somente tolerante. Essa teologia iria retomar os desígnios ori­ ginais de Deus na criação, proporcionaria alimento para todas as criaturas e praticaria na criação, em nome de Deus, o mesmo amor e cuidado, até deleite, que Deus mostrou e sentiu quando ele primeiro criou tudo em harmonia, cada um consigo mesmo e em seu inter-relacionamento.6Uma teologia interconfessional desse tipo pode não ser particularmente cristã na sua profissão de fé, mas iria promulgar a seu próprio modo a singularidade de Jesus, que veio não para ser servido, mas para servir e dar sua vida como resgate para muitos (muitos significando abertura irrestrita, não exclusividade). Essa teologia não seria estranha à crença africana na interconectividade dos seres humanos e da criação (ubuntur): eu sou porque nós somos; e porque nós somos eu sou; e porque eu sou, nós somos); onde a Terra é considerada sagrada e onde o povo tem obrigação de cuidar não só dos vivos mas também daqueles ainda por nascer. Posso citar aqui uma história que já contei antes em outro de meus trabalhos escritos. Estávamos no início da década de 1980, quando, na Nigéria, abundava o fundamentalismo religioso do grupo islâmico de Maitatsane (eles não eram tanto contra os cristãos como em relação a outros islâmicos que eles achavam não serem suficientemente ortodoxos ao viver sua fé islâmica). Eu estava num voo egípcio do Cairo para Lagos, Nigéria, e vinha de uma conferência da Associação Ecumênica de Teólogos do Terceiro Mundo (EATWOT). No avião, sentei-me ao lado de um egípcio, que, durante a nossa conversa sobre a crise religiosa, disse: “A Terra existe para você e eu cultivarmos. A religião é para Deus”. Quando tentei entender o que ele queria dizer, ele 6

Sobre o tema, consultar a obra de Cletus WESSELS, The Holy Web; Church and the N ew Universe Story (Maryknoll: Orbis, 2000), onde o autor ressalta a interco­ nectividade de todas as coisas criadas como reveladas pela ciência contemporânea e enfatiza a missão da Igreja para alimentar essa “rede de relacionamentos” em que a humanidade pode se encontrar como parte de um todo surpreendente.

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A TEOLOGIA INTERCOHFESSIONAL É POSSÍVEL? Se NAO. POR QUÉ?

explicou aquilo que eu acreditava estava entre mim e Deus e o que ele acreditava estava entre ele e Deus. Mas Deus tinha dado a Terra a ambos para cultivar e ganhar a vida para todos. Talvez uma teologia que faça isso no espírito da hospitalidade, “dando espaço e liberdade de ser ao outro”, fosse verdadeira­ mente interconfessional. Ela incorporaria a fé em um Deus que criou todos os seres humanos à sua imagem e semelhança, que generosamente aprovisionou para cada criatura e que olhou e achou muito bom tudo o que ele tinha criado, e as medidas toma­ das. Assim, ele confiou na humanidade (homem e mulher) para cuidar e encontrar não só os recursos para suas necessidades materiais, mas também sua oportunidade de se tomar como o Deus Criador (Gn 1,26-4,2) ao cuidar da Terra.7 Essa teologia de criação e hospitalidade não é estranha à fé cristã. A respeito do Verbo Encarnado, as Escrituras dizem que todas as coisas foram criadas através dele, para ele, e nele todas as coisas subsistem juntas (cf. Cl 1,16-17). Ele é a imagem do Deus de sabedoria infinita e incomensurável, de quem, através de quem e para quem existem todas as coisas; a ele pertencem a glória e o louvor para todo o sempre (cf. Rm 11,33-36). Essa teologia interconfessional, embora não particularmente sacra­ mental, tornaria a reunir a Eucaristia, a ação de graças, que é o coração, o apogeu e o auge da fé católica cristã: a ação de graças a Deus pela dádiva que são a criação e todos os povos criados. Ela asseguraria que todos os seres humanos se com­ prometessem a ser administradores - nem proprietários, nem exploradores - uns dos outros e da criação como um todo. Que*l 7

É interessante que a “Mensagem para o Dia Mundial da Paz” de Bento XVI, em l ade janeiro de 2010, seja sobre esse tema: “Se quiseres cultivar a paz, preserva a criação”. O Segundo Sínodo Africano (4-25 de outubro de 2009 - ver nota 5) tinha uma clara proposta sobre “Proteção ambiental e reconciliação com a cria­ ção” (proposta 22), além daquelas sobre o uso de “Recursos naturais” e “Terra e água” (propostas 29 e 30, respectivamente).

eles se comprometam a repartir o pão de suas vidas de forma que os outros tenham o que comer e vivam vidas humanas melhores, que verdadeiramente espelhem Deus. Uma teologia interconfessional que incorporasse as carac­ terísticas aqui esboçadas brevemente seria solidamente base­ ada nas Escrituras, no Antigo e no Novo Testamento. Poderia persuadir, e mesmo libertar, as pessoas para explorarem os aspectos mais sacramentais da fé cristã e católica. Ao mesmo tempo, poderia até levar aqueles que não compartilham dessa crença a explorarem por sua conta, sem qualquer sentimento de inferioridade, a infinita benevolência e bondade de Deus, nosso Salvador, que surgiu na pessoa de Jesus de Nazaré, Deus em carne e osso (cf. Tt 3,4-8). Talvez viessem a perceber que, em última análise, o que Jesus nos deixou não foi um credo a ser professado na liturgia, mas um estilo de vida que conclama todos para a santidade do próprio Deus que sustenta igualmente todos sem discriminação (cf. Mt 5,43-45). Nele todos são cha­ mados a se tornar “uma nova criação” (cf. 2Cor 5,17), filhos e filhas de Deus, os próprios “herdeiros de Deus e co-herdeiros de Cristo” (Rm 8,14-17; G14,4-7). É tudo obra de Deus, dádiva de Deus a toda a humanidade gratuitamente. Já que é obra de Deus, os seres humanos não precisariam absolutamente induzir uns aos outros a crer. Ao contrário, eles deveriam intensificar seus esforços para se tornarem verdadeiramente como Deus que os criou. Dessa forma, eles serão luz em Deus sem nenhum vestígio de escuridão. Assim, tudo seria transparente em seus tratos uns com os outros e glorificariam a Deus durante todas as suas vidas, talvez apenas ultrapassando um ao outro ao de­ mostrar hospitalidade e cuidados. Ou não devendo nada um ao outro, exceto o débito do amor (Rm 13,8-16). Por último, mas não menos importante, uma teologia inter­ confessional seria inspirada pelo Espírito e repleta do Espírito. m

A TEOLOGIA INTERCONFESSIOWAL É POSSfVEL? St NAO. POR QUÉ?

G15,13-26, entre outras passagens do Novo Testamento, explica claramente o que significa viver pelo Espírito (o contrário da carne, o ser humano sem religião) e as características de urna vida conduzida pelo Espirito. Um exame atento da lista de virtudes recomendadas aqui (amor, paz, bondade, amabilidade etc.) revela que não há nada de particularmente cristão nelas. Como aquelas instadas pela literatura da sabedoria, elas dizem respeito ao modo como os seres humanos deveriam conduzir uma vida merecedora de Deus, à imagem e semelhança de quem fomos criados. Essa observação é ainda mais contundente se, como sustentam os estudiosos, essas e semelhantes do Novo Testamento foram tiradas de códigos domésticos prevalentes naquele tempo, embora tenham recebido uma dimensão cristã (por exemplo: por se dirigirem diretamente a mulheres, crianças e escravos).

Conclusão: se não, por que não? Em vista de todo o exposto, uma teologia interconfessional não só é possível como desejável. O ônus da prova seria da pessoa que contestasse essa possibilidade. Uma teologia interconfessional não anularia a existência de outra teologia particularmente baseada na fé, mas enriqueceria e poderia ser enriquecida por essas teologías particulares baseadas na fé.

Teologia interconfessional mundial do pluralismo religioso: uma perspectiva muçulmana I rfan A. O mar

Certo dia o mulá Nasruddin foi visto procurando alguma coisa no chão fora de sua casa sob a luz de um poste na rua. Um vizinho se aproximou dele e perguntou: “O que você está procurando?”. Nasruddin respondeu que estava procurando sua chave. O homemjuntou-se à busca. Como a chave não foi encontrada em lugar algum, o vizinho perguntou: “Onde exatamente você a perdeu?”. Nasruddin respondeu: “Dentro de minha casa”. O vizinho replicou: “Então, por que está procurando aqui?”. “Bem, há mais luz aqui, não é?” - respondeu Nasruddin. O curioso relato acima ressalta o problema principal ao se considerar a questão colocada neste ensaio, ou seja, é possível existir uma “teologia interconfessional mundial de pluralismo religioso?”. Sem dúvida, a questão é relevante, todavia é impor­ tante perguntar também se estamos procurando por respostas a essa questão essencial no lugar em que seja mais provável encontrá-las, ou onde é mais fácil buscá-las. Em outras pala­ vras, estamos interessados numa questão de metodologia ou de

T eologia interconfessional m undial do pluralismo religioso : uma perspectiva m uçulmana

lrfanA.Omar

essência? À primeira vista, parece que qualquer tentativa para construir uma teologia interconfessional mundial que resolva os problemas de atrito inter-religioso e efetivamente trate das diferenças seria abordar o problema do ângulo errado.

somente se, nós compreendermos o conteúdo confessional em termos simbólicos e metafóricos. Entretanto, outros conside­ rariam essa tentativa de diminuir o conteúdo religioso dessas teologías como uma mudança muito perigosa e autodestruidora.

A pergunta permanece: é possível conceber uma teologia plu­ ralista que transcenda qualquer tradição religiosa em particular e que, no entanto, esteja conectada com cada uma das principais tradições religiosas e que também possa ser validada a partir da perspectiva da teologia islâmica? Ou seja: é exeqüível desen­ volver uma teologia “transconfessional” ou “transreligiosa” que inclua todas as religiões? (os termos alternativos mencionados são: “transreligioso”, “plurirreligioso”, “macroecumênico” ou “interconfessional”).

O problema de se conceber uma teologia que seja inter-religiosa é que a teologia como parte da religião é uma cultura específica. Em cada religião a(s) teologia(s) surgiram como resultado de atitudes teológicas particulares e circunstâncias políticas e sociais. Não é possível aplicar atitudes teológicas de uma tradição a outra, muito menos aplicá-las a todas as religi­ ões, independentemente de suas histórias e localizações. Assim, mesmo a palavra “teologia” é problemática vista da perspectiva de muitas religiões. Daí encontrarmos um obstáculo até mesmo antes de começar a construir uma teologia de “plurirreligiões”.

Certamente, a questão parece bastante problemática porque as teologías seriam específicamente (e, alguns diriam, somente) cabíveis no campo de ação próprio de suas tradições religiosas, crenças e história? Se assim for, como se poderia conceber uma teologia que fosse não confessional? Essa suposta teologia trans­ confessional significaria dizer que haverá uma nova tradição religiosa - uma fusão de todas as outras - e que dessa forma seremos capazes de falar de uma teologia mundial dessa “nova” religião? Ou isso significa que essa “teologia mundial” será de certa forma “transreligiosa” e, portanto, teríamos removido um degrau de todas as tradições religiosas existentes, permitindo aos membros de cada religião criar um aditamento para conectar sua teologia específica de religião à “teologia mundial”? Alguns alegam que, se tal projeto der certo, poderá ajudar a trazer a paz para o mundo ao criar um sentido de maior terreno comum entre as várias tradições religiosas. Outros afirmam que, embora seja possível manter teologías tradicionais baseadas na confissão de fé de cada religião específica, e ainda assim conectá-las todas numa “teologia mundial”, isso ocorrerá se, e

Talvez o que se possa esperar é uma teologia inter-religiosa que busque semelhanças em áreas nas quais isso seja possível. Por exemplo: o Cristianismo e o Islamismo possuem uma his­ tória similar em termos de desenvolvimento de suas tradições interpretativas, isto é, a visão de que o significado do texto deve ser entendido principalmente como literal, em vez de místico ou alegórico. Ao mesmo tempo, tal comparação pode não ser possível no caso de outras religiões. Logo, pode ser vão tentar obter uma metanarrativa filosófica ou teoria que pudesse ser aplicada numa tentativa para entender todas as religiões. Seria preferível trabalhar com uma abordagem de caso a caso, para sermos capazes de desenvolver uma teologia interconfessio­ nal que permita comparações e paralelismos entre tradições enfatizando o terreno comum e compartilhando os valores universais.1

1

FREI, Hans. Types o f Christian Theology. New Haven: Yale University Press, 1992.

IrfanA.Omat

T eología ikterconfessional mundial do plurausmo religioso: uma perspectiva muçulmana

Na luta corpo a corpo com um critério para uma possível “teologia mundial”, tem-se de competir com a realidade cada vez mais pluralista de nosso mundo. O pluralismo religioso de nossos tempos quase nos força a tentar chegar a um acordo com as alegações de verdade de outras tradições religiosas ou enfrentar conflitos contínuos em nome da religião. Qual seria a resposta do Islã a esse pluralismo? Para começar, a tradição islâmica reconhece que existem outras tradições de fé (comunidades, para ser mais preciso) com suas “escrituras” específicas, e elas deveriam ser reconhecidas pelos muçulmanos. O Alcorão informa seus leitores que as comunidades judias e cristãs bem, como os sabíanos, conhecidos como ahl-i-kitab ou “povo do livro”, receberam mensagens reveladas pela mesma fonte divina do Alcorão, o qual se acredita ter sido revelado por Deus a Maomé. Além disso, o Alcorão fala da diversidade de crenças como “ordenadas divinamente” e verdadeiramente be­ néficas para a humanidade. No mesmo estilo, o Alcorão afirma que têm existido numerosas outras comunidades e tradições de fé desde a criação da humanidade. De fato, cada uma dessas comunidades foi uma recipiente de mensagem/revelação divina em seus próprios idiomas e através de mensageiros e profetas (rasnl e nabí) que surgiram entre elas. Qual seria a situação atual de uma possível teologia islâmi­ ca do pluralismo? Como defendido por Mahmoud Ayoub, um famoso estudioso do Islã, o Alcorão é muito mais pluralístico em sua perspectiva do que a comunidade muçulmana tem es­ tado disposta a reconhecer na história. Ou seja, as fontes para a teologia pluralista vistas pela lente de uma perspectiva islâmica estão presentes; a vontade de identificar e interpretar essas fontes através da lente dos princípios pluralistas é que frequentemente está ausente, principalmente no período moderno, quando mui­ tas sociedades muçulmanas têm enfrentado desafios que são

aparentemente mais prementes do que as questões relativas ao pluralismo teológico e religioso. Como acontece com todos os povos, em tempos de provação e perdas, a estreiteza mental e o isolamento, embora insensatos, são naturalmente a escolha preferida. No século XX, como resposta a uma variedade de tendências e movimentos, uma genuína teologia islâmica do pluralismo começou a surgir, apesar de não ter atingido o mundo muçul­ mano mais amplo devido a uma politização geral da religião, bem como à geopolítica no Oriente Médio e na Ásia em conexão com o alegado “choque de civilizações”, o que na realidade seria chamado corretamente de “choque de fundamentalismos”.2 A reação mais importante e decisiva dos muçulmanos ao pluralismo veio como resultado do surgimento de reuniões interconfessionais de diálogo já feitas desde a década de 1970 e também devido às crescentes interações entre muçulmanos e povos de outras comunidades de fé em muitos países ocidentais. Enquanto na África e na Ásia muitos muçulmanos e povos de outras crenças têm coexistido por séculos, engajados no que tem sido chamado de “um diálogo de vida”, os muçulmanos no Ocidente só começaram a considerar tais dinâmicas alternativas como parte do fato de estarem nas sociedades ocidentais. Embora haja várias respostas muçulmanas para a realida­ de do pluralismo religioso da perspectiva islâmica (como as múltiplas respostas cristãs oferecidas por Gavin D’Costa, Paul Knitter e outros), não existe uma tentativa concreta para lidar com a questão da possibilidade de haver uma “teologia mundial do pluralismo”. Algumas das principais tentativas pioneiras muçulmanas de se incorporar o pluralismo na teologia islâmica 2

TARIQ ALI. The Clash o f Fundamentalists; Crusades, Jihads and Modemity. Londres: Verso, 2003.

Irfan A.Omar

T eología interconfessional mundial do pluralismo religioso: uma perspectiva muçulmana

nas últimas décadas são exteriorizadas ñas obras de Mahmoud Ayoub, Riffat Hassan e Mohammad Talbi. Além disso, existe uma longa lista de estudiosos recentes mais jovens que estão engajados no diálogo intercultural, inter-religioso e interespiri­ tual no mundo inteiro. Então, como seria uma “teologia mundial”? Se por teologia mundial queremos significar o que Wilfred Cantwell Smith mencionou em seu discurso no plenário da Sociedade Ameri­ cana de Teologia Católica em 1984, quando afirmou que, para ser um teólogo cristão, era preciso ser uma espécie de “teólogo mundial”, então, talvez, não seja somente provável, mas também necessário, que nós trabalhemos na direção de uma “teologia mundial”. Porque esse teólogo mundial não estaria necessaria­ mente se ocupando de todas as teologias do mundo; ao contrário, como disse Knitter, estaria se dedicando e familiarizando com ao menos uma outra tradição além de sua própria.3 Porque na era dos encontros casuais globais do século XXI, em que a probabilidade de encontrar-se por acaso com o nosso chamado “outro” é grandemente ampliada, é imperativo que não somen­ te estejamos cientes de nossa própria tradição e cultura, mas também é preciso ter algum nível de familiaridade, se não de competência, com a tradição religiosa e a cultura desse outro. Mas, talvez, ao mesmo tempo em que lutamos para nos tornar “teólogos do mundo”, tenhamos também de trabalhar na direção de preservar a diversidade das teologias. Numa era de “globalização” cultural e econômica, em que os elementos homogeneizadores são muito mais potentes, causando um 3

Citado por Paul KNITTER, “The vocation o f an interreligious theologian: my restrospective on 40 years in dialogue”, Horizons 31/1 (2004) 135-49. A citação completa de Knitter é a seguinte: “Para ser um teólogo em qualquer tradição - ou, permitam-me ser mais cauteloso, para ser ‘um teólogo relativamente adequado’ em qualquer tradição - é preciso ser ao menos, até certo ponto, um teólogo de outra tradição”.

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impacto bastante rápido em nossas vidas, a necessidade urgente é enxergar que o “local” não venha a sucumbir ao “global” de maneira que não haja volta possível. No entanto, pode haver uma “unidade na diversidade”, e nesse contexto fica bastante claro que a diversidade sempre rege a unidade e não vice-versa. A diversidade é o caminho da natureza - ou, em linguagem religiosa, o caminho da criação. Deus pretendeu que fosse o princípio essencial da criação. “E entre os sinais de Deus estão a criação do paraíso e da Terra e as variações de idiomas e cores. Na verdade, neles há sinais para aqueles que sabem” (Alcorão 30:21). E mais uma vez: “Oh! Povo, nós o criamos de um macho e de uma fêmea e o fizemos em raças e tribos de forma que vocês possam se conhecer. Certamente o mais nobre dentre vós aos olhos de Deus é aquele que é o mais probo dentre vós” (Alcorão 49:13). Numa era de domínio global das forças do capitalismo vemos ser feita uma tentativa para reverter esse princípio: a unidade na diversidade tem-se tornado forçosamente a “diversidade na uni­ dade”. Em outras palavras, a unidade (do suposto consumismo essencial ou materialismo) é considerada o aspecto subjacente dominante e a diversidade é vista como o derivado. Isso pode ser observado no impulso para ideologias tais como o “mercado global”, “ética global” e “diálogo global”. As conseqüências de tais tentativas são devastadoras de várias maneiras. Tais tentativas, no passado, resultaram no renascimento da religião ou no ressurgimento do em nome da religião. A supressão da diversidade na esperança de se criar uma possível, ainda que cosmética, “unidade” (de todas as religiões? culturas?), ou mesmo de todos os mercados, é perigosamente irrealista. Para o Alcorão, a diversidade de religiões serve para dar à huma­ nidade um sistema de verificação e equilíbrio entre as várias m

IrfanA.Omar

T eologia interconeessional m undial do pluralismo religioso : uma perspectiva m uçulmana

comunidades religiosas. Cada comunidade entre muitas deve lutar pela paz, justiça e retidão. E nisso cada urna se toma um modelo para as outras. As diferenças estão lá, de forma que nós podemos “competir” uns com os outros para fazer o bem, que em seu supremo resultado seria o bem comum. Para cada um dentre vós Nós prescrevemos uma lei e um caminho aberto. Se Deus tivesse querido, ele teria vos feito um só povo, mas (Ele planeja) testar-vos naquilo que Ele vos deu; logo, lutem como numa competição em todas as virtudes. A meta de todos vós é Deus; é Ele que vos mostrará a verdade das questões nas quais estais disputando (Alcorão 5:48).

dominante para com a humanidade como um todo”, mas, ao contrário, é devida à problemática de se ter uma uniteologia de todas as religiões mundiais.4 No espírito das palavras do Dr. King, pode ser acordado entre todos que certamente é possí­ vel, e mesmo necessário, ter um compromisso dominante para ações concretas que conduzam à paz e à solidariedade contra a injustiça e em favor dos valores humanos universais enquadra­ dos no contexto de cada teologia individual de religião. E isso irá, de fato, constituir o que poderia ser livremente chamado de “teologia mundial de ativismo religioso” - fundamentada na ação e baseada na regra de ouro: “Não faça aos outros aquilo que não deseja que seja feito a você” (Analetos [Diálogos de Confúcio], 15.23).

Da mesma forma que o curso do mercado nos diz que há di­ ferenças na forma em que as pessoas fazem compras, celebram, comem e se vestem, nós precisamos perceber que as pessoas também diferem quanto ao “como” e “em que” elas “creem”. Mais do que a união de crenças ou teologia, nós precisamos de uma ratificação e união da aceitação de diferenças. Além disso, essas diferenças em si mesmas deveriam ser celebradas de formas diversas. Isso constituiria a verdadeira unidade na diversidade - uma unidade na celebração da diver­ sidade. Tal celebração é principalmente sobre a necessidade de respeito, reconhecimento e aceitação de particularidades. Porque, como já ficou claro de todos os dados (experimentais, bem como práticos), a diversidade - como um princípio da natureza - rege a unidade e não vice-vèrsa. No entanto, o pensamento de se ter uma teologia comum “plurirreligiosa” é tentador. A hesitação que pode ser detec­ tada aqui não é devida a qualquer falta de compromisso para com o que o Dr. Martin Luther King Jr. chamou de “lealdade

4

A citação de Martin Luther King é a seguinte: “Cada nação precisa, agora, desen­ volver uma lealdade dominante para com a humanidade como um todo a fim de preservar o melhor em suas sociedades individuais”. Ver: LUTHER KING JR., Martin. The Trumpet o f Conscience. New York: Harper & Row, 1967. p. 190.

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Teologia da libertação e libertação da teologia

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“Eras pobre e escutei o teu clamor." Mt 25

Subscrevo com muita alegria o esforço louvável - e contra a corrente (os peixes vivos no rio nadam contra a corrente) - da ASETT com o projeto deste livro. A brevidade me obriga a dar apenas algumas poucas pinceladas.

1. A “teologia da libertação” talvez devesse começar com a

libertação da teologia, tanto do recinto (gueto?) ocidental como da constrição da palavra. O theos até agora habitual da teolo­ gia não é universal, como nos ensinam o Jainismo, o Budismo e outras religiões. N em mesmo o theos cristão é monoteísta, mas trinitário, porém também não docetista. A Trindade não é triteísmo; o que significa que Deus não é Substância, e sim Relação - na qual estamos nós e o mundo (intuição cosmoteândrica). Não esqueçamos que a história ocidental foi colonialista, geralmente de boa-fé (que é o mais perigoso), e seus protagonis­ tas acreditaram que defendiam valores universais, chamados amiúde “desenvolvim ento”, “civilização” e até mesmo judeo-crístianismo. A característica fenomenológica do colonialismo é a convicção do monoculturalismo, interpretado simplesmente

T eologia da libertação e libertação da teologia

como expoente da cultura humana. A chamada “globalização” é um exemplo disso - com raízes tão antigas como o mito da torre de Babel, que já naquela época Yahweh se encarregou de fazer fracassar. Em Pentecostés não se falava uma língua única, mas cada um falava e entendia seu próprio dialeto. Nesse sen­ tido, o theos da teologia, se não quiser se transformar em seita, não pode se limitar a ser apenas o símbolo dos que se dizem crentes porque creem que conhecem aquilo que por definição é Infinito. Bem-aventurados os que chegaram ao agnosticismo infinito (agnosia), afirma um Padre da Igreja cristã. Essa libertação da teologia implica também a libertação do teólogo de qualquer medo e temor, tanto dos críticos como dos apologistas. Libertação também do pessimismo e de uma das tentações mais sutis nas qüais podem cair os mais bem-intencionados: querer transformar esta Terra em um paraíso - como já previu Yahweh colocando seus querubins na porta do Éden para evitar que, tendo saudades do passado, o homem quisesse tornar a fazer da Terra um paraíso. Devemos saber viver em um mundo injusto. Isso não quer dizer, de nenhum modo, evidentemente, que não nos esforcemos por criar um mundo mais justo na medida de nossas forças, mas isso exige de nós que superemos o mito da história, como nossa mortalidade nos lembra e nem por isso desanimamos. “Toda teologia é uma hermenêutica da esperança” (Gustavo Gutiérrez). Mas a esperança não é do futuro, e sim do Invisível.

2. “Teologia inter-faith” é uma expressão ambígua. A fé é um invariante humano: todo homem tem fé, que é a abertura consciente ao desconhecido, ao Mistério. Com palavras para­ doxais, a fé é a consciência de nossa ignorância. Ora, devemos

Raimon Panikkar

distinguir, ainda que não possamos separá-las, a fé da crença. Como também somos (embora não exclusivamente) seres ra­ cionais, ao sermos conscientes desta nossa abertura ao Infinito tentamos formular aquilo que cremos segundo nossas categorias culturais e religiosas, uma vez que somos também filhos da história. Assim surgem as crenças, que são distintas e podem ser até mesmo contraditórias. A confusão entre fé e crença teve conseqüências funestas na história humana. O mártir dá testemunho de sua fé. Ninguém morre por uma simples crença, a não ser que acredite que existe um vínculo irrompível entre crença e fé. A fé se expressa geralmente em um ato (como símbolo) antes que em uma confissão verbal. A fé sem obras é morta (cf. Tg 2,17). Temos um exemplo na negação a sacrificar aos deuses em tempos passados da história cristã. O fanatismo se caracteriza por esta confusão entre fé e crença, que é pouco menos que inevitável quando a fé perde sua raiz mística e se transforma em ideologia. Por acaso o mal-entendido tem algo a ver com a ambivalência do verbo crer, que é ao mesmo tempo a forma verbal de dois substantivos: fé e crença. A expressão “inter-faith” é, além disso, desorientadora, pois parece sugerir que se pode nadar entre duas águas e servir a dois senhores (cf. Mt 6,24), posto que não se leva a sério aquilo que se crê - o que não significa que se absolutizem as crenças, fruto do esquecimento de nossa contingência. A fé nos faz tocar o infinito, mas só tangencialmente.

3. A expressão de qualquer tentativa humana de se aproximar do Mistério deve ser confessional, sincera, pessoal e, portanto, relativa aos parâmetros culturais e religiosos do “confessor”. Uma fé não confessada e apenas teoricamente formulada não é fé, pois também não o é quando se identifica com uma doutrina. A canção é canção só quando se canta; a fé é fé quando se vive,

T eologia da libertação e libertação da teologia

Raimon Panikkar

tema recorrente da Escritura cristã, uma vez que o justo vive da fé (cf. Rm 1,17; G1 3,11; Hb 10,38, que repete Hab 2,4).

é - que seria o dogma de um dos Padres do Ocidente, Parmênides de Eleia.

Quando o símbolo dos apóstolos, devido aos avatares da cul­ tura ocidental, se transformou em doutrina apostólica, começou a “microdoxia” cristã; isto é, seu reducionismo, o apequenamento da Mensagem de Cristo. Digo Cristo e não Jesus (que para o Cristianismo é Cristo). Toda confissão (de fé) se insere em seu contexto, e o contexto cobra sentido tão só dentro do horizonte no qual a confissão é feita. A relatividade, inerente à condição humana (somos contingentes) não é relativismo que se destrói a si mesmo no próprio ato de se expressar. A fé é livre, diferentemente da evidência racional. Dois mais dois são quatro, e não cabem soluções diferentes, uma vez aceitos os postulados em que se baseia a afirmação que, na melhor das hipóteses, se fundamenta na infalibilidade da evidência, o que é um círculo vicioso.

Aquilo que ainda chamamos teologia é uma disciplina es­ piritual que exige consagração plena à tarefa. Quem não tem fome e sede de justiça está impossibilitado para ser teólogo, que é uma livre atividade do Espírito. São Paulo afirma, embora em outro contexto, que a theo-logia é livre, não está acorrentada (cf. 2Tm 2,9).

4. A consciência da relatividade leva não só à superação do fanatismo, mas também à abertura ao outro e a nos deixarmos fecundar por ele. Essa fecundação dá fruto se existir amor - que surge espontaneamente quando somos puros, ou seja, quando estamos vazios de jore-conceitos. Então, junto ao afeto (amor) se dá o conhecimento, o que equivale a compreender o outro, ou seja, a entrar em seu mundo. Isso poderá parecer não só difícil, mas impossível aos que não superaram a razão dialética, que é ao que a ciência moderna tem acostumado uma pequena parte da humanidade que se acha representante de toda ela pelo poder que adquiriu. A dialética é muito útil no campo lógico, mas a vida humana não se reduz a ela como se o pensar dialético nos revelasse o que a realidade

5. A libertação da teologia não é possível sem a interculturalidade, posto que o mistério divino não é o monopólio de nenhuma cultura. E toda cultura é consciente da existência de um Mistério sobre o qual não tem um direito exclusivo. As culturas não são “folclore”, são distintas formas de pensar, de ser, de viver no mundo e de se aproximar da Realidade - de cujos símbolos supremos um é Deus. A interculturalidade não é multiculturalismo (não podemos saltar por cima de nossa própria sombra), mas exige a abertura a partir de nossa própria cultura contingente ao outro, não como um aliud, mas como um alter (a “altera pars” de mim mesmo). Do contrário, ninguém poderia amar ao próximo como a si mesmo, mas tão só como a outro mesmo, com os mesmos “direitos humanos” - como o enraizado individualismo ocidental o interpretou. Não era tão irracional a diabólica ideia que, muito consequentemente, nega­ va humanidade aos indígenas (selvagens), que, dessa maneira, podiam ser caçados e explorados impunemente como animais.

6. A “teologia” não pode ser uma especialização, que é a mania, de influência científica, de classificar tudo - e assim poder dominar melhor. A teologia é a vocação de qualquer homem consciente de seu lugar no cosmos e que deseja viver

R aim on Panikkar

T eologia da libertação e libertação da teologia

sua humanidade em plenitude, utilizando para isso todos os meios que estão ao seu alcance. Daí que não possa prescindir de nenhum anelo humano e, desde logo, também dos desejos legítimos do corpo - que tantas vezes foi ignorado por certa espiritualidade.

7. A libertação da teologia não é libertinagem e também não é o capricho de alguns teólogos: é fruto inerente ao exercício da liberdade daqueles que resistem a se deixar acorrentar pe­ las estruturas que os próprios homens construíram. Todavia, a liberdade não tem leis. Ao contrário, exige a pureza de cora­ ção - que é o requisito no qual coincidem todas as religiões. A Verdade nos fará livres, não o nosso conceito dela. A Verdade se faz, e caminha-se nela, afirma a escritura cristã (cf. Jo 1,17; 3,2.4.21; 8,32 etc.).

8. Com isso já se sugeriu o método da “teologia comparada”. Pode-se cultivar somente a partir de dentro e estando também fora; isto é, “convertendo-se” à outra (religião) sem abandonar a própria. Isso não o consegue o pensar dialético, nem se se reduzir a religião a doutrina. A regra de ouro de toda hermenêutica é que o interpretado se reconheça em nossa interpretação, e não é possível formulá-la sinceramente se não estivermos conven­ cidos que o interpretado também diz a verdade - e nós com ele. A autêntica “teologia” não se limita a dizer aquilo que os outros dizem ou pensam se nós não subscrevemos as respectivas asserções. A teologia não é uma ciência abstrata e puramente descritiva. Isso se aplica diretamente a que não podemos de­ fender uma opção pelos pobres se nós não vivemos a pobreza - que atualmente não é exclusivamente monetária. Repito que IBI

a teologia é uma atividade comprometedora e difícil. Por isso é também libertadora.

9. Dessa forma, respondo à pergunta sobre se uma teologia transconfessional é possível. O possível e necessário é que nossa confissão seja aberta e não fanática, humilde e não apodítica, dialogai e não solipsista. A teologia é comunitária, não traspassa confissões, mas as interpreta talvez diferentemente, enriquecendo, assim, as respectivas ortodoxias - coisa impossível se a religião fosse apenas doutrina.

Contudo, não deveria me estender mais naquilo que foi uma das principais ocupações de minha vida.

Cristologia ¡nterconfessional: possibilidade ou aspiração?

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C. P h a n

À primeira vista, “cristologia interconfessional” é um oxí­ moro, já que, por definição, cristologia é uma reflexão baseada na fé de credo cristão em Jesus como Cristo. No entanto, numa era globalizada como a nossa e no contexto contemporâneo do pluralismo religioso, pareceria que tal reflexão teológica não pode mais ser feita só confessionalmente. Daí a questão da possibilidade e da conveniência de uma “cristologia interconfessional”. Com essa expressão não quero significar simplesmente uma cristologia adotada pelos cristãos com base na fé cristã em diálogo com as crenças de outras religiões, a qual pode ser chamada de “cristologia dialogai”. Ao contrário, gostaria de considerar a possibilidade e conveniência de uma cristologia construída por cristãos e não cristãos, idealmente juntos, nas crenças e práticas comuns de diferentes tradições religiosas. Essa cristologia não substitui a cristologia clássica, baseada apenas na Bíblia e na tradição cristã, que ainda preserva sua necessidade e validade, nem a cristologia dialogal, que considera as crenças cristãs em Jesus como normativas e procura enriquecer-se com as intuições presentes nas religiões não cristãs. Dentro do pequeno espaço concedido e devido à sua natureza altamente experimental, este breve ensaio é mais um manifesto programático do que uma elaboração sistemática de cristologia m

PeterC.Phan

' C ristologia interconfessional : possibilidade ou aspiração ?

interconfessional. Inicio com reflexões sobre as condições de possibilidade de tal cristologia, suas limitações e sua desejabilidade. Em seguida, delineio suas principais características e, finalmente, faço referência a alguns trabalhos pioneiros proe­ minentes que apontam para uma cristologia interconfessional.

Cristologia interconfessional: possibilidade, limites, conveniência A possibilidade de uma cristologia interconfessional como necessidade apoia-se ño tipo de diálogo inter-religioso no qual os participantes respeitam genuinamente as diferenças e tentam compreender as religiões diferentes da própria como elas se apresentam, em seus próprios termos, e evitam interpretá-las através de sua própria visão de sistema de categorias e crenças. É claro que essas diferenças não impedem a existência de atributos comuns, ou ao menos análogos entre religiões, mas não devem ser ocultadas ou minimizadas e muito menos homogeneizadas como simplesmente várias maneiras de falar sobre Deus, ou o Supremo, ou o Real. Com relação à possibilidade de uma cristologia intercon­ fessional, pode-se desde logo objetar que a “cristologia”, por definição, é uma categoria cristã, portanto chamar a iniciativa confessional proposta de “cristologia” já viola o princípio her­ menêutico citado. A objeção é válida, mas pode ser removida pelas seguintes considerações. Em primeiro lugar, “Cristo”, como termo e conceito, per se não se restringe ao Cristianismo. É encontrado no Judaísmo (o “messias”), e a figura de Jesus também está presente no Alcorão. Por conseguinte, ao menos com relação ao Judaísmo e ao Islamismo, uma cristologia in­ terconfessional seria justificada e não constituiria, à primeira vista, uma impossibilidade. Em segundo lugar, é possível falar

de “cristologia” sem fazer alegações cristãs a respeito de Cristo, tais como sua divindade, ressurreição, papel único e universal como salvador etc., como ponto de partida e norma do discurso inter-religioso, mesmo que essas alegações não devam ser dis­ simuladas pelos partícipes cristãos do diálogo. Ou seja, é pos­ sível discutir o significado de uma afirmação (que diz respeito à compreensão) e a partir daí enriquecer nosso entendimento sem afirmar ao mesmo tempo sua veracidade (o que constitui um exercício de julgamento). Nesse tipo de cristologia interconfessional, que é (para usar a distinção de especialidades funcionais em teologia de Bernard Lonergan) “sistemática” e não “doutrinai”, as alegações cristãs sobre Cristo não são negadas apriori} Elas são teologicamente presumidas, porém metodológicamente colocadas entre parên­ teses com a finalidade de se chegar a uma compreensão mais rica e plural ística do que constitui o Cristo com base no que o Cristianismo e outras religiões dizem a respeito de “Cristo”. Em terceiro lugar, e no sentido exato da palavra, da mesma forma que um cristão fala de uma cristologia interconfessional um budista poderia, certamente, falar de uma “Budologia” interconfessional; um hindu, de uma “Krishnologia” intercon­ fessional; um muçulmano, de uma “Corãologia” e, talvez, de uma “Maomelogia”; um sique, de uma “gurologia” intercon­ fessional etc. O propósito da cristologia interconfessional não é demonstrar que o Cristo dos cristãos é o único, universal e superior a todas as outras figuras religiosas, ou vice-versa. Em princípio, uma demonstração racional de tal alegação não seria possível, já que se trata essencialmente de um juramento de fé. É preferível obter um entendimento tão profundo e diverso quanto possível do Cristo na base das mais variadas e até contraditórias1 1

Sobre a distinção feita por LONERGAN, ver sua obra Method in Theology (New York: Herder and Herder, 1972. p. 132-133).

HSH

PeterCPhan

ÚaSTOlOflA interconfessional: possibilidade ou aspiração?

declarações das diferentes religiões quanto ao que torna um ser especial (por exemplo: Sidarta Gautama, Jesus de Nazaré ou Maomé) o “Cristo”.

a erros potenciais e deficiências. Ao menos um esboço de suas características gerais pode ser tentado.

Se concebida dessa forma, a cristologia interconfessional, sem dúvida, tem limitações. A mais evidente é que não seria uma cristologia dogmática e, portanto, seria julgada por aqueles que procuram uma cristologia ortodoxa como sendo teologica­ mente inadequada, até mesmo heterodoxa à luz da cristologia da Calcedonia. Também não se trata de uma “cristologia his­ tórica”, uma “cristologia vinda de baixo”, ou uma “cristologia ascendente”, na medida em que não se baseia nos textos do Evangelho da vida de Jesus e seu ministério e não é projetada para mostrar que Jesus é a Palavra de Deus encarnada. Nesse aspecto falta-lhe a característica de especificidade histórica presente na cristologia da libertação de várias origens (por exemplo: negra, latino-americana, asiática, feminista, ecológica etc.). Enfim, ela não desempenha a função apologética de uma “cristologia transcendental”, como aquela proposta por Karl Rahner, que pretendia analisar as condições de possibilidade de fé em Jesus como o Cristo com base na metafísica do conheci­ mento humano e do amor.

Um traçado da cristologia interconfessional

Não obstante, a cristologia interconfessional, embora distinta das três outras já mencionadas, não as exclui, ao contrário, ajuda a esclarecer alguns de seus conceitos-chave, um dos quais é naturalmente o “Cristo”. Considerando-se a situação religiosa pluralista de nosso tempo, e a necessidade premente de com­ preensão e colaboração mútua entre os adeptos das diferentes religiões, pode-se afirmar que essa cristologia interconfessional seja uma aspiração, se não uma necessidade urgente da teologia contemporânea. Se ela é exeqüível ou não, não pode ser estabe­ lecido a priori nem deveria ser rejeitado simplesmente devido

O conceito central a ser elaborado na cristologia intercon­ fessional é naturalmente “Cristo”. Surge aqui um desafio apa­ rentemente intransponível. O termo “Cristo” e, mais decisivo ainda, o conceito de “Cristo” - ao menos como é compreendido pelo Cristianismo - não são aceitos por todas as tradições re­ ligiosas e, quando usados, estão longe de ser unívocos. Logo a principal tarefa da cristologia interconfessional seria determinar o significado de “Cristo” e seu lugar, se houver, numa religião em particular. Nessa elaboração conceptual de “Cristo”, o en­ tendimento dos cristãos de Jesus como o Cristo, conforme já dissemos, pode ter um papel heurístico, mas não normativo. Deve ser comparado com conceitos e imagens presentes em outras religiões que mostram similaridades significativas ou analogias funcionais com ele. Um novo e ampliado entendimento de “Cristo” pode, assim, ser construído a partir desses conceitos e imagens crucialmente comparados, e o resultado poderia ser chamado de “cristologia “comparada” ou “interconfessional”.2* Quais seriam, para começar, as principais características do conceito cristão de Cristo? Uma resposta franca a essa pergunta é impossível, já que é reconhecido universalmente que o Jesus dos Evangelhos não se encaixa numa única descrição. Ele é, e não é, no significado normal das palavras, um sacerdote, um profeta, um vidente apocalíptico, um rabino, um mestre de sabedoria, um milagreiro, um líder político. Na visão dos 2

Com relação à teologia comparada, ver a obra de Francis X. CLONEY, Theology after Vedanta; An Experiment in Comparative Theology (Albany: State University o f N ew York Press, 1993.-especialm ente p. 153-208).

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Cristologia interconfessional: possibilidade ou ASPIRAÇÃO?

estudiosos do Novo Testamento, conforme observado por Colin Greene, Jesus foi de modo variado um crítico escarninho, um místico, um curandeiro, um hasside, um profeta ou o profeta escatológico, um reformador, um sábio, a Sabedoria personifi­ cada e um/o messias.3 Greene continua nos mostrando que até a era Moderna a cristologia enfatiza Jesus como o eterno logos encarnado (cristologia cosmológica), como o “Senhor dos senho­ res e o Rei dos reis” (cristologia política) e como o Novo Adão (cristologia antropológica).4 Meu objetivo aqui não é mostrar como essas três cristologias tradicionais têm sido desafiadas e modificadas nas eras Moderna e Pós-Modema,5 mas usá-las como plataforma de lançamento para delinear uma cristologia interconfessional. Penso que na base dessas cristologias divergentes está a noção de que em Jesus não importa como seu papel histórico seja interpretado, de alguma forma os seres humanos têm a possibilidade de realizar sua natureza e alcançar a meta su­ prema, referida, na linguagem teísta, como a união com Deus, e, naquela não teísta, como autotranscendência (por exemplo: libertação, iluminação, salvação, redenção, transformação etc.). Isso é fundamental para a noção do “Cristo”, em separado das

formas concretas e históricas em que tal possibilidade de autorrealização seja percebida. A questão básica seria, então, se tal noção é encontrada em outras religiões que não o Cristianismo (a resposta à pergunta, é claro, é afirmativa) e como poderia ser usada para se construir uma cristologia interconfessional. Acompanhando a noção do Cristo está aquela de um poder supematural ou super-humano através do qual ele cumpre sua missão de levar os seres humanos e o cosmos à realização. A fé cristã crê que esse poder super-humano é uma dádiva do Cristo que ascendeu e que, junto com o Pai e o Filho, este poder pessoal, cujo nome é “Espírito Santo”, constitui a Trindade. Vários sím­ bolos e imagens, tais como sopro, vento, fogo, água e pombo, têm sido usados para descrever o poder transformador do Espírito. Já que o Espírito é o poder pelo qual o próprio Cristo e todos os seres humanos atingem suas metas, é teologicamente adequado prefaciar a cristologia interconfessional com a pneumatologia.6 De fato, metodológicamente, a cristologia, do ponto de vista cristão, principalmente o interconfessional, faz mais sentido se começarmos pelo Espírito, depois passarmos para o Filho e, no fim, o Pai.7 6

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GREENE, Colin J. D. Christology in Cultural Perspective; Marking Out the Horizons. Grand Rapids, Michigan: Eerdmans, 2003. p. 6-15. Ibid.,p. 30-71. Com relação ao tema, ver o estudo de GREENE citado acima. Naturalmente, os estudos contemporâneos de cristologia constituem uma legião! Para nossos propósitos, os seguintes são especialmente úteis: WESSELS, Antón. Images o f Jesus; How Jesus is Perceived and Portrayed in Non-European Cultures. Grand Rapids, Michigan: Eerdmans, 1990. KÜSTER, Volker. The Many Faces o f Jesus Christ; Intercultural Christology. Transíate by John Bowden. Maryknoll, N.Y.: Orbis, 2001. BENNET, Clinton. In Search o f Jesus; Insider and Outsider Images. London: Continuum, 2001. KÃRKKAINEN, Veli-Matti. Christology; A Global Introduction. Grand Rapids, Michigan: Baker, 2003. BARKER, Gregory A. (Ed.). Jesus in the World’s Faiths; Leading Thinkers from Five Religions Reflect on hisMeaning. Maryknoll, N.Y.: Orbis, 2005. AMALADOSS, Michael. TheAsian Jesus. Maryknoll, N.Y.: Orbis, 2006.

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Um dos melhores estudos de teologia contemporânea sobre o Espírito Santo é de Kirsteen KIM, The Holy Spirit in the World; A Global Conversation (Maryknoll, N.Y.: Orbis, 2007). Escrevi em 1988: “Com relação à estrutura do tratado da Trindade, sugiro que invertamos a ordem tradicional. Em vez de começarmos pelo Pai, depois passar­ mos para o Filho e terminarmos com o Espírito Santo, posto que o princípio que deva fundamentar nossa teologia trinitária em nossas experiências de salvação, deveríamos iniciar com nossas experiências atuais do Espírito Santo, depois mostrar como esse Espírito é o Espírito de Jesus e terminar com a revelação de Jesus do mistério do Deus Pai”. Ver: PHAN, Peter C. Being Religious Interreligiously: Asian Perspectives on Interfaith Dialogue (Maryknoll, N.Y.: Orbis, 2004. p. 38). É gratificante observar que KIM escreve num estilo similar: “Podemos ser capazes de transmitir a mensagem do Evangelho mais significativamente se começarmos pelo Espírito do que a partir do Jesus histórico. E, no fim das contas, é o papel do Espírito preveniente preparar o mundo para receber Cristo” (The Holy Spirit in the World, p. vi).

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PeterC.Phan

C ristologia interconfessional: possibilidade ou aspiração ?

Já que o Espírito não está encarnado em nenhum indivíduo histórico em particular, fica mais fácil encontrar analogias - não entidades idênticas - para o conceito cristão de Espírito nas religiões não cristãs, tais como: atman/brahman [atmanismo/ bramanismo] no Hinduísmo advaita, shakti no Hinduísmo clássico, antaryamin [essência] no Hinduísmo bhakti, ch ’i no Taoísmo e Confucionismo, o yin da polaridade yin/yang e os espíritos em geral. Uma pneumatologia interconfessional não deveria se limitar a fontes religiosas e filosóficas. Dado que o Espírito está associado com liberdade, ele tem funcionado muitas vezes como fonte e inspiração para revoluções e lutas de independência pessoal ou nacional.8

Deus e/ou a autorrealização dos seres humanos. Tendo a pneu­ matologia como seu preâmbulo, a cristologia interconfessional pode ir adiante para considerar os muitos títulos que têm sido atribuídos ao Cristo na tradição cristã e investigar se títulos semelhantes também são encontrados nas religiões não cristãs, não para estabelecer sua equivalência conceptual, muito menos sua veracidade, mas para obter um entendimento mais rico do que o Cristo significa.

Essa cristologia interconfessional, como o próprio nome implica, será forjada no cadinho do diálogo interconfessional. Todavia, o diálogo aqui não se refere principalmente à troca teológica entre as elites e especialistas religiosos, nos quais certos problemas dogmáticos como a singularidade e univer­ salidade do Cristo se agigantam. Ao contrário, é um diálogo de vida compartilhada, ação comum e experiências religiosas compartilhadas entre povos de diferentes crenças. Trata-se do diálogo tríplice que irá determinar quais temas em cristologia serão importantes para uma cristologia interconfessional e que delineamento ela irá adquirir.

E irônico que no desenvolvimento da “cristologia” intercon­ fessional os pioneiros mais importantes não foram os cristãos, mas os hindus. Os trabalhos escritos de Sri Ramakrishna, Swami Vivekananda, Keshub Chunder Sen, Mohandas Gandhi, Swami Akhiananda e Sarvepalli Radhakrishnan são bem conhecidos. Entre os indianos cristãos, Manilal C. Parekh e Bhawami Charan Banerj (também conhecido como Brahmabandhab Upadhyaya) foram influentes.11Entre os líderes budistas contemporâneos, as

Já mencionamos a figura do Cristo no Judaísmo e no Islamis­ mo e há uma plétora de estudos sobre esse tema.9 Além disso, estudos comparativos entre Jesus e Krishna, entre Jesus e Confúcio, entre Jesus e outras figuras religiosas são abundantes.101

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Precursores da cristologia interconfessional Uma cristologia interconfessional é, essencialmente, uma cristologia do Espírito, ou uma cristologia pneumatológica, que consiste na elaboração da obra de Jesus como o Cristo em virtude do Espírito ao acarretar a união da humanidade de s

Isto é particularmente verdadeiro com relação à Coréia. Ver: KIM, The Holy Spirit in the World, p. 112-121.

A literatura é imensa. Sobre Jesus no Judaísmo, ver os artigos abrangentes de Susannah HESCHEL, “Jewish view s o f Jesus”, e de Jacob NEUSNER, “Why Jesus has no meaning to Judaism”, em BARKER (Ed.), Jesus in the Worlds Faith, p. 149-160 e 166-173, respectivamente. Quanto a Jesus no Islamismo, ver: ATA ur-RAHIM, Muhammad. Jesus Profet o f Islam. Elmhurst, N.Y.: Tahrike Tarsile Qur’na, Inc., 1991. KHALIDI, Tarif. The Muslim Jesus; Sayings and Stories in Islamic Literature. Cambridge, MA: Harvard University Press, 2001. 10 Para uma visão geral, ver: BENNET, In search o f Jesus; Insider and Outsider Images, p. 292-344. 11 Ver os estudos de: THOMAS, M. M. The Acknowledged Christ o f the Indian Renaissance. Madras: Sociedade Literária Cristã, 1970. SAMARTHA, Stanley. The Hindu Response to the Unbound Christ. Bangalore: IISRS, 1974.

C ristologia intercomfessional: possibilidade oü aspiração ?

obras do dalai lama e do monge zen-budista vietnamita Thich Nhat Hanh devem ser mencionadas.12

Fidelidade e imparcialidade na comunidade interconfessional: rumo a uma teologia de pluralismo religioso

Entre os teólogos cristãos contemporâneos: M. M. Thomas,13 Stanley Smartha,14 George M. Soares-Prabhu,15 Raimon Panikkar,16 Samuel Ryan,17 Michael Amaladoss,18 Aloysius Pieris,19 Roger Haight,20 Thomas Thangaraj.21 Os teólogos Minjung, e as teólogas asiáticas,221só para citar alguns, têm proporcionado percepções valiosas quanto a como a cristologia interconfessional pode ser construída. Tal cristologia ainda está na infância, mas seu futuro parece promissor.

A l o y s iu s P ie r is

12 Ver: DALAI LAMA. The GoodHeart; A Buddist Perspective on the Teachings o f Jesus. Somerville, MA: Wisdom Publications, 1996. HANH, Thich Nhat. LivingBuddhct, Living Christ. N ew York: Riverhead Books, 1995. Going Home; Jesus and Buddha as Brothers. N ew York: Riverhead Books, 1999. Ver também: BORG, Marcus. Jesus and Buddha; The Parallel Stories. Berkeley, CA: Ulysses Press, 1997. 13 Ver: The Acknowledged Christ o f the Indian Renaissance. 14 Ver: The Hindu Response to the Unbound Christ. 15 Ver: SOARES-PRABHU, George M. The Dharma o f Jesus. Maryknoll, N.Y.: Orbis, 2003. 16 PANIKKAR, Raimon. A Dwelling Place for Wisdom. Loiusville: Westminster/ John Knox, 1993. 17 RYAN, Samuel. The Holy Spirit; Heart o f the Gospel and Christian Hope. Maryknoll, N.Y.: Orbis, 1978. IS AMALADOSS, Michael. The Asian Jesus. 19 PIERIS, Aloysius. Love Meets Wisdom; A Christian Experience o f Buddhism. Maryknoll, N.Y.: Orbis, 1988. 20 HAIGHT, Roger. Jesus Symbol o f God. Maryknoll, N.Y.: Orbis, 1999. 21 THANGARAJ, Thomas. The Crucified Guru; An Experiment in Cross-Cultural Christology. Nashville: Abingdon Press, 1994. 22 Ver: OREV1LLO-MONTENEGRO, Muriel. The Jesus o f Asian Women. Maryk­ noll, N.Y.: Orbis, 2006.

Uma “teologia de pluralismo religioso” tem de ser uma mescla de dois compromissos: fidelidade ao que é singular na fé cristã e imparcialidade com relação à diversidade distintiva de outros religiosos. No entanto os teólogos que promovem esse ideal não são unânimes quanto ao que constitui a singularidade cristã! Em vista disso, as duas partes de minha exposição giram em torno de duas profissões de fé cristológicas que, na minha opinião, definem a essência do Cristianismo.1Uns poucos pontos de vista que não concordam com os meus formaram o pano de fundo desta apresentação, na qual me esforcei para explicar e confirmar a “teologia de libertação das religiões” que alguns de nós defendem e praticam aqui na Ásia.2*

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Como mostrado em minha monografia “Christ beyond dogma: doing christology in the context o f the religions and the poor”, Louvain Studies 25 (2000) 187-231. Versão em espanhol: Revista Latinoamericana de Teologia 52 (XVIII) (jan. 2001) 3-32 (parte I); 53 (XVIII) (mayo-ago. 2001) 107-124 (parte II). Ver: PIERIS, A. G od’s Reign fo r God’s Poor; A Retum to the Jesus Formula. Kelaniya: Tulana Research Centre, 1999. Versão em espanhol: El Reino de Dios para los pobres de Dios. Bilbao: Ediciones Mensajero, 2005. “Lo Spirito Santo

Alovsius Pieris

F idelidade e imparcialidade wa comunioade interconfessional: rumo a uma teologia de pluralismo religioso

I.A religiosidade comum que justifica o pluralismo religioso Jude Lal Fernando ficou entusiasmado com a tese de Regina Schwartz de que a dimensão constitutiva da revelação bíblica (quase um cânone no interior de outro) é o pluralismo e a ple­ nitude proporcionada pelo todo da criação à humanidade e a dádiva da terra que jamais deve ser repartida e possuída como propriedade privada, mas que deve ser gozada por todos.3 Permitam-me completar o quadro de Fernando mencionando o que ele omitiu: o “parque dos prazeres” que este cosmos foi destinado a ser (cf. Gn 2,10), com sua vegetação fornecendo alimento para o corpo assim como prazer estético (cf. Gn 2,9). Daí que toda dor e sofrimento causados pela injustiça e desigual­ dades resultam da violação e adulteração desta ordem cósmica de plenitude, pluralismo e prazer! Mas essa visão, com o devido respeito a Fernando e Schwartz, não é singular da revelação bíblica, é o ideal comum da maio­ ria das grandes religiões e de todas as religiões primitivas. É a revelação universal e original preservada até os dias de hoje nas culturas tribais e dos clãs que ainda sobrevivem em muitos pontos da Ásia, África e Américas; constitui os primeiros frutos de um processo evolucionário em que a besta hominizada foi humanizada pelo Homo religiosus; e é uma visão pré-bíblica e extrabíblica que as Escrituras hebraicas absorveram datando-a de Jeová, o qual anteriormente foi reconhecido como o Deus da justiça e da liberdade, um parceiro fiel numa campanha

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in Ásia”. In: AM ALADOSS, M.; GIBELLINI, R. (Eds.). Theology in Asia. Brescia: Editrice Queriniana, 2006. p. 383-410. FERNANDO, Jude Lal. God o f plenitude and meditation on conscience: subvertingreligiousnarratives forpeaceful coexistence. In: O’GRADY, J.; SCHERIE, R Ecwnenicsfrom the Rim; Explorations in Honour o f John D ’Arcy May. Muenster: LIT Verlag, 2007. p. 369-377.

antiescravidão (cf. Ex 20,1-3). Contudo, na versão bíblica dessa espiritualidade primitiva. Deus detém a “corresponsabilidade” (cf. Gn 1,26) de promover essa ordem cósmica saudável de uma abundância compartilhada e nos trata como “cocriadores”, chamando-nos para “trabalhar” a Natureza para o benefício humano (cf. Gn 2,5-15). Portanto, Deus é nosso parceiro na luta contra a plutocracia que fabrica a escassez e o sofrimento num mundo destinado a ser um paraíso de plenitude e prazer. Aprendi com um estudioso asiático da Bíblia, o qual reco­ nheceu o forte simbolismo da cultura antiga da Ásia ocidental (em oposição a Schwartz e Fernando), que a cadeia de violência iniciada por Caim reflete uma “crise de fraternidade” resultante da exploração da natureza numa “civilização” baseada em ten­ dências compulsivas inatas ("serpente”, “pó”), a qual poderia acabar construindo uma megalópole (simbolizada por Henoc); Abel, ao contrário, representa a liberdade das compulsões e a espiritualidade cósmica que garantem a abundância e o prazer.4 Infelizmente, é somente na Bíblia que alguns teólogos criacionistas do Ocidente encontram a espiritualidade pela primeira vez, provavelmente porque o Cristianismo não bíblico, ao qual o Ocidente se converteu há séculos, eliminara a própria versão ocidental dessa religiosidade primitiva como um simples culto da natureza ou superstição. O trigo foi removido com as ervas daninhas. O Cristianismo que foi levado para a Ásia a partir de lá adotou a mesma abordagem negativa com relação às religiões primitivas da Ásia, como os bispos asiáticos bem ressaltaram e criticaram.5A ciência e a tecnologia desenvolvidas no Ocidente, 4

WIJEYSINGHA, Shirley Lal. Cain and Abel: brotherhood in crisis. Vagdevi, Journal o f Religious Reflection 1/2 (july 2007) 45-52. Aqui o autor usou o trabalho de pesquisa inédito de J-L. SKA, Génesis /-//(R om a, 1986), com a permissão

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FABC Papers, n. 81 (Hong Kong), 25.

do mesmo.

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depois da visão cartesiana do “homem explorando a natureza”, também apagou da história a memória de uma “aliança cósmica-humana” dos tempos primitivos. O resultado é uma tecnocracia aliada a um materialismo profano que agora está engolindo este materialismo sagrado das religiões cósmicas da Ásia. Os sinais dos tempos convocam os defensores das versões bíblicas e não bíblicas da espiritualidade cósmica para unirem forças e fazerem frente à tecnocracia (e a tal Cristianismo) para que não continuem a produzir escassez quando há fartura.6 Portanto, essa religiosidade cósmica deveria ser a base comum em que todas as religiões pudessem se encontrar e ce­ lebrar o pluralismo religioso como uma dádiva à humanidade, valorizando e encorajando mutuamente suas identidades não repetíveis. Aqueles que não praticam essa espiritualidade co­ mum são os fundamentalistas antirreligiosos e antipluralistas responsáveis pelos conflitos inter-religiosos atuais! São eles que invocam diversos “ismos” (seja o teísmo, seja o ateísmo, ou qualquer outro) para justificar suas intenções monocráticas. Em qualquer história, incluindo a história de Israel registrada na Bíblia, a idolatria que invoca a vontade divina para justificar a violência é internamente criticada por uma religiosidade cós­ mica. Não se trata das ideologias invocadas por tais fanáticos, mas da “ganância, que é uma idolatria” (Cl 3,5), que é a raiz de toda violência. Na espiritualidade bem-aventurada de Jesus, um asiático ouve os ecos da espiritualidade cósmica comum a todas as reli­ giões: “a vida feliz” (beatitude) ao compartilhar a abundância da Natureza como os pássaros no ar e os lírios no campo, sem entesouramento, sem angústia (Mt 6,19-34). Aqui a espiritualidade 6

Ver: PIERIS, A. Asian reality and the Christian option: a plea for a paradigm shift in Christian education in Asia. Dialogue, NS (Colombo), vol. xxxii-xxxiii, 2005-6, [158-196], 171-177.

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comum a todas as religiões está expressa na estrutura do teísmo bíblico: um exercício de “fé” (‘emuna, significando confiança livre de ansiedade) num Deus Pai/Mãe que é “fiel” Çemet, ou absolutamente confiável). Daí a confiança em tal Deus excluir toda a dependência de outros ‘“deuses” (cf. Ex 20,2-3), deuses simbolizados por Mamón, que é a “riqueza não compartilha­ da”, bem como a “absolutização do que é relativo” (tal como cor e casta, religião e raça, idioma e terra). Já que tal idolatria constitui “ganância” (Cl 3,5), nós reconhecemos que aqueles religiosos asiáticos que não creem em Deus no sentido bíblico são, não obstante, repudiadores anti-idólatras de Mamón na medida em que defendem o viver sem ganância que constitui o sine qua non para a abundância compartilhada. Assim, o conflito “Deus-Mamon” é a formulação típica cristã de uma herança cultural religiosa comum. Dessa forma, nossa crença na Palavra encarnada, crucificada e elevada deve atingir o ponto culminante na profissão de fé cristológica: Jesus é a antinomia irrevocável entre Deus e Mamón.

2. Singularidade do Cristianismo:“Jesus com o o pacto de defesa com os pobres” Sempre que os clientes do Demônio-Dinheiro ameaçam substituir a plenitude, o pluralismo e o prazer respectivamente com a penúria, a plutocracia e a dor, através da exploração e do entesouramento, Jeová não pode permanecer neutro, já que é obrigado por um pacto a identificar-se com as vítimas dessa opção pecadora: o pacto com os escravosfugitivos do Egito rati­ ficado no Sinai e renovado por Cristo no Calvário. Não constitui nenhuma surpresa que a justiça clamada pelos pobres em pelo menos quarenta dos salmos, como explica Lyonnet, seja um apelo ao amor efidelidade de Deus com os pobres (pactuai) em

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absoluto contraste com a atitude de Deus para com os opressores, que é de “ira” (prge tou Theou),7a ira das vítimas predestinadas por Jeová, seu aliado-protetor. Nossa contribuição singular para o diálogo interconfessional é professar que Jesus é o pacto de defesa de Deus com os pobres - não por meras palavras, mas ativamente juntando-nos a defesa dos pobres do próprio Deus.8 Tal ação nunca foi uma ameaça a outras religiões porque sua intenção não é a conversão de outros religiosos para o Cristia­ nismo, mas a conversão do comando de escassez induzida para um de abundância compartilhada. Todos os religiosos podem juntar-se a essa luta sem comprometer suas crenças. Eu teria deixado de ser um cristão se o Jeová da Bíblia fosse incapaz da ira que ameaça com o fogo do inferno os opressores em nome de suas vítimas sem voz - não para destruí-los para sempre (isso seria ódio), mas para provocar sua conversão e tra­ zer alívio aos párias. Porque a ira profética é uma expressão do amor redentor. A parábola do juízo final (Mt 25) é boas-novas para os pobres porque a ameaça do fogo eterno do inferno abala os não pobres em sua complacência diante da má situação de seus irmãos e irmãs. O Deus das Escrituras hebraicas e cristãs não se dirige aos poderosos e aos impotentes com a mesma linguagem. Nós também não deveríamos! Os hitlers, pinochets e bushes conseguiram o que quiseram porque muitos pastores seus contemporâneos falharam e até mesmo temeram anunciar Jesus Cristo como a Aliança de Deus com os oprimidos para a sua Defesa! Os fundamentalistas cristãos diluem a noção da “ira de Deus” espiritualizando-a e removendo-a da justiça Pactuai de Deus de forma que a violência 7 8

LYONNET, S. II Nuovo Testamento alia luce DelTantico (palestras proferidas em 1968). Brescia: Paideia,1971. reedição: 1977. O tema foi desenvolvido extensamente em minha obra “Christ beyond dogma: doing Christology in the context o f the religions and the poor”.

contra os pobres desaparece dos interesses do Deus deles e da teologia deles de “expiação” (“apaziguamento da ira de Deus”). Aquilo que esses fundamentalistas fizeram através de um evangelismo mal orientado nós, os dialogistas, podemos fazer através de um iranismo. Paul Knitter, no processo de tentar sinceramente acomodar a crítica budista da teologia da libertação feita por Thich Nhat Hanh e Rita Gross, expressou constrangimento com relação a expressões agressivas, como, por exemplo, aquela de Jon Sobrino: “anti-Reino”, ou a minha própria referência ao Pacto como “pacto de defesa” entre Deus e os pobres,9 a dedução sendo que uma teologia de libertação asiática baseada no Pacto de Deus com os pobres se equivoca ao integrar a noção da ira divina contra os vitimadores porque seria ofensiva para os asiáticos não cristãos. Essa espécie de constrangimento pode ser associada a três fontes. A primeira é a confusão entre ira e ódio. O amor que perdoa no Cristianismo engloba a ira profética, porém exclui o rancor. O conselho do apóstolo para “ficar irado sem pecar” (cf. Ef 4,26) dá a entender que existe um lugar justificado para uma ira não odiosa na vida de um cristão. Thich Nhat Hanh e outros críticos budistas deveriam ser lembrados de que mesmo as Escrituras budistas aludem aos monges santos que “ardem” de indignação santa contra seus colegas errantes (Vinaya III, 137, 138) insinuando que o Budismo também diferencia entre a ira e o ódio. A segunda fonte de objeção é o método inclusivo de leitu­ ra cruzada das Escrituras, à qual muitas vezes se recorre no diálogo inter-religioso, uma tolice metodológica que já ilustrei 9

KNITTER, Paul. “Is God’s covenant with victims a covenant against oppressors? Aloysius Pieris and the uniqueness o f Christ”. In: CRUSZ, R.; FERNANDO, M.; TILAKARATNE, A. Encomters with the Word; Essays to Honour Aloysius Pieris. Colombo: EISD, 2004. p. 195-208.

F idelidade e imparcialidade na comunidade interconfessional: rumo a uma teologia de pluralismo religioso

com exemplos tirados dos trabalhos escritos do próprio Thich Nhat Hahn.10 Comprometer o caráter distintivo do Cristianis­ mo em nome do diálogo inter-religioso é eliminar totalmente um parceiro do diálogo! Pois, aqui, estamos tratando com um elemento inegociável da Bíblia, como o não teísmo é um fator inegociável no Budismo Teravada. Diferenças irreconciliáveis são uma dimensão constitutiva do pluralismo. Uma teologia de diálogo é uma teologia de pluralismo. A terceira fonte de mal-entendido é a falta de compreensão da natureza da estratégia de defesa de Deus ilustrada pela Palavra encarnada, crucificada e elevada, em quem Deus e as vítimas de injustiça constituem um único pacto e, portanto, uma realidade salvífica. Assim, em Jesus nós encontramos ambos os parceiros do pacto, Deus e o Pobre, demonstrando duas espécies de resistência à violência: se de um lado se exerce a ira de Deus contra aqueles que exploram os outros, de outro se perdoa seus próprios perseguidores. Em sua vida e obra, vemos a ira de Deus sendo desencadeada contra os violadores dos vulneráveis, porém, em sua paixão e morte, vemos Deus identificando-se com os oprimidos de forma tão indistinta que se torna um deles, ousando desafiar seus opressores ao enfrentar corajosamente as atrocidades da tortura até a morte e, assim, gravando nos anais da história humana que roubar a vida aos pobres é um deicídio! O tipo de Deus e dessa espécie de envolvimento divino com os oprimidos conforme revelado em Jesus é peculiar do Cristianismo e está ausente nas outras crenças. A alegação de Michael Amaladoss de que o Hinduísmo argumenta a favor de um Deus assim não encontra fundamento nas Escrituras 10 PIERIS, A. “Cross-Scripture reading in Buddhist Christian dialogue: a search for the right method”. In: WICKERI, J. (Ed.). Scripíure, Community and Mission; Essays in Honour o f D. Preman Niles. Hong Kong/London: CCA/CWM, 2002. p. 240-241.

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Aloysius Pieris

hindus.11Nenhum teólogo que seja ao mesmo tempo um indianólogo qualificado e reconhecido produziu algum exemplo de tal crença em nenhuma religião indiana até hoje.1 12 Em resumo: minha fidelidade para com minha própria identi­ dade cristã exige primeiro que eu proclame Cristo como alguém que demanda mais uma transição do culto de Mamón (cf. Mt 6,19-24) do que de outras religiões (cf. Mt 23,15), assim confir­ mando a espiritualidade comum de todas as religiões em minha crença. Segundo, para preservar minha singularidade cristã, eu professo a partir daquela plataforma comum, por palavras e obras, na liturgia e na vida, que Cristo é o pacto de defesa de Deus com os oprimidos - assentando, assim, os alicerces de uma “cristologia da libertação das religiões”.

11 PIERIS, G od’s Reignfor G od’s Poor, p. 83-89. El Reino de Dios para los pobres de Dios, p. 103-109. 12 Quando questionado por Ann Alden (Religión and Dialogue in Late Modemity; A Constructive Contribution to a Christian Spirituality Informed by Buddhistchristian Encounters. Lund: Sociologiskalnstitutionen,2004. p. 123), Amaladoss, em lugar de fornecer prova de contra-argumentação, simplesmente rejeitou meu desafio, dizendo que eu estava brincando com a palavra “pobre”, quando, na ver­ dade, o termo “pobre” não é minha invenção, mas um termo geral recorrentemente usado nas Escrituras hebraicas e cristãs (como os trabalhos escritos de George Soares Prabhu, um estudioso delas, já demonstraram amplamente), o qual me esforcei em explicar claramente em termos de todas as categorias concretas de pobres mencionados nas Escrituras, e com tanta insistência e clareza em tantos de meus escritos, que “brincar com a palavra” (que Alden também repete sem justificar sua afirmação) é, no mínimo, uma resposta capenga ao meu desafio. Ainda estou esperando pacientemente por uma tentativa verdadeira de uma contrademonstração!

A experiência religiosa como fundamento para uma possível teologia interconfessional

R ic h a r d R e n s h a w

Experiência religiosa é fundamental Para se construir uma teologia em que todas as tradições religiosas possam se ver incluídas e se reconhecer, uma teologia que possa servir como ponto de referência para um diálogo sobre nosso “viver juntos” num mundo que enfrenta hoje enormes desafíos, parece-me indispensável descobrir um ponto de par­ tida que inicie o processo e sirva como base para o projeto todo. Proponho aqui examinar a experiência religiosa nesse sentido. A teologia é sempre um segundo passo. Como uma reflexão sobre a fé, a teologia encontra suas origens naquela experiência humana fundamental que é a crença vivida nas experiências do dia a dia da vida. Como reflexão, a teologia examina a expe­ riência, tenta compreendê-la e interpretá-la e vive em profunda dependência dela.1Sem essa referência na experiência, a teolo­ gia, assim como a religião, se torna árida. Isso me leva a afirmar que a religião também é um segundo passo. Ela seria a forma na qual institucionalizamos nossa experiência religiosa coletiva* LONERGAN, Bemard. Method in theology. New York: Herder and Herder, 1972.

A EXPERIÊNCIA RELIGIOSA COMO FUNDAM ENTO PARA UMA POSSÍVEL TEOLOGIA INTERCONFESSIONAL

a fim de podermos voltar a ela e renová-la nas várias fases de nossa jornada como seres humanos: nascimento, casamento, do­ ença, morte etc. A teologia, e a religião em termos mais ampios, tenta oferecer uma interpretação da experiência religiosa que a enquadre e integre na vida diária através de rituais, preces, meditação, dias de celebração etc. Todavia, essa atividade toda está a serviço da experiência religiosa. A experiência religiosa é, então, fundamental para a revelação de Deus e a inspiração divina que nos conduz à fé. É claro que a seqüência não é cronológica. A religião, as tradições religiosas e a teologia preexistem à minha experiência pessoal e coletiva hoje. Elas são o resultado de uma experiência histórica e coletiva. A tradição estava presente muito antes de meu despertar para a fé. No entanto, a religião e a teologia são validadas somente por meu ingresso na experiência religiosa que elas expressam. A experiência religiosa aponta para o nosso relacionamento com nós mesmos e com Deus no contexto de um ambiente natural que nos proporciona a vida e do qual dependemos para viver. Nesse contexto o ambiente aparece como sagrado (repleto de mistério transcendental), de forma que ele não pode ser con­ finado nem mesmo pela religião. Descobrimos nele outras vozes que nos falam de muito além da visão estreita que construímos como indivíduos e sociedades. Por esse motivo, abandonamos nosso desejo de controlar e começamos a participar. Dessa forma, rompemos com nossa alienação, despertamos de uma cultura de passividade e nos tornamos participantes ativos. Nes­ se despertar nos defrontamos com um mundo de significados, de serenidade e, paradoxicalmente, de luta e dor. Vamos para um mundo cheio de riscos. Abandonamos boa parte de nossa segurança. É um mundo que é mais adulto e, ao mesmo tempo, um mundo mais compassivo.

R ic h a r d R e n s h a w

Entender essa experiência é algo totalmente diferente. O problema é que a experiência religiosa é difusa, sem categorias. Ela surge do interior de um grupo ou indivíduo. Isso a torna sujeita a toda sorte de interpretação, e a história mostra a que ponto essas interpretações podem ser estranhas. Além disso, a experiência em si não oferece nenhuma garantia de sua auten­ ticidade. O profeta Jeremias debateu-se veementemente com a questão da autenticidade da revelação divina que ele recebeu. Para o profeta, somente a própria história pode fornecer um selo de autenticidade. A única confirmação de autenticidade de uma experiência está na justiça, solidariedade e compaixão que evoca, ou seja, o poder de vida que flui do esforço de viver coerentemente com nossa experiência religiosa. A passagem da experiência religiosa para o conhecimento religioso é longa, tortuosa e sempre circunscrita pelas limitações de um contexto histórico específico. Para nos ajudar nesse processo, nós nos voltamos para a sabedoria das tradições religiosas. A crença é, assim, a expressão de uma experiência religiosa que se deixa tratar pela tradição religiosa.

Experiência religiosa com o busca William James,2 entre outros, ressaltou algumas das carac­ terísticas da experiência religiosa que parecem cruzar muitas tradições religiosas. Elas incluem a comunhão com o “divino” como o Outro absoluto e com o Outro como compassivo. A experiência religiosa também implica uma transformação de vida para o bem e para compartilhá-lo. Oferece um significado

2

Varieties o f religious experience. Palestras Gifford. Edimburgo, 1902. Ver tam­ bém a análise de Charles TAYLOR em La diversité de l ’expérience religieuse, William James revisiée (Montreal: Bellarmin, 2003).

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e uma orientação de vida. Ela descortina outro mundo que é diferente e sem exclusões. Uma análise da experiência religiosa mostra que ela está arraigada no fato de sermos humanos, e é inseparável daquilo que é humano, visto que está intimamente relacionada com nossa capacidade de nos surpreendermos e indagarmos. O questiona­ mento nos abre para urna busca sem fim do transcendente.3 Nossa capacidade de questionamento, sobretudo todo aquele que diz respeito à beleza, ao bem-estar holístico e à comunhão, nos coloca diante do horizonte do mistério, o fundamento final da vida. Enquanto a própria estrutura da consciência humana procura respostas para questões fundamentais, a mente cons­ ciente nem sempre encontra respostas conceptuáis. Nesse senti­ do e contexto, a palavra “religioso” refere-se ao que está aberto ao “Outro”, que é o objetivo final de todo o nosso questiona­ mento. Algumas vezes essa abertura acontece num contexto que a sociedade reconhece como religioso. Todavia também pode ocorrer em contextos que sejam muito diferentes, como no caso de cientistas que se maravilham diante da magnitude e beleza do universo. É também o caso daqueles que, por razões deveras políticas, buscam apaixonadamente a libertação dos oprimidos. Hoje em dia os próprios crentes se defrontam com uma dialética que reposiciona a experiência religiosa e a religião no mundo contemporâneo. Como foi ressaltado por Beck e outros, a transcendência que buscamos não é o “outro absoluto”, no sentido de estar desligado e sem relação com o resto da vida. E mais uma transcendência que se encontra eminente em cada dimensão do universo e, no entanto, nunca se exaure nele.4 Por 3 4

LONERGAN, Bemard. Philosophy o f God and Theology. London: Darton, Longman & Todd, 1973. BECK, Olive. Faith in a broad sense as a good in promoting human development. Congresso Anual de Filosofia da Educação. 1990. p. 90-100. BAUM , Gregory.

outro lado, também está “além” dessa realidade atual, que é tão esmagadora para a maioria da humanidade. O crente sempre corre o risco de abandonar a abertura para a transcendência ao abraçar uma expressão reduzida da religião. Assim fazendo, a essência da experiência religiosa fica perdida. Ao entender a experiência religiosa dessa forma, ou seja, como uma busca pela transcendência final que repousa no cerne de nosso questionamento, já que é seu objetivo, possui enormes conseqüências. Em primeiro lugar, a experiência religiosa se vê novamente no centro de nossas tarefas diárias. Ela enquadra nosso caminho pela vida. O objeto da experiência religiosa sempre escapará de nosso conhecimento total, mas o objetivo nunca varia. Assim, a dimensão religiosa da experiência religio­ sa é o caminho dinâmico na direção de um objetivo que nunca seremos capazes de alcançar totalmente, mas que, não obstante, permanece como condição de nosso “estar no mundo”.5

Experiência religiosa com o resposta A experiência religiosa se torna o horizonte de nossa busca para o significado, a libertação e a justiça. Ela constitui seu ob­ jetivo. Por outro lado, é também um irromper de uma resposta

5

Religión as source o f alienation, the young Hegel. In: Religión and Alienation. Paulist Press, 1975. p. 1-19. BERRY, Thomas. The dream o f the Earth: our way into the future. The dream o f the Earth. San Francisco: Sierra Club Books, 1988. p. 194-215. N esse sentido, ler a extraordinária reflexão de João Paulo II em Redemptoris Missio (n. 28): “O Espírito manifesta-se particularmente na Igreja e nos seus membros, mas a sua presença e ação são universais, sem limites de espaço nem de tempo. [...] O Espírito está, portanto, na própria origem da questão existencial e religiosa do homem, que surge não só de situações contingentes, mas sobretudo da estrutura própria do seu ser. A presença e ação do Espírito não atingem apenas os indivíduos, mas também a sociedade e a história, os povos, as culturas e as religiões”.

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ao nosso questionamento em nossa consciência. A experiência religiosa em seu segundo significado é a irrupção da Essência do Ser, do “Outro absoluto” na consciência humana como uma resposta para nossa busca por significado, justiça e paz. Em termos teológicos, é chamado de graça, ou também revelação.

a libertação dos pobres e excluídos. Dar atenção à experiência religiosa nos leva a reconhecer a comunhão com Deus e entre nós que é vivida por todo o Povo de Deus no passado, presente e futuro. É uma comunhão que promove a ação com uma só mente e coração.6

Assim, a experiência religiosa se baseia não só na busca por amor, beleza, verdade e comunhão. Também é encontrada na irrupção da beleza, verdade e comunhão transcendentes em nossas vidas como uma resposta ao nosso questionamento. Muitas vezes isso se revela como uma intervenção repentina de amor e compaixão num local ou hora inesperados. A beleza que descobrimos no “outro” nos eleva a um nível de comunhão que nos transforma e vivifica.

Além disso, dar atenção à experiência religiosa nos coloca diante da problemática da historicidade da experiência religiosa. Joan Chittister (uma irmã beneditina autora de vários livros sobre espiritualidade) sugere que permanecemos energizados e vitais somente quando nos comprometemos totalmente com um “buscar e destruir” constante.7

Essa irrupção - uma resposta para nossa busca - por sua vez nos provoca a reagir, a ter um comportamento coerente com aquilo que recebemos. (Como fomos amados, devemos amar uns aos outros.) Assim é que essa experiência religiosa também in­ clui, em seu terceiro significado, nossa reação à dádiva recebida. Aqui podemos relembrar todas as jornadas espirituais de muitos homens e mulheres na história que dedicaram suas vidas a viver com fidelidade a irrupção daquela realidade transcendente em suas consciências que conseguiu transformar seus seres inteiros e que os motivou a mudar seus mundos. Na cultura ocidental normalmente achamos que o indivíduo é o “sujeito” da experiência religiosa. Esse conceito resulta do individualismo de nossa cultura e do legado da filosofia política de Spinoza. Todavia, não é necessariamente a mesma em outras tradições religiosas e, certamente, não o é neste nosso contexto. O “sujeito“ principal da experiência religiosa é a comunidade dos empobrecidos e excluídos. Temos sempre que colocar a questão da experiência religiosa no contexto do Povo de Deus, cujo co­ ração é tocado pela compaixão e cujas vidas são orientadas para

Atualmente, somos chamados a questionar profundamente nossas premissas sobre o que significa ser seguidor de uma tradição religiosa e mesmo o fato de sermos cidadãos ou seres humanos. Nossos pressupostos nos situam cultural, social, po­ lítica e economicamente. Somente se questionarmos ativamente nossas próprias estruturas, compromissos, premissas, ideais, op­ ções, exercício de poder, alianças e relacionamentos poderemos contar com o fato de que nossas tradições religiosas falarão de alguma forma do futuro da sociedade humana e do futuro da vida em nosso planeta. Tal questionamento inevitavelmente nos reposiciona. Chittister conta-nos uma história tirada da tradição sufi na qual um jovem pergunta a seu mestre o que precisa ser feito para alcançar a vida eterna. O mestre responde que é pre­ ciso abandonar o passado. O jovem fica chocado e replica que o passado é seu patrimônio no qual ele encontra sabedoria. E o mestre responde dizendo que ele precisa abandonar o passado justamente porque épassado. Podemos ser fiéis ao passado (não 6 7

JOHNSON, Elisabeth. Friends o f God and prophets; A Feminist Theological Reading o f the Communion o f Saints. N ew York, Continuum, 1999. CHITTISTER, Joan. Destroying the past to create the future. Compass (may/ june 1994) 6-8.

A EXPERIÊNCIA RELIGIOSA COMO FUNDAMENTO PARA UMA POSSÍVEL TEOLOGIA IWTERCONFESSIONAL

falar do presente e do futuro) somente abandonando o passado. A fidelidade à experiência religiosa e às tradições por ela cria­ das exige que nos comprometamos com um exercício difícil e doloroso de desconstrução a fim de trazer à luz o poder que o nosso passado tem de nos controlar e controlar os outros. Um ampio diálogo com outras tradições religiosas pode nos auxiliar a alcançar a humildade sistemática necessária se vamos perma­ necer abertos ao autoquestionamento.

Diálogo A abertura para questionar o passado, conforme já expliquei, é uma estratégia para iniciar um diálogo sobre significado e res­ ponsabilidade nos dias de hoje. Somente assim nós despertamos a esperança, já que não podemos mudar o passado. De qualquer maneira, nós não construímos um futuro deixando de lado o passado porque nossa compreensão do passado orienta nossa atividade para criar o futuro. Temos de encontrar alternativas. São as brechas entre as muralhas que nos permitem seguir em frente, experiências que facilmente escapam à nossa consciência, mas que nos convidam para uma nova vida em busca daquele “outro mundo que é possível” chamado pelos cristãos de Reino. Como cristãos, somos convocados a cruzar fronteiras e descobrir o que existe do outro lado das barreiras culturais e religiosas.8 Hoje em dia esse reposicionamento inclui a solidariedade com a Terra, com os oprimidos e marginalizados. Exatamente neste instante saímos de nossos guetos, ou seja, abandonamos um estilo de vida que nos encerra em nós mesmos. Dessa forma, começamos a construir uma nova narrativa. s

Ver: BAUM, Religión as source o f alienation, the young Hegel. CANTWELL SMITH, Wilfred. Toward a World Theology. Philadelphia: The Westminster Press, 1981.

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Se quisermos buscar juntos o sagrado e criar, ou descobrir, as histórias que revelam o sagrado, precisamos começar prestando bastante atenção aos contadores de histórias. Como crentes, há demasiado tempo temos repetido sempre as mesmas velhas his­ tórias que já perderam seu sentido. Há outras a serem contadas. Isso não significa que as velhas não tenham valor. Algumas são ricas de significado, porém precisam de uma releitura a partir de novas perspectivas para que sua luz possa brilhar. Algumas das novas histórias podem nos auxiliar a fazer exatamente isso. Algumas provêm de trabalhos escritos feministas, de movimen­ tos ecológicos, religiões mundiais, tradições de povos indígenas e minorias em todo o mundo. Estão intimamente relacionadas a rituais praticados naqueles contextos. Existem também rituais totalmente novos que nos convidam a nos conectarmos com a Terra e suas criaturas, rituais que nos unem em solidariedade através das fronteiras e em lutas comuns. Essas histórias e rituais nos convocam a auscultar as profundezas de nosso ser a fim de entrar em contato com as fontes de nossa energia. De qualquer maneira, somos todos capazes de auxiliar na cura dos relacionamentos rompidos em nossa sociedade e chamar a atenção para as vozes ausentes. Entre essas últimas podemos mencionar o ambiente (ar, água, terra, plantas, ani­ mais), minorias étnicas, mulheres, crianças, aqueles que vivem com limitações físicas, emocionais ou intelectuais, os de idade avançada, refugiados, imigrantes. Temos vivenciado por tempo demasiado o fato de nossas religiões nos apartarem. A experiência religiosa como busca, irrupção e resposta nos proporciona uma base muito positiva para um diálogo que cure as feridas, mobilize forças e sirva como mediador entre o indivíduo e a sociedade, o mundo natural e Deus. E um diálogo orientado para compartilhar, apreciar e valorizar o outro.

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Práxis A religião deveria sustentar e estender a experiência reli­ giosa de forma que possam surgir uma prática coerente e um compartilhamento da experiência. Infelizmente, a religião às vezes parece mais uma coleção de doutrinas e rituais que tencionam tratar do mistério de Deus, mas que acabaram por ser separadas de seus fundamentos na experiência religiosa e de um compromisso com o mundo para o qual a irrupção do Outro, do Um Transcendental, está chamando. É daí que deriva a importância da prática. A aplicação da teoria é absolutamente necessária para que a experiência não seja estéril, mas conduza ao bem comum. Nossas religiões (rituais e crenças) são deveras diferentes. No entanto, elas nos convocam para uma união de forças na prática da solidariedade com os pobres, oprimidos e marginalizados. Prestar atenção à experiência religiosa, que se encontra na origem de nossas diversas tradições religiosas, nos faz admitir sua beleza e praticar a compaixão, que é um fator crítico para a construção daquela energia capaz de erguer um mundo que seja compassivo e justo. Se desejarmos uma teologia transreligiosa ou suprarreligiosa, ela deveria se basear e enquadrar dentro de uma reflexão sobre a experiência religiosa. Mais especificamente: precisamos reco­ nhecer o “sujeito” da experiência religiosa que emerge de nosso próprio ser como humanos que somos. A experiência religiosa, como uma ação que se encontra enraizada na própria estrutura do que é ser humano, ou seja, como um “sujeito que age”, trans­ cende todas as religiões e tradições religiosas. No fim das contas, a base ou fundamento de toda teologia não é uma coleção de doutrinas, mas o “sujeito”9humano (o ser que age consciente de 9

Ver: LONERGAN, Method in Theology, 1974. The subject. Milwaukee: Marquette University Press, 1968. FERRY, Jean-Marc. Les puissance de l ’expéríence. Paris: Éditions du Cerf, 1991.

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si mesmo) numa comunhão universal na qual é dada prioridade àqueles que são considerados não sujeitos (não pessoas) e que são excluídos. Ser “sujeito” transcende as tradições religiosas e suas estruturas. Cristãos, hinduístas, muçulmanos, budistas ou seguidores de uma espiritualidade nativa, nós sempre somos sujeitos humanos comprometidos com uma busca humana e um questionamento da realidade que se abre para a irrupção do “Outro” e do “outro” em nossa vida do dia a dia. A experiência religiosa, nascida da imaginação e do ques­ tionamento que está no núcleo do ser humano, é construída com fundamento nos elementos que são formados exatamente pela estrutura da própria consciência humana e que servem de substrato comum, dando sustentação a toda a variedade de interpretações e entendimentos que surgiram das diferentes tradições religiosas. Mesmo que todos os esforços para formular esse substrato comum acabem por ser outra teologia ou cami­ nho religioso, fica claro que nós somos sujeitos de experiências religiosas antes que reconheçamos essa realidade como tal. O reconhecimento do outro como tal no diálogo com toda a sua diversidade é uma referência indispensável para ser capaz de levar avante um diálogo fértil, ou seja, um diálogo que se baseia na intersubjetividade. Esse diálogo pode nos levar a re­ conhecer os elementos (valores e verdades) trazidos por cada um que fortalecem nossa solidariedade prática. O empenho para nomear certos elementos da experiência religiosa pode proporcionar “ganchos” que nos habilitam a construir um sistema para uma prática comum, isto é, para vivermos juntos neste planeta. Provavelmente, as tradições que sejam mais capazes de expressar esses elementos comuns sejam aquelas encontradas nas religiões nativas. É claro que não estou conclamando todo mundo a adotar uma religião indígena ou abandonar nossas diferentes tradições religiosas. Ao contrário,

A EXPERIENCIA RELIGIOSA COMO FUNDAMENTO PARA UMA POSSÍVEL TEOLOGIA INTERCONFESSIONAL

a riqueza da diversidade e a extraordinária profundidade de­ senvolvida pelas tradições milenares das grandes religiões do mundo merecem nosso total respeito. Não obstante, tomar como exemplo essas mesmas tradições do ponto de vista das tradições nativas e da experiência vivida pelos empobrecidos e excluídos pode ajudar-nos a encontrar elementos que nos as­ sistirão na descoberta da originalidade das grandes tradições mundiais sob uma nova luz. Os elementos assim identificados podem servir para nos orientar na tentativa de descobrir o que é autêntico numa experiência religiosa. Além disso, a conside­ ração dos valores que fluem de uma compreensão da estrutura da experiência religiosa como arraigada no “sujeito”, ou seja, na estrutura dinâmica da consciência humana como questionamen­ to e imaginação, pode auxiliar-nos a achar valores e princípios éticos que são importantes se vamos reagir aos desafios que a humanidade está confrontando hoje. Num próximo passo, o diálogo sobre a experiência religiosa num contexto de compromisso com as lutas dos pobres para seu reconhecimento abre a possibilidade de realizar uma reflexão a respeito da discussão do diálogo em si. Esse momento de reflexão sobre o que fizemos nos permite articular a dinâmica subjacente da experiência religiosa. Desse modo, nós já come­ çamos a construir a teologia interconfessional esperada.

Richard Renshaw

consciência (através dos pobres) e como uma resposta humana a tal irrupção. Em segundo lugar, insisto na importância da prática como diálogo estrutural e constituindo um processo que leve ao reconhecimento do outro como sujeito. Em terceiro lugar, sugiro que o diálogo seja uma atividade de reconhecimento mútuo entre sujeitos que ofereça a possibilidade de avaliar diferenças e elementos comuns. Finalmente, proponho que uma teologia interconfessional surja da reflexão sobre a prática do diálogo. Não existe teologia sem teólogo, e cada teólogo é um ser humano com uma consciência humana, sujeito ao potencial e limitações do que é ser humano. O teólogo é um sujeito. Uma teologia interconfessional é possível na medida em que seja coerente com o sujeito da experiência religiosa ao reconhecer o sujeito com seu potencial e limitações. Se aceitarmos esse prin­ cípio, evidentemente muitas teologías vão precisar de profunda revisão.10Assim, parece-me que o diálogo interconfessional em função do “viver juntos” não é só urgente, mas também possível.

Conclusão Tentei indicar um caminho para a construção de uma base para a teologia interconfessional. Para conseguirmos isso, precisamos encontrar uma referência comum que nos permita criar um relacionamento. Nesse sentido, proponho a experiência religiosa com três significados: como uma busca de signifi­ cado e amor, como uma irrupção do Transcendente em nossa BIS

10 A s contribuições epistemológicas de Bemard Lonergan, Juergen Habermas e Jean-Marc Ferry oferecem princípios profícuos (embora diferentes) para nossa jornada no diálogo.

Rumo a uma teologia pós-confessional e pós-religiosa. Experiência religiosa, símbolo e teologia pós-religiosa

J

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Se o símbolo é a expressão própria da experiência religiosa (1), esta, expressada simbolicamente, é o objeto da teologia (2). Por outro lado, entre símbolo e religião se dá urna certa relação de continuidade, mas também de irredutibilidade (3). Essas são três condições relacionais muito importantes, já que nelas pa­ receria se encontrar uma das chaves de por que a teologia tem de ser pós-religiosa e, portanto, também pós-cristã (4). Tal é a tese que aqui sustentamos em resposta à pergunta motivadora, “é possível uma teologia [...] transreligiosa?”. E são quatro os pontos que - de uma maneira muito sintética, por razões edito­ riais - propomos a seguir, privilegiando, como se poderá ver, um enfoque fundamentalmente epistemológico.1 Este último Enfoque epistemológico do qual tratamos apenas de um ponto, o da experiên­ cia religiosa simbolicamente expressada como objeto da teologia. Abordagem mais ampla fizemos em: ROBLES, J. A. Repensar la religión. De la creencia

R umo a uma teologia pós - confessional e pós - religiosa. Experiência religiosa, símbolo e teología pós- religiosa

não porque seja o único enfoque possível, absolutamente, mas porque a pergunta motivadora tem alcances e propósitos pro­ fundamente epistemológicos para a teologia.

I. Experiência religiosa e expressão simbólica Faz várias décadas, cada vez é mais freqüente ver a teologia referir-se ao seu objeto de estudo em termos de experiência, experiência religiosa, e à natureza da linguagem religiosa como uma linguagem simbólica. Tão freqüente, como ainda geral e vago. A prova está em que, contrariamente ao que seria de esperar, tal reconhecimento para nada mudou o fundo da teo­ logia. Nós nos referimos à formalidade de seu objeto de estudo, à sua maneira de entender-se como episteme, aos seus famosos “lugares teológicos”, ao seu discurso. Em termos gerais, este continua sendo o mesmo. Sinal tudo isso de que termos como experiência religiosa e símbolo não estão sendo utilizados com rigor, mas antes de uma maneira genérica. É, pois, necessário corrigir tal uso. Quando falamos com rigor de experiência religiosa, antes de tudo e acima de tudo estamos nos referindo a uma experiência real e específica do absoluto que somos e que é tudo, a expe­ riência da realidade em sua unidade, plenitude e totalidade. Algumas características ou, melhor ainda, dimensões, que só podem ser conhecidas experiencialmente, nunca racional e conceitualmente. Para este tipo de conhecimento, raciocínio e conceito são recursos profundamente inadequados por insufi­ cientes, só a experiência é adequada. Uma experiência, ademais,

José Amando Robles

bem específica, que não supõe subjetivação nem objetivação, porque não necessita nem supõe um sujeito sentindo estar conhe­ cendo um objeto. Nesse sentido, devemos reconhecer, também o termo experiência religiosa não é o mais adequado, porque facilmente induz a engano. Nós o utilizamos porque, como os termos espiritualidade, caminho interior e outros, é, apesar de tudo, dos menos maus que temos. Se nos entendêssemos bem, bastaria dizer experiência da realidade, sem acrescentar experiência “religiosa”, como ob­ serva com frequência Raimon Panikkar,2 indicando, assim, que não se trata de nenhuma experiência especial nem espe­ cializada, mas da experiência da realidade sem mais, contudo da realidade toda. O qualificativo “religiosa” que costumamos lhe acrescentar ou serve para conotar as dimensões de unidade, totalidade, gratuidade, ou está demais. De fato, não acrescen­ ta absolutamente nada.3 A experiência da realidade em sua plenitude e totalidade é a experiência humana por excelência, plenamente humana e, por isso, religiosa. Reivindicada a natureza verdadeiramente experiencial da experiência religiosa, os dois termos, “experiência” e “religiosa”, devem recordar à teologia a natureza experiencial da própria religião. Com efeito, não só é a experiência religiosa corretamente entendida que fundamenta a religião, é também a que a constitui. A religião é a experiência mais profunda, plena e total que pode fazer o ser humano, ou não é religião. E se não é religião, então é cosmovisão, filosofia do mundo, do ser humano e da história,

2

al conocimiento. Heredia (Costa Rica): EUNA, 2002. p. 293-358. E ¿ Verdad o símbolo? Naturaleza del lenguaje religioso. Heredia (Costa Rica): Universidad Nacional, 2007.

3

ícones do mistério; a experiência de Deus. São Paulo: Paulinas, 2007. p. 52. De la mística. Experiencia plena de la Vida. Barcelona: Herder, 2005. p. 34. Cf. PANIKKAR, Raimon. Entre Dieu et le cosmos. Entretiens avec Gwendoline Jarczyk. Paris: Albin Michel, 1998. p. 11.

BB

JoséAmandoRobles

R umo a uma teologia pús-confessional e pos-religiosa. Experiência religiosa, símbolo e teología pos-religiosa

ética, teodiceia..., mas não a experiência de unidade, plenitude e totalidade que a fundamenta e a constitui. Por ser a experiência religiosa essencialmente experiencial, sua expressão é essencialmente simbólica, e não pode ser de outra maneira. Por isso, com razão foi dito que o símbolo que expressa a experiência religiosa é a primeira linguagem religiosa de todos, ou que está na origem de todos os demais e alimenta a todos, se é que não é o único. Porque os demais mitos, ritos, doutrinas..., experiencialmente falando, já são derivados, já são preferen­ temente temáticos, não estão na mesma altura nem cumprem a mesma função. A relação entre estes e a experiência não é a mesma que no símbolo, onde esta relação é mais direta, mesmo havendo uma diferença de natureza, sentida não sem dor pelos que fazem a experiência e a expressam. Só o símbolo tem por alvo a experiência mesma. Para ela aponta e para ela orienta, até desaparecer, como bom precursor. Muito ao contrário do que acontece na arte, onde o símbolo, como um em si, permanece, e o simbolizado, nele. Com outras palavras, na experiência re­ ligiosa a realidade está na experiência mesma, não no símbolo, e para ela deve tender.

2. A experiência religiosa simbolicamente expressada, objeto da teologia A importância de entender bem a natureza experiencial da ex­ periência religiosa, assim como a de entender que sua expressão é simbólica, e é simbólica de uma maneira bem específica, se apoia em que a experiência religiosa simbolicamente expressada é o objeto formal da teologia: o que estuda e a luz sob a qual o estuda. Esse é o objeto que busca entender a teologia, não outro.

O ponto que acabamos de expressar é sumamente importante. O objeto da teologia não é a visão da realidade ou o conjunto de valores que nos pode dar e nos dá um mito ou um rito, ou, melhor ainda, séries inteiras destes, como conjuntos articulados que já são de símbolos, em um caso representacionais, no outro dinâmicos. Menos ainda é o objeto da teologia ou conjunto de verdades em que se pode fazer derivar conjuntos articulados de símbolos em função de sua conservação, transmissão, legitima­ ção, identidade e outras. Por este caminho - bem conhecido por ter sido o mais percorrido durante séculos - a teologia perde sua função e seu próprio objeto de estudo, na medida precisa­ mente em que se afasta mais do símbolo e da função deste. O objeto da teologia é a experiência religiosa, genuinamente tal, simbolicamente expressada. Não é outro. Os outros objetos mitos, ritos, verdades, doutrinas... - só podem ser percorridos e merecem sê-lo em uma busca da riqueza simbólica que ainda contêm, e rastreando sua função primeira, recuperando-os e recuperando-a, porém nada mais. Tal objeto de estudo, sabemos, não é nada conceitualizável. E, unicamente, o que diz ser: a experiência última, mais plena e total da realidade, enquanto essa experiência é expressada simbolicamente. Expressada simbolicamente significa não conceitualizável. Como captar, pois, esse objeto de estudo, perguntarão os adic­ tos da razão e do conceito para tudo? Marià Corbí dirá que os textos genuinamente religiosos só podem ser lidos como se lê um poema,4 só podem ser captados e lidos simbolicamente. Como se capta e se lê a arte em todas as suas manifestações. Nesse sentido, a religião não constitui uma experiência que não estejamos fazendo todos os dias quando vemos uma paisagem, 4

Religión sin religión. Madrid: PPC, 1996. p. 131.

José Amando Robles

R umo a uma teología pós - comfessional e pós- reugiosa . Experiência religiosa, símbolo e teologia põs - reusiosa

uma árvore, uma flor, e quando olhamos qualquer objeto, já não uma obra de arte, com certo nível de desenho e de qualidade artística. Em todas essas experiências percebemos muito mais do que física, objetivamente, vemos; percebemos uma realidade sutil, de unidade e totalidade, que transcende a materialidade das coisas que vemos, embora esteja nela. A teologia, como a arte, deverá ensinar-nos a perceber tal dimensão, captar seu significado e valor, descobrir sua rique­ za, sua presença em tudo, sua capacidade para transformar a realidade. Deverá mostrar-nos sua relação com tudo aquilo que chamamos realidade, e ensinar-nos a viver a partir dessa experiência e com ela... Mas para tanto tem de se manter fir­ me em seu próprio objeto de estudo, saber ser corajosa, não ceder à tentação - quanto ao mais bem compreensível - de sair à caça de verdades e conceitos como objeto de estudo, para ser mais eficiente. A teologia tem de saber que, quanto mais se afasta dessa forma não conceitualizável de expressar a experiência religiosa que é o simbólico, tanto mais se afasta da experiência para a qual este aponta, e mais se incapacita para dar conta dela, sendo, contudo, esta sua fonte. Os símbolos em uma conceptualização religiosa e a serviço dela - como já são as religiões - vêm “enclausurar” o que precisamente os define: sua universalidade e sua densidade de significado. Para ficar com um significado, quem sabe, doutrinalmente potente - como aconteceu, no Cristianismo, com os símbolos da criação, da encarnação e da ressurreição, para dar três exemplos -, porém simbólica e progressivamente empobrecidos.

3. Entre símbolo e religião, uma relação de irredutibilidade Contrariamente ao que estamos habituados a pensar, entre símbolo e religião como sistema de crenças, significações e práticas rituais não há uma continuidade evolutiva e harmônica. É certo que símbolos e gestos simbólicos puderam dar lugar a conjuntos elaborados, como são os mitos e os ritos, mitologias e ideologias ou religiões. Embora fosse melhor dizer que mitos, ritos e religiões souberam assumir os símbolos na nova realidade temática, articulada e até sistêmica que elas instauram. Mas isso não ocorreu sem certa violência e, desde logo, sem perda de significação e função para o símbolo. J. Severino Croatto5 sublinhou muito bem como em tal operação os símbolos perdem tanto em universalidade de significação como em densidade, ou seja, no que têm de mais próprio e genuíno. Em contrapartida, adquirem poder e valor, de concreção e configuração, de interpretação e até mesmo de explicação da realidade, de orientação e determinação, mas tudo isso já dentro de uma cosmovisão determinada de mundo e em função dela, e-, portanto, com seu potencial simbolizador propor­ cionalmente reduzido. Quanto mais dentro de uma cosmovisão e corpo religiosos se encontra o símbolo, e mais significação concreta adquire, tanto mais perde de sua infinitude e de sua profundidade inesgotável de significação. De fato, por sua natureza e funções, entre símbolo e religião como corpo e sistema de verdades e valores, existe certa incom­ patibilidade e irredutibilidade, que se deve reconhecer e salvar. Não apresentam a mesma ontologia nem fazem parte do mesmo 5

Los lenguajes de la experiencia religiosa. Estudio de fenomenología de la reli­ gión. Buenos Aires: Fundación Universidad a Distancia “Hemandarias”, 1994. p. 163-165.

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R umo a uma teologia pós- confessional e pós- religiosa. Experiência religiosa, símbolo e teología pós - religiosa

registro. O próprio símbolo não é o mesmo antes de entrar e quando já entrou para fazer parte do conjunto articulado que é uma religião. Assumido e subsumido em uma religião, o símbolo já não é o mesmo, sofreu perdas, perdeu o mais genuíno de seu ser e função: sua capacidade, aparentemente vaga e imprecisa, mas no fundo a mais rica e apropriada, para apontar o inefável, sem substituí-lo nem fixá-lo nunca. Porque para onde aponta é a própria experiência. Neste ponto jaz precisamente a grande diferença entre religião e símbolo: que a religião, por ter feito dos símbolos, conceitos, verdades —e verdades com frequência divinas - , se detém neles sob a forma de fé e de crença, enquanto o símbolo aponta para a realidade e a sua experiência como única forma de conhecê-la.

4. A teologia, pós-religiosa e pós-cristã À luz do aqui proposto, o símbolo que expressa a experiência religiosa, objeto da teologia, se transforma no critério discrimi­ nante de sua pertinência e, poderíamos dizer, de sua qualidade religiosa. E isso independentemente dos referentes religiosos que o possam acompanhar ou que o espreitam. Na polaridade símbolo - como expressão originária - e religião - como con­ junto articulado de verdades e doutrinas -, é o símbolo como objeto de conhecimento e sua dinâmica aquilo que define a teologia. Daí a necessidade de desenganchar teologia de religião e de confissão religiosa, ou - exprimindo em outros termos e na situação cultural em que agora nos encontramos - de que a teologia seja pós-confessional e pós-religiosa. É a única maneira de garantir que seja autêntica, que dê conta da experiência religiosa e de suas contribuições. Do con­ trário, continuar fazendo teologia confessional e religiosa para

José Amando Robles

o uso é fazer uma teologia em função de crenças, de interesses doutrinais, morais e institucionais, porém não da experiência religiosa auténticamente tal. Devemos tomar consciência clara deste desafio, que parece ir contra toda lógica e até contra toda evidência. O lógico e o evidente pareceria ser continuar fazendo a teologia como sempre se fez, partindo de verdades - mais se são reveladas -, de con­ ceitos, de credos. No fundo, partindo de uma visão do mundo, do ser humano e da história, de uma filosofía. De outra maneira, o sentimento pareceria ser de impotência, não sabendo como é que se poderia fazer teologia; sentimento bem compreensível se o ideal que se tem de teologia é o de uma metavisão objetiva do mundo, do ser humano e da história, interlocutora de outras visões. Mas o objeto da teologia é outro, a experiência religiosa simbolicamente expressada, e seu saber, um saber sobre esta experiência e a partir dela. Quanto ao mais, só a partir de uma teologia pós-confessional e pós-religiosa se recuperará o melhor da teologia confessional e religiosa, e a interlocução profunda entre todas as teologías não só será possível como será o substrato e a experiência comum. Porque experiência religiosa e expressão simbólica nunca se fecham nem se esgotam. Em uma teologia assim, há lugar para todas as expressões genuinamente religiosas e para todas as teologías que genuinamente se construam em função destas. Nenhuma sobra.

Teologia interconfessional uma perspectiva hindu K. L.

S e s h a g ir i R a o

Introdução O Hinduísmo é uma tradição religiosa antiga, multifacetada, multidirecional, dinâmica e viva. Ela reconhece as inevitáveis diferenças da vida e experiências humanas, assim como as va­ riadas necessidades dos indivíduos em diferentes fases da evo­ lução espiritual. Quase qualquer forma de culto está preservada na tradição e é valorizada pelos hindus se for útil para alguém em algum estágio da evolução espiritual. Eles reconhecem e respeitam a individualidade de cada tradição e seita; cada uma representa uma perspectiva importante da Verdade. A aborda­ gem hindu da Verdade é experimental: é vivendo e se movendo na Bramã (Verdade universal). A busca da Verdade é ampla e se baseia em descobertas progressivas da visão sempre ampliada e experiência do Divino. A procura da Verdade e do valor é um interminável. Subjacente a todos os diferentes movimentos e seitas, os hindus veem certos temas comuns que contam para a unidade maior. Eles enfatizam que a Realidade última é o Espí­ rito Supremo, que é um, sem um segundo (advitiya); que é valor supremo; que existe um sentido de unidade percorrendo todas as coisas e que há justiça no coração do universo. O espírito do Hinduísmo é “unidade na diversidade”.

K. L.Seshaqiri Rao

Teóloga interconfessionm : üma perspectiva hindu

Perspectiva hindu Na perspectiva hindu, as grandes tradições religiosas são diferentes entre si, mas são necessárias e válidas conforme enfatizam as várias dimensões da Verdade. Elas ajudam o de­ senvolvimento espiritual da humanidade em diferentes tempos e climas. Toda religião, cultura e idioma tem seu lugar no mundo. Qualquer coisa que esteja em harmonia com a verdade e a lei moral eterna é aceitável para o Hinduísmo. Ela possibilita a seus seguidores respeitar outras religiões e admirar e assimilar qualquer coisa que seja boa em outras crenças. Toda religião é forte em alguns valores e deficiente em ou­ tros. Há defeitos e pontos brilhantes em toda tradição. Nenhuma religião é perfeita. Cada religião precisa purificar-se corrigindo distorções e deficiências em sua herança cultural. Cada tradição faz parte do patrimônio religioso da humanidade. Cada uma delas fez e continua a fazer contribuições importantes para a realização humana. Elas são complementares. A diversidade de culturas traz riqueza e beleza para a vida humana. O Hinduísmo mantém que o pluralismo religioso proporciona um contexto adequado no interior do qual cada tradição é capaz de preservar suas características singulares e pode agir, reagir, crescer e se desenvolver. O Hinduísmo não insiste na semelhança religiosa, mas na aplicação dos princípios da moralidade e retidão (darma) na vida. O Hinduísmo valoriza outras tradições e não alega que seja o único repositório da Verdade no mundo. Em nenhum lugar nas Escrituras hindus está escrito que somente os hindus são qualificados para serem salvos. O Hinduísmo invoca as bênçãos da vida para todos, não somente para os hindus. “Que sejam todos felizes, saudáveis e abençoados” faz parte de suas preces diárias. Sendo uma religião aberta, ela assimilou percepções

de outras crenças. A visão hindu contém um mundo, uma hu­ manidade, mas muitas casas de fé. Nesse aspecto, o instituto do matrimônio pode ser usado para ilustrar magnificamente a visão hindu. O propósito da cerimônia do casamento, seja hindu, budista, cristão, muçulmano ou sique, é unir o noivo e a noiva sob a sanção da união sagrada. As cerimônias de casamento são certamente diferentes nas diversas tradições, porém todas se propõem a atingir o mesmo objetivo. Da mesma forma, a finalidade das tradições espirituais da humanidade é pôr a alma individual em contato com o Ser Supremo, ou, como disse Mahatma Gandhi, levar o buscador a ficar “face a face com Deus ou Verdade”. As tradições religiosas existem para auxiliar os respectivos seguidores a atingir essa meta. Sri Ramakrishna no século XIX e Mahatma Gandhi no século XX também defenderam essa visão através de outras imagens.

Uma só essência e muitos nomes Sri Ramakrishna (1836-1886) praticou disciplinas espirituais de diferentes seitas hindus uma após a outra. Tendo conseguido fazer os exercícios das sadanas hindus, ele se voltou para as práticas do Cristianismo e Islamismo. Seguiu as modalidades das disciplinas como recomendadas pelas respectivas tradições. Percebeu e desfrutou a glória de Deus em cada um desses mé­ todos. Viu que todas as crenças são caminhos diferentes para a mesma destinação. Os caminhos são muitos. Deus é um. Rama, Krishna, Siva, Alá, Jesus Cristo e outros mil nomes significam somente Ele. Independentemente do nome ou forma em que o Divino seja cultuado, o Supremo Senhor aceita o culto do devoto. A diferença está nas perspectivas e linguagens, não na essência. A água é chamada deja l pelos hindus, pani pelos muçulmanos,

K.L.SeshaqiriRao

T eología interconfessional: uma perspectiva hindu

água pelos cristãos e assim por diante. A substância é a mesma, mas os nomes são diferentes em idiomas diferentes. E Deus está além de palavras, mas pode ser vivenciado.

Imagens de maternidade Mahatma Gandhi usou imagens diferentes. Uma mãe nutre e trata com carinho a vida de seu filho e a mãe é amada e res­ peitada pela criança. Cada mãe é única para com seu filho. Da mesma forma que eu respeito minha mãe, também se espera que eu respeite as mães de meus vizinhos. Todas as mães devem ser respeitadas. Uma religião, como uma mãe, nutre e trata com carinho a vida espiritual de seus seguidores: ela merece o res­ peito deles. Isso não significa que as outras religiões devam ser deploradas. A fim de estabelecer a relevância de uma fé, não é necessário menosprezar as outras. Na verdade, a reverência pela fé dos outros exalta a própria fé; é um reconhecimento do fato de que a verdade e os valores espirituais estão incrustados nas diferentes tradições de acordo com as necessidades e índoles dos respectivos povos. O modo de vida hindu é direcionado essencialmente para a busca da Verdade. A Verdade inclui o que é verdadeiro no co­ nhecimento, o que é certo na conduta e o que é justo e equitativo nas relações humanas. A tradição hindu (Vedas) nos guia na arte de viver com base no conhecimento das verdades eternas subjacentes do Universo. Ela trata da vida e da morte, do bem e do mal, do amor e do ódio, do agora e da vida após a morte, bem como do significado e do propósito da vida. Saber como viver é o verdadeiro conhecimento. A tradição focaliza as condições de vida e as metas humanas comuns da honradez (
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