Economia e carisma da indústria cultural da celebridade

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Economia e carisma da indústria cultural da celebridade

Eduardo Cintra Torres
CECC, FCH-UCP

Resumo

Começo por analisar a celebridade como actividade económica. Associada
a um modo de vida e a actividades lucrativas, a celebridade tem uma
poderosa dimensão económica, de que fazem parte os famosos, as empresas
de media e outros negócios e ainda os consumidores. Transformadas em
mercadoria, a presença física, a personalidade construída e a imagem
dos famosos, com vida através e por causa da intermediação mediática,
têm uma existência económica comparável a qualquer outro bem de
consumo. Procuro verificar esse carácter através da tipificação das
celebridades na televisão e procuro também estabelecer a celebridade
como uma actividade que adquiriu uma autonomia suficiente para a
considerar uma indústria cultural. Em seguida, reflicto sobre a relação
entre a celebridade e o carisma, verificando como o carisma das
celebridades contemporâneas se enquadra menos no seu prestígio
individual do que na concepção weberiana do carisma institucional, o
que permite superar a questão da "pseudocelebridade" e do
"pseudocarisma". Em consequência, adianto a hipótese de o carisma da
celebridade contemporânea ser, não só uma criação, como uma propriedade
da indústria cultural emprestada aos famosos, que dele tiram proveito
enquanto têm seguidores, ou seja, audiências. Essa forte natureza da
celebridade contemporânea e do seu carisma, permite questionar o
carisma como, também ele, uma mercantilização de um bem etéreo através
desta indústria cultural específica.

História e economia da celebridade

A triangulação que proponho de celebridade, sua economia e seu
carisma parte do princípio de que os três elementos entram em relação
dinâmica nas sociedades capitalistas e democráticas. A celebridade, como
mostram Braudy (1997) e Minois (2012), nas suas notáveis histórias deste
"tema cultural básico" (Braudy, 1997: vii) é um fenómeno constante nas
sociedades ocidentais desde a Antiguidade.
A história da celebridade revela quanto ela esteve, desde o seu
início há mais de dois milénios, quase sempre associada aos detentores do
poder político e económico, quer quanto aos protagonistas, quer quanto às
iniciativas para a criação e manutenção de celebridades, por norma dotadas
de carácter considerado carismático. A primeira grande celebridade do
Ocidente, Alexandre Magno, tratou de construir e divulgar em vida a sua
imagem, contratando biógrafos-hagiógrafos e colocando a sua efígie em
moedas (Minois, 2008; Rojek, 2008). Em geral, as celebridades pertenceram
às elites do poder político, militar, religioso e cultural. O cristianismo
contraria, nos seus primeiros tempos, o carácter elitista da celebridade,
mas rapidamente se transforma ele mesmo em poder espiritual, para não
mencionar em poder temporal, criando e controlando a sua própria galeria de
celebridades, umas mais carismáticas que outras. A partir do Renascimento,
com o desenvolvimento da sociedade laica, das universidades e da imprensa,
a celebridade alargou-se aos novos actores, nomeadamente os escritores, os
cientistas e os artistas: entrou em cena o poder da universidade, da
disseminação da palavra e da imagem. Essa nova forma de adquirir prestígio
pessoal ofuscou o carácter espectacular do carisma, tanto quanto possível
associado à imagem. A partir do final do século XIX, mas em especial no
século XX, dá-se o alargamento quantitativo das celebridades aos
jornalistas, actores, desportistas e finalmente aos famosos sem outra
ocupação e fonte de rendimento além da fama, sucedâneos dos dandies dos
século XVIII e XIX, "celebridades do inútil" (Minois, 2012), hoje em versão
de dandyismo proletário e pequeno-burguês, já não vivendo dos rendimentos
familiares, mas vivendo agora da fama no âmbito de um sistema. O final do
século XX, com o icónico Big Brother, consagrou finalmente o devir
histórico da celebridade: foi a "fanfarra para o homem vulgar" (Torres,
2002: 7) Provou em definitivo que todos os homens e mulheres comuns podem,
e muitos querem, aceder à celebridade.[1]
As obras de Braudy e Minois permitem verificar que muitas das
características que atribuímos à celebridade na modernidade já se
encontravam em sociedades anteriores, ora plenamente registadas, ora em
embrião. Todavia, ela adquiriu o seu desenvolvimento actual a partir do
século XVIII, quando se afirmaram vários fenómenos concomitantes: o
desenvolvimento do capitalismo, o começo dos regimes democráticos, das
grandes cidades, dos novos meios de transporte e comunicação à distância, a
disseminação da imprensa e em seguida dos meios de massas, da fotografia,
bem como o crescimento das novas formas dos espectáculos, como o circo, o
teatro, o cinema e a televisão.
São as liberdades de acção, de expressão e de imprensa que permitem
singrar o palco em que germina, cresce e vence o que podemos apelidar de
celebridade pluralista, a celebridade acessível de "cima" para "baixo, do
"grande homem" ao homem anónimo. O capitalismo é a fundação em que cresce
esse edifício. Ele cria a reprodução mecânica e hoje digital não só de
produtos, como de serviços, e ainda, no que nos interessa, de ideias, de
imagens e de ideologias em que ele mesmo está subjacente. A celebridade
pluralista é uma dessas ideologias, assente numa indústria. Deste modo, a
celebridade da modernidade é uma realidade social e cultural que está desde
o século XIX indissociavelmente ligada ao modo económico capitalista e ao
modo político democrático.
Na democratização da celebridade encontramos a marca dos poderes
antigos e do novo poder económico da burguesia. Pode até dizer-se que essa
democratização da celebridade é a grande obra da burguesia, a partir da
Idade Moderna, retirando o seu exclusivo ao poder instituído no Antigo
Regime e aos seus protagonistas. Nesse período, e já antes na Idade Média,
as camadas populares conseguiram impor algumas celebridades ao poder
espiritual, os seus santos, mas cabia à instituição a sanção de permitir o
acesso dessas escolhas ao cânone celebratório (Minois, 2012). Contudo, só
com a implantação e alargamento das liberdades e com o desenvolvimento do
poder económico e cultural do capitalismo, se tornou possível a celebridade
pluralista. No século XIX, a burguesia procura ainda controlar a
celebridade, mas a massificação dos media e dos espectáculos levou-a a
incorporar o novo protagonista no seu sistema produtivo e ideologicamente
hegemónico. De facto, as massas tinham entrado no palco da história como
actrizes, não mais apenas como espectadoras, Agora, segundo Michelet, em
1847, "o actor principal é o povo" (apud, Minois, 2012: 326). A celebridade
alarga-se a um número muito maior de celebrizados, alimentando e entretendo
processos de identificação, de aspirações e de simples curiosidade do maior
número. Esse alargamento concretiza-se na indústria mediática de massas,
sistémica, a qual transforma a celebridade como uma actividade económica
rotineira. "Os heróis ao gosto clássico ou romântico custam tão pouco
trabalho que se fabricam à dúzia", escrevia Émile Zola (1881). O regime
capitalista democrático e a sua indústria mediática aderiram desde cedo ao
fabrico em série da celebridade.
A partir do momento em que a celebridade vende, a celebridade
constrói-se, cria-se como um produto ou serviço. Rodolphe Maurice Artaud em
Cinéma-Bouffe, de 1945, resumia o processo num diálogo telegráfico: "-
Faites-moi une vedette. - Budget habituel? - Budget habituel" (apud,
Minois, 2012: 370). Os media têm nessa evolução o papel inegável que os
historiadores e sociólogos sublinharam. Num exercício de pensamento
experimental, podemos imaginar o que seria o mundo capitalista se, de
repente, desaparecessem todas as pessoas a que chamamos celebridades ou
famosos: toda uma indústria desaparecia. Os media das "caras" eram varridos
da face da terra; muitos milhares de outros media, incluindo canais de TV,
jornais, revistas e sites na Internet ficavam reduzidos a uma expressão
pequena ou ínfima; desapareciam milhares de postos de trabalho de
conselheiros de imagem, gestores e empresas de celebridades, técnicos de
celebridades como fotógrafos, paparazzi ou não, maquilhadores,
"jornalistas", etc.; a publicidade perdia parte dos protagonistas dos
anúncios; as maiores editoras perderiam o mercado das biografias e
autobiografias de celebridades; as livrarias voltariam a ter de expor nas
montras livros da literatura canónica. O vazio seria impossível: o público
sentiria necessidade de referências e a indústria teria de criar novas
celebridades. Podemos levar mais longe o conceito de que "celebridades são
fabricações culturais" (Rojek, 2008:12) ou "mercadorias", um conceito já
bem estabelecido (Baechlin, 1947; Morin, 1957; Giner, 2003: 172): a meu
ver, a celebridade tornou-se algo que existe economicamente de per se, não
é apenas uma extensão dos media: se a imagem do famoso é uma mercadoria,
então a celebridade é uma indústria cultural em si mesma. Tem o seu centro
nos media, numa era em que muitas das actividades sociais estão
mediatizadas, e existe para lá deles, em formas de apresentação e
comercialização periféricas. Tem a sua própria ideologia que, como sucede
tantas vezes com as ideologias do capitalismo e da burguesia, são ex-
denominadas, ocultadas, permitindo a sua naturalização na esfera cultural e
social. Daí que se possa dizer que o media predominante, a televisão,
representa a celebridade em "estado natural" (Torres, 2011).
A indústria editorial e da imprensa jornalística, cultural e de
entretenimento, a indústria da rádio, do cinema e da televisão, precisaram
da celebridade como fundamento de vendas, o que implica a priori a sua
dimensão económica. Este fenómeno implica a criação de celebridades
enquanto alavanca de audiências, equiparadas a receitas. É fácil encontrar
exemplos em todas as áreas. A famosa definição de Daniel Boorstin (1992),
em 1962 — "Uma celebridade é uma pessoa que é conhecida por ser bem
conhecida" ("The celebrity is a person who is known for his well-
knownness"), — traz implícita a celebridade como uma forma económica em si
mesma: se não houvesse a indústria da imagem, como seria possível que
alguém fosse famoso só por ser, numa sociedade democratizada? Esta
tautologia (ser conhecido por ser conhecido) implica que há uma razão
económica (sem nunca menosprezar a razão cultural em sentido amplo) para
que pessoas, com ou sem outras qualidades reconhecidas, possam ir sendo
reproduzidas em palavras e imagens. Sem querer entrar na especulação
psicológica, gostaria de sugerir que, em parte, a aura carismática da
celebridade (pois alguma tem de apresentar para agradar ao público) é-lhe
garantida pelo media, que, ele sim, tem uma aura que lhe é própria. De
outro modo, não se entenderia que pessoas sem qualidades assinaláveis
chegassem ao estatuto de famosos ou celebridades, mesmo que
temporariamente, nem se entenderia que desaparecessem enquanto celebridades
quando os media as abandonam. A aura é-lhes emprestada pelo media.

Tipologia económico-cultural da celebridade

Quando falo em celebridades, uso o termo em termos gerais, sem tomar
em conta, até aqui, o grau de celebridade, mas a tipificação é útil para
entender a dimensão económica em relação com o carisma. Rojek (2008: 23-26)
distingue, na actualidade, celebridades (com "uma carreira mais longa junto
ao público") de celetóides ("qualquer forma de celebridade atribuída,
comprimida, concentrada") e de celeatores ("personagem fictício que […] se
torna institucionalizado da cultura popular"). Os três tipos, porém,
existiram anteriormente na civilização ocidental: as personalidades
políticas, militares, religiosas e culturais, os celetóides desde que surge
a imprensa popular, os celeatores desde o culto dos deuses e semideuses
aventureiros na Grécia antiga: o super-homem é inerente à civilização.
Podemos estabelecer uma tipificação da celebridade que tome em conta
o papel fundamental da televisão na economia desta indústria cultural
(Torres, 2011: 87). Considero a existência de três tipos, considerando, ao
mesmo tempo, o carácter cultural e o carácter industrial da celebridade
contemporânea: são eles as estrelas, as celebridades ou famosos, os
conhecidos, com o subtipo conhecidos por um dia, e, fora da tipologia, as
personalidades que prescindem ou evitam a celebridade pública. Este tipos
têm origem na própria tipologia informal usada pelo vocabulário televisivo
e pretendem pôr-se de acordo com o media em que a democratização da fama
mais se desenvolveu, ao dar fama a qualquer um durante o mínimo tempo e
pelos motivos mais irrisórios. Através desta tipificação, encontra-se a
dinâmica económica da celebridade no meio mais propício à sua
institucionalização.
As estrelas têm uma actividade que, embora ligada à imagem, implica
que poderiam teoricamente sobreviver sem a indústria cultural da
celebridade. Nos tempos áureos do sistema dos estúdios de Hollywood, tinham
uma relação económica contratual com o empregador, que incluía a gestão da
divulgação da sua vida privada. Este tipo de contratos existe hoje com
estrelas da TV, pelo menos em Portugal. Alguns actores e apresentadores têm
contrato com o patrão televisivo. São empregados. O próprio conceito de
sistema em "star system" aponta para a sua estruturação como fenómeno
económico-cultural.
Já as celebridades ou famosos vivem em primeiro lugar da própria
celebridade. A individualidade (corpo, emoções, vida privada, roupas, etc.)
sobrepõe-se a qualquer outra actividade que possuam, quando a possuem. Tal
como as estrelas de Hollywood (Morin, 1957), são como mercadorias, mas
tendo apenas para vender a imagem da sua individualidade. Dado o carácter
efémero da fama, muitos saltam da celebridade para negócios de lojas, roupa
ou outros que possam beneficiar do seu conhecimento público. Em Portugal,
vários famosos fracassaram nesses negócios e tiveram de regressar à única
actividade em que tinham tido êxito previamente: a indústria da
celebridade. Esta categoria da celebridade revela claramente o carácter
económico da indústria cultural. São pagos de acordo com tabelas
empresariais de agências de celebridades, que atribuem valor à sua escala
de notoriedade, para participar em festas e inauguração de lojas,
actividade conhecida como "presenças". Esta denominação revela o carácter
deste tipo de fama, pois é pela mera presença, a corporização da imagem, e
nada mais, que são retribuídos, contando-se com a transferência da fama
para o evento, dado que as celebridades garantem a presença dos media de
celebridades. Há também famosos que passam do patamar de uma actividade
como a música ou a apresentação de programas televisivos para o patamar
seguinte, em que são famosos por serem famosos, tornando-se este patamar
independente da sua actividade.
Entre estes conhecidos contam-se artistas de música popular que
entram num processo de troca não remunerada com a televisão: participam
gratuitamente nos programas de daytime, recebendo em troca o tempo de
televisão, que lhes garante a notoriedade que por sua vez proporciona
contratos de concertos. É uma troca económica: a televisão ganha o
entretenimento proporcionado, que tem o valor económico da publicidade
obtida pelos programas, e os artistas ganham a notoriedade, que tem um
valor económico potencial.[2] As noções de êxito e de popularidade, valores
seguros da ideologia capitalista democrática, são vitais para manter os
famosos no circuito. No século XIX, o francês Victor Cousin escrevia que "O
signo do grande homem é que teve êxito" (apud, Minois, 2012: 328). Por
exemplo, um célebre cantor "pimba" português investiu na compra de muitos
exemplares dos seus próprios CDs para os levar aos tops de vendas e, em
consequência, os respectivos telediscos serem passados regularmente na
televisão. A partir daí, o êxito foi imparável. O investimento inicial tem
sido altamente compensado.
Os conhecidos, pessoas que aparecem fugazmente na televisão,
normalmente no daytime e nos reality shows, podem classificar-se como
wannabes, os que tentam a sua sorte nos media, tentando passar a
celebridades. No meio altamente competitivo da indústria cultural da
celebridade, só alguns conseguem, pelo menos temporariamente. Por exemplo,
vencedores ou concorrentes de edições do Big Brother ou de Secret Story
conseguem não só entrar no circuito da celebridade paga das presenças em
eventos, como se tornam depois apresentadores de programas, numa utilização
económica pelos operadores de TV no investimento em fabricação de
famosos.[3] Em geral, a sua fama é muito efémera, o que eles contrariam
explorando "escândalos" da usa própria vida que os mantenham nas revistas
cor-de-rosa.
Os conhecidos por um dia, aqueles que ocupam programas por alguma
circunstância da sua vida, em geral privada, também retiram muitas vezes
vantagens económicas da sua passagem pela televisão. Se muitos apenas
beneficiam, ou sentem o benefício, de o seu anonimato de pessoas vulgares
se quebrar por uns minutos sob as luzes da ribalta, muitos outros
prescindem da sua privacidade para receberem em troca ofertas em directo de
bens materiais, operações plásticas e outras. Note-se que tem sucedido as
mesmas pessoas serem reclamadas por outros canais depois de aparecerem pela
primeira vez, exemplificando assim o carácter reprodutivo da celebridade no
seu nível mais básico. Os canais de televisão, mais uma vez, beneficiam
economicamente, através das audiências garantidas por estes "casos
humanos".
Finalmente, as personalidades são, por vontade própria ou imposição
da indústria cultural, outcasts, excluídas da notoriedade mediática excepto
como párias, fora do consenso imposto ou partilhado na sociedade pelos
próprios media, apresentadas como weirdos, pessoas estranhas, à margem da
indústria cultural. Excluindo-se da economia da indústria cultural da
celebridade, as personalidades são apresentadas muitas vezes como exemplo
negativo nos media dominados pela hegemonia dessa indústria cultural: nem
contribuem para a função política da celebridade, uma "invenção social" em
que os media de massas "representam um papel importante para governar a
população" (David Marshall, apud, Rojek, 2008: 41), nem contribuem para a
economia da indústria da celebridade.
Personalidades à parte, as estrelas, celebridades ou famosos,
conhecidos ou conhecidos por um dia, todos têm em comum proporcionarem
vantagem económica aos media. Rojek afirma que "celebridades são mercadoria
no sentido de que os consumidores desejam possuí-las" (2008: 17). Indo mais
longe, consideradas as celebridades, não enquanto as pessoas que se deseja
consumir, as celebridades-imagens — celebrimagens — são mercadorias
efectivas, mas nas suas derivações mediáticas: são tempo de televisão e em
"presenças", páginas de imprensa, T-shirts, anúncios e tantos outros bens
de consumo (Torres, 2011: 95-6).
Portugal fornece outro exemplo da dimensão económica autónoma da
indústria da celebridade pelo paradoxo da quase total ausência dos ricos da
produção industrial da celebridade. De facto, se antes a celebridade era em
boa medida deles, sendo os pobres apenas protagonistas das más notícias,
hoje os ricos não precisam da celebridade. Ela seria, aliás, um empecilho à
sua vida empresarial e privada. Apenas recorrem à indústria da celebridade
alguns portadores de títulos nobiliárquicos sem rendimentos suficientes
para manter as suas propriedades e necessitam da exposição para alavancar
qualquer negócio. Pertencem às elites sociais sem serem ricos. Os
verdadeiramente ricos não aparecem. O caso do empresário Vasco Pereira
Coutinho, considerado um dos portugueses mais ricos, serve de exemplo. Não
dá entrevistas e só aparece nas revistas se participa nalgum evento social
em que é inescapável a presença de paparazzi. Há alguns anos, organizou a
que foi chamada "a maior festa do século". Não há um único registo
fotográfico público dessa festa, onde esteve boa parte da elite política,
económica e financeira portuguesa. Não fazendo parte do negócio da
celebridade, a revista espanhola Hola!, cuja matéria-prima principal, mais
do que em Portugal, são os membros das elites endinheiradas, fê-lo
desaparecer por manipulação digital de uma "reportagem". Esta revista
reproduziu fotografias de um paparazzi captadas na propriedade do
empresário no Algarve, na qual passaram dias de férias a princesa Letitia
de Espanha e as filhas. A revista portuguesa Caras publicou as fotos, nas
quais se via o empresário na praia com a princesa espanhola. A Hola!
comprou as fotos, mas fez desaparecer o empresário português (Imagens 1 e
2).[4]
O facto de os ricos não precisarem de se expor à indústria da
celebridade não invalida a hegemonia que ela exerce sobre o espaço público
e confirma a autonomia autêntica conquistada pela indústria da celebridade.
Já os políticos precisam de se vergar aos ditames da indústria cultural da
celebridade, dada a autonomia que ela adquiriu. Barack Obama foi o primeiro
presidente dos EUA em exercício a participar em talk shows de celebridades
e famosos. Outro exemplo: contra a sua vontade, o actual primeiro-ministro
português, Passos Coelho, teve de combinar com os media os dias e as horas
em que os seus paparazzi o fotografassem durante as férias do Verão de
2012, na praia e nas compras do supermercado.
Enquanto empresários e outros poderosos exteriores ao universo
próprio da indústria cultural da celebridade são tratados parcimoniosamente
e em geral de acordo com a realidade factual, a imprensa cor-de-rosa
recorre a ficções, mentiras e encenações sobre os famosos cuja subsistência
económica resulta da sua inscrição nesta indústria. Os próprios famosos
colaboram e tomam a iniciativa de fornecer informações sobre a sua privada,
muitas vezes mentindo, para garantirem, pelas narrativas da vida privada, o
acesso contínuo às publicações, dado que aparecer, e aparecer
continuamente, é essencial. O carácter económico da mercantilização da vida
privada é revelada por uma revista cor-de-rosa: "Assumir um relacionamento
amoroso publicamente é quase sempre sinónimo de um bom cachet. Muitas são
as figuras públicas que são pagas para irem a uma festa a troco de
aparecerem com o seu novo amor".[5]
Como referi, esta indústria tem na televisão o seu centro: "A
regularidade com que se aparece na televisão é claramente um ponto a favor"
da valorização económica dos famosos nos eventos, segundo a mesma
publicação. Quer na TV, quer nas revistas coloridas, a celebridade
estrutura-se como uma actividade económica de corpo inteiro: actividade da
esfera cultural-mediática com ideologia própria, é a primeira actividade
económica a basear-se na personalidade e na aparência de indivíduos,
confirmando a hipótese de Marx no Capital sobre a mercantilização de coisas
etéreas: "Coisas que em si e por si mesmas não são mercadorias, coisas como
a consciência, a honra, etc., podem ser vendidas por quem as possui e desse
modo adquirir a forma de mercadorias através do seu preço" (apud, Barbalet,
2001: 262). A celebridade é uma indústria de pessoas enquanto serviços
seguida, muitas vezes, de produtos materiais (publicações, roupas,
objectos, etc.). Os valores transaccionáveis são as próprias pessoas que,
de alguma forma, não são totalmente donas de si mesmas: têm de trabalhar o
corpo e sua aparência; tal como um produto-marca, a pessoa-marca pertence
aos seus clientes, com a pequena diferença de ser humana. Pertence pela
imagem (por imagens, sons e objectos) que com ela se identifiquem. A
mercantilização centra-se na própria imagem da celebridade, sendo a própria
pessoa célebre um derivado da imagem. A celebridade é a imagem da pessoa,
mais do que a pessoa. Ela é lançada "no mercado como se lança um logotipo,
uma marca — com cuja vacuidade tem semelhanças — , como sinal de
identificação num universo onde a distinção, a identidade e o
intransferível escasseiam. Personalidades confeccionadas e logotipos
desenhados têm íntima afinidade: tentam a tarefa impossível de personalizar
o impessoal" (Giner, 2003: 173).
Como indiquei acima, a celebridade tem efectivas tabelas de preços:
as agências de relações públicas de celebridades portuguesas têm uma lista
de celebridades organizada de acordo com o valor de mercado de cada uma. As
tabelas ordenam os famosos por preço de participação em pseudo-eventos como
desfile de moda, apresentação ou "presenças" em festas, inaugurações,
restaurantes, etc. Dado o módico de carisma, ou aura, ou fascínio que as
celebridades motivam no público, os famosos são contratados para apenas
estarem "presentes" num determinado evento social, no qual devem mostrar-
se, conversar, deixar-se fotografar — o registo fotográfico é fundamental
para garantir a reprodução maciça da "presença". A agência cobra uma
comissão, tendo havido em 2011 uma tentativa para as agências se associarem
numa auto-regulação conjunta das suas comissões. Os preços da presença ou
actividade do famoso dependem dum nível de notoriedade a que é atribuído um
preço e dividem-se por grupos de pessoas: no topo, as celebridades da TV e
actores; depois, outros actores, top models, manequins e, no final da
tabela, as new faces. Em 2012, os preços de presença de um famoso num
evento variam entre 3500 euros e 200 euros, tendo a crise económica levado
a que alguns aceitem apenas em troca produtos da marca ou empresa
promovida, ou até apenas o pagamento da deslocação e do alojamento.[6] Para
todos eles, aparecer é fundamental, por serem imagens.
Do processo económico da celebridade consta a construção, ou o
fabrico, de famosos a partir do nada. Um canal pode decidir escolher uma
pessoa para apresentar um programa dentro de seis meses. Até lá, a máquina
do canal vai arranjando ocasiões para ir colocando essa pessoa no ecrã,
aparecendo em "galas" ou noutros programas de celebridades. Em simultâneo,
procede-se de modo idêntico nas revistas de famosos. Ao fim de seis meses,
o público habitual dos programas de celebridade já "conhece" a pessoa
conhecida, que lhe foi inculcada por repetição e naturalização. Depois, já
"famosa", a celebridade faz o seu percurso. O primeiro passo para a fama é,
portanto, ser-se conhecido. Não se pode ser famoso com valor de mercado sem
se ser conhecido. As outras características da pessoa, como a beleza,
qualidades profissionais ou humanas, só podem revelar-se havendo
publicitação. Deste modo, em vez da hereditariedade dos fidalgos, ou filhos
d'algo, ou a hereditariedade dos cabeças das elites, típicas das sociedades
anteriores, a sociedade contemporânea cria famosos que ascendem à elite dos
famosos por serem filhos dos media. Note-se que esta ascensão por acesso
aos media não exclui a hereditariedade, muito comum ainda, quer entre as
elites antigas, quer entre os actores e personalidades da TV, que promovem
ou permitem a promoção dos filhos nos media desde tenra idade. Os filhos
dos conhecidos têm meio caminho andado para serem conhecidos também, mas a
hereditariedade da celebridade só se concretiza nos media.
Em resumo, se no tempo das estrelas se obtinha "o máximo lucro"
"investindo no mais pequeno número de actores" (Sennett, 1995), hoje o
alargamento da base das celebridades comercializáveis origina um
investimento diferenciado de acordo com a tipificação da celebridade,
podendo partir de um investimento maior nas estrelas televisivas até ao
investimento directo nulo no caso dos conhecidos por um dia, passando pela
troca directa de serviço com os conhecidos que em troca de tempo de antena
o ocupam com o seu divertimento.

Carisma e celebridade

Tendo procurado estabelecer até aqui o carácter económico da
celebridade como indústria cultural, gostaria agora de abordar o outro tema
central desta comunicação: a relação do carisma e da celebridade. A
atracção exercida por indivíduos sobre um grande número de seguidores é
referida desde a Antiguidade. O carisma é uma concepção aristocrática da
liderança da sociedade, servindo, em qualquer regime político, para a
diferenciação entre o meneur, o dirigente que está acima da massa, e a
própria massa. Os líderes carismáticos de ruptura do sistema estabelecido
constituíram uma minoria, embora não desprezível, dos celebrizados ao longo
da história.
O carisma foi primeiro teorizado pelos sociólogos ou ideólogos do
final do século XIX, por ser esse um período de perplexidade democrática: o
carisma de individualidades contrariava o espírito democrático, ou visto
pelo prisma inverso, a concepção do sistema político democrático
contrariava o carisma, quer porque as eleições substituem os líderes, quer
porque o carácter dialógico se opõe à obstinação e à dominação ideológica,
caracterizada como irracional, dos seguidores dos carismáticos. Carlyle, em
Sobre os Heróis, assinalava em 1840 que as celebridades substituíam o vazio
da democracia (Carlyle, 1840) e Durkheim, em 1883, sugeria que o
carismático era necessário por causa da igualdade social (Durkheim, 1967).
O carisma não abrandou, em especial quando os conservadores viram nele um
meio de chegada ao poder, quer contornando directamente o sistema
eleitoral, quer usando o líder como trunfo em eleições.
Max Weber desenvolveu ou "inventou o conceito de carisma" (Rojek,
2008: 35) para o aplicar a qualidades especiais ou únicas atribuídas ao
indivíduo, que faziam dele um "profeta" ou um "salvador pessoal", não raro
de inspiração divina (Weber, 1946) Já em Hobbes se encontrava a relação
entre a fama e a virtude religiosa (apud, Braudy, 1997: 13). Encontramos
nas reflexões sobre o carisma algumas características atribuída à
celebridade actual, como a relação emocional, o seu carácter transitório
(por exemplo, Le Bon, 1998: 71-72), a celebridade pela celebridade (já em
Santo Agostinho) e a sua dependência do alcance de séquito conseguido: no
século II, Luciano de Samósata ironizava que o prestígio dos grandes homens
"repousava unicamente na credulidade dos que os veneram" (Minois, 2012: 44,
102).
Weber estabeleceu o carácter relacional do carisma do líder e seus
seguidores: "a sua pretensão carismática desmorona-se se não é reconhecido
pelos que ele sente ter-lhes sido enviado". O carisma é transitório,
porque, "quando chega às instituições permanentes de uma comunidade, cede o
lugar aos poderes da tradição ou da socialização racional" (Weber, 1946:
246-253). Durkheim só escreveu em concreto sobre o carisma num texto
circunstancial de 1883, mas a sua teoria posterior sobre as formas que a
sociedade desenvolveu de se sentir como sociedade, indispensáveis aos
indivíduos, através da efervescência colectiva ligando crenças e rituais,
tem sido considerada como um complemento necessário à teoria de Weber
(Pearce, 2001; Lindholm, 2001) e auxilia a compreensão do fenómeno na
actualidade. Pearce vê na análise durkheimiana do maná — a força espiritual
impessoal de que os indivíduos se imbuem — semelhanças com o carisma, e
considera que Durkheim estabelece a origem social do carisma. Este conceito
é prometedor para o meu argumento, dado que permite ver o carisma, já não
nos indivíduos, mas em coisas sociais que os transcendem, como a imagem
deles criadas. Julgo que o argumento se reforça voltando a Weber. Algumas
análises contemporâneas do carisma tendem a concentrar-se na sua
teorização a respeito do carisma de tipo "irracional", de relação emocional
e magnética entre o carismático e os seguidores. Essas análises vêem-se
confirmadas por personalidades vistas por carismáticas, como Napoleão, um
cuidadoso construtor do seu próprio "prestígio", ou os ditadores nazis,
fascistas e comunistas do século XX. Seguindo essa linha de análise,
dificilmente entenderemos o carisma na celebridade actual. Todavia, Weber
escreveu sobre outro tipo de carisma: o carisma institucional, que se pode
herdar, transmitir mediante o acesso a uma função ou investir numa
instituição. "Este carisma dá uma aura de poder sagrado a qualquer
indivíduo que tenha o direito de usar a túnica de bispo ou a sentar-se no
trono do rei, à margem das características pessoais. Neste caso, o carisma
é uma força destinada a legitimar instituições e indivíduos poderosos.
Estas instituições e pessoas atribuem-se — e o público atribui-lhes — uma
ligação com o sagrado, e portanto têm carisma." (Lindholm, 2001: 44). Trata-
se de um carisma relativamente racional, enquanto o outro se "opõe a todas
as rotinas institucionais, as da tradição e as que estão sujeitas a uma
gestão racional" (Weber 1946: 52). O carisma de tipo institucional, "que
ratifica e sacraliza o mundo tal qual é, é o sustento da tradição e incluso
talvez pudesse subsumir-se na tradição. Diversos seguidores de Weber
consideram-no a forma essencial" (Lindholm, 2001: 253). Edward Shils é um
deles: escreve que "o carisma se relaciona com a necessidade de ordem. A
atribuição de qualidades carismáticas acontece na presença do poder criador
de ordem, revelador de ordem, descobridor de ordem enquanto tal" (Shils,
1992). Neste sentido, conclui Lindholm, o carisma "está inexoravelmente
relacionado com o status quo" e os carismáticos servem de "válvula de
segurança" (2008: 253, 235).
É a partir do carisma institucional que me permito partir
directamente para as conclusões desta reflexão.

Conclusões

A celebridade enquanto mercadoria está bem referenciada desde o
século XIX. Todavia, considero que a sua dimensão económica permite afirmar
que a celebridade constitui hoje uma indústria cultural, com autonomia
ideológica e instrumental mas em grande medida ligada aos media e às
actividade produtivas de entretenimento da sociedade do espectáculo. Não
está alheada da dominação política e principalmente económica, é antes
parte integrante da hegemonia sistémica do capitalismo, no sentido em que
renova, em democracia, o carisma ancestral e denota a desigualdade em
sociedades que se pretendem igualitárias, confirmando um "novo espírito do
capitalismo" (Boltanski e Chiapello, 2009), com a normalização e a
naturalização da mercantilização do indivíduo e da sua imagem.
A celebridade actual enquadra-se no tipo de carisma institucional.
Não encontramos na esmagadora maioria das celebridades o outro carisma
teorizado por Weber, o carisma de ruptura, revolucionário, criativo e
fascinante. Na América, um famoso tem de se mostrar "suficientemente
similar" à norma "para não ser ameaçador ou destrutivo" (Braudy, 1997: 8).
Trata-se de um carisma do status quo, sendo esta celebridade a
personalização da sua ideologia (Morin, 1957).
O carisma da celebridade contemporânea é um sucedâneo da instituição
mediática. O carisma resulta de os media serem um "centro" cultural-
ideológico da sociedade, na concepção da necessidade de "centros" teorizada
por Shils. A maioria das celebridades e famosos não tem carisma por si,
pois sem aparecerem na televisão, o media mais "central", e nas publicações
parasitas da televisão, deixam de exercer e exibir qualquer carisma. Tratar-
se-á de um carisma-simulacro, se pudermos recuperar para esta análise o
conceito de simulacro teorizado por Baudrillard: 1991), um carisma
enquadrado na ordem estabelecida.
Este carisma "instrumentaliza-se. Prepara-se e lança-se
deliberadamente, ao serviço de toda a espécie de interesses, como mais uma
mercadoria que se produz utilizando os recursos e técnicas disponíveis"
através de "um modo mediático e específico de produção, distribuição e
consumo do carisma pessoal" cuja legitimação de poder ocorre "por usurpação
ou aclamação" (Giner, 2003: 173). Seguindo Giner, dado que os media são o
elemento fundamental da indústria cultural da celebridade, podemos concluir
que o carisma dos media e das celebridades que constrói é também ele
equiparável a uma mercadoria. Trata-se assim de um carisma manufacturado,
talvez de um pseudocarisma, mas podemos colocar a hipótese de o carisma ter
como característica estrutural desde a Antiguidade o ter sido sempre
manufacturado, sendo as excepções os casos de carisma espontâneo, às quais
por norma se deu mais importância. E podemos também perturbar o conceito de
pseudocarisma considerando que, havendo uma situação relacional com as
audiências, ele se compara aos dois tipos weberianos de carisma.
Aliás, sendo um carisma-simulacro orquestrado pelo poder central dos
media, é irrelevante se as celebridades e famosos são "personagens
sucedâneas, às vezes pseudocarismáticas" (Giner, 2003: 160), se são
"pseudocelebridades" (Minois, 2012: 393): o carisma, real ou degradado, é-
lhes dado, ou melhor, emprestado pela indústria cultural. Na verdade, a
celebridade fabricada, apesar do cinismo dos receptores, notado desde o
século XIX, é uma versão menor do carisma, mas não deixa de o ser. Carisma
define-se hoje mais pela recepção, pelas audiências, do que pelo carácter
ou pelas qualidades dos carismáticos. Com a ascensão das massas ao palco da
história e com o desenvolvimento das indústrias culturais na era do
capitalismo concorrencial, o carisma correu a par da celebridade. Deixando
de lado o super-homem romântico de Nietzsche que se afirma na solidão e na
oposição à massa, o carisma só existe na relação com os seguidores do
líder, o que também ocorre com os famosos: "Em qualquer que seja o domínio,
a fama na vida pública é um contrato entre a audiência e o aspirante" à
celebridade (Braudy, 1997: 9). Os seguidores dos telecarismáticos comprovam
diariamente a sua relação amorosa para com eles. Esta reflexão acaba por
pôr em causa a própria concepção do carisma partindo de "cima" para
"baixo". Isso significa que, nas sociedades democráticas e crescentemente
estruturadas em torno das indústrias culturais, o carisma tem
obrigatoriamente de se associar à celebridade como a definimos hoje. A
celebridade é o principal carisma contemporâneo.
Este tipo de carisma, sendo vivido pelos seguidores das pessoas
telecarismáticas, é real, é o carisma institucional da indústria cultural
da celebridade. Não pode ser diminuído por ser aparentemente superficial e
por raramente ter impacto político, por se centrar em desportistas e
figuras do entretenimento, por ser "só para se divertir", como escrevia
Bryan Wilson em 1975, (apud, Lindholm, 2008: 235). A inscrição da
celebridade na "entretenimentização" da sociedade do espectáculo não
diminui o seu carácter político-económico sistémico.
A presença nos media está mais do que meramente associada ao
"prestígio": o famoso só é famoso por ser famoso na medida em que a sua
presença nos media lhe associa alguma dose, mesmo homeopática, de
prestígio. Quer dizer, há uma forma de carisma imprevista pelos clássicos
do tema: o do carisma criado pelos media e pela indústria cultural no seu
conjunto, a "fábrica de carisma" (Giner, 2003: 172), em que o media é não
só o produtor (como em grande medida já era antes deste período), como é a
sua única razão de ser. Como muitos famosos não têm carisma no sentido
clássico, o carisma é fabricado pela economia própria, dos promotores da
indústria cultural. Carisma efémero, carisma mais do fenómeno da
publicitação do que do próprio famoso. Quem detém o carisma primordial da
celebridade são os media, não são as celebridades e os famosos. Os media
não são apenas ecrãs, transmissores de imagens alheias, eles são as
próprias instituições que recolhem, como as instituições tradicionais, a
relação carismática. O carisma contemporâneo é em primeiro lugar o carisma
dos próprios media, instrumentos centrais da subjectividade.
Deste modo, a indústria cultural da celebridade é uma das vertentes
do carisma. Identifica-se com o carisma institucional, porque as
celebridades não rompem com a indústria cultural, submetem-se-lhe. São suas
"servas" (Morin, 1957), beneficiando delas enquanto a lei da oferta e da
procura as beneficiar. Muitas celebridades são empregadas desta indústria e
limitam-se a "agradar" através da palavra e da expressão corporal, como
qualquer empregado dos serviços. Quando desaparecem, confirma-se que o seu
carisma era menos o resultado de características pessoais do que das
condições para a sua própria existência criadas pela indústria cultural.
Quer dizer, o carisma é antes do mais um carisma mediático, do próprio
media, antes de ser um carisma mediatizado das celebridades. O carismático
dos media — o carismediático — serve a indústria e o status quo do sistema
económico. Ambos, media e celebridades alimentam o consumo capitalista,
concretizando a relação triangular celebridade-economia-carisma.

Eduardo Cintra Torres
Caxias, Portugal, Setembro-Outubro de 2012


Bibliografia

Baechlin, Peter. 1947. Histoire Économique du Cinema. Paris: La Nouvelle
Édition.
Barbalet, J. M. 2001. Emoção, Teoria Social e Estrutura Social. Lisboa:
Instituto Piaget.
Baudrillard, Jean. 1991. Simulacros e Simulação. Lisboa: Relógio d'Água.
Boltanski, Luc, e Eve Chiapello. 2009. O Novo Espírito do Capitalismo. São
Paulo: Martins Fontes.
Boorstin, Daniel. 1992. The Image. A Guide to Pseudo-Events in America.
Nova York: Vintage.
Braudy, Leo. 1997. The Frenzy of Renown, Fame and Its History. Nova York:
Vintage.
Carlyle, Thomas. 1840. On Heroes, Hero-Worship and the heroic in History.
Texto completo em http://www.gutenberg.org/files/1091/1091-h/1091-
h.htm#2H_4_0007. Consultado em 2012.10.03.
Durkheim, Émile. 1975. Le rôle des grands hommes dans l'histoire. In Textes
1. Éléments d'une théorie sociale. Paris, Éditions de Minuit: 409-417.
Giner, Salvador. 2003. Carisma y Razón. Laestructura Moral de la Sociedade
moderna. Madrid: Alianza.
Le Bon, Gustave. 1998. La Psychologie des Foules. Paris: PUF.
Lindholm, Charles. 2001. Carisma. Barcelona: Gedisa.
Minois, Georges. 2012. Histoire de la célébrité. Les trompettes de la
renommée. Paris: Perrin.
Morin, Edgar. 1957. Les Stars. Paris: Seuil.
Pearce, Frank. 2001. The Radical Durkheim. 2ª ed. Toronto: Canadian
Scholars' Press.
Rojek, Chris. 2008. Celebridade. Rio de Janeiro: Rocco.
Sennett, Richard. 1995. Les tyrannies de l'intimité. Paris: Seuil.
Shils, Edward. 1992. Centro e Periferia. Lisboa: Difel.
Torres, Eduardo Cintra. 2011. Televisão: A Celebridade em Estado Natural.
In E.C. Torres e José Pedro Zúquete, coord., A Vida como um Filme. Fama
e Celebridade no Século XXI, Lisboa, Texto: 81-104.
Weber, Max. 1946. Essays in Sociology. Nova York: Columbia University
Press.
Zola, Émile. 1881. Le Naturalisme au théatre.
http://www.gutenberg.org/files/13866/13866-h/13866-h.htm, consultado em
05.10.2012.

Imagens 1 e 2. A mesma fotografia na revista portuguesa Caras e, submetida
a manipulação censória na revista espanhola Hola!, em 2010.

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[1] Segundo a empresa produtora, concorreram em 2012 mais de 80 mil pessoas
a Secret Story: Casa dos Segredos 3, um sucedâneo do Big Brother, o que
corresponderá a mais de dois por cento da população portuguesa nos grupos
de idade que geralmente participam neste tipo de reality shows. Para o
conceito de "fanfarra para o homem vulgar", título que dei a um artigo no
jornal Público em 2000, inspirei-me no título da composição heróica de
Aaron Copland, de 1942, intitulada "Fanfare for the Common Man" Copland
inspirara-se, por sua vez, num discurso do vice-presidente norte-americano
Henry Wallace, em que proclamava a aurora do "Século do Homem Comum". No
ano seguinte, essa frase fez o título de um livro de Wallace
(http://www.winrock.org/wallace/wallacecenter/wallace/CCM.htm.; consultado
em 2012.10.10).
[2] O cantor Toy, presença constante nos programas de daytime dos três
canais generalistas portugueses, confirmou em entrevistas esta dimensão
económica das suas actuações televisivas.
[3] O vencedor de Secret Story 2 (TVI, 2012) tornou-se apresentador de um
dos programas de Secret Story 3. Há diversos outros casos na televisão
portuguesa.
[4] Analisei este caso em " A princesa Letitia e o mistério do homem
desaparecido", Público, 15.10.2010.
[5] Rita Montenegro, "Presenças de ouro: Cristina é a mais bem paga", Vidas
CM, secção Cor-de-Rosa, 13.10.2012.
[6] Preços indicados na notícia indicada na nota anterior.
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