Economia e Cultura: Tropicalismo, indústria cultural e o desenvolvimentismo brasileiro

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO INSTITUTO DE ECONOMIA MONOGRAFIA DE BACHARELADO

Economia e Cultura: Tropicalismo, Indústria Cultural e o Desenvolvimentismo Brasileiro

RAFAEL GIURUMAGLIA ZINCONE BRAGA [email protected]

matrícula nº.: 109023365

ORIENTADORA: Prof.ª Maria Mello de Malta [email protected]

CO-ORIENTADOR: Prof. Bruno Nogueira Ferreira Borja [email protected]

AGOSTO 2014

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO INSTITUTO DE ECONOMIA MONOGRAFIA DE BACHARELADO

Economia e Cultura: Tropicalismo, Indústria Cultural e o Desenvolvimentismo Brasileiro

_________________________________________

RAFAEL GIURUMAGLIA ZINCONE BRAGA [email protected]

matrícula nº.: 109023365

ORIENTADORA: Prof.ª Dr.ª Maria Mello de Malta [email protected]

CO-ORIENTADOR: Prof. Bruno Nogueira Ferreira Borja [email protected]

AGOSTO 2014

Retocai o céu de anil Bandeirolas no cordão Grande festa em toda a nação. Despertar em toda a nação O avanço industrial Vem trazer nossa redenção Pois já temos o sorriso engarrafadão Já vem pronto e tabelado É somente requentar E usar, É somente requentar E usar, Porque é made, made, made, made in Brazil Porque é made, made, made, made in Brazil (Parque Industrial, Tom Zé)

"É chegada a hora da reeducação de alguém Do Pai do Filho do espirito Santo amém O certo é louco tomar eletrochoque O certo é saber que o certo é certo O macho adulto branco sempre no comando E o resto ao resto, o sexo é o corte, o sexo Reconhecer o valor necessário do ato hipócrita Riscar os índios, nada esperar dos pretos" E eu, menos estrangeiro no lugar que no momento Sigo mais sozinho caminhando contra o vento E entendo o centro do que estão dizendo Aquele cara e aquela: (O Estrangeiro, Caetano Veloso)

“Eu não espero pelo dia em que todos os homens concordem. Apenas sei de diversas harmonias bonitas possíveis sem juízo final.” Caetano Veloso

AGRADECIMENTOS Gostaria primeiramente de agradecer meu pai e minha mãe que foram pessoas indispensáveis em todo meu processo de formação. Não poderia deixar de me lembrar do meu avô Archimedes Gerumaglia (in memorian) por todo carinho, incentivo e força em grande parte desse processo. Agradeço também minha orientadora Maria Mello de Malta por me abrir as portas para um novo olhar de economista ao me apresentar ao Laboratório de Estudos Marxistas (LEMA – IE/UFRJ) e sua equipe. O conhecimento e as trocas que me foram proporcionados nesse espaço simbolizou verdadeira catarse diante da mesquinhez com que é tratada uma ciência social básica, como a Economia, mesmo em um espaço público de altíssima qualidade como o Instituto de Economia da UFRJ. Estudar a história do pensamento econômico, sobretudo o brasileiro, foi para mim um caminho libertador em meio à cegueira do mainstream, à opacidade de manuais norte-americanos de política econômica, às promessas de“equilíbrio de mercado” e de “pleno emprego”, além da bem-dita “mão invisível” de Adam Smith, que revolveria todos os nossos problemas. Fico contente em agradecer todos aqueles que, ao longo desses anos de Rio de Janeiro, tive o prazer de conhecer. Aos amigos Renato Brito Gomes, Victor Guedes e Vinícius Cunha Ferreira que me acompanharam e me acompanham desde o início do curso; aos amigos do LEMA; aos amigos do CASA (Centro Acadêmico Stuart Angel); aos amigos da Paraíba. Além de meus amigos e colegas, não posso deixar de me referir aos técnicos administrativos Anna Lucia, Marcelo e Moyses que tornam a vida institucional do IE mais leve e menos burocrática. Quanto aos professores, meu carinho especial vai para Ângela Ganem – de humildade e inteligência comoventes -; Galeno Ferraz – companheiro de bares e quintas-feiras e Lucia Kubrusly – de um carinho inigualável. Posso também dizer que fui feliz em ver o desdobrar, ainda que paulatino, de um Instituto de Economia um tanto elitista, machista e heteronormativo transformar-se num ambiente mais plural (algo porém ainda muito longe do ideal). Isso pôde ser visto, por exemplo, na mudança da natureza dos trotes. A prática corriqueira de violência e assédio moral deu lugar a dinâmicas mais colaborativas e de acolhimento.

Guardo como momento inesquecível os meses de ocupação do Canecão, de julho a setembro de 2012. Recordo-me das madrugadas de cinema, projeção na parede de Copacana Mon Amour, os sábados de Maracangalha pública e gratuita, o show de Jards Macalé, além da a fuga coletiva para ver o Tom Zé no Circo Voador se enrolar com nossa faixa “Tom Zé, vem tocar no Canecão ocupado”. Destaco também minha ida à França onde dediquei um ano de estudos na Université Paris VIII. Um belo ano de minha vida em que tive a oportunidade de conviver e morar com Marie e Daniel Orantin, pessoas que guardo com enorme carinho. Esse período que se estendeu entre os meses de setembro de 2012 e 2013 me proporcionou o conhecimento não só de lugares mas de pessoas incríveis. Entre elas, a amiga Debora Santos Martins, com quem pude ter conversas e debates fundamentais para o desenvolvimento deste trabalho. Faço especial menção a meu co-orientador Bruno Borja que orientou diretamente este trabalho. Por meio de seus estudos da “dimensão cultural na Economia” vislumbrei um objeto que pude estudar com desejo e amor: a Tropicália na esteira do desenvolvimento brasileiro. Por fim, peço desculpas antecipadamente a quem eventualmente eu tenha esquecido e reafirmo nessa síntese de cinco anos de estudos a contribuição de cada uma das pessoas com que convivi. Peço desculpas também pelos erros que por ventura posso aqui apresentar, o que fica é o debate.

RESUMO O presente trabalho tem como propósito relacionar o objeto da cultura com a análise econômica a partir da metodologia do materialismo histórico marxista e do conceito de indústria cultural de Adorno e Horkheimer. Adoto como recorte a movimentação cultural tropicalista na MPB e o padrão de desenvolvimento econômico brasileiro com base, a priori , na substituição de importações de bens de consumo duráveis: de JK ao “milagre econômico” . Tendo em vista o processo de industrialização como elemento chave no debate do desenvolvimentismo no Brasil, considero o campo da cultura, no bojo de uma mesma economia burguesa, parte integrante desse processo. Assim, no primeiro capítulo, a metodologia teórica de Marx e o pensamento da Escola de Frankfurt são apresentados. No capítulo dois, trabalho o percurso de desenvolvimento da economia brasileira a partir de JK e o debate teórico a respeito do caráter emancipatório ou dependente da industrialização brasileira no bojo da economia internacional. Em seguida, discuto a partir da visão de Roberto Schwarz, Carlos Nelson Coutinho, Heloísa Buarque de Hollanda e Marcos Gonçalves, o conteúdo e o posicionamento político da Tropicália no esteio da indústria cultural no Brasil. Por fim, ressaltarei o elemento contraditório do Tropicalismo em comum com o padrão de acumulação da economia brasileira.

Palavras-chaves:

tropicalismo; modelo de desenvolvimento; modernização;

“milagre econômico”; indústria cultural.

LISTA DE TABELAS

Tabela 1: A evolução dos valores do salário real (1958-1968) ........................................22 Tabela 2: Taxas médias de crescimento anual do PIB (1950-1980) ................................27 Tabela 3: Vendas da indústria fonográfica nacional por unidade 1967 - 1973 (milhões de unidades)..........................................................................................................................33 Tabela 4: Participação do repertório internacional na listagem dos 50 LPs mais vendidos no eixo Rio/São Paulo entre 1965/1973 ..........................................................................34

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ...............................................................................................................5 I: Nota de esclarecimento ao leitor ....................................................................................5 II: Economia e cultura: a explosão tropicalista e desenvolvimentismo no Brasil ...........................................................................................................................................7

Capítulo 1 : Economia e Cultura: questão de método ................................................13 1.1: Estrutura e superestrutura .........................................................................................10 1.2: Totalidade, historicidade e ideologia ........................................................................13 1.3: A indústria cultural ...................................................................................................15

Capítulo 2: O modelo de desenvolvimento brasileiro .................................................18 2.1: O parque industrial nos anos JK: a gestação de um modelo de desenvolvimento econômico ........................................................................................................................20 2.2: Os anos de baixo crescimento: estagnação do modelo ou crise contingente? ..........25 2.3: O golpe de 1964 e a consolidação de um modelo econômico excludente ...............28 2.2: Recuperação econômica e o “milagre” (1968-1973)................................................30 2.2: A indústria fonográfica na esteira do modelo de desenvolvimento ..........................32

Capítulo 3: Tropicalismo e a indústria cultural: apropriação crítica ou cooptação de mercado? ...................................................................................................................37 3.1: Roberto Schwarz: o esnobismo de massas e a síntese conformista de Brasil. .........38

3.2: Heloísa Buarque de Hollanda e Marcos Gonçalves: o tropicalismo e a inter(mídia)ção da indústria cultural ...............................................................................43 3.3: Do intimismo ao amadurecimento da cultura nacional-popular: o tropicalismo visto por Carlos Nelson Coutinho ............................................................................................46

Considerações finais ......................................................................................................57

Bibliografia .....................................................................................................................60

INTRODUÇÃO I – Nota de esclarecimento ao leitor O desenvolvimento desta pesquisa se deu paralelamente às minhas atividades no Laboratório de Estudos Marxistas (LEMA), do Instituto de Economia da UFRJ, sob orientação da Profª. Drª Maria Mello de Malta. Minha participação nas atividades do laboratório foi de fundamental importância para a compreensão da Economia como uma ciência humana ou, em outros termos, uma ciência social básica. Reconheço hoje que meu interesse em cotejar economia e cultura num mesmo objeto de pesquisa, iniciou-se na disciplina “História do Pensamento Econômico Brasileiro (HPEB)”, ministrado pelo corpo de pesquisadores do LEMA, em 2010. Nesse curso, desenvolvi um trabalho sobre a música “Alegria, Alegria” de Caetano Veloso vis-à-vis seu contexto histórico social. Pude assim ver que o objeto da economia poderia estar além de livros de cálculo e manuais norte-americanos de macro e microeconomia. Esse mesmo interesse pode ser amadurecido, dois anos depois, na disciplina de “Economia e Filosofia: A ordem do mercado” ministrada pela Profª. Ângela Ganem. No curso, me aproximei dos autores da Escola de Frankfurt, como Adorno e Horkheimer. Para o trabalho de conclusão de curso, elaborei o artigo Um Passeio entre a Vanguarda e a Indústria Cultural: a propósito da Tropicália1, publicado em agosto de 2013, em que pude iniciar meus estudos sobre a Tropicália e suas relações com "as bases materiais", noutras palavras: a economia. De meu interesse tanto pelas questões do desenvolvimento econômico brasileiro nos anos da ditadura quanto pelo tropicalismo musical, saltou-me aos olhos dois elementos comuns: uma conexão fundamental entre economia, política, história e o pensamento produzido nas artes e na música. Antes de mais nada, creio que esse foi o primeiro passo de uma vontade: entender o Brasil e suas contradições. Para tanto, por que não usar a arte como chave de interpretação do modelo econômico brasileiro e por que não usar a análise econômica com a finalidade de compreender a manifestação cultural? Ademais, por que não usar ambas as ferramentas como tentativa de melhor conhecer o Brasil? Já diria o poeta: “eu 1

ZINCONE, Rafael.. Um passeio entre a vanguarda e a Indústria Cultural: a propósito da Tropicália. In: Revista Wolfius, agosto de 2013. Rio de Janeiro. Disponível para acesso em: http://www.revistawolfius.com.br/index.php/Wolfius/article/view/35/50 acessado em 18 de junho de 2014 às 17:04.

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vou, por que não?”. Assim posto, posso seguramente dizer que todo esse trabalho não seria possível se eu não tivesse um contato mais profundo com o pensamento de Karl Marx. De que outra forma eu poderia articular a Economia Política e o objeto da cultura quando a finalidade é estabelecer as pontes entre suas controvérsias e contradições inerentes? Como diria a estudiosa de comunicação e semiótica Lúcia Santaella (1986, p.9): “A dimensão cultural não circula nas nuvens etéreas das ideias”. Para a autora, ela está inexplicavelmente conjugada às duas outras grandes dimensões do social: a econômica e a política. Contudo, assim como Marx originalmente, Santaella pondera que a produção cultural não se apresenta nas sociedades capitalistas como um epifenômeno da economia, um mero reflexo decorativo ou ilustrativo. Diz – também como Celso Furtado – que o econômico e o político são também determinados pela esfera cultural. É bom dizer que o materialismo histórico marxista é, antes de tudo, um método historiográfico de análise social Não se trata de doutrina, como quer o senso comum. Nesse sentido, Santaella nos informa que não foi necessário muito tempo para a indústria compreender que ciência e arte podiam ser forças produtivas. Gradativa e crescentemente, a produção de conhecimentos científicos estaria sendo submetida às mesmas divisões de trabalho a que estava qualquer outra esfera de produção. De forma análoga, Celso Favaretto nos diz: “não se pode pensar o tropicalismo, enquanto tributário da festa carnavalesca, sem se considerar que o lugar social da canção é mediatizado pelo aspecto mercadoria”. Desejo a vocês uma boa leitura!

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II. Economia e Cultura: a explosão tropicalista e o padrão de desenvolvimento do Brasil nos anos de chumbo. O Tropicalismo foi um evento cultural múltiplo ocorrido em meados da década de 1960 no Brasil. Tratou-se de manifestações no campo do teatro, da poesia, do cinema, das artes plásticas e, com maior destaque, na música. Em concordância com o ensaísta e pesquisador Frederico Coelho (2008), defino o Tropicalismo mais como uma movimentação cultural do que propriamente um movimento organizado e fechado. Parafraseando o autor, seria uma movimentação cultural múltipla que buscava inovar o campo cultural brasileiro entre os anos de 1967 e 1968. Em outras palavras, to Tropicalismo significou uma reunião criativa de oposições diversificadas ao consenso e inscritas no bojo de um mesmo movimento (que passaria a ter nome próprio, em t maiúsculo)2. Na arena musical, o Tropicalismo teve como principais integrantes: Caetano Veloso, Gilberto Gil, Tom Zé, a cantora Gal Costa, a banda Mutantes – integrada por Rita Lee, Arnaldo Baptista e Sérgio Dias Baptista - José Carlos Capinam, Torquato Neto, Rogério Duprat, além da participação de Nara Leão e do artista gráfico, compositor e poeta Rogério Duarte.3 Defendo aqui a ideia de que a Tropicália trabalhou com o argumento de autoridade de atualização da música popular brasileira sendo coetânea à Bossa-Nova, à Jovem Guarda e à “M.P.B. tradicional” (de Vandré, Edu Lobo, Elis Regina e seus pares Em Ecos do desenvolvimento (2011), o grupo de pesquisadores do LEMA sistematizou a história do pensamento econômico brasileiro entre 1964 e 1989 a partir da controvérsia do desenvolvimento. De acordo com os autores, a questão do desenvolvimento povoou o pensamento da imensa maioria dos economistas do Brasil. Dessa forma, a maior parte dos debates do período teriam como referência fundamental um projeto de desenvolvimento para o país. No bojo desses debates, destaquei os temas da estagnação (de meados dos anos 1960) e o da dependência (que ganhou força no início dos anos 1970), para além da questão do desenvolvimento econômico em si. Trabalho com a hipótese de que as condições de 2

O texto de Nelson Mota, “A cruzada tropicalista” publicado em 5 de fevereiro de 1968, deu roupagem oficial ao termo Tropicalismo (muitas vezes escrito em minúsculo). Quando escrevo Tropicalismo ou Tropicália (como queria Caetano), refiro-me aqui ao campo musical. Por essa razão, optei por escrever Tropicalismo em maiúsculo (e não tropicalismo) já que o termo oreportava-se, na maior parte das vezes, aos músicos e não às artes plásticas, ao teatro, etc. 3 Cf. http://tropicalia.com.br/identifisignificados/movimento. Acessado em 10 de junho de 2014 às 15:36.

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estagnação e dependência no Brasil, objetos caros aos economistas, organizou de alguma forma a estética da Tropicália. Em uma famosa mesa-redonda sobre a música popular de 1965, Caetano Veloso se queixou das limitações estéticas da MPB pós-bossa nova, defendendo “a retomada da linha evolutiva” na música popular brasileira tal como exemplificada por João Gilberto e pela primeira onda de artistas da bossa nova, “que haviam assimilado as técnicas e as ‘sacadas’ da ‘modernidade musical’ (isto é, o jazz), sem aflições a respeito de uma identidade nacional (DUNN, 2007). De forma análoga, os economistas, também em meados dos 1960, estavam preocupados com a “linha evolutiva” da economia brasileira frente ao quadro de decrescimento posterior aos anos JK, discutia-se a “tendência à estagnação”. Do lado crítico, Celso Furtado foi, sem dúvida nenhuma, o pioneiro desse debate, contrapondo-se a visões liberalizantes que se oficializariam no governo militar. Para além da “estagnação” e da “linha evolutiva” na música popular brasileira”, identifico na ideia de “antropofagia” e nos debates da dependência econômica problemáticas íntimas. No campo musical, os tropicalistas encontraram apoio teórico na antropofagia, formulada e articulada por Oswald de Andrade em seu “Manifesto antropófago” (1928). Para o modernista de São Paulo, a metáfora da antropofagia, inspirada por índios do litoral, infames por devorar seus inimigos cativos, entre eles colonizadores portugueses, forneceu um modelo de produção cultural que “não era nem subserviente às tendências metropolitanas na Europa, nem defensivo ou estritamente nacionalista” (DUNN, 2007, p.63). Caetano Veloso (apud ibdem.) declara em suas memórias Verdade Tropical (1997), “a ideia do canibalismo cultural servia-nos, aos tropicalistas, como uma luva, estávamos comendo os Beatles e o Jimi Hendrix”. Nesse mesmo livro, Caetano menciona as apreciações de Eric Hobsbawm a respeito de nosso “breve século XX”, desde o entreguerras, "no campo da cultura popular [e dando, curiosamente, o esporte como única exceção em que se destaca o futebol brasileiro como "arte"], o mundo era americano ou provinciano". Diz, em seguida, que ele os outros tropicalistas não queriam negar esse dado. De acordo com suas palavras, queriam participar da linguagem mundial para se fortalecerem como povo e afirmar sua originalidade. No campo econômico, a hegemonia norte-americana também não se fez despercebida, pelo contrário. Entre as diversas controvérsias envolvendo os temas do desenvolvimento e subdesenvolvimento, o debate da dependência ganhou força no Brasil entre as décadas de 1960 e 1970. Ao longo desses anos, a dinâmica interna de dominação entre as classes sociais 8

passou a ser vista como fator determinante na condição de dependência no país, sobretudo nos trabalhos de Fernando Henrique Cardoso e Enzo Faletto. Para os autores, a questão do subdesenvolvimento e, portanto, da dependência não estariam condicionadas apenas à subordinação nacional frente ao centro capitalista. Assim, aquilo que Cardoso denominou de “bases internas da dominação externa” era resultado do processo de internacionalização das empresas estrangeiras desde o fim da Segunda Guerra (ROCHA, 2011). Posso então dizer que assim como Veloso e os demais tropicalistas, os teóricos da dependência estavam atentos à americanização do mundo. Diante desse impasse, que caminho seguiriam? Estabelecendo esse paralelo a respeito das controvérsias do desenvolvimento - tanto no campo econômico quanto no campo cultural – não quero afirmar, todavia, que outros estilos e propostas musicais do período não estivessem implicadas com questões políticas e sociais. Pelo contrário, a Tropicália era acusada por seus opositores de “alienada” e até mesmo de complacente com a situação política do país. A estratégia retórica comum presente na “MPB tradicional”4, na qual os artistas evocavam uma futura redenção política e social no “dia que virá”, tinha muito a ver com os anseios políticos de economistas exilados no Chile e sediados nos escritórios da Cepal. Assim como os músicos do “amanhã vai ser outro dia”, viam, por exemplo, no problema da estagnação econômica uma possibilidade futura de derrocada do regime militar. Dessa forma, posso dizer que minha escolha pela Tropicália como chave interpretativa do desenvolvimento brasileiro e de suas controvérsias justifica-se por sua maior identificação com o processo, o caminhar de um desenvolvimento desigual e dependente. Sem lugar à dúvida, a indústria foi o personagem principal de todo esse processo. Da mesma forma que para a maior parte dos economistas brasileiros a industrialização foi por muito tempo sinônimo de desenvolvimento, acentuo neste trabalho o protagonismo industrial na “confecção tropicalista”. Por essa razão, dei destaque às transformações da indústria fonográfica brasileira entre 1960 e 1970 vis-à-vis o processo mais amplo de desenvolvimento da indústria brasileira como um todo. Outro motivo que me fez escolher a Tropicália como objeto de análise em meio a produção musical de seu tempo, foi o fato de seus participantes 4

De acordo com Christopher Dunn (2007), a MPB era definida menos pelo que era do que pelo que não era em termos estilísticos. Não era rock, associado a uma moda importada passageira, nem era música popular tradicional, mais tipicamente identificada com o samba urbano ou com várias formas de música rural regionais. Era, segundo o autor, uma característica híbrida que surgia das “sensibilidades pós bossa nova” mas na qual estavam presentes valores estéticos e preocupações sociais ligados ao imaginário nacional-popular. Sua operação mais básica era fundir “tradição” com “modernidade” sem sucumbir às pressões da popularidade emergente do iê-iê-iê.

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assumirem uma postura crítica sem contudo negar ou invisibilizar seus lugares de contradição na indústria do entretenimento. Ao afirmar a participação em todas as “estruturas” da mídia de massa, Caetano reconhecia não existir um “espaço puro” para os artistas que participavam na indústria musical de consumo (DUNN, 2009). Anos mais tarde, em 1978, o mesmo Caetano diz no programa da TV Cultura Vox Populi que foi o primeiro artista a fazer televisão “sem fingir ser inimigo da televisão”, diferentemente, segundo ele, de colegas como Chico Buarque, Edu Lobo e Aldir Blanc. A postura com relação à indústria fonográfica era semelhante. Ao mencionar uma conversa-debate com os mesmos compositores, diz: “nós gravamos na Warner, na Phonogram e na RCA, porque gostamos da Warner, da Phonogram e na RCA”. Posso então dizer que a marca registrada dos tropicalistas foi trazer em sua estética as contradições inerentes aos espaços comerciais/ dos quais se valiam – consequentemente atravessados por questões caras a esse trabalho como o desenvolvimento e a modernização per se e o impasse da dependência (tratando-se de empresas multinacionais). Quanto a ambiguidade da postura de Caetano frente aos meios de comunicação de massa, isso será assunto para outra pesquisa. A proposta desse trabalho, vale reiterar, é de validar a Economia Política como instrumento de compreensão da manifestação cultural e vice-versa. Esse trabalho está organizado por uma introdução, três capítulos e uma conclusão. No primeiro capítulo, expõe-se a metodologia teórica na qual me baseio: o materialismo histórico marxista. No segundo capítulo, apresento o percurso da economia brasileira de JK ao "milagre" e as controvérsias do desenvolvimento compreendidas nesse recorte. Na terceira seção, analiso o objeto do tropicalismo discutindo-o com três diferentes interpretações: primeiramente a de Roberto Schwarz, em seguida de Heloísa Buarque de Hollanda e Marcos Gonçalves e, por fim, a de Carlos Nelson Coutinho. Além desses autores, compartilho das análises estéticas e linguísticas de Celso Favaretto, os dados da indústria fonográfica brasileira apresentados no trabalho de Eduardo Vicente e, por fim, algumas contribuições dos próprios personagens da Tropicália, em especial:

Caetano Veloso, Gilberto Gil, Torquato Neto,

Glauber Rocha e Hélio Oiticica. Na conclusão, apresento a síntese dessa discussão em acordo com as questões aqui propostas.

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_CAPÍTULO 1_

ECONOMIA E CULTURA: QUESTÃO DE MÉTODO

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Neste capítulo, apresentei a metodologia do materialismo histórico de Karl Marx, o que me permitiu reunir o campo econômico e o campo cultural num mesmo eixo de análise. No esteio dessa metodologia, aproveitei-me das contribuições de Lucien Goldman, György Lukàcs e Michael Löwy. Ademais, apresentei o conceito de indústria cultural originalmente elaborado por Theodor Adorno e Max Horkheimer, ambos pensadores da “Escola de Frankfurt”5..

1.1 – Estrutura e Superestrutura Na introdução que faz à edição brasileira de Contribuição à Crítica da Economia Política (2009) de Marx, Florestan Fernandes considera a Economia Política, com o emprego do método materialista, uma ciência social apta para dar uma explicação científica e “logicamente válida” da moderna sociedade capitalista. De acordo com autor, a crítica marxiana em relação aos ingleses superaria o caráter “naturalizante” da Economia Política Clássica. Isso quer dizer que, para Marx, as teorias de Adam Smith e David Ricardo seriam falsas perspectivas das “leis do mercado” pelo fato de não conceberem a ordem social de mercado como um processo histórico (não eterno, portanto) e sim como algo natural. Partindo da filosofia moral, Adam Smith defende que o homem é um ser naturalmente propenso à troca. No seu célebre A Riqueza das Nações (1776), Smith reivindica o livre mercado como ordem social tomando como base princípios morais naturais dos seres humanos6. Sua tese se resume da seguinte forma: “a obtenção do interesse pessoal na produção de riqueza gera vantagens para todos” (NAPOLEONI, 1985, p. 51). Assim, no programa das conferências sobre filosofia moral apresentadas na Universidade de Glasgow, 5

Denominação comum empregada aos pensadores do Instituto de Pesquisa Social (Institut für Sozialforschung) fundado por Carl Grünberg em 1923 como um anexo da Universidade de Frankfurt. 6 De acordo com Claudio Napoleoni (1985), a filosofia moral na Inglaterra do séc. XVIII nasce como reação ao selfish system de Hobbes, ou seja, a afirmação de um “estado natural” no qual cada comportamento humano somente possui como objetivo a mera autoconservação, ou egoísmo, de cada indivíduo, e do qual, se alguma vez se tronasse possível sua realização integral decorreria uma guerra geral e desagregadora entre seres humanos. Dessa forma, seria impossível para Hobbes a constituição da sociedade sem a intervenção coercitiva do Estado. O homem abriria mão de sua liberdade (renunciando Às suas tendências destrutivas) em favor da autoridade estatal. Diferentemente de Hobbes, o estado se apresenta em Locke como simples garantia de sua permanência ordenada garantindo o direito à propriedade (o Estado não seria uma privação de liberdade, pelo contrário, sua garantia). Para Adam Smith, a ordem social estaria na aquisição da autonomia da atividade econômica (o livre mercado) e não necessariamente no estabelecimento de um Contrato Social.

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Smith precisaria de antemão que esse processo geral de aumento de riqueza através da difusão do intercâmbio decorria da racionalidade humana. Em lugar de um pessimismo de uma natureza essencialmente desagregadora (Hobbes), Smith apresenta uma visão otimista de uma natureza que tende à integração recíproca. Dotado de razão, o homem garantiria seu bem-estar em contato com outros homens, por meio de sua propensão natural à troca e à comunicação. Claudio Napoleoni, todavia, formula a seguinte questão no livro Smith, Ricardo, Marx (1985): “até que ponto a realidade histórica apresentou-se, ao próprio Smith, como homogênea com esse dado natural?”. Em sua visão, David Ricardo também apresenta o capitalismo de forma natural e ahistórica. Lembrando que Smith escreve em um contexto de mercantilismo, como ordem econômica hegemônica, e Ricardo num contexto de capitalismo plenamente consolidado. Suas três edições de Princípios de economia política e tributação se sucederam entre os anos de 1817 e 1821. Ainda que não tratasse a ordem social de mercado a partir de questões morais, defendia o desenvolvimento da burguesia como benefício de toda uma sociedade (e não benefício de uma classe social em particular). Sua grande contribuição teórica em relação à obra de Marx estaria em trabalhar com a perspectiva de classe social. Para Smith, a Economia seria a ciência da riqueza das nações, para Ricardo, a Economia Política se ocuparia da distribuição do produto social entre as classes nas quais acha dividida a sociedade (a Economia se ocuparia da divisão do produto entre salários, lucros e renda fundiária). Em resumo, a teoria ricardiana postula uma tendência geral da queda da taxa de lucro à medida que se desenvolve uma economia. Isso seria, para um autor, seria um entrave a investimentos futuros comprometendo o produto social de uma economia. Diante do conflito distributivo, Ricardo defendia a redução dos salários como solução desse problema. Sendo menor o custo de produção agrícola, o capital refluiria para o cultivo de terras menos férteis. Para Marx, todavia, não seria a sociedade como um todo, ou a “nação”, que auferiria os frutos da “mão invisível do mercado”, mas sim uma classe burguesa em conflito direto com a classe trabalhadora. No modelo ricardiano, a redução dos salários em favor do aumento da taxa de lucro não viria em benefício de todos, conforme sua defesa. Dessa forma, Marx discorda da tradição da Economia Política ao defender que as relações sociais de produção são históricas e não naturais. O trabalho, para o autor, seria uma atividade imanente do ser humano. O que não quer dizer, no entanto, que a atividade do trabalho fosse, em sua visão, mais importante que qualquer outra atividade humana.

Significaria dizer que para um 13

indivíduo comer, beber, vestir-se e transportar-se seria antes necessário uma interação entre homem e natureza mediada pelo trabalho, que nada mais seria a prática de transformação do meio. Portanto, independentemente do modo de produção de uma sociedade (comunismo primitivo, feudalismo, escravismo, capitalismo ou “socialismo realmente existente”) o trabalho nada mais seria que a interação entre ser humano e seu meio físico, atividade primária que possibilite a reprodução de sua existência no planeta. Diferentemente dos economistas clássicos, Marx defendia que o trabalho em uma sociedade burguesa seria produto de um contexto histórico podendo se transformar ao longo do tempo. As relações de trabalho tal como conhecemos, uma relação de contrato salarial estabelecido entre classes sociais distintas (trabalhadores e proprietários dos meios de produção), persistiriam enquanto existisse capitalismo. Florestan Fernandes então afirma que na perspectiva de Marx, os “indivíduos sociais” (seres humanos reais e concretos) substituiriam o homem metafísico da Economia Política inglesa: o homo economicus. Não por coincidência, Marx intitularia seu livro de 1859 de Contribuição à Crítica da Economia Política. Segundo Michael Löwy, em As aventuras de Karl Marx e o barão de Münchhausen (2009), os “clássicos” (fisiocratas, Smith e sobretudo Ricardo) teriam valor científico inegável para Marx. Isso se explica pelo fato de procurarem descobrir as conexões internas das relações de produção burguesa; eram capazes, em uma certa medida, de perceber a realidade por detrás da aparência. Os clássicos reduziriam a renda e os juros a uma parcela do lucro e não a um ganho cuja fonte seria “O Dinheiro” ou “A Terra”. Sem embargo, Michael Löwy coloca a seguinte questão: de onde viria o próprio lucro? Semelhante questão não proposta nem por Smith nem Ricardo, portanto, ficaram a meio caminho. De outro lado, Löwy pondera que os clássicos reconheceram e exprimiram contradições da realidade, o que lhes permitiu reconhecer, até um certo ponto, o processo real7 FLORESTAN (2009, p. 25-26) sintetiza sua introdução à 2ª edição da Contribuição da Crítica da Economia Política (impressa pela Expressão Popular), apontando quatro grandes 7

“Os “vulgares” – Malthus, McCulloch, J. B. Say, Senior etc. -, pelo contrário, não fizeram nada mais que dogmatizar, “pedantizar” e proclamar como verdades eternas as concepções cotidianas (banais, autossufucientes e limitadas) dos agentes da produção capitalista. Em outros termos, eles ficaram no nível da aparência, da superfície imediata das coisas; por exemplo, eles defendem com obstinação a tese banal e superficial segundo a qual o Capital éa fonte dos juros, a Terra da renda e o Trabalho do salário – tese que corresponde evidentemente a tesa das classes dominantes. Além disso, tendem a negar as contradições do capitalismo ou a menos demonstrar que estas contradições não são senão aparentes.” In: LÖWY, M. As Aventuras de Karl Marx e o Barão de Münchhausen: marxismo e positivismo na sociologia do conhecimento. São Paulo: Cortez, 9ª edição, 2009.

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contribuições advindas do materialismo histórico. São elas:

1º) as condições em que a generalização é legítima: as leis sociais e econômicas só são válidas para determinadas formas sociais e durante um período determinado de seu desenvolvimento; 2º) a noção de determinismo: existe regularidade nos fenômenos sociais, mas a vontade humana intervém nos acontecimentos históricos – só na natureza ocorre o inevitável; em o 18 Brumário de Luís Bonaparte escreveu a este respeito: “os próprios homens fazem a sua história, mas não a fazem arbitrariamente, e sim em certas condições determinadas”; 3º) a noção de interdependência dos fatos sociais: os fatos sociais articulam-se entre si por conexões íntimas; a antiga noção de consensus [consenso – latim] de Augusto Comte recebe uma formulação mais objetiva: “o resultado a que chegamos não é que a produção, a distribuição, a troca, o consumo são idênticos, mas que todos eles são membros de uma totalidade, diferenças numa unidade”; 4º) existência de fatores dominantes: um fator desempenha a função de fator dominante – a produção nas modernas sociedades capitalistas – atuando sobre os demais fatores em termos de “relações recíprocas determinadas”

A riqueza do método de Marx está em pautar que as relações sociais entre os homens são contraídas involuntariamente e sempre admitindo a existência de um fator determinante nessas relações: a produção material nas modernas sociedades capitalistas. A partir da revisão crítica que faz na sua Contribuição à Crítica da Economia Política (1859), Marx conclui que as relações jurídicas, bem como as formas do Estado, não podem ser explicadas por si mesmas nem pela chamada evolução geral do espírito humano; essas relações, para ele, teriam ao contrário, suas raízes nas condições materiais de existência. Disto, resume da seguinte forma o resultado geral a que chegou:

Na produção social da própria existência, os homens entram em relações determinadas, necessárias, independente da sua vontade; essas relações de produção correspondem a um grau determinado do desenvolvimento de suas forças produtivas materiais. A totalidade dessas relações de produção constitui a estrutura econômica da sociedade, a base real sobre a qual se eleva uma superestrutura jurídica e política e à qual correspondem formas sociais determinadas de consciência. O modo de produção da vida material condiciona o processo de vida social, política e intelectual. Não é a consciência dos homens que determina o seu ser; ao contrário, é o seu ser social que determina sua consciência. (MARX, 2008, p.47)

Assim, reitero que a análise do trabalho e da produção material da vida constitui-se como um passo inicial no método materialista histórico. Não há possibilidades de se pensar a relação humano-natureza ou sujeito-objeto sem o elemento que origina esta relação. Isso não quer dizer, todavia, que as outras atividades humanas estejam em um patamar inferior ao do trabalho. Marx apenas pressupõe que excluída a atividade do trabalho qualquer objetivação seria uma impossibilidade concreta. Parafraseando o autor, o ser-humano transforma-se a si mesmo quando interage com a natureza, da mesma forma que adquire experiências e 15

conhecimentos que possibilitam que essa interação se recoloque em um patamar superior: o processo de desenvolvimento das forças produtivas. Nas palavras de Marx e Engels: “a soma das forças produtivas acessíveis ao homem condiciona o estado social” (MARX e ENGELS, 2007, p.34), ou seja, o somatório das forças de produção constitui a estrutura de uma sociedade. Em seu prefácio da Contribuição à Crítica da Economia Política, Marx defende que as relações que os homens estabelecem com os fins de reprodução da vida humana são a base das leis e do Estado político a que se submetem – na superestrutura ideológica. Isso não significa, entretanto, que a superestrutura seja um reflexo imediato de suas bases. Isso equivaleria pensar a relação dessas duas dimensões de forma determinista - uma via de mão única em que produtos/elementos da superestrutura apareceriam como resultados passivos das bases econômicas – o que é característica de um marxismo vulgar. Tratando-se de lógica dialética, esta superestrutura não seria um mero resultado da base material. A superestrutura daria, ela própria, os contornos definitivos a esta base, onde o desenvolvimento histórico se apresentaria num processo contínuo de transformação (BORJA, 2013).

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1.2 – Totalidade, Historicidade e Ideologia Em concordância com o filósofo húngaro György Lukàcs, o sociólogo e filósofo francês Lucien Goldmann (também notório marxista) compreende que as diferentes partes da realidade social devem ser reconstituídas e conformadas dentro de uma mesma totalidade. Isso significa que não se pode compreender nenhum elemento social de forma isolada ou alheia ao seu conjunto. Desse modo, tamanha impossibilidade equivale pensar o fenômeno tropicalista desprendido da economia burguesia de seu tempo – o que seria pensar o campo cultural e o econômico como esferas autônomas e alheias entre si. Segundo Goldmann, a compreensão acurada de determinada parte só seria possível reintegrando-a ao todo, havendo uma prioridade lógica do todo sobre a dinâmica interna de cada parte considerada isoladamente. Parece mais correto começar pelo que há de concreto e real nos dados; assim, pois, na economia, pela população, que é a base e o sujeito de todo o ato social da produção. Todavia, bem analisado, este método seria falso. A população é uma abstração se deixo de lado as classes que a compõem. Essas classes são, por sua vez, uma palavra sem sentido se ignoro os elementos sobre os quais repousam, por exemplo: o trabalho assalariado, o capital etc. Estes supõem a troca, a divisão do trabalho, os preços etc. O capital, por exemplo, não é nada sem trabalho assalariado, sem valor, dinheiro, preços etc. Se começasse, portanto, pela população, elaboraria uma representação caótica do todo e, por meio de uma determinação mais estrita, chegaria analiticamente, cada vez mais, a conceitos mais simples; do concreto representado chegaria a abstrações cada vez mais tênues, até alcançar as determinações mais simples. Chegando a este ponto teria que fazer a viagem de modo inverso, até dar de novo com a população, mas desta vez não com uma representação caótica de um todo, porém com uma rica totalidade de determinações e relações diversas. (MARX, 2008, p.258)

Como destaca Lukàcs, o mais importante do método desenvolvido por Marx não é a predominância do elemento econômico em sua análise, mas sim buscar apreender a totalidade do processo de desenvolvimento histórico em suas múltiplas características: Marx e Engels jamais negaram a relativa autonomia do desenvolvimento dos campos particulares da atividade humana (direito, ciência, arte etc.); jamais ignoram, por exemplo, o fato de que um pensamento filosófico, singularmente considerado, ligar-se a outro pensamento filosófico que o precedeu e do qual ele é um desenvolvimento, uma correção, uma refutação etc. Marx e Engels negam apenas que seja possível compreender o desenvolvimento da ciência ou da arte com base exclusivamente, ou mesmo principalmente, em suas conexões imanentes. Tais conexões imanentes existem, sem dúvida, na realidade objetiva, mas só como momentos do tecido histórico, como momentos do conjunto do desenvolvimento histórico, no interior do qual, no meio do intrincado processo de interações, o fato econômico (ou seja, o desenvolvimento das forças sociais produtivas) assume o papel principal. (LUKÁCS, 2009, p.88-89)

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Isso quer dizer que a essência da metodologia do materialismo histórico de Marx está em evidenciar a historicidade não só das partes como também a totalidade que as compreende. O modo de produção material é histórico em uma sociedade, assim como a produção de cultura. No livro Convergências – poesia concreta e tropicalismo (1986), Lúcia Santaella diz que a dimensão cultural não circula “nas nuvens etéreas das ideias”. Estaria inexplicavelmente conjugada às outras duas grandes dimensões do social: a economia e a política. Dependeria, portanto, de meios materiais (econômicos) para a circulação de seus produtos. Conforme a autora, a dimensão cultural estaria sujeita à apropriação política dos detentores dos meios que, em sociedades de classe buscam colocar (deliberada ou inconscientemente) a produção cultural a serviço de seus interesses de classe. Da mesma forma que Lukàcs e Goldmann, Santaella recusa a ideia da superestrutura como reflexo decorativo ou ilustrativo do econômico e político. Estes seriam também dialeticamente determinados pela produção cultural. Nas palavras da autora:

Não foi necessário muito tempo, sabemos, para que a indústria se desse conta de que ciência e arte podiam ser forças produtivas. Gradativa e crescentemente, a produção de conhecimentos científicos foi sendo submetida às mesmas divisões do trabalho a que estava sujeita a produção de qualquer outra mercadoria. Não foi necessário muito tempo para que as forças criadoras dos agentes sociais fossem envolvidas nas complexas engrenagens da indústria cultural. (SANTAELLA, 1986, p.10)

Frisa, no entanto, que os processos culturais não têm uma eficácia meramente instrumental como qualquer outro tipo de produção. A produção de cultura, segundo a autora, teria um diferencial: agir decisivamente na conformação da luta entre agentes coletivos – propriedade que estaria além da produção de subsistência, lucro e mais-valor. Pode-se então dizer que a Tropicália, objeto deste estudo, somente se concretizou nas possibilidades matérias de seu contexto espaço-temporal. Não se pode dizer no entanto que a Tropicália, sob a forma de mercadoria (disco, show, publicidade, programas de TV), fosse somente pra “reciclar e usar”, como diria Tom Zé. Diferentemente de qualquer outro bem, o produto cultural produz ideia, imaginário, consenso, dissenso. Com efeito, a agencia de alguma forma a esfera econômica. A respeito dessa relação entre dimensão cultural e econômica, Michael Löwy defende a ideia de que todo conhecimento e interpretação da realidade social estão ligados, direta ou 18

indiretamente, a uma perspectiva global socialmente condicionada. A economia seria, por exemplo, um condicionamento. No entanto, chama atenção para aquilo denomina visão social de mundo. Explica em metáfora:

(...) a verdade objetiva sobre a sociedade é antes concebida como uma paisagem pintada por um artista e não como uma imagem independente do sujeito; e que, finalmente, tanto mais verdadeira será a paisagem, quanto mais elevado o observatório ou belvedere onde está situado o pintor, permitindo-lhe uma vista mais ampla e de maior alcance do panorama irregular e acidentado da realidade social. (LÖWY, 2009, p.17)

A visão social de mundo para Löwy nada mais seria que a visão do mundo social, isto é, de um conjunto relativamente coerente de ideias sobre o ser humano, a sociedade, a história, e sua relação com a natureza. Ademais, esta visão de mundo estaria ligada a certas posições sociais: aos interesses materiais e políticos de certos grupos ou classes sociais. Nesse sentido, Löwy defende que as visões de mundo podem ser ideologias, utopias, ou mesmo combinar elementos ideológicos com elementos utópicos. Argumenta que uma mesma visão de mundo pode ter um caráter utópico num determinado momento histórico e posteriormente adquirir um caráter plenamente ideológico. Adoto, com efeito, o conceito de ideologia – a falsa consciência - tal como elaborado por Marx: As ideias da classe dominante são, em cada época, as ideias dominantes, isto é, a classe que é a força material dominante da sociedade é, ao mesmo tempo, sua força espiritual dominante. A classe que tem a sua disposição os meios de produção material dispõe também dos meios da produção espiritual, de modo que a ela estão submetidos aproximadamente ao mesmo tempo o pensamento daqueles aos quais faltam os meios de produção espiritual. As ideias dominantes não são nada mais do que a expressão ideal das relações materiais dominantes apreendidas como ideias, portanto, são a expressão das relações que fazem de uma classe dominante, são as ideias de sua dominação. (MARX e ENGELS, 2007, p.47)

Em consonância com o raciocínio de Marx, LÖWY(2009, p.14) defende ideologia como “uma forma de pensamento orientada para a reprodução da ordem estabelecida”. Dessa forma, a manifestação cultural, um produto cultural, pode muito bem dispor de consciência ou falsear a realidade da qual faz parte.

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1.3 A Indústria Cultural De acordo com Douglas Kellner, teórico estadunidense de Comunicação, a Escola de Frankfurt inaugurou, nos anos 1930, o estudo crítico da comunicação combinando economia política dos meios de comunicação, análise cultural dos textos e estudos de recepção pelo público dos efeitos sociais e ideológicos da cultura e das comunicações de massa8. Traria de inédito da cultura de massa situando-a em seu contexto histórico-social. No artigo A indústria Cultural - publicado em 1947 no livro Dialética do Esclarecimento - Adorno e Horkheimer elaboram o conceito de indústria cultural preferindoo ao termo cultura de massas. Defendem a ideia de que aquilo que em seus esboços denominavam cultura de massas não era de fato criação espontânea e autêntica das massas, e sim conteúdos produzidos por grandes conglomerados industriais e direcionados para esse público com fins de mercado. Defendem, pois, a ideia de que todas as produções culturais de massa no contexto da produção industrial sofrem o processo de estandardização e padronização. Nessa mesma linha de raciocínio, argumentam que a indústria cultural, por meio de todo seu aparato técnico, expressa a visão social de mundo da classe burguesa, ou seja, dos detentores dos meios de produção. A expressão “indústria” não deve ser tomada ao pé da letra, como processo de produção em sentido estrito. O termo significa para Adorno e Horkheimer a estandardização do produto cultural. Nesse sentido, defendem a ideia de que toda sorte de manifestação da indústria cultural seria idêntica sob o domínio do monopólio. Em suas próprias palavras: (...) a cultura contemporânea confere a tudo um ar de semelhança. O cinema, o rádio, as revistas constituem um sistema. Cada sistema é coerente em si mesmo e o são em conjunto. Até mesmo as manifestações estéticas de tendências políticas opostas entoam o mesmo louvor do ritmo de aço. (...) O que não se diz é que o terreno no qual a técnica conquista seu poder sobre a sociedade é o poder que os economicamente mais fortes exercem sobre a sociedade. A racionalidade técnica é hoje a racionalidade da própria dominação. Ela é o caráter compulsivo da sociedade alienada de si mesma. (ADORNO & HORKHEIMER, 2009, p. 99 - 100).

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Ver KELLNER, D. A Cultura da Mídia – Estudos Culturais: A identidade política entre o moderno e o pós moderno. Bauru: EDUSC, 2001.

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Por essa razão, ambos os autores não vislumbram qualquer conteúdo de oposição e crítica social nos produtos da indústria cultural, já que o meio através do qual se constituem coopta de antemão a mensagem. Assim, tomando como base o raciocínio de Adorno e Horkheimer, a crítica social veiculada por monopólios culturais seria inautêntica, pois estaria subjugada pela posição política da indústria e seus donos: a de legitimação ideológica das sociedades capitalistas existentes. Portanto, não posso deixar de observar nesta ideia o referencial marxista de luta de classes: de dominação exclusiva da classe proprietária sobre a “cultura do povo” - como gostaria de fazer crer a indústria cultural. “A cultura sempre contribuiu para domar os instintos revolucionários, e não apenas os bárbaros. A cultura industrializada faz algo a mais. Ela exercita o indivíduo na condição sob a qual ele está autorizado a levar essa vida inexorável”.(ADORNO, T. & HORKHEIMER, M., 2006, p.126) . Nesse sentido, as massas seriam o público consumidor da indústria cultural e não seu sujeito produtor. Assim, sobre essa coesa unidade com que se configura o sistema cultural, Adorno e Horkheimer justificam-na pelo círculo de manipulação que opera e por aquilo que denominam necessidade retroativa, explicam: O fato de milhões de pessoas participarem dessa indústria imporia métodos de reprodução que, por sua vez, tornam inevitável a disseminação de bens padronizados para a satisfação de necessidades iguais. O contraste técnico entre poucos centros de produção e uma recepção dispersa condicionaria a organização e o planejamento pela direção. Os padrões teriam resultado originalmente dos consumidores: eis porque são aceitos sem resistência. De fato, o que o explica é o círculo da manipulação e da necessidade retroativa no qual a unidade do sistema se torna cada vez mais coesa. (ADORNO&HORKHEIMER, 2009, p.100)

A música, o cinema e os diversos conteúdos transmitidos pelo rádio e pela televisão, sendo componentes do todo social, não estariam isolados e muito menos alheios a outros componentes da totalidade orgânica. Partindo então dos pressupostos filosóficos do materialismo histórico, esses autores buscam, primeiramente, uma leitura da totalidade que compreende o fenômeno cultural, para então situá-lo em relação ao todo, e deste movimento estabelecem um ponto de partida analítico. O movimento inicial se faz do todo para as partes. Veem, pois, a produção cultural como parte do processo produtivo. Em síntese, Adorno e Horkheimer qualificam o efeito da indústria cultural como antiiluminista. Nela, o iluminismo(Aufklärung), que ambos classificam como o progressivo domínio técnico da natureza, torna-se o engano das massas. Assim, a indústria cultural nada 21

mais seria que o meio para sujeitar as consciências.

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_CAPÍTULO 2_

O MODELO DO DESENVOLVIMENTO BRASILEIRO: A MANUTENÇÃO DO ARCAICO EM PROMOÇÃO DO MODERNO

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“outra luz inesperada sobre a aventura dos anos 60, já que esse período – que só é considerado remoto e datado por aqueles que temiam os desafios surgidos então, e que ainda os temem por os saberem presentes demais em sua nova latência.” (Caetano Veloso) “O desenvolvimento é uma viagem com mais náufragos do que navegantes.” (Eduardo Galeano)

Neste capítulo, tratei do modelo de desenvolvimento da economia brasileira verificado entre os fins da década de 1950 e a primeira metade da década de 1970. A partir da leitura de A crítica da razão dualista – o problema do ornitorrinco (2013) de Francisco de Oliveira, identifiquei sua gênese no governo do presidente Juscelino Kubistchek (1956-1962) e seu ápice no “milagre econômico” (1968 e 1973) da ditadura. Nesse recorte espaço-temporal, desenvolveu-se no Brasil um parque industrial de bens de consumo duráveis. No bojo desse processo, destaquei a ascensão da indústria fonográfica (e sua transnacionalização). Discuti esse modelo de desenvolvimento com base nas contribuições teóricas de Tavares e Serra em Más allá del estancamento: uma discusión del estilo de desarollo reciente (1970), de Fernando Henrique Cardoso e Enzo Faletto em Dependência e Desenvolvimento na América Latina (1970), de Francisco de Oliveira em Crítica da Razão Dualista (1972) e, por fim, de Celso Furtado em O Mito do Desenvolvimento Econômico (1974). Além destas referências, aproveitei-me dos trabalhos de Claudio Salm, Marco Antônio da Rocha e Pablo Bielschowsky presentes no livro Ecos do Desenvolvimento: uma história do pensamento econômico brasileiro (2011) e de André Villela e Jennifer Hermann presentes em Economia Brasileira Contemporânea: 1945-2004 (2005). Ao longo da década de 1960, Furtado introduziu o debate do modelo de desenvolvimento em obras como: Desenvolvimento e Subdesenvolvimento (1961), Dialética do Desenvolvimento (1964) e Desenvolvimento e Estagnação na América Latina: um enfoque estruturalista (1969). Tomando como base este último, Tavares e Serra desconstruíram em “Más Allá” a ideia de tendência à estagnação do desenvolvimento capitalista no Brasil e classificaram suas estruturas arcaicas como pressupostos de um modelo de desenvolvimento desigual que assumia trajetória pujante. No âmbito das relações internacionais, Cardoso e Faletto analisaram a internacionalização do mercado interno brasileiro, da mesma forma que Furtado o identificou como um satélite cultural dos países centrais. Por fim, Chico de 24

Oliveira constrói sua visão de um modelo de desenvolvimento partindo da crítica ao dualestruturalismo. Ao contrário da ideia de “Dois Brasis” - o arcaico e o moderno -, identificou as estruturas arcaicas e modernas como partes integrantes de uma mesma totalidade: o desenvolvimento do modo de produção capitalista de um só Brasil. Tamanha contradição do modelo econômico brasileiro engendrou, na passagem das décadas de 1960 e 1970, os debates em análise neste capítulo cujas palavras de ordem eram: “desenvolvimento auto-sustentado”, “internalização dos centros decisórios”, “integração nacional”, “planejamento”, “interesse nacional”. Verifiquei, assim, o caráter nacional e a contradição entre arcaico e moderno como objetos primordiais dos intelectuais de esquerda do período assinalado. Esses mesmos elementos contraditórios, inerentes ao modelo de desenvolvimento capitalista brasileiro, se conformam no campo da expressão cultural na Tropicália: a exacerbação do Brasil como um absurdo, por meio de suas alegorias representativas de um Brasil arcaico em convivência com a modernização econômica, assim definida por Celso Furtado (1974, p.81): “processo de adoção de padrões de consumo sofisticados (privados e públicos) sem o correspondente processo de acumulação de capital e progresso nos métodos produtivos”.

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2.1 – O parque industrial nos Anos JK: a gestação de um modelo de desenvolvimento econômico Em 1956, Juscelino Kubistchek foi eleito Presidente do Brasil e teve como principal plataforma o destacado Plano de Metas cujo slogan era 50 anos em 5 . Tal política adotava como prioridade a transformação estrutural da economia brasileira com a finalidade de consolidar a industrialização, sobretudo de bens de consumo duráveis. Ademais, a aceleração necessária para o cumprimento do Plano de Metas advinha, segundo Francisco de Oliveira (2013, p.73), de uma associação com o capital estrangeiro - sobretudo no fornecimento de tecnologias que ainda não existiam no Brasil e que só eram então produzidas nos países capitalistas desenvolvidos. Como principal ambição do plano, destaco a construção de Brasília presente em metáfora na música Tropicália (1968) de Caetano Veloso9: eu organizo o movimento eu oriento o carnaval eu inauguro o monumento no planalto central do país viva a bossa-sa-as viva a palhoça-ça-ça-ça

Nos anos do Presidente Bossa-Nova as prioridades estavam voltadas, segundo OLIVEIRA (2013, p.75), para a “definitiva conversão do setor industrial e das suas empresas em unidades-chave do sistema, a implantação dos ramos automobilístico, construção naval, mecânica pesada, cimento, papel e celulose, ao lado da triplicação da capacidade da siderurgia” e, em segundo plano, estava relegada a estabilidade macroeconômica e o controle das contas públicas. Como efeito desta política, aponta os seguintes resultados:

“A referência a “planalto central do país” continua a mesma, como uma clara alusão a Brasília (o moderno) e ao interior (o sertão, o arcaico): o luxo no lixo e a carnavalização do monumental; a bossa e a palhoça cada uma contendo a outra – a bossa é o novo jeito brasileiro, que, no entanto, pressupõe o velho e o contém; a palhoça é o velho que pressupõe e contém o novo.” In: FAVARETTO, C. Tropicália Alegoria Alegria. Cotia, SP: Ateliê Editorial, 2007. 9

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A aceleração do período Kubitschek não pode ser menos que exagerada, e suas repercussões pronto se materializaram. O coeficiente de inversão – a relação entre a formação de capital e o produto bruto – se eleva de um índice 100 no quinquênio anterior para um índice 122, isto é, em cinco anos, a média anual do coeficiente, comparada com a média anual do quinquênio precedente cresce quase ¼, o que é um esforço digno de nota para qualquer economia. (OLIVEIRA, 2013 p.74)

A partir destes dados, Oliveira questiona como se daria o processo de acumulação de capital num país capitalista subdesenvolvido. Vale ressaltar que, no contexto das relações econômicas internacionais, as políticas externas estadunidenses relacionadas à América Latina eram essencialmente imperialistas. Assim, argumenta que o ambicioso projeto, baseado nas indústrias transnacionais, se ancorou em duas bases de financiamento para fins de sua viabilidade. Primeiramente, a aliança com o capital estrangeiro (tanto como fonte de crédito em divisas, como pela importação de know-how) e, por outra, o aumento da exploração do trabalho (via congelamento de salários) como forma de diminuir os custos de produção do empresariado. FURTADO (1974, p.81) aponta o mesmo caminho em seu O Mito do Desenvolvimento Econômico:

Quanto mais amplo o campo do processo de modernização (e isso não inclui só a forma de consumo civis, mas também as militares) mais intensa tende a ser a pressão no sentido de ampliar o excedente, o que pode ser alcançado mediante expansão das exportações , ou por meio do aumento da “taxa de exploração”, vale dizer, da proporção do excedente no produto líquido.

Embora seja presente a ideia de um pacto de classes entre o operariado urbano10 e as classes dirigentes nos anos pré-1964, Oliveira afirma, que entre os anos de 1958 e 1968 se verifica uma tendência de deterioração do salário mínimo real agravada a partir do ano do Golpe, conforme se observa na seguinte tabela11:

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Os trabalhadores rurais não foram comtemplados nesse pacto. Selecionei, da tabela apresenta por Francisco de Oliveira em A crítica da razão dualista, a evolução dos valores do salário real a partir de 1958 tomando este ano como ano-base. A tabela original compreende o período entre os de 1944 e 1968. (MELLO E SOUZA, A. apud OLIVEIRA, F., [1972] 2013, p.79) 11

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Tabela 1 - Evolução dos valores do salário real (1958-1968)

Ano 1958 1959 1960 1961 1962 1963 1964 1965 1966 1967 1968

ÍNDICES (base - 1958 =100) VARIAÇÃO ANUAL Guanabara São Paulo Guanabara São Paulo 100,0 100,0 75,8 76,3 -24,2% -23,7% 100,0 98,1 31,9% 28,6% 115,3 109,7 15,3% 11,8% 98,1 92,9 -14,9% -15,3% 91,7 85,9 -6,5% -7,6% 88,9 87,2 -3,1% 1,6% 85,3 84,6 -4,0% -3,0% 76,4 73,1 -10,5% -13,7% 74,5 71,8 -2,4% -1,7% 73,9 70,5 -0,9% -1,8% Fonte: Mello e Souza, A.

Com base nos dados expostos, OLIVEIRA (2013, p.80) defende o argumento de que a crescente taxa de exploração do trabalho somente “foi contra-arrestada apenas quando o poder político dos trabalhadores pesou decisivamente”. Embora os anos JK sejam conhecidos como os Anos Dourados e o salário mínimo tenha sido recorde em 1958, os determinantes fundamentais do modelo de desenvolvimento brasileiros – o aumento da relação excedentesalário e protagonismo do capital estrangeiro – estavam sendo afirmados. Nesse sentido, Oliveira defende a ideia da formação das bases de um modelo econômico assentado no aumento da exploração do trabalho e da manutenção de significativo exército industrial de reserva que ganharia novos impulsos e se consolidaria entre os anos de 1968 e 1973. Não se trataria, para o autor, de um modelo econômico “da ditadura” e sim de um aprofundamento de um modelo já existente (em esboço no período pré-Golpe). Vale lembrar que a essência do modelo de desenvolvimento, compreendido no recorte espaço-temporal aqui estudado, era o atendimento das demandas de consumo dos grupos de alta renda que ao invés de importarem passavam a consumir produtos made in Brazil12. Recuperando Furtado (1974), o delineamento do desenvolvimento industrial no Brasil se 12

Lembrando que eram esses últimos estratos da população os maiores beneficiados em renda desse modelo de crescimento. Além da inflação privilegiar os mais ricos, pelo rentismo, em detrimento dos mais pobres. A alta classe média assumia novas ocupações com a implantação do novo corpo industrial. Ou seja, ganhavam os mais abastados e perdiam os trabalhadores. (Cf. OLIVEIRA, [1972] 2013, p.78)

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explica antes pelo comportamento cultural (dependente) de uma classe, motivado por uma ideologia maior e estrangeira: a reprodução do american way of life na república das bananas. Neste modelo, as classes trabalhadoras não constituíam o mercado consumidor da indústria de bens de consumo duráveis. Com salários próximos ao nível de subsistência, acessavam basicamente mercadorias originárias da indústria de bens de consumo nãoduráveis como produtos de alimentação e vestuário. Ademais, mesmo antes do golpe militar, o projeto de industrialização brasileira apresentava de antemão certa ambiguidade na condução de seus centros decisórios: tratava-se, pois, de um projeto de emancipação nacional ou de manutenção da condição de dependência? A industrialização per se - o desenvolvimento das forças produtivas industriais - seria sinônimo de desenvolvimento e soberania econômica nacional? Ao refletir sobre essas questões, OLIVEIRA (2013, p.77) nos diz:

É inegável que se o capital estrangeiro entrou sobretudo nos ramos chamados “dinâmicos” e se esses ramos são os motores da expansão, o capital estrangeiro de certo modo “controla” o processo dessa expansão; por oposição, o capital nacional “controla” menos a economia brasileira que há vinte anos.

Semelhante questionamento informa a tese central de A Revolução Brasileira escrita em 1966 – período central do debate das ideias em tela – do historiador Caio Prado Júnior:

Pelo caminho que vamos seguindo, o processo de industrialização do nosso país, em vez de resultar num decisivo ascenso da economia brasileira, e acentuado ritmo de progresso dos padrões de vida do conjunto da população do país, irá dar simplesmente, como já está sendo o caso, em nova forma, embora mais complexa e menos aparente, de exploração imperialista, a par de outra que vem de longa data e que vem a ser a de um simples fornecedor de matérias-primas e de gêneros alimentares, ao comércio internacional. (PRADO JÚNIOR, C apud ROCHA, M. A.)

Segundo Marco Antônio da Rocha (2011), na base da industrialização brasileira do período JK, está a ideia de que o tratamento dado ao capital estrangeiro deita raízes no processo de formação da burguesia industrial no Brasil: um caráter associativo com outras frações dessa mesma classe burguesa, tanto a de origem nacional quanto a de origem estrangeira. Desta feita, a suposta burguesia nacional13, muito longe de ter uma vocação nacionalista, despontava nesse contexto, dependente do sistema capitalista internacional (Cf. 13

O termo burguesia nacional, no contexto do debate da revolução brasileira, correspondia a ideia de uma burguesia nacional-industrial que seria a vanguarda da revolução burguesa no Brasil em contraposição a burguesia agrário-exportadora cujos interesses estavam em manter o status-quo.

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ROCHA, 2011). Faz-se necessário discorrer nesse momento sobre o protagonismo teórico da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal) nos projetos de industrialização dos países latino-americanos. A Cepal, criada em 25 de fevereiro de 1948 e com sede em Santiago do Chile, postulava que a industrialização era o caminho de superação do estado de subdesenvolvimento destes países. Nesse contexto, Celso Furtado escreve no ano de 1955, e em parceria com o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), o documento Esboço de um programa de desenvolvimento para a economia brasileira no período de 1955 a 1960 que influenciou diretamente o Plano de Metas (1956). As visões de Prado Júnior e, consequentemente, dos pensadores das teorias da dependência eram críticos ao pensamento cepalino. Prado Júnior, na sua Revolução Brasileira, apontou o caráter imperialista da industrialização no Brasil e assim, defendeu que a industrialização per se não resolveria o problema do subdesenvolvimento. Nesse mesmo sentido, a teoria da dependência reforça o caráter imperialista da industrialização no Brasil, porém é contrária à formulação dual-estruturalista – um Brasil dividido em dois modos de produção em conflito: o capitalismo e o pré-capitalismo. Tal visão não era só defendida pelo corpo de economistas da Cepal como também por Prado Júnior. Assim, a teoria da dependência da Escola de Sociologia da USP e do posterior Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap) identificou no Brasil um modo de produção unívoco – o capitalismo – e uma contradição que é inerente ao modelo de desenvolvimento industrial no Brasil: um desenvolvimento pretensamente nacional mas voltado “para fora” e empobrecedor.

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2.2 – Os anos de baixo crescimento: estagnação do modelo ou crise contingente? O período que sucedeu o quinquênio de Juscelino Kubistchek foi marcado por fortes instabilidades decorrentes de um projeto de desenvolvimento econômico – sob coordenação do Estado - ancorado em grande parte no capital estrangeiro e na deterioração do poder de compra dos trabalhadores (engolfado pela inflação). Se de um lado havia uma abrupta mudança estrutural no Brasil – a modernização - de outro existia uma turbulência nos índices macroeconômicos, em grande parte consequência do endividamento, que acentuariam os conflitos distributivos entre as classes sociais. Assim, além das instabilidades econômicas e os anos de baixo crescimento da primeira metade da década de 1960 verificou-se, nesse período, uma série de percalços políticos. Em janeiro de 1961, Jânio Quadros se elege presidente da república pelo pequeno Partido Trabalhista Nacional (PTN) - mas apoiado pela União Democrática Nacional (UDN). No campo econômico, seus principais objetivos eram a estabilização da economia doméstica (por meio de uma política de austeridade) e a recuperação do crédito externo. Pretendia, pois, retomar o crescimento com base nos capitais estrangeiros, oficiais e privados. No entanto, Jânio Quadros, com forte oposição no Congresso Nacional, renuncia em agosto do mesmo ano de 1961 e, em meio a grande turbulência política, assume seu vice João Goulart, que fora eleito vice-presidente de Quadros pelo Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) e que passa então a governar num regime parlamentarista que só se encerraria em 1963. Em linhas gerais, a presidência de João Goulart adotou uma linha de governo com perfil reformista e esquerdizante em meio aos impasses econômicos dos anos de baixo crescimento. Sem lugar à dúvida, as “reformas de base” constituíram a bandeira principal do governo Jango e entre suas principais iniciativas, destaco as seguintes reformas: agrária, bancária, fiscal, urbana, administrativa e universitária. A reforma agrária, carro-chefe das reformas propostas, visava permitir o acesso à terra a milhões de trabalhadores rurais - o que significava, de acordo com o trabalho dos teóricos aqui abordados14, distribuição de renda e ampliação do 14

Ver Crescimento, distribuição de renda e progresso técnico: as controvérsias sobre o padrão de acumulação (2012) de Pablo Bielschowsky e Revolução Brasileira, dualidade e desenvolvimento: do nacional-

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mercado interno brasileiro. A Lei de Remessa de Lucros (Lei nº 4.131, de 3 de setembro de 1962) afastou o capital estrangeiro. Em 1962-1963, cai o investimento e se estanca o crescimento, ao mesmo tempo em que há assustador aumento da taxa de inflação, que vai superar os 50% em 1963. (Cf. SALM, 2011). O que vale ressaltar, de forma esquemática, é que medidas como a distribuição de propriedade rural, o controle da saída de capitais e, em menor parte, o aumento do salário mínimo acima da taxa pré-fixada eram incompatíveis com um modelo de desenvolvimento baseado no aumento da exploração do trabalho e a internacionalização do capital. Por esta razão, Jango encontrou ao longo de seu mandato dificuldades políticas - sobretudo no Congresso Nacional - em implementar a agenda de governo, o que o levou a buscar apoio de diversas agremiações de esquerda pelo Brasil conforme observado nos comícios que fez ao longo do país. Exemplo disso foi o Comício das Reformas que teve lugar no Rio de Janeiro em 13 de março de 1964 e que ficou popularmente conhecido como Comício da Central. Diante desse contexto, acirra-se a luta de classes no Brasil: na mão direita, a conspiração militar contra Goulart e a Marcha pela Família com Deus pela Liberdade e, no pulso esquerdo, um bang-bang nas ocupações de terras e propriedades estrangeiras promovidas por movimentos de trabalhadores rurais. As reformas de base alarmavam as forças conservadoras no país bem como a diplomacia norte-americana. O caráter socializante do governo Jango combinado a um contexto de instabilidade econômica preparava as forças da reação que viriam instituir em 31 de março de 1964 o Golpe Militar. Nessa primeira metade da década de 1960, observou-se no Brasil um esgotamento do desenvolvimento industrial apoiado na substituição de importações. A respeito disso, prevaleceram nesse período, construções de modelos teóricos de corte estagnacionista em certos meios intelectuais e políticos conforme verificado em Auge e declínio do processo de substituição de importações no Brasil (1963) de Maria da Conceição Tavares e em trabalhos de Celso Furtado – com destaque para Desenvolvimento e subdesenvolvimento (1961) e Subdesenvolvimento e Estagnação na América Latina (1966). Acreditava-se, portanto, que a economia brasileira, assim como outras economias latinoamericanas, encontrava-se ante uma situação de estagnação estrutural no médio e no longo prazo (Cf. TAVARES & SERRA, 2000). Em síntese, defendia-se a ideia de que as condições estruturais dos países latino americanos eram estanques ao desenvolvimento capitalista nessas desenvolvimentismo à Escola de Sociologia da USP (2012) de Marco A. Rocha presentes em Ecos do Desenvolvimento: uma história do pensamento econômico brasileiro (2012), coordenado por Maria Malta.

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regiões. Nesse sentido, as economias latino-americanas ao conservarem suas estruturas arcaicas necessariamente não escapariam da condição de estagnação. No entanto, a tese que aqui se esboça defende a hipótese de que a crise do processo substitutivo representa, no essencial, os inícios da mudança de configuração de um mesmo modelo de desenvolvimento que mantém as suas características fundamentais: a priorização da indústria de bens de consumo duráveis e a manutenção, em um primeiro momento, de um mercado consumidor restrito; além de se aproveitar da manutenção de traços estruturais arcaicos como a exclusão social já mencionada e a concentração de terra. A transição se consolidaria mais tarde no fortalecimento da associação do Estado (ditadura) e empresas transnacionais na impulsão do investimento interno, precisamente no período entre os anos de 1968 e 1973. A taxa média de crescimento de 4% ao ano do período 1962-1967 é baixa se comparada ao resultado dos anos do chamado “milagre” (1968-1973). Isso fica evidente na seguinte tabela15: Tabela 2 - Taxas médias de crescimento anual do PIB (1950-1980)

1950-1955 6,7% 1956-1961 8,2% 1962-1967 4,0% 1968-1973 12,2% 1974-1980 7,1% Fonte: IBGE

A transição do modelo não se resultou, todavia, apenas de fatores econômicos. Mudanças institucionais e políticas imprimiram diretamente seus traços nos contornos do modelo de desenvolvimento brasileiro em análise. O golpe civil-militar de 1964 e nova configuração institucional do Brasil em um regime de governo autocrático foram determinantes na maturação do modelo, nos anos do “milagre”, sobretudo no que diz respeito ao seu caráter excludente.

15

Ver SALM, C. O debate sobre a tendência à estagnação. In: MALTA, M. (Org.) Ecos do Desenvolvimento: uma história do pensamento econômico brasileiro. Rio de Janeiro: Ipea: Centro Internacional Celso Furtado de Políticas para o Desenvolvimento, 2011.

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O Estado brasileiro que emerge com o golpe de 1964 não teria maiores compromissos com a chamada burguesia nacional e disporia de maior grau de liberdade para estabelecer novas formas de associação com o capital estrangeiro em setores estratégicos. Ao empresariado nacional, no novo esquema, restava um papel secundário, cabendo ao Estado prover as multinacionais de insumos e infraestrutura. Estado e multinacionais se associam em grandes empreendimentos (mineração, petroquímica, transportes, energia), o que vai configurar um novo estilo de desenvolvimento capitalista no Brasil, cujos traços principais foram o maior peso, a complementaridade mais ampla de seus setores de ponta e a mais visível “solidariedade” entre o Estado e o capital estrangeiro no que tange aos investimentos mais dinâmicos. (SALM, C., 2011, p.183)

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2.3 – O Golpe de 1964 e a consolidação de um modelo econômico excludente O período de 1964-1973 compreendeu os mandados: do marechal Humberto Castello Branco (1964-1966), dos generais Arthur da Costa e Silva (1967-1969) e Emílio Garrastazu Médici (1969-1973). A homogeneidade de tal período é marcada pela continuidade de um modelo político ditatorial e de um modelo comum de desenvolvimento econômico firmado por uma aliança entre Estado e capital estrangeiro. O modelo de política econômica inaugurado fora formulado por economistas de perfil ortodoxo: Octávio Gouveia de Bulhões e Roberto Campos – respectivamente ministros da Fazenda e Planejamento no mandato de Castello. Portanto, diante de um contexto de instabilidade econômica de alta generalizada nos índices de preços, a ditadura lança o Plano de Ação Econômica do Governo (PAEG), elaborado por Campos e Mário Henrique Simonsen, cujo principal objetivo era o combate à inflação.

No que tange ao desempenho da economia, os anos 1964-73 abrigaram duas fases distintas. A primeira, de 1964 a 1967, caracterizou-se como uma fase de ajuste conjuntural e estrutural da economia, visando ao enfrentamento do processo inflacionário, do desequilíbrio externo e do quadro de estagnação econômica do início do período. Os anos de 1964-67 foram marcados pela implementação de um plano de estabilização de preços de inspiração ortodoxa – o Plano de Ação Econômica do Governo (Paeg) – e de importantes reformas estruturais – do sistema financeiro, da estrutura tributária e do mercado de trabalho. Nesse período, a economia brasileira teve um comportamento do tipo stop and go, embora o crescimento médio do PIB tenha sido razoável (4,2% ao ano). (HERMANN, 2005, p.70)

Os militares buscaram, com esse plano de austeridade, conter o poder de compra da classe trabalhadora através de uma política de arrocho salarial tanto na esfera pública quanto no setor privado, conforme o diagnóstico de “inflação de demanda” prescrito no plano16.

16

Adotou-se uma política de correção salarial orientada pelo critério da manutenção do salário médio verificado no biênio anterior acrescido da porcentagem correspondente ao “aumento da produtividade”. De acordo com Hermann, essa regra foi aplicada à administração pública e em 1966 estendeu-se ao setor privado. Num primeiro momento, os salários eram corrigidos de acordo com a média dos dois anos anteriores, num segundo momento – precisamente 1965 – muda-se a regra de correção e os salários passam a ser corrigidos de acordo com ainflação prevista pelo PAEG. Mesmo com a mudança de regras, o resultado das políticas foi o mesmo: a perda real do poder de compra das classes trabalhadoras. Ver HERMANN, J. Reformas, Endividamento Externo e o Milagre Econômico (1964-73). In: André Villela; Fabio Giambiagi; Jennifer Hermann; Lavínia Barros de Castro. (Org.). Economia Brasileira Contemporânea: 1945/2004. 1ed. Rio de Janeiro: Campus, 2005.

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Além disso, as reformas tributárias e financeiras presentes no PAEG pretendiam diminuir o déficit público e a emissão monetária, consolidando e aprofundando as bases de um modelo de desenvolvimento econômico excludente. A reforma tributária, de caráter regressivo, privilegiava os impostos indiretos em lugar da tributação direta, fazendo com que pobres pagassem proporcionalmente mais impostos que os ricos. Os objetivos dessa reforma seriam elevar a arrecadação do governo e racionalizar o sistema tributário, eliminando impostos em cascata e impostos de pouca funcionalidade econômica, como os impostos do selo. Entre as principais medidas, incluiu-se a substituição do imposto estadual sobre vendas, incidente sobre o faturamento das empresas, pelo Imposto sobre Circulação de Mercadorias (ICM), incidente sobre o valor adicionado em cada etapa de comercialização do produto. Além disso, foram criados mecanismos de reajuste (de acordo com a inflação passada) dos impostos pagos em atraso, o que contribuiu para a elevação da arrecadação real do governo.17. A reforma do Sistema Financeiro Brasileiro (SBF), por seu turno, além de favorecer a concentração de renda, ampliou o grau de abertura da economia ao capital externo, de risco (investimentos diretos) e, principalmente, de empréstimo. Primeiramente, foram eliminadas restrições à entrada de capitais estrangeiros por meio da adoção de diversos incentivos às exportações. A abertura financeira era vista como uma condição capaz de contribuir para o aumento da concorrência e eficiência do SFB uma vez posto o problema da escassez de poupança como causa do baixo nível de investimento agregado: um diagnóstico comum entre a visão oficial (governo) e Furtado18. Um efeito de curto prazo desta reforma foi a criação do Banco Central e a instituição de um mercado de títulos de dívida pública no país (Obrigações Reajustáveis do Tesouro Nacional, ORTN), que passaria a financiar a partir de 1965 os déficits do governo, antes financiados por emissão monetária19. Isto posto, o governo buscou 17

Ver VELOSO, F. A.; VILLELA, A.; GIAMBIAGI, F.. Determinantes do "milagre" econômico brasileiro (1968-1973): uma análise empírica. Rev. Bras. Econ., Rio de Janeiro , v. 62, n. 2, p. 221-246, June 2008 . Available from . access on 04 Aug. 2016. http://dx.doi.org/10.1590/S003471402008000200006. 18 O diagnóstico de Furtado a respeito da tendência à estagnação, dos anos 1962-1967, e suas supostas causas distribuição de renda e escassez de poupança – serão analisadas na próxima sessão deste capítulo. “Além disso, as elevadas taxas de inflação, combinadas com a lei da usura, que proibia juros nominais superiores a 12% a.a., haviam desestimulado a aplicação de poupanças em títulos de renda fixa, como depósitos a prazo, debêntures e títulos do governo. Em função disso, os déficits fiscais eram financiados quase integralmente por emissões monetárias. Com a criação do Banco Central (Lei 4.595 de 1964) e a instituição do instrumento da correção monetária, aplicada aos títulos públicos representados pelas Obrigações Reajustáveis do Tesouro Nacional (ORTN), ocorreu um grande aprimoramento institucional da condução da política monetária e 19

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criar condições de financiar investimentos públicos (além de focar-se no problema da inflação). Promoveu-se, assim, a abertura ao exterior por meio da eliminação de restrições à entrada de capitais estrangeiros e mediante a adoção de diversos incentivos às exportações. Portanto, as reformas do PAEG – fiscal e financeira – marcam, inicialmente, a transição para os anos de “milagre” no modelo de desenvolvimento brasileiro. Nessa segunda etapa do período econômico da ditadura, passada a fase de estabilização e de reformas institucionais, seriam priorizadas políticas voltadas para o crescimento e desenvolvimento com a finalidade de gerar “endogenamente” as fontes de expansão dessa economia. Além disso, é firmada a associação entre Estado e empresas transnacionais em grandes empreendimentos. Reitero, a partir da análise de Oliveira, que a política seletiva do PAEG distinguiu, antes de mais nada, as classes sociais, privilegiando as necessidades de produção de mais-valor. Portanto, ela deu razão à classe empresarial em detrimento das demandas das classes subalternas.

do financiamento dos déficits públicos. Enquanto em 1963 apenas 14% do déficit federal era financiado por títulos governamentais, em 1966 essa parcela elevou-se para 86%. Outra medida foi a criação do Sistema Financeiro da Habitação (SFH), formado pelo recém-criado Banco Nacional da Habitação (BNH), pela Caixa Econômica Federal (CEF), pelas caixas econômicas estaduais, sociedades de crédito imobiliário e associações de poupança e empréstimo (APE). Também foi criado um novo mecanismo de poupança compulsória, o Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS), que se tornou uma importante fonte de recursos para o SFH. Adicionalmente, foram oferecidos diversos incentivos para a criação de sociedades de crédito e financiamento, voltadas para o crédito direto ao consumidor. Um objetivo importante da reforma financeira foi criar um segmento privado de longo prazo no Brasil, através da criação dos bancos de investimento e estímulos ao mercado de capitais e, em particular, ao mercado de ações.” In VELOSO, F. A., VILLELA, A.; GIANBIAGGI, F. em obra supracitada.

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2.4 – Recuperação econômica e o “Milagre” (1968-1973) A partir do ano de 1968, a economia brasileira inaugurou uma fase de crescimento vigoroso que se estendeu até o ano de 1973. Este período ficou popularmente conhecido como “milagre econômico”. Nesse período, o PIB brasileiro cresceu a uma taxa média da ordem de 11% ao ano, liderado pelo setor de bens de consumo durável e, em menor escala, pelo de bens de capital. A taxa de investimento, que ficou estagnada em torno de 15% do PIB no período 1964-67, subiu para 19% em 1968 e encerrou o período do “milagre” em pouco mais de 20%. O crescimento do período de 1968-73 retomou e complementou o processo de difusão da produção e consumo de bens duráveis, iniciado com o plano de metas. (HERMANN, 2005, p.82)

No decorrer desse mesmo ano de 1968, foi lançado o Plano Estratégico de Desenvolvimento (PED) com o fim de promover o crescimento de forma mais arrojada sem, contudo, deixar de controlar os índices de preços.20 Entre as principais prioridades do plano destaco: a estabilização gradual dos preços sem o rigor de metas; o fortalecimento das empresas privadas; a consolidação da infraestrutura a cargo do governo e a ampliação do mercado interno com fins de sustentação da demanda por bens de consumo (principalmente os duráveis). A mudança de ênfase na política monetária e inflacionária, introduzida pelo ministro Delfim Netto, aliada aos efeitos da reforma financeira, que facilitou a expansão do crédito ao consumidor, se refletiu na atividade econômica a partir de 1968, quando o PIB cresceu mais que o dobro do ano anterior: 9,8%. O crédito total entre os anos 1968-1973, comparado ao período de baixo crescimento (1964-1967) seguiu a mesma tendência: com crescimento real médio de 17%, ante 5% do período anterior. Esse crescimento, vale notar, foi concentrado no crédito ao setor privado (25% no “milagre” contra 7% antes), já que a manutenção do ajuste fiscal reduziu a absorção de recursos pelo setor público. (HERMANN, 2005) Tavares e Serra escrevem, no ano de 1970, Más allá del estancamiento em Santiago do Chile. O artigo desconstruiu a ideia de parte da intelectualidade de esquerda, de que com a 20

As políticas fiscal e salarial do Paeg foram mantidas praticamente sem alterações: os déficits do governo foram reduzidos e as correções salariais seguiram a regra criada em 1966, baseada na inflação estimada pelo governo e não na inflação real/efetiva.

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necessária tendência à estagnação do desenvolvimento capitalista no Brasil, o poder dos militares seria enfraquecido, o que abriria novas oportunidades a uma possível “revolução brasileira”. Contudo, o que ambos os autores buscam demonstrar é que estruturas arcaicas prevalecentes na economia brasileira, como a concentração de renda e de terras, não constituíram empecilhos ao desenvolvimento capitalista no Brasil. Concentração fundiária e de capital não constituiriam entraves ao investimento. Pelo contrário, propulsionaram a modernização brasileira, porém, acentuando seus traços arcaicos. Em sua análise, Furtado (1966) explica a estagnação econômica à partir da demanda das famílias (o porcentual que cada uma delas gastaria consumindo bens e serviços e o porcentual que reservariam à poupança). Segundo o autor, a industrialização baseada na substituição de importações não gerou seu próprio mercado (como ocorrido com o mercado de massas americano). Pequena parcela da população brasileira sustentava a indústria de duráveis, ao mesmo tempo, que era essa a parcela da população brasileira que teria condições de poupar (dificilmente o pobre conseguiria poupar, a maior de sua renda destinava ao consumo de produtos não-duráveis). De acordo com Furtado, a poupança agregada de uma economia determinava seu nível de investimento agregado. No entanto, as classes de maior renda mantinham padrões de consumo culturalmente reproduzidos dos grandes centros capitalistas, impedindo o aumento da taxa de poupança. Com efeito, o setor industrial mais intensivo em capital se encontraria em algum momento enrijecido pela falta de dinamismo de capitais já que sua fonte de investimento seria determinada pela poupança agregada. Menor o nível de poupança de uma economia, menores seriam os investimentos no setor produtivo levando-a, consequentemente à estagnação. A este respeito, Cláudio Salm (2011) nos diz que Furtado deu ênfase exagerada na relação produto-capital (Y/K) para explicar o fenômeno da estagnação. Para Furtado, quanto menor fosse a relação Y/K de uma economia menor seria a sua taxa de crescimento dada a taxa de acumulação (S/I). Tavares e Serra, no entanto, criticam a ênfase dada por Furtado na relação produtocapital (Y/K). Para os autores, essa relação não explicaria devidamente a dinâmica do modelo de desenvolvimento em observação. Antes de mais nada, o empresário não decide o quanto poupar e sim o quanto de sua renda é destinada à demanda (para consumo pessoal ou investimento).21 Decidiria o quanto investir de acordo com suas expectativas de lucro. 21

De acordo com o Princípio da Demanda Efetiva, não se decide poupar posto que a poupança é uma variável

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Contudo, nas indústrias mais modernas, a taxa de lucro poderia se manter no mesmo patamar mesmo que a relação produto-capital adotasse uma trajetória decrescente. Ela dependeria, sobretudo, da relação excedente-salário e da tecnologia incorporada em novos equipamentos promovendo uma maior produtividade do capital (SALM, 2011). Isto se verifica com o aumento da exploração do trabalho reforçado pelas reformas do PAEG e pelo desenvolvimento tecnológico que promove o que Marx denominaria de mais-valia relativa. Para além disso, Oliveira (2013) argumenta que a industrialização desse período – sobretudo a indústria de bens de consumo duráveis, dependeu fortemente da importação de insumos industriais que não eram produzidos no Brasil. Portanto, de um contexto internacional favorável ao investimento externo e ao comércio entre nações. As elevadas taxas de crescimento verificadas entre os anos de 1968 e 1973 foram, por certo, resultados da expansão do comércio mundial, da melhoria das relações de troca e da entrada de capitais estrangeiros (como empréstimos ou investimentos diretos). Oliveira explica, contudo, que o departamento 1 da indústria brasileira (indústria de bens de capital) não acompanhou o crescimento do departamento 2 (indústria de bens de consumo) o que tornava esse processo de industrialização bastante dependente do mercado internacional. Tamanho quebra-cabeça reforça o caráter dependente do desenvolvimento industrial brasileiro cuja dinâmica é, grosso modo, ditada pelo comércio internacional. Fernando Henrique Cardoso e Enzo Faletto tomam como foco em Dependência e desenvolvimento na América Latina (1970) a internacionalização do mercado interno brasileiro. Assim, explicam que se a condição de dependência do Brasil teria explicações exteriores à nação - o sistema centro-periferia -, seriaa configuração entre as classes sociais que possibilita a dependência e lhe dá fisionomia. Com efeito, as relações entre as classes sociais no Brasil de 1970 configura, além de sua essência, a condição de dependência de um modelo de desenvolvimento econômico baseado na indústria de bens de consumo duráveis. A aliança do Estado ditatorial com o empresariado (principalmente grupos transnacionais), aliado a um fraco poder de barganha das classes trabalhadores, define, para esses autores, os contornos de um modelo de desenvolvimento capitalista dependente e baseado no poder de compra das classes dominantes. Furtado, em 1974, retoma a discussão da dependência em O mito do desenvolvimento econômico acentuando o impacto da colonização cultural: residual – ou seja, o último componente da renda a ser determinado de acordo com a sua variação. O que se decide é a parcela da renda destinada à demanda.

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Nos países periféricos, o processo de colonização cultural radica originalmente na ação convergente das classes dirigentes locais, interessadas em manter uma elevada taxa de exploração, e dos grupos que, a partir do centro do sistema, controlam a economia internacional e cujo principal interesse é criar e ampliar mercados para o fluxo de novos produtos engendrados pela revolução industrial. Uma vez estabelecida esta conexão, estava aberto o caminho para a introdução de todas as formas de “intercâmbio desigual”, que historicamente caracterizam as relações entre centro e periferia do sistema capitalista. Mas, isolar essas formas de intecâmbio ou tratá-las como uma consequência do processo de acumulação, sem ter em conta como o excedente é utilizado na periferia sob o impacto da colonização cultural, é deixar de lado aspectos essenciais do problema. (FURTADO, 1974, p.85)

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2.5 – A indústria fonográfica na esteira do modelo de desenvolvimento Na esteio desse processo de industrialização, destaquei o crescimento da indústria fonográfica no final da década de 1960, como reprodução de um movimento geral de expansão do nível de produção, de distribuição e de consumo de cultura. De acordo com Eduardo Vicente, autor de Organização, crescimento e crise: a indústria fonográfica brasileira nas décadas de 60 e 70 (2006), houve uma cristalização dos padrões de consumo e organização da indústria fonográfica no Brasil no intervalo desses anos. Combinado a um extraordinário crescimento desse segmento, Vicente aponta a preponderância da empresa transnacional sobre a nacional e do conglomerado sobre a de orientação única - independente22. No ano de 1968, em especial (ano de lançamento do disco manifesto Tropicália ou Panis et Circenses) a indústria fonográfica cresceu num índice superior a 40% em relação ao ano anterior. Tamanha evidência se encontra na seguinte tabela23 : Tabela 3 - Vendas da Indústria Fonográfica Nacional por unidade 1967 - 1973 (milhões de unidades)

ANO Comp. Simp Comp. duplo LP

LP econ. K7

K7 duplo Total (mi) Var.%

1967

4,0

1,7

4,5

-

0,02 -

6,4

16,4%

1968

5,4

2,4

6,9

-

0,09 -

9,5

48,4%

1969

6,7

2,3

6,7

-

0,2

-

9,8

3,1%

1970

7,4

2,1

7,3

-

0,5

-

10,7

9,2%

1971

8,6

2,8

8,7

-

1,0

-

13

21,5%

1972

9,9

2,6

11,6

-

1,9

-

16,8

29,2%

1973

10,1

3,2

15,3 -

2,9

-

21,6

28,6%

22

A Philips-Phonogram (depois PolyGram e hoje parte da Universal Music) instala-se em 1960 a partir da aquisição da CBD (Companhia Brasileira de Disco); a CBS (hoje Sony Music), instalada desde 1953, consolidase em 1963 a partir do sucesso da Jovem Guarda; a EMI faz-se presente a partir de 1969, através da aquisição da Odeon; a subsidiária brasileira da WEA, o braço fonográfico do grupo Warner, é fundada em 1976 e a da Ariola – pertencente ao conglomerado alemão Bertellsman (BMG) – surge em 1979. A RCA, que mais tarde seria adquirida pela Bertelsman, tornando-se o núcleo da BMG, operava no país desde 1925 e completava o quadro das empresas internacionais mais significativas em nosso cenário doméstico. Ver VICENTE, E. em obra supracitada. 23 Fonte: Associação Brasileira de Produtores de Discos (ABPD). In: VICENTE, E. Organização, crescimento e crise: a indústria fonográfica brasileira nas décadas de 60 e 70. In: Revista de Economia Política de las Tecnologias de la Información e Comunicación, nº 8, v. 3. Aracaju: 2006.

42

Fonte: ABPD

Citando o livro Indústria fonográfica: um estudo antropológico (1991) de Rita Morelli, diz que a autora irá vincular o início desse período de consolidação às vendas de música internacional. Para as subsidiárias das empresas transnacionais, era “muito mais fácil lançar um disco já gravado no exterior do que arcar com as despesas de gravação de um disco no Brasil”, diz a autora. Embora Vicente considere a afirmação de Morelli válida, pontua que a questão da internacionalização do consumo é complexa e merece uma análise mais cuidadosa. Valendo-se de dados da ABPD apresentados pelo jornal O Estado de São Paulo em 1976, o pesquisador afirma que embora os dados demonstrem um expressivo crescimento da participação do repertório internacional na década de 1970, eles não lhes parecem contraditórios com a ideia de que seu real predomínio nunca se configurou. Tabela 4 - Participação do repertório internacional na listagem dos 50% LPs mais vendidos no eixo Rio/São Paulo entre 1965/1973.

Ano

Nº de LPs (50)

1965

14

1966

17

1967

14

1968

9

1969

6

1970

22

1971

23

1972

24

1973

16

Fonte: NOPEM

Assim como Morelli, Vicente admite que as vantagens econômicas oferecidas pelos lançamentos internacionais eram de fato significativas no Brasil já que mesmo sendo impressos no país, eles não exigiam gastos para a gravação das músicas e para a produção da arte da capa, além de normalmente não exigirem grandes investimentos em promoção. Por outro lado, diz que uma lei de incentivos fiscais foi promulgada no ano de 1967 facultando às empresas “abater do montante do Imposto de Circulação de Mercadorias os direitos comprovadamente pagos a autores e artistas domiciliados no país” (Idart apud VICENTE, 2008, p.118), sendo que as gravações beneficiadas recebiam o selo “Disco é Cultura”. 43

Segundo o autor, essa lei ofereceu um enorme desenvolvimento tanto do mercado de música doméstica quanto do setor fonográfico como um todo. Ao mesmo tempo, pareceu ter criado condições de mercado um tanto desfavoráveis às empresas nacionais, uma vez que o ICM advindo da venda de discos internacionais pôde ser reinvestido, pelas empresas estrangeiras, para a contratação dos artistas de maior renome ainda mantidos pelas gravadoras nacionais. Por esta razão, os artistas de maior projeção na música popular brasileira concentraram-se nas gravadoras multinacionais. A Phillips-Phonogram passou a congregar nomes como Caetano Veloso, Gilberto Gil, Chico Buarque, Gal Costa, Maria Bethânia, Jorge Ben e Elis Regina, entre outros. Sob a direção de André Midani, a Phillips buscou conquistar um público jovem. A Tropicália seria assim comercializável como uma novidade transgressora24. Se por um lado, verifica-se uma classe consumidora de maior renda replicando o padrão de consumo já massivo nos países ricos – o que Furtado chamaria de efeito-demonstração – de outro, vê-se uma resistência do campo musical brasileiro frente aos produtos do exterior. Em sua totalidade, o processo de desenvolvimento econômico nacional torna-se cada vez mais ambíguo. Se de um lado, é dado o fato da existência de um forte processo de transformação estrutural da economia brasileira, de outro, é discutível, nessa trajetória, a internalização dos seus centros decisórios: o desenvolvimento em bases nacionais. Para fins desta discussão, apresento outros dados: A conta de serviços e rendas registrou déficits crescentes, passando de cerca de US$600 milhões em 1967 para US$2,1 bilhões em 1973. A causa desse salto foi o aumento das despesas com juros e remessas de lucros – reflexo da crescente captação de capital externo – e com fretes – decorrente do aumento da corrente de comércio (soma das importações e exportações). Assim, o déficit de conta corrente saltou de US$276 milhões em 1967 para US$2,51 bilhões em 1973. Portanto, o “milagre” no campo das contas externas só foi possível porque o ingresso de capital no país elevou-se acentuadamente: a dívida externa bruta brasileira saltou de US$3,4 bilhões para US$14,9 bilhões no mesmo período – um aumento de 332%. Esse endividamento mais do que compensou a necessidade de déficit em conta corrente, permitindo inclusive o acúmulo de reservas internacionais pelo Bacen, que chegaram a US$6,4 bilhões em 1973, ante US$0,2 bilhão em 1967. (HERMANN, 2005, p.88)

Tamanha evidência a respeito da transferência de rendas, de remessas de lucros e juros para o exterior e da evolução do endividamento externo, colocam bastante em dúvida o

24 Midani utilizou uma estratégia similar para o rock no México, onde foi o presidente da Capitol Records antes

de assumir o cargo na Phillips no Brasil. Ver MOTTA, 2000, p. 193.

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caráter nacional do desenvolvimento econômico brasileiro. Os centros decisórios dessa economia estariam no Brasil ou nas potências capitalistas investidoras? Tratava-se assim da acentuação do grau de dependência do Brasil, isto é, um país na periferia do capitalismo cada vez mais dependente política e economicamente dos grandes centros? Mais do que isto tudo: o desenvolvimento capitalista no Brasil se deu para o bem de todos? A alegoria tropicalista, por seu posto, conjugava o arcaico e o moderno em sua metáfora de Brasil. O parque industrial e o monumento do planalto central do país estavam num só corpo – a nação - imbrincados ao sertão, à rua antiga estreita e torta e à criança sorridente feia e morta. Da mesma forma que Cardoso & Faletto e Oliveira defendem o moderno e o arcaico como determinações de um mesmo desenvolvimento capitalista tardio e dependente. Identifico estes opostos reunidos na construção tropicalista de um só Brasil. Sua roupagem moderna evidencia estes opostos como paralelos de um mesmo processo e não contrapartes estanques. Mesmo que aparentemente alegre em sua forma, a ironia de um Brasil que se desenvolve de forma autoritária e empobrecedora está dada. Da mesma forma que a intelectualidade de esquerda debateu - entre os anos de baixo crescimento e o “milagre” - o modelo de desenvolvimento brasileiro, a Música Popular Brasileira (e seus rumos) também estiveram em discussão no final da década de 1960 – especialmente nos anos de 1967 e 1968. Além de questões acerca do significado de música popular brasileira e o que nela se encaixaria, o que preocupava artistas e a intelectualidade ligada à música eram anseios semelhantes aos dos pensadores do desenvolvimento: “a linha evolutiva” da M.P.B. A hipótese acima esboçada – da Tropicália como alegoria irônica de um capitalismo periférico, autoritário e dependente do Brasil de seu tempo - antes de ser um consenso se inscreve na larga controvérsia que discuto no terceiro capítulo deste trabalho. Encaminhei, portanto, algumas questões: a Tropicália foi capaz de construir uma crítica antropofágica em relação ao consumo da estética pop internacional? A Tropicália apontou alternativas nãoalienadoras de consumo dos produtos - não somente culturais – originados nos grandes centros imperialistas? Aproveito, assim, a questão da dimensão cultural e ideológica das nações imperialistas sobre o padrão de desenvolvimento dos países capitalistas periféricos, pensada por Furtado e reforçada por Cardoso e Faletto, para o estudo da Tropicália na esteira do desenvolvimento.

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_CAPÍTULO 3_

TROPICALISMO E INDÚSTRIA CULTURAL: ENTRE A COOPTAÇÃO DE MERCADO E A INSERÇÃO CRÍTICA

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“ ‘Tropicália’ é estilo, não é linguagem, porque simplesmente se liberta da linguagem do consumo cultural. “Tropicália” é uma crítica cultural, que ultrapassa os limites da música e insere provocação total na música nativa. Isto parece exagero, mas não é: para mim, ‘Tropicália’ está para a música brasileira assim como À Bout de Soufle está para o cinema.” (Glauber Rocha)

Na terceira parte desta análise, trabalho a controvérsia em torno da absorção do movimento tropicália pela indústria cultural no Brasil. Busco aqui pensar o espaço crítico de um movimento de contracultura diante do boom da indústria fonográfica - pensada na esteira do modelo de desenvolvimento brasileiro, em sua grande parte, coordenado por um Estado ditatorial. Para o alcance dessa finalidade, discuto nessa seção três diferentes interpretações do movimento: a de Roberto Schwarz (1969), Carlos Nelson Coutinho (1979) e Heloísa Buarque de Hollanda e Marcos Gonçalves (1982). Assim como os integrantes da Tropicália, os autores foram personagens vivos do período que buscaram analisar.

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3.1 Roberto Schwarz e o “esnobismo de massas” Essa análise pretende, objetivamente, discutir as questões centrais abordadas por Schwarz em seu Cultura e Política, 1964-1969 – alguns esquemas (1969) com relação à produção musical do período em tela: a explosão da Tropicália na música popular entre os anos de 1967 e 1968. Conforme dito anteriormente, pode-se dizer que o Tropicalismo surge no cenário musical brasileiro entre os anos de 1967 - com a apresentação de Alegria, Alegria de Caetano Veloso e Domingo no Parque de Gilberto Gil (com a participação d’Os Mutantes) no III Festival Popular da Canção da TV Record. Em 1968,foi impresso o álbum-manifesto Tropicália e Panis et Circenses. Além da participação de Gil e Caetano, o disco contava novamente com a presença d’Os Mutantes (Rita Lee, Sérgio Dias Baptista e Arnaldo Baptista) mais Gal Costa, Tom Zé, Torquato Neto, Rogério Duprat e Rogério Duarte. Coetâneo à insurgência do movimento musical, o ensaio aqui discutido foi escrito por Schwarz entre 1969 e 1970 e para um público francês. Tal reflexão se deu no início de seus anos de exílio em uma Paris cujo ar estava cheio dos événements de mai25 (os acontecimentos de maio de 1968) (SCHWARZ, 2009). Assim, Schwarz elabora seu balanço histórico a respeito da cultura e da política brasileiras observadas na década de 1960. Sob esse recorte espaço-temporal, Schwarz apresenta alguns elementos. Até o ano de 1964, parte da produção cultural de esquerda no Brasil atuou diretamente ligada aos setores camponeses e operários – a classe trabalhadora. Os Centros Populares de Cultura (CPCs) da União Nacional dos Estudantes (UNE), além de outras agremiações de esquerda, militavam através de peças e apresentações musicais nos teatros mantidos por sindicatos e organizações de classe. Após o Golpe, essa ligação foi imediatamente cortada com a proibição das encenações, exibições e apresentações dirigidas a este setor e nestes locais. No entanto, diz que a produção cultural de cunho esquerdizante permanece hegemônica entre os anos de 1964 e 1968, porém confinada a um segmento de classe restrito: setores “ligados à produção 25

Um crítico na periferia do capitalismo. Entrevista de Schwarz concedida a Luis Henrique Lopes dos Santos e Mariluce Moura na Revista Fapesp. In:http://www.afoiceeomartelo.com.br/posfsa/Autores/Schwarz,%20Roberto/Roberto%20Schwarz%20%20Entrevista%20Revista%20da%20Fapesp.pdf. Acessado em 27 de julho de 2014 às 23:58.

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ideológica tais como estudantes, artistas, jornalistas, parte dos sociólogos e economistas, a parte raciocinante do clero, arquitetos etc – mas daí não sai nem pode sair por razões policiais” (SCHWARZ, 2009, p.8).

A sua produção é de qualidade notável nalguns campos, e é dominante. Apesar da ditadura da direita há relativa hegemonia cultural da esquerda no país. Pode ser vista nas livrarias de São Paulo e Rio, cheias de marxismo, nas estreias teatrais, incrivelmente festivas e febris, às vezes ameaçadas de invasão policial, na movimentação estudantil ou nas proclamações do clero avançado. Em suma, nos santuários da cultura burguesa a esquerda dá o tom. Esta anomalia – que agora periclita, quando a ditadura decretou penas pesadíssimas para a propaganda do socialismo – é o traço mais visível do panorama cultural brasileiro entre 1964 e 1968. Assinala além de luta, um compromisso. (SCHWARZ, 2009, p.8).

Isto posto, a produção cultural de esquerda (mesmo confinada) alcançava uma massa de público cada vez maior nos setores da burguesia. Assim, em contraposição à ideologia de esquerda presente nesse circuito, o poder/ ditatorial decreta o fim das atividades de cunho ou natureza política26 em todos os campos, inclusive na cultura, através do AI-5. Com efeito, tal decreto instituiu oficialmente a censura no país que se materializava de diversas formas: substituição, perseguição, prisão, tortura, expulsão de professores, encenadores, escritores, músicos e editores. (SCHWARZ, 2009) Na esteira desse processo, SCHWARZ, 2009, p.31) indagou no seu Cultura e Política: 1964-1969 qual era o lugar social do Tropicalismo, e também, qual era o fundamento histórico de sua alegoria sincretista - a combinação entre extremos e absurdos: “para obter o seu efeito artístico e crítico o Tropicalismo trabalha com a conjunção esdrúxula de arcaico e moderno que a contra revolução cristalizou, ou por outra ainda, com o resultado da anterior tentativa fracassada de modernização nacional”. A respeito de seu locus social, informa:

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Conforme presente no inciso IV do artigo quinto do texto original do AI-5.

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Diante de uma imagem tropicalista, diante do disparate aparentemente surrealista que resulta da combinação que descrevemos, o espectador sintonizado lançará mão das frases da moda, que se aplicam: dirá que o Brasil é incrível, é a fossa, é o fim, o Brasil é demais. Por meio dessas expressões, em que simpatia e desgosto estão indiscerníveis, filia-se ao grupo dos que tem senso do caráter nacional. Por outro lado, este clima, esta essência imponderável do Brasil é de construção simples, fácil de reconhecer ou produzir. Trata-se de um truque de linguagem, de uma fórmula de visão sofisticada ao alcance de muitos. (SCHWARZ, 2009, p. 31)

Schwarz quer com isto dizer que o Tropicalismo no campo musical, através de uma linguagem simples e de fácil reprodução, alcança públicos diversos: tanto um público letrado e consciente das referências e intertextualidades presentes em suas letras bem como aqueles que irão simplesmente apreciá-las e reconhecê-las em estilos que lhes são familiares: Jovem Guarda, om programa do Chacrinha, Beatles, Vicente Celestino, Carmen Miranda27. Com efeito, Schwarz defenderia que o Tropicalismo, através de um estilo compatível com o gosto popular, atingiria um público amplo dividido entre uma minoria que compreenderia sua alegoria de Brasil (arcaico, moderno, dependente) e uma maioria que não a reconheceria. Na visão de Schwarz, a roupagem tropicalista é a sua grande novidade num primeiro momento. Questiona na seguinte passagem:

Sobre o fundo ambíguo da modernização, é incerta a divisa entre sensibilidade e oportunismo, entre crítica e integração. Uma ambiguidade análoga aparece na conjugação da crítica social violenta e comercialismo atirado, cujos resultados podem facilmente ser conformistas, mas podem também, quando ironizam o seu aspecto mais duvidoso, reter a figura mais íntima e dura das contradições da produção intelectual presente. (SCHWARZ, 2009, p.30)

Argumento comum à postulação de Adorno e Horkheimer:

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Um exemplo que considero interessante é a música 2001 dos Mutantes , presente no álbum que leva o nome do grupo: Mutantes (1968). A música faz referencia direta à música caipira brasileira, bastante difundida entre a classe trabalhadora daquela época – principalmente do campo. A música alia a estética de origem estrangeira presente no cotidiano urbano do Brasil de 1968 e faz referência direta ao ritmo de A Marvada Pinga composta por Ochelsis Laureano em 1937, que ficou célebre na voz de Inezita Barroso.

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(...) Da regra e da pretensão específica do objeto, que é a única coisa que pode dar substância ao estilo, é vazia, porque não chega mais a haver uma tensão entre os polos: os extremos que se tocam passaram a uma turva identidade, o universal pode substituir o particular e vice-versa. (ADORNO&HORKHEIMER, 2006, p.155)

Esta citação de A Indústria Cultural demonstra bem que a indústria da cultura não está comprometida com a síntese do particular para o universal e a tensão entre esses dois polos, pelo contrário, objetiva a não tensão. Assim, o Tropicalismo, na visão de Schwarz, traz essa distensão em suas alegorias mesmo que os polos contraditórios existam: o arcaico e o moderno. Ao refletir sobre o processo de modernização do país e a encruzilhada na qual se encontrava a esquerda brasileira pós-golpe, o movimento optaria por absorver essa modernização conciliando seus absurdos. Em relação a ela, assumiria uma posição conformista, de impossibilidade de ruptura com esse modelo. Como contrapartida, Schwarz aponta no cinema coetâneo ao Golpe uma alternativa crítica ao status-quo: uma “estética da fome” em Vidas Secas, Deus e o Diabo na Terra do Sol e Os Fuzis, respectivamente de Nelson Pereira dos Santos, Glauber Rocha e Ruy Guerra. Tal estética teria suas linhas de força na oposição direta à modernização brasileira. Segundo Schwarz, a direção tomada pelo Tropicalismo seria nesse ponto contrária: naturalizaria o atraso do país, porém, incorporando a vanguarda e a moda internacionais. O Tropicalismo, na visão do autor, não discutia diferentes possibilidades para o Brasil, bem como não vislumbrava alternativas engendradas pela esquerda. A desigualdade social existente no país, os resquícios não superados de um passado colonial (as relações servis de trabalho no campo, o grande latifúndio, por exemplo) seriam para o movimento, características inerentes ao país, intrínsecas à ex-colônia continental da América do Sul, que conviveria com uma mistura mantenedora de todos esses traços no esteio da modernização. Assim, Schwarz questiona se a modernização realizada pelo regime civil-militar do Brasil seria necessariamente boa. Conforme foi argumentado na segunda seção deste trabalho, o processo de modernização da economia brasileira foi capaz de aumentar a renda brasileira em nível absoluto no período do “milagre”. Porém concentrou-a em médio prazo agravando os índices de pobreza do país. Considerável parcela da população brasileira ficou alheia a esse processo de “otimismo” econômico e prosperidade. As medidas fiscais regressivas do Paeg, 52

contribuiriam para um progressivo empobrecimento da classe trabalhadora. É importante frisar que além do Tropicalismo de Gil, Caetano, Gal, Tom Zé et alli, , o Cinema Novo de Glauber Rocha e o método de alfabetização Paulo Freire eram, para o autor, construções tropicalistas (mesmo “de esquerda”). Em suas palavras:

(...) no método Paulo Freire estão presentes o arcaísmo da consciência rural e a reflexão especializada de um alfabetizador; entretanto, a despeito desta conjunção, nada mais tropicalista que o dito método. Por quê? Porque a oposição entre seus termos não é insolúvel: pode haver alfabetização. Para a imagem tropicalista, pelo contrário, é essencial que a justaposição entre de antigo e novo – seja entre conteúdo e técnica, seja no interior do conteúdo – componha um absurdo, esteja em forma de aberração, a que se referem à melancolia e o humor deste estilo. (SCHWARZ, 2009, p.32)

A despeito dessa semelhança de construção entre a música tropicalista, o CinemaNovo e o método Paulo Freire (no sincretismo, na conjunção do arcaico e do moderno), a diferença entre eles estaria na visão do autor, na negatividade apresentada pelos dois últimos. No cinema de Glauber e no método Paulo Freire, não haveria o efeito cool, dimensionado pela estética pop estrangeira, da alegoria de uma suposta miséria geral no Brasil sem qualquer discriminação de classe. Desta forma, entre todas essas construções tropicalistas, Schwarz distingue de um lado a denúncia social e a luta de esquerda como instrumento de superação do arcaísmo brasileiro e, de outro, um conformismo relativista que colocaria “a falta de comida e de estilo como vexames equivalentes da pobreza brasileira” (SCHWARZ, 2009, p.33 ). Posso disso então concluir que o Tropicalismo seria na ótica de Schwarz um microcosmos do processo de modernização do Brasil (que corroborou os arcaísmos aproveitando-se deles para o crescimento da econômico e o “desenvolvimento”).

(...) Na metáfora tropicalista os termos opostos de um Brasil existiam alegremente lado a lado, igualmente simpáticos, sem perspectivas de superação. (SCHWARZ, 2012, p.99)

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3.2 - Heloísa Buarque de Hollanda e Marcos A. Gonçalves: o tropicalismo e a inter(mídia)ção da indústria cultural “Recusar-se a trabalhar em televisão no pleno século XX é, no mínimo, burrice” (Oduvaldo Vianna Filho)

Sob o mesmo recorte espaço-temporal adotado na pesquisa de Schwarz, Heloísa Buarque de Hollanda e Marcos Gonçalves, em Cultura e Participação nos Anos 60 (1982), chamaram também atenção para o fato de continuidade da hegemonia do pensamento político de esquerda na cultura brasileira pós-Golpe. Assim como o crítico literário, apresentam no livro o lugar social do produto cultural militante: os extratos médios da sociedade como universitários, intelectuais, artistas, profissionais liberais etc. Assim, Hollanda e Gonçalves resumem da seguinte forma o raciocínio cultural engajado, em voga naquele momento: A ideia de que a arte é tanto mais expressiva quanto mais tenha uma “opinião”, ou seja, quanto mais se faça instrumento para a divulgação de conteúdos políticos; a idealização, um tanto problemática, de uma aliança do artista com o “povo”, concebido como a fonte autêntica da cultura; e um certo nacionalismo, explícito na referência de indisfarçável sotaque populista às “tradições de unidade e integração nacionais”. (HOLLANDA&GONÇALVES, 1987, p.23)

Assim, defendem a ideia de que era subsistente na produção cultural do imediato pósgolpe o conteúdo ideológico em voga nos anos pré-1964, sobretudo durante o governo Jango. Mesmo que nos primeiros anos da ditadura brasileira fossem permitidos espetáculos divulgadores de conteúdos políticos, como o musical Opinião, concordam diretamente com Schwarz ao defenderem que o intelectual e o artista de esquerda separaram-se imediatamente de seu público, os trabalhadores, com a instalação do regime ditatorial em 1964. Com efeito, diferentemente dos tempos CPCs, o artista-intelectual não estava mais em contato direto com o oprimido e sim com parcelas da classe média e alta contrárias aos stablishments da ditadura de direita. Segundo os autores, esse público restrito passaria a ser a massa política que conheceria seu momento de radicalização nas passeatas de 1967 e 1968. Em suas palavras:

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A relativização da prioridade didática ou imediatamente conscientizadora insinua um movimento de readequação do trabalho intelectual – e de modo específico, do trabalho artístico – num momento em que se tornava crítica a relação produção cultural/militância política, tal como fora colocada no período Goulart. No clima de manifestação por onde enveredava o ambiente cultural, do qual a simples recorrência da palavra Opinião (Opinião 65, Opinião 66, Opinião Pública) poderia ser um sintoma definitivo, a intervenção da vanguarda passava a ser aquela mais capacitada a fornecer respostas à crescente inadequação dos pressupostos que haviam norteado a prática cultural de artistas e intelectuais até 1964. (HOLLANDA&GONÇALVES,1987, p.29)

Ambos os autores apontam como “linha evolutiva” do processo cultural desse período o Cinema Novo e a Tropicália. Definem o primeiro como um protagonismo e frente no campo da reflexão política e estética. O segundo seria, para eles, a renovação da canção popular no Brasil tendo como eixo temático os impasses e inquietações da situação pós-1964. Embora não me proponha colocar o Cinema Novo em questão, vale lembrar que seus caracteres de crítica social e seu “texto” marcado pela informação moderna repercutiram no ambiente cultural da época, conforme se observa nas seguintes palavras de Caetano: “toda aquela coisa de tropicália se formulou dentro de mim no dia em que via terra em transe” (VELOSO, C. apud HOLLANDA, H. B. & GONÇALVES, M. A., 1987, p. 51). De acordo com Hollanda e Gonçalves, a vanguarda cinematográfica influenciou diretamente aquilo que em 1968 se constituiria em movimento.

De fato, é significativa a influência da informação cinemanovista na estética tropicalista. O corte, a justaposição, o uso do fragmento e do flashback, a narrativa onírica, presentes na produção cinematográfica, pareciam atrair a atenção não apenas do “grupo baiano”, mas de expressivos setores da juventude interessados pela cultura. (HOLLANDA&GONÇALVES, [1982] 1987, p.52)

Para os autores, o que separava o Tropicalismo do projeto revolucionário pré-64 no campo da cultura era a revisão da defesa do nacionalismo e sua idealização de uma cultura popular “moderna”. Uma autêntica cultura popular brasileira seria, para eles, aquela capaz de elaborar criticamente as diversas informações dispostas em sua realidade objetiva (o que compreende elementos originais da formação cultural brasileira desde os tempos de colônia e as inovações, de origens estrangeiras, concretamente dispostas em território brasileiro). Isso tudo sem que se esquecesse da nova dinâmica de dependência do Brasil, ou seja, o caráter do 55

modelo de desenvolvimento econômico que toma corpo nos fins dos anos 1960 e que se desdobra no “milagre”. Hollanda e Gonçalves defendiamm, portanto, a ideia de que se fomentava, com o Golpe de 1964, uma cultura de massas voltada para o consumo e o consequente início da crise do projeto da arte revolucionária (GONÇALVES & HOLLANDA, 1987): primeiramente, o fim da arte engajada diretamente ligada aos trabalhadores - como o teatro dos CPCs - e posteriormente a produção cultural que falava sobre o povo e não mais para ele – a canção de protesto nos palcos da TV Record e as peças engajadas nos grandes teatros e shoppings centers. Uma produção cultural alinhada com a ideia de revolução tornar-se-ia, segundo eles, cada vez mais improvável e “fora de lugar”. Por outro lado, afirmavam que a participação de uma arte crítica na emergente indústria cultural brasileira era problemática e significativa de traição. Frente a essa polarização, concluem que o Tropicalismo enfrentou tamanho dilema de forma original:

Entre a exigência política e a solicitação da indústria cultural, optou pelas duas. Ou melhor: pela tensão que poderia ser estabelecida entre esses dois polos. E aqui tanto o sentido dessa exigência quanto a adequação aos sistemas do consumo de massa foram objeto de um redimensionamento. Na opção tropicalista o foco da preocupação política foi deslocado da área da Revolução Social para o eixo da rebeldia, da intervenção localizada, da política concebida enquanto problemática cotidiana, ligada à vida, ao corpo, ao desejo, à cultura em sentido amplo. Na relação com a indústria cultural essa nova forma de conceber a política veio a se traduzir numa explosiva capacidade de provocar áreas de atrito e de tensão não apenas no plano específico da linguagem musical, mas na própria exploração dos aspectos visuais/corporais que envolviam suas apresentações. (HOLLANDA &GONÇALVES, 1987, p.66)

Portanto, a simbiose de arte engajada e indústria cultural não foi, para os tropicalistas ao final dos anos 1960, uma impossibilidade como postulava grande parte da militância de esquerda daquele tempo. Em linhas gerais, apresentaram sua arte crítica em todas as estruturas (imprimindo discos pela Phillips ou se apresentando no Cassino do Chacrinha) metaforizando um Brasil que se modernizava corroborando seus arcaísmos – o que valia tanto para um modelo econômico quanto para uma sociedade, sobretudo a classe média, que consumia o “moderno” e reproduzia a cultura hegemônica dos grandes centros sem deixar de flertar com valores conservadores28.

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Tomo como exemplo A Marcha da Família com Deus pela Liberdade (1964) que reuniu diversos segmentos da classe média brasileira, sobretudo ligados ao clero, e que se opunham as reformas de base propostas pelo então Presidente João Goulart.

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3.3 – Do intimismo ao amadurecimento da cultura nacional-popular: o tropicalismo visto por Carlos Nelson Coutinho. Em seu livro Cultura e Sociedade no Brasil, Carlos Nelson Coutinho inicia sua análise da relação entre a sociedade brasileira e suas representações culturais com o pressuposto de que não é possível compreender a problemática da cultura brasileira sem examinar características sociais e políticas da sua intelectualidade. Assim, defende que a maneira pela qual a “questão cultural” vai se resolver no futuro imediato dependerá da resolução dos complexos problemas colocados por aquilo que chama de renovação democrática e cultural no país. Coutinho, antes de qualquer outra coisa, propõe em seu ensaio a defesa intransigente da mais ampla e radical liberdade de criação cultural, em concordância com aquilo que Adorno e Horkheimer denominariam espontaneidade29 do sujeito na arte popular. Essa liberdade de criação pareceria-lhe condicionada por dois “limites”. Estaria, primeiramente, implicada por condicionamentos sociais dos quais o criador pode ou não estar consciente. Além disso, defende que a liberdade de criação não seria restringida, mas ao contrário potenciada, se o criador tomasse consciência da sua produção cultural. Para uma justa conceituação da questão cultural no Brasil, Coutinho busca relacionar cultura brasileira e cultura universal propondo a seguinte pergunta: De que modo se articulou a evolução das formas econômico-sociais brasileiras, de cuja reprodução e transformação a nossa cultura é momento determinado e determinante, com o desenvolvimento do capitalismo em nível mundial? (COUTINHO, 2011, p.36)

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Isso quer dizer que na arte popular a manifestação cultural é uma criação espontânea das massas, ao contrário do que se observa no produto da indústria cultural. Neste, inexiste uma relação espontânea de criação. A relação entre as massas e o produto da indústria cultural se estabelece somente pelo consumo.

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Com o fim de respondê-la, sugere que a palavra capitalismo (inserida na questão) sugere de antemão parte da resposta. Partindo deste ponto, explica que o Brasil emerge na época do predomínio do capitalismo mercantil, ou seja, na época da criação de um mercado mundial. Situa, dessa forma, a história do Brasil no contraditório processo de acumulação primitiva do capital cujo centro dinâmico era a Europa Ocidental. Assim, a dependência colonial, em lugar de um antigo isolamento de regiões e nações que bastavam a si próprias, imprimiu seus desdobramentos no plano da cultura. Com efeito, Coutinho admite que o exclusivismo nacional torna-se cada vez mais impossível quando há interdependência entre nações e admite uma literatura universal em lugar de literaturas nacionais e locais. Uma especificidade do Brasil, da maior importância para o autor, era a de que não haver uma formação econômico-social capaz de fornecer excedentes de vulto ao processo de circulação do capital mercantil colonialista. Para o autor, o problema estaria em existir de fato um aparelho produtivo que se articulasse diretamente com o mercado mundial - nas suas palavras tratava-se de criá-lo.30 Tamanha particularidade do caso brasileiro tem enorme consequência na análise do plano da cultura. Em síntese, o que Coutinho busca evidenciar com tudo isso é o fato dos pressupostos da formação econômico-social do Brasil, por se situarem no exterior, terem desdobramentos diretos no campo cultural. Assim, a penetração da cultura europeia (cultura universal) não encontrou barreiras no caso brasileiro. O autor quis com isso dizer que não havia uma significativa cultura autóctone anterior à colonização que pudesse ser o nacional em oposição ao universal ou, em suas palavras, o autêntico contra o alienígena. Em comparação com casos do mundo árabe, da China, da Índia, ou mesmo dos latino-americanos Peru e México; Coutinho esclarece que no Brasil as classes fundamentais da nossa formação econômicosocial colonial encontravam suas expressões ideológicas e culturais na Europa. Isso não quer dizer para ele, entretanto, que as culturas negra e indígena não tenham desempenhado papéis decisivos na fisionomia cultural brasileira. Explica, porém, que tais papéis ocorreram sempre no quadro de um amálgama com a cultura europeia – processo ocorrido, por exemplo, na

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Coutinho assinala que o objetivo central do colonialismo, na época do capitalismo mercantil, era extorquir valores de uso produzidos pelas economias não capitalistas dos povos colonizados tendo por fim transformá-los em valores de troca no mercado mundial. Busca acentuar que a subordinação das economias periféricas ao capital mercantil metropolitano se dava no terreno da circulação. Ver COUTINHO, C. N. Cultura e Sociedade no Brasil. In: COUTINHO, C. N., Cultura e Sociedade no Brasil – ensaios sobre ideias e formas. São Paulo: Editora Expressão Popular, 2011.

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música popular. Quando resistentes a esses amálgamas, as culturas negra e indígena são relegadas ao folclore ou à expressão de grupos marginais. No campo musical, Gilberto Gil, em entrevista concedida a Augusto de Campos e publicada em o Balanço da Bossa no ano de 1968, indica na música de João Gilberto a percepção desse amálgama cultural da ex-colônia Brasil com as nações hegemônicas no quadro geopolítico internacional. Em suas palavras: Quando Caetano fala em “retomada da linha evolutiva”, eu penso que se deva considerar como tal o fato de que João Gilberto foi a primeira consciência de uma formação complexa da música brasileira, de que essa música tinha sido formada por uma série de fatores não só surgidos da própria cultura brasileira, como trazidos pela cultura internacional. Essas coisas todas João Gilberto percebeu e colocou em síntese no seu trabalho. Em “Oba-lá-lá”, que já era um bolero, um béguin, e em “Bim bom”, a gente identifica uma possibilidade da música brasileira incorporar essa espécie de balanço perseguido pelas gerações novas da música internacional. Isso já foi a abertura inicial de João Gilberto. E a retomada se explica, porque depois de João Gilberto houve uma preocupação em voltar àquelas coisas bem nacionais. O samba do morro. A música de protesto. A nordestinização da música brasileira. A busca irrefreada de temas ligados ao Nordeste, que culminou, inclusive, com o aproveitamento direto da coisa caipira: Geraldo Vandré, por exemplo. Foi aquela busca terrível de coisas que tivessem nascido no nosso próprio terreno. Então, a linha evolutiva devia ser retomada exatamente naquele sentido de João Gilberto, na tentativa de incorporar tudo o que fosse surgindo como informação nova dentro da música popular brasileira, sem essa preocupação do internacional, do estrangeiro, do alienígena (GIL, G. apud COHN & COELHO, 2008, p.78)

Em síntese, Coutinho defende que a história da cultura popular brasileira pode ser esquematicamente definida como sendo a história dessa assimilação – mecânica ou crítica, passiva ou transformadora – da cultura universal pelas várias classes e camadas sociais brasileiras. Com isso argumenta que quando o pensamento brasileiro, em sua generalidade, importa uma ideologia universal, existe a prova de que determinada classe ou camada social do país encontrou nessa ideologia a expressão de seus próprios interesses brasileiros de classe 31

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Coutinho alerta para o fato de que não necessariamente esse vínculo com a cultura universal, condicionada pela relação de dependência ou de subordinação econômica, impõe um caráter dependente ou “alienado” à totalidade de nossa cultura. Ver COUTINHO em obra supracitada.

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O processo não é certamente mecânico, comportando a possibilidade de “erros” ou “desvios”: mas me parece justo dizer que, quando “transplantada’ para o Brasil por uma classe progressista e anticolonial, uma corrente cultural avançada contribui para formar em nosso país uma consciência social efetivamente nacional-popular, contrária ao espírito de dependência, àquilo que Nelson Werneck Sodré chamou de “ideologia do colonialismo” (ou seja, a adoção por brasileiros de correntes culturais – como o racismo – que justificam a nossa situação de dependência) (COUTINHO, 2011, p.42)

Na sua crônica autobiográfica, Verdade Tropica, Caetano Veloso (1997, p.24) demostrou semelhante apontamento ao relatar ter tido desde cedo visão crítica em relação à sociedade na qual viveu os seus anos de formação: “mas o que mais me afastava dessa tendência de americanização era o fato de ela não ter chegado a mim com nenhum traço de rebeldia”. Pode-se inferir que a oposição que procurou marcar não foi sobre a procedência dos modelos culturais (o que se restringiria a um nacionalismo simplista) mas sim entre apropriações vivas destes modelos e o consumo alienador, seja do externo, seja do interno. Nesse sentido, sua grande questão era como se posicionar diante da influência dos grandes centros sem, contudo, “perder a liberdade, inclusive a liberdade, de aproveitar um modelo interessante e mais adiantado, segundo a circunstância” 32. No bojo desse raciocínio Veloso postulava a incorporação da coisa estrangeira em benefício do foco nacional, tornando esse modelo externo fator de autoconhecimento e não de alienação - apontada na juventude de seu tempo de Santo Amaro da Purificação, no Recôncavo Baiano, e exemplificada pelo desejo de participar de concursos de rock e assumir a estética dos estudantes americanos do high school. Veloso procurou pontuar as diferentes atitudes que se podia ter diante da influência da cultura universal, a americanização. Segundo Coutinho, essa dialética entre adequação e inadequação de cultura estrangeira e realidade brasileira se transforma à medida que o Brasil deixa, nos termos de Marx, sua condição de subordinação formal direcionando-se para a condição de subordinação real.33 Em outras palavras, quer dizer que as ideias importadas passam a aderir mais às realidades e aos interesses de classe que buscam expressar. Defende, pois, que as contradições ideológicas da vida cultural brasileira do século XX aproximam-se cada vez mais das contradições 32

Ver SCHWARZ, R. Verdade Tropical: um percurso de nosso tempo. In: SCHWARZ, Martinha versus Lucrécia. São Paulo: Companhia das Letras. 2012. 33 A economia brasileira passa a se constituir nos marcos do modo de produção capitalista em lugar de uma economia antes baseada essencialmente no trabalho escravo. Ver COUTINHO em obra supracitada.

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próprias do modo de produção capitalista. Partindo desse vínculo, entre cultura universal e cultura brasileira, estabelecido por um mesmo sistema econômico (o capitalismo), Coutinho diz poder avaliar o problema da cultura nacional-popular no Brasil na segunda metade do século passado. O Golpe de 1964 configurou, para o autor, o aprofundamento do processo de desenvolvimento capitalista no Brasil por uma via prussiana, conforme Lênin, ou revolução passiva, nos termos de Gramsci. Explica:

[...] as transformações ocorridas em nossa história não resultaram de autênticas revoluções, de movimentos provenientes de baixo para cima, envolvendo o conjunto da população, mas se processaram sempre através de uma conciliação entre os representantes dos grupos opositores economicamente dominantes, conciliação que se expressa sob a figura política de reformas “pelo alto”. É evidente que o fenômeno da “via prussiana” – tal como Lênin o formula – tem sua expressão central na questão da passagem para o capitalismo, no modo de adequar a estrutura agrária às necessidades do capital. Mas, generalizando o conceito, pode-se dizer que – na base de uma solução prussiana global para a questão da transição ao capitalismo – todas as grandes alternativas concretas vividas pelo nosso país, direta ou indiretamente ligadas àquela transição (Independência, Abolição, República, modificação do bloco de poder em 1930 e 1937, passagem para um novo patamar de acumulação em 1964), encontraram uma resposta “à prussiana”; uma resposta na qual a conciliação “pelo alto” jamais escondeu a intenção implícita de manter marginalizadas ou reprimidas – de qualquer modo, fora do âmbito das decisões – as classes e camadas “de baixo”. (COUTINHO, 2011, p.45-46)

Assim, argumenta que o processo de transformação social no Brasil através da conciliação de suas classes dirigentes (de modernização conservadora “prussiana”) marca de diversas formas o conteúdo da cultura brasileira. Surgem nesse contexto manifestações próprias da ideologia prussiana seriam expressões ideológicas excludentes das massas populares de qualquer participação ativa nas grandes decisões nacionais. Segundo o autor, esse modus pensandi se verificava não só em pensadores autoritários e de direita, mas também em pensadores liberais moderados e até progressistas. Nesses autores, a construção prussiana assumiria a forma irracionalista, congregando princípios ideológicos incompatíveis numa mesma ideia. No campo da economia, o pensamento autoritário e de direita pode muito bem se encontrar na visão oficial do governo: dos ministros Delfim Netto e Roberto Campos. O ecletismo irracionalista podia se verificar, por exemplo, em alguns quadros do ISEB. Exemplos disso, também no campo econômico, são Guerreiro Ramos e Hélio Jaguaribe. Este último, em especial, defendia a limitação de direitos democráticos como forma de assegurar a 61

“democracia”. O que é importante observar em suas reflexões é a relação que faz entre a conciliação social e política e sua expressão no plano das ideias, o que inclui o plano cultural. Coutinho tratou das diversas pressões das condições materiais, de um sistema político autocrático além da própria economia de mercado, sobre artistas e pensadores direcionando-os para sínteses ecléticas (diminuiriam seus caracteres progressistas). Seria o caso do Tropicalismo? A respeito disso, destaco as palavras de Hélio Oiticica impressas no texto A trama da terra que treme (O sentido de vanguarda no grupo baiano) publicado no jornal Correio da Manhã, em setembro de 1968:

Na música popular essa consciência ganhou hoje corpo, o que antes parecia de artistas plásticos e poetas, de cineastas e teatrólogos, tomou corpo de modo firme na música popular com o privilégio do grupo baiano de Caetano e Gil, Torquato e Capinam, Tom Zé, que se aliaram a Rogério Duprat, músico ligado ao grupo concreto de São Paulo, e ao conjunto Os Mutantes, e hoje assume uma dramaticidade incrível a luta desses artistas contra a repressão geral brasileira, tão conhecida minha há dez anos (repressão não só da censura ditatorial, mas também da intelligentia bordejante). Aqui tudo se torna mais dramático, pois está diretamente ligado ao consumo de massa ou à “cultura de massa” etc., e sujeito portanto a maior repressão. (OITICICA, Hélio apud COHN & COELHO, 2008, p.154)

Coutinho admite que esse confusionismo ideológico não resultava simplesmente de escolhas subjetivas de intelectuais ou mesmo de oportunismo. Em suas palavras, tratou-se, sobretudo, de condicionamentos objetivos de nossa formação histórica e intelectual. Disto concluiu que as consequências da via prussiana no plano cultural não dependiam somente das ações de intelectuais. Para ele, a superação daquilo que chamou de intimismo – “uma cultura socialmente asséptica e neutralizadora das contradições sociais” (Cf. COUTINHO, [1990] 2011, p. 49) - só seria alcançada pela orgânica integração dos intelectuais com a luta das classes subalternas, para assim se tornarem juntos sujeitos de uma evolução social e política no Brasil. A partir desse posicionamento, Coutinho defende que o nacional-popular aparece objetivamente como oposição democrática, no plano da cultura, às várias configurações concretas assumidas pela ideologia do “prussianismo” ao longo da evolução brasileira. A autêntica cultura nacional-popular romperia, na visão do autor, esse distanciamento entre os intelectuais e o povo. A importação cultural, por sua vez, quando não tem o objetivo de responder questões 62

próprias da realidade brasileira é, para Coutinho, uma manifestação da cultura elitista. A consciência artística nacional-popular se manifestaria, para ele, não na temática e sim no ponto de vista a partir do qual o criador estrutura sua obra.

Assim, quanto mais um artista se vincular à totalidade das contradições de seu povo e de sua nação, quanto mais se tornar (como diria Machado) “homem de seu tempo e de seu país”, tanto mais lhe será possível elevar-se àquele nível de particularidade – de universalidade concreta – sem a qual não existe grande arte. (COUTINHO, 2011, p.59)

A grandeza do nacional-popular estaria não em contrapor o nacional ao estrangeiro. Para Coutinho, ela estaria em distinguir, no bojo do patrimônio cultural tornado universal, aquilo que poderia se tornar elemento organicamente nacional popular de nossa cultura. Vale aqui dizer que a arte, antes de mais nada, organiza na sua forma de expressão elementos que se encontram dispostos em sua realidade objetiva. Com base nesse princípio, a guitarra elétrica era um dado concreto inscrito na universalidade concreta de seu tempo. Fabricava-se guitarra, comprava-se guitarra no Brasil, ou seja, não se tratava de um ser metafísico. Pensá-la como alienígena e não admiti-la na concretude do amálgama cultural brasileiro seria o mesmo que relegá-la, de forma racionalmente absurda, ao plano das ideias.

Não há assim normas a priori para a arte de inspiração nacional-popular: é direito e dever do artista exercer a máxima liberdade de criação, no sentido de encontrar o seu modo peculiar e próprio de ampliar e de aprofundar as leis estéticas do gênero dentro do qual trabalha. Portanto, a unidade de arte nacional-popular é algo apenas tendencial, que só pode ser estabelecido post festum, e que por isso está em permanente modificação; além do mais, é uma unidade na diversidade, que retira sua força e pluralidade do mais amplo pluralismo de estilos artísticos, de temáticas, de tendências ideológicas etc. (COUTINHO, 1990 [2011], p. 57)

Em outro sentido, as expressões daquilo que chamou de doença infantil do nacionalpopular, demonstraram-se altamente autoritárias além de forjaram uma ligação retórica com o “povo”. Exemplos destas manifestações estariam em músicas de protesto de meados da década de 1960. Grande parte delas produzidas por artistas que compuseram a controvertida Passeata contra a guitarra elétrica de 1967. Em defesa das inovações estáticas (não importando se vinham de fora) e contrário a que Coutinho veio chamar de nacionalismo-infantil, Caetano tece o seguinte argumento:

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Guitarra elétrica é um instrumento muito bonito. E desde que existe é utilizada no samba. Cresci ouvindo os trios elétricos da Bahia, que ainda hoje animam o carnaval de lá: e nunca ninguém pensou em dizer que os trios elétricos tocam iê-iê-iê. É que esses músicos não estão cheios de preconceitos tolos, nem de medo, eles apenas encontraram uma forma excelente de animar uma festa. Assim também o violonista do conjunto de danças da Casa Grande (onde só tocam ritmos brasileiros), que toca numa guitarra elétrica. Radamés Gnatelli escreveu um concerto lindo para guitarra e orquestra, Radamés faz iê-iê-iê? Portanto, está mal informado - ou de má fé – quem se vê no direito de ‘proibir’ o uso desse instrumento, em nome de uma pureza tradicional que não tem mais cabimento. Os trios de piano, baixo, bateria, como existem hoje centenas no Brasil, também não estão ligados a nenhuma tradição do samba. Noel Rosa, Pixinguinha e outros nunca os utilizaram. (VELOSO, C. apud COHN & COELHO, 2008, p. 41-42).

Com a finalidade de desconjuntar a validade argumentativa dos “patrulheiros ideológicos” (sobretudo no que diz respeito à adoção da estética musical estrangeira), Caetano aponta exemplos de manifestações culturais brasileiras que adotaram a inovação estrangeira sem, contudo, terem sido julgadas iê-iê-iê ou uma importação subalterna da música internacional. Seguindo o raciocínio de Coutinho, o nacionalismo infantil seria também “uma má consciência do intelectual intimista por não se tratar, primeiramente, de uma identificação autêntica com o povo e ser, na realidade, uma expressão cultural paternalista e populista” (COUTINHO, 2011, p.60). Afirma que o meio de propagação privilegiado dessa doença infantil é a indústria cultural. Assim, a doença infantil do nacional-popular estaria, segundo o autor, presente em várias novelas da televisão e em filmes produzidos para o grande público. O modelo dos grandes festivais de música seria também, para o autor, exemplo de manifestação da doença senil por terem privilegiado e divulgado a música de ideologia nacionalista. A respeito disso, faço proveito de um depoimento de Veloso:

A vaia que recebi foi dada por um grupo que quis repudiar o que consideravam uma agressão à música popular brasileira. Infelizmente, foi uma atitude bastante reacionária. [...] Entrei no festival para destruir a ideia que o publico universitário soi disant de esquerda faz dele. Eles pensam que o festival é uma arma defensiva da tradição da música popular brasileira. Mas a verdade é que o festival é um meio lucrativo que as televisões descobriram. [...] Muita gente vem dizendo que se deve fazer música pensando nas nossas tradições, no folclore. Eu só entendo que se faça alguma coisa que diga o que está acontecendo agora, no Rio, em São Paulo, no Brasil. O meu diálogo é o de agora, é a pergunta: o que está acontecendo. (VELOSO, Caetano apud FAVARETTO, C., 2007).

Retomando, assim, a descrição de Coutinho a respeito do recorte espaço-temporal em análise, cito a seguinte passagem de seu livro: 64

Sob muitos e fundamentais aspectos, o golpe de 1964 – e a nova situação que ele instaurou no país – marcou um divisor de águas também na vida cultural. O ingresso do Brasil na época do capitalismo monopolista de Estado (CME) – ingresso facilitado e impulsionado pelo regime militar – trouxe alterações importantes na esfera da superestrutura, tanto no estado em sentido restrito quanto no conjunto dos organismos da sociedade civil; e isso não poderia deixar de ter consequências no terreno da produção cultural. [...] A prática sistemática da censura, aliada a um claro terrorismo ideológico, pode ser considerada como a face aberta da política cultural vigente após 1964 e, em particular, o período posterior a 1968, ou seja, a decretação do AI-5. Seria simplista reduzir a isso o quadro das relações entre cultura e sociedade nos últimos anos; mas seria ainda mais perigoso dizer que tal face condicionou, através certamente de múltiplas mediações, a totalidade da produção cultural sob a vigência do regime militar. (COUTINHO, 2011, p.61-62)

Para além da “política cultural” de censura exercida pelo Estado, Coutinho defende a ideia de que o novo regime reforçou o papel das tendências culturais “intimistas” – descritas, por ele, como uma cultura neutralizadora e socialmente asséptica. Isto equivale a dizer que, durante a ditadura brasileira, ganharam espaço os produtos culturais cujas ideologias sinalizavam para a manutenção do status-quo (do sistema político e sobretudo do sistema econômico). Coutinho assim apontou o período entre 1969 e 1973 como o momento ápice da organização e expansão da indústria cultural no Brasil.

A época do chamado vazio cultural, que seria melhor designar como época da cultura esvaziada – e que domina, no período entre 1969 e 1973 -, representou o momento em que a confluência da censura/repressão com as tradições “intimistas”/neutralizadoras atingiu aquilo que um tecnocrata poderia chamar de “ponto ótimo” na tentativa de marginalização das correntes nacional-populares e, consequentemente, de remoção do pluralismo como traço dominante de nossa vida cultural. Quando aludi a novas determinações, pensei essencialmente no grande estímulo emprestado pelo CME à expansão e consolidação de uma poderosa indústria cultural em bases não só capitalistas (o que já vinha ocorrendo antes de 1964), mas também cada vez mais monopolista. O processo atinge mais duramente, decerto, os grandes meios de comunicação de massa, como a televisão, a grande imprensa, a produção de discos, o cinema etc. Mas os efeitos da monopolização se fazem igualmente sentir sobre a indústria editorial e a produção teatral, embora aqui a presença de empresas médias e até mesmo de pequeno porte assegure um maior pluralismo de orientações e, por conseguinte, uma faixa de autonomia bem mais consistente (COUTINHO, 2011, p.63)

Partindo desta defesa, Coutinho conclui que essa generalização da lógica capitalista e monopolista no plano da cultura privilegiou, de forma imediata, o valor de troca dos objetos culturais em detrimento de seus valores de uso. De acordo com as ideias do autor, esse fenômeno de monopolização comercial da cultura abriu caminho para uma “pseudocultura de massa” (COUTINHO, 2011), que – assim como a indústria cultural de Adorno e Horkheimer 65

manipula consciências a serviço da reprodução do status-quo. Como consequência desse processo, Coutinho aponta para a importação em série de produtos “pseudoculturais” (o que para o autor quer dizer “produtos culturais alienados”). Para ele, a imitação e importação de um produto cultural alienado seria um agravante maior no empobrecimento cultural brasileiro em comparação à difusão da doença senil do nacionalpopular. Argumenta que o poder econômico dos monopólios culturais em funcionamento no Brasil (nacionais e transnacionais) determinou, em grande medida, a substância do produto cultural daquele tempo. A cultura de massas sob controle do estado autoritário e dos conglomerados culturais seria, para Coutinho, uma eficiente forma de se cortar a ligação dos intelectuais e artistas de esquerda com o povo. Contudo, seu pensamente se assemelha ao de Hollanda e Gonçalves quando defende a existência de “brechas” de arte crítica na indústria cultural (mesmo que limitada):

É certo que se trata de um processo contraditório, já que também a indústria cultural apresenta “brechas” e tolera margens de manobra; e essas “brechas” e margens poderão se ampliar à medida que o processo de transição para um regime de liberdades democráticas avançar em nosso país, ou seja, à medida que diminua a ação repressiva direta do Estado sobre os mass media e estes se vejam obrigados – pela própria pressão dos consumidores – a satisfazer pressões sócias de uma sociedade civil mais aberta e pluralista. Mas seria perigoso esquecer, em nome dessas contratendências, o fato de que a monopolização capitalista dos meios de divulgação cultural aumenta objetivamente as já antigas dificuldades para a criação e divulgação entre nós de uma cultura-nacional popular democrática e pluralista. (COUTINHO, 2011, p.65)

Apesar da forte oposição a uma produção cultural livre e crítica, presente naquele momento com base em três fatores principais: (i) censura e repressão, (ii) herança elitista da intelectualidade, (iii) expansão monopolista da indústria cultural; Coutinho diz não poder ignorar a persistência da corrente nacional-popular nos anos do regime militar. De acordo com a classificação proposta por Coutinho dos produtos culturais brasileiros – divididos entre tendências culturais intimistas e cultura nacional-popular - onde se encaixaria o Tropicalismo? Cito o autor:

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Vejamos um exemplo concreto: sob muitos aspectos, o movimento tropicalista em seus inícios – na medida em que tendia desistoricizar as contradições concretas da realidade brasileira e a eternizá-las numa abstração alegórica e irracionalista (o Brasil como “absurdo” etc.) – pode ser considerado expressão do “intimismo”. Mas não se deve deixar de registrar a presença, na evolução do tropicalismo, de um saudável esforço no sentido de conquistar para a arte brasileira novos meios expressivos e sobretudo, de figurar uma nova temática, resultante do modo prussiano de implementação do CME entre nós (coexistência de um sofisticado capitalismo de consumo com a conservação do atraso nos meios rurais e nas periferias urbanas). Malgrado um elemento de unilateralidade, a produção “tropicalista” – como podemos avaliar hoje, muitos anos após seu aparecimento – contribuiu para superar os evidentes limites de um “populismo” que se comprazia em cantar um otimismo ingênuo e, em última análise, desmobilizador, na esperança vazia de que esse “canto” exorcizasse o “escuro” dominante. Na verdade, o tropicalismo não se opunha ao nacional-popular, mas àquilo que antes chamamos de sua doença infantil”. Essa dialética interna do movimento tropicalista – a contradição dinâmica entre a conquista de uma nova temática e seu tratamento ainda tendencialmente alegórico – levaria os seus melhores representantes a abandonar progressivamente, em muitas de suas produções, a alegoria irracionalista e a optar por uma dura crítica, nada populista nem ingênua, da cotidianidade moderna que o CME ia implantando em nosso país. (COUTINHO, 2011, p.67)

Isto posto, pode-se concluir que, ao contrário da exposição de Schwarz, Coutinho aponta na produção musical tropicalista um amadurecimento da cultura-nacional popular. Defende, assim, que por meio da indústria cultural e da apropriação da moda de origem estrangeira, a Tropicália organizou criativamente, em sua alegoria, as contradições cotidianas de um Brasil prestes ao um trágico “milagre”. Considera, desta maneira, que o Tropicalismo sua fase inicial intimista/irracionalista e apresenta um novo olhar do Brasil de seu tempo – sem o paternalismo da esquerda de então e sem a inautenticidade condescendente e colonizada de alguns “liberais”.

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_CONSIDERAÇÕES FINAIS_ Tomando como base a controvérsia existente entre os trabalhos de Roberto Schwarz, Carlos Nelson Coutinho, Heloísa Buarque de Hollanda e Márcio Gonçalves, procurei discutir o Tropicalismo, na Música Popular Brasileira, vis-à-vis seu recorte espaço-temporal. Busquei assim demonstrar que o produto musical da Tropicália – os LPs produzidos por Caetano, Gil, Gal Costa, Tom Zé, Mutantes e outros – assim como a produção da M.P.B tradicional inscrevia-se num modelo de desenvolvimento econômico embasado na indústria de bens de consumo duráveis para um mercado consumidor restrito (ainda não massificado e reprodutor da cultura mercadológica dos países capitalistas desenvolvidos). Nesse sentido, materializouse em acordo com a modernização conceituada por Celso Furtado: “a promoção da moderna indústria - sustentada pela reprodução do padrão de consumo do mercado de massa das potências capitalistas pelas elites locais – coexistente à manutenção do arcaísmo brasileiro”. Para além da sua direta inserção na indústria cultural brasileira, apontei o elemento nacional como uma questão inerente à Tropicália, pauta comum com o debate do desenvolvimento econômico brasileiro. Da mesma forma que na Economia a questão era o desenvolvimento em bases nacionais (ou dependente do imperialismo, do capital internacional) a Tropicália reivindicava-se como música popular brasileira Fica assim evidente o peso da questão nacional em ambas esferas. Num campo, discutia-se os novos caminhos da M.P.B. e consequentemente o lugar da antropofagia tropicalista nesse processo (seria música nacional-popular ou música “alienada”?). Noutro campo, debatia-se a autenticidade do desenvolvimento brasileiro. Seria o discurso desenvolvimentista verdadeiro ou mais uma roupagem ideológica da manutenção (ou agravamento) dos laços de dependência do Brasil com relação aos países capitalistas desenvolvidos? Qual seria a “linha evolutiva” da Música Popular Brasileiro? Qual seria a “linha evolutiva” da economia brasileira (se é que é possível falar em evolução)? Aparentemente, a Tropicália abriu campo para novas manifestações artísticas que surgiriam nos anos subsequentes aproveitando-se das tecnologias industriais então dispostas. Ao longo dos anos 1970, os Novos Baianos mostraram ser possível fazer música brasileira da 68

maior qualidade como guitarra elétrica34. O que antes era considerado um tabu, o “elemento estrangeiro” foi incorporado criativamente na música popular brasileira. Como discutimos, não se pode ignorar que essa mesma década favoreceu a produção de uma infinidade de produtos culturais inautênticos, réplicas mal feitas de modismos estrangeiros. No entanto, alguns caminhos estavam abertos para a produção de música brasileira criativa (posto os limites da censura e do Estado policial brasileiro). Ao mesmo tempo, algumas carreiras se prejudicaram tanto pela censura quanto pela falta de espaço na indústria cultural, como foi o caso de Tom Zé, que só voltaria a fazer sucesso no final dos anos 1980 quando “redescoberto” por David Byrne (ex-Talking Heads). No campo econômico, os resultados se apresentaram de forma mais dura e as alternativas críticas do modelo pareciam mais restritas. O censo de 1970 demostraria um drástico agravamento da desigualdade social brasileira e o ano de 1973 inauguraria um processo de empobrecimento da maioria da população. As visões críticas poderiam se encontrar no Instituto de Economia da Unicamp, no Cebrap por exemplo. Não podiam passar de visões reformistas. Qualquer visão que transpusesse essa barreira seria motivo de exílio ou prisão. O debate da “revolução brasileira” não seria mais possível por exemplo. O possível papel da esquerda no debate econômico estaria em criticar o modelo da ditadura e apresentar “propostas” de se domar o dragão: o capitalismo em um país subdesenvolvido e antidemocrático. Em concordância com as visão de Coutinho e o trabalho conjunto de Heloísa Buarque de Hollanda e Marcos Gonçalves, identifico na música tropicalista uma crítica contundente e irônica ao momento político e social de seu tempo, que não pode ser menosprezada pelo fato de se constituir como produto da grande indústria fonográfica e por incorporar o elemento estrangeiro em seu estilo. Conforme o argumento de Celso Favaretto em Tropicália – alegoria, alegria, a M.P.B tradicional operou nas mesmos estruturas da Tropicália: ambos os lados imprimiam seus discos na Phillips-Phonogram e se dirigiram a um mesmo segmento de mercado, de classe social. Um mercado muitas vezes crítico, sem deixar de ser burguês. Concluo assim essa análise afirmando que a Tropicália, inserida no contexto de endurecimento do regime militar de amadurecimento do modelo de desenvolvimento brasileiro, constituiu em metáfora representação do Brasil de seu tempo - o arcaico de mãos dadas com o moderno. Questionou também o papel de satélite cultural de um país cujas 34

Entre 100 discos, Acabou, chorare (1972) dos Novos Baianos foi eleito o melhor da música brasileira em votação realizada pela revista Rolling Stone Brasil no ano de 2007.

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classes média e alta reproduziam, através de um “consumo chapado e alienante”, hábitos da sociedade de massa de países desenvolvidos. Pode-se dizer que o elemento estrangeiro em meio ao amálgama cultural brasileiro foi assumido pelos tropicalistas de forma original, isso sem que eles deixassem de dizer onde estavam, em que contexto viviam e por onde andavam. “Eu quero dizer ao júri: me desclassifique. Eu não tenho nada a ver com isso. Gilberto Gil. Gilberto Gil está comigo, para nós acabarmos com o festival e com toda a imbecilidade que reina no Brasil. Acabar com tudo isso de uma vez. Nós só entramos no festival pra isso, não é Gil? Não fingimos. Não fingimos aqui que desconhecemos o que seja festival, não. Ninguém nunca me ouviu falar assim. Entendeu? Eu só queria dizer isso, baby. Sabe como é? Nós, eu e ele, tivemos a coragem de entrar em todas as estruturas e sair de todas. E vocês? Se vocês forem ... Se vocês, em política, forem como são em estética, estamos feitos! Me desclassifiquem junto com o Gil! Junto com ele, tá entendendo? E quanto a vocês... O júri é muito simpático, mas é incompetente. Deus está solto! Fora do tom, sem melodia. Como é júri? Não acertaram? Qualificaram a melodia de Gilberto Gil? Ficaram por fora. Gil fundiu a cuca de vocês, hein? É assim que eu quero ver. Chega!” (É proibido proibir, Caetano Veloso)35

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Discurso realizado no teatro Tuca, em São Paulo, em setembro de 1968.

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