Ecos do racialismo - as raízes eugenistas da visão policial sobre o negro

July 7, 2017 | Autor: Paula Nogueira | Categoria: Racism, Violência Policial
Share Embed


Descrição do Produto

JULHO DE 2015 | ANO 8 | R$ 15,00 JULHO DE 2015 | ANO 8 | R$ 15,00

JJOORRNNAALLI ISSM MOO CCUULLTTUURRAALL

ECOS ECOS DO DO RACIALISMO RACIALISMO pleno século 21, integração racial sociedade brasileira é plena? EmEm pleno século 21, aa integração racial nana sociedade brasileira é plena?

CARTOON CARTOON

TRADIÇÃO TRADIÇÃO

FUTURO FUTURO

E se E se Hamlet Hamlet fosse fosse escrito escrito por por Ariano Ariano Suassuna? Suassuna?

Patrimônio Patrimônio imaterial, imaterial, a bicentenária a bicentenária festa festa dodo Divino Divino emem Pirenópolis Pirenópolis encanta encanta e emociona. e emociona.

OsOs desafios desafios dede unir unir desenvolvimento desenvolvimento e preservação e preservação ambiental. ambiental.

An

Raízes Jornalismo Cultural

2

nuncio

Raízes Jornalismo Cultural

3

editorial editorial

Quem fez?

07

cartas Do Leitor

eLma carneiro

A Edição Zigurate da Raízes Jornalismo Cultural chega ao leitor com o compromisso de bom conteúdo que você espera. Se gostar, é simples, escreva para nós. A cultura popular diz que devemos fugir do elogio fácil. Tem importância, não! Pode elogiar à vontade. Ponha a boca no trombone quando falar bem da revista. A Redação vai adorar! Ao contrário, não fale aos outros. Escreva-nos que vamos melhorar. Mais uma afirmação besta, que corre como se fosse do povo, mas é certo que é dos políticos e do mundo dos negócios, é a de que é errado pretender agradar todo mundo. Vamos correr esse risco para agradar mais gente a cada edição: leitores, anunciantes, agências de publicidade, colaboradores ou quem quiser folhear a revista para se encantar com a estética gráfica, feita com carinho para conquistar. Nossas páginas vão levar ao mundo Kalunga; a arquiteturas fascinantes; às diferenças da igualdade e, e entre outras, aos caminhos da imortalidade. Boa viagem!

06

09

BrasiLiDaDe originaL

os povos kaLunga

Raízes Jornalismo cultural

4

12 14

poesia magia negra

fLorestan fernanDes e a DerrocaDa Do mito

capa ecos Do raciaLismo

34

arQuitetura fascinante zigurate

37

centenário De carmo BernarDes

38

amBientaLismo sustentáveL

18 23 24 29 31

artista homenageaDo seLvo afonso

crônicas De goiás pirenópoLis - traDição e fé conto De mia couto o emBonDeiro Que sonhava pássaros poesia De sônia maria

42

marveL a DescoBerta Do munDo - parte 2

46

christie Queiroz para coLorir

48

tecnoLogia o caminho Da imortaLiDaDe

52

cartoon por ceLso moraes f

54

peQuenos sentimentos por marcos faYaD Raízes Jornalismo cultural

5

J O R N A L I S M O C U LT U R A L

EDITORA

EDITORA

LIVRES PENSADORES

LIVRES PENSADORES

ES RES

Raízes Jornalismo Cultural é uma publicação da Editora Livres Pensadores Ltda., filiada à ANER LIVRES LIVRES EDITORA

EDITORA

PENSADORES

PENSADORES

Avenida Anhanguera, 5.674 - Edifício Palácio do Comércio, Conjunto 1003, Centro CEP 74.043-906 - Goiânia -GO. FoNe (62) 3945-4744 e-mail [email protected] redaÇÃo Doracino Naves, Clara Dawn Naves, Jonathans Medeiros, Wanderley da Silveira, Celso Moraes F. editor-cHeFe Doracino Naves produtora-de-coNteúdo Clara Dawn Naves cHeFe-de-reportaGem Humberto Wilson` diretor comercial Wanderley da Silveira editor de arte Celso Moraes F. editor Jonathans Medeiros projeto GráFico DoisZ Publicidade pré-impressÃo DoisZ Publicidade impressÃo Revista Raízes Jornalismo Cultural é impressa pela Poligráfica Ltda., em papel pólen bold 90 gramas, nas capas, e pólem soft 70 gramas, no miolo. Tiragem desta Edição: 5.000 exemplares comercializaÇÃo e distriBuiÇÃo [email protected] Distribuição Nacional Dirigida e em bancas. É permitida a reprodução do conteúdo desta revista, desde que citada a fonte. Todas as matérias e opiniões publicadas são de inteira responsabilidade de seus autores, não refletindo, necessariamente, a opinião desta revista. As informações divulgadas nos anúncios publicitários são de responsabilidade dos anunciantes.

WWW.rEVISTArAIZES.cOM.Br Raízes Jornalismo cultural

6

Quem Fez? adriaNo curado

selVo aFoNso

Pirenópolis - Tradição e Fé

Capa e artista homenageado

Começou historiador, mas adoçou os textos considerados chatos com a ficção literária. Os livros venderam e renderam palestras. Sonha conseguir melhorar o mundo.

Ney couteiro

Fotogra�ias de Pirenópolis - Tradição e Fé.

Rondoniense, é mestre em música! Casado com a música! Aos 40, arranjou uma amante apaixonada e envolvente, a fotografia. Hoje, convivem os três em harmonia!

marcos Fayad Artigo

É ator e diretor de teatro, formado pela PUC-RJ. Foi psicólogo por uma década. Sonha voltar a viver no Rio com seus cinco cachorros, mas sabe que nenhum edifício os aceitaria. Utópico inveterado, só sabe remar contra a maré.

maurÍcio toVar

Arquiteturas Fascinantes

Julga-se entendedor de Arte Culinária, que mistura à Filosofia e à Bioquímica, crendo na imaginação monitorada pelo intelecto como condutora de uma nova compreensão. Biólogo, ainda acredita que o homem vai se harmonizar com o Planeta.

BeNto Fleury

Centenário de Carmo Bernardes

Ama as flores minúsculas dos ermos. Amigo dos animais tristonhos e compadre das andorinhas. Diz ser o pó dos velhos caminhos e nos ventos dos cerradinhos. Seu coração é terroso.

sÔNia maria saNtos

Poeta homenageada

Vem de família formada por gerações de maestros, cantores, instrumentistas. Na adolescência, participou de torneios de oratória na Escola e foi a única participante do sexo feminino.

mari BaiocHi Kalunga, povo da terra

É antropóloga, humanista convicta. Define-se pela Paz, o mote de sua vida. Educadora, pesquisadora e defensora da Mãe Terra e suas populações tradicionais.

paula NoGueira Ecos do Racialismo

É jornalista, mestranda em Antropologia Social. Uma mistura de personagem kafkiano com música do Maluco Beleza, gostaria de se chamar Gregor Samsa só pra se apresentar como Metamorfose Ambulante

Retrata o ser humano em todo contexto social: menor abandonado, negro, índio… Tem compromisso apenas com os personagens que retrata e com os apreciadores de sua arte.

rauBHer NelsoN Ilustrações

É estudante de Produção e Multimídia e Desenho Gráfico. Tem hábitos noturnos para desenvolver trabalhos e deles surgem ideias de fazer coisas loucas para sair da rotina.

josé auGusto de souza Comer, rezar e amar

O mais Goiano dos Cariocas, chegou a Goiás no início dos anos 70, embora a família de sua mãe esteja por aqui há muito tempo. Trabalhou em TV, cinema, publicidade e se orgulha de ter chegado ao Olimpo em todas as suas incursões.

cHristie Queiroz

Pirenópolis - Tradição e Fé

Nunca dirigiu uma Ferrari e não sabe falar japonês. Apaixonado por livros. Escreve e desenha desde menino. Lançou 23 livros estrelados pelo Cabeça Oca e Mariana.

mia couto

O embondeiro que sonhava pássaros

Pseudônimo de Antônio Emílio Leite Couto. Biólogo e escritor moçambicano. Escreveu poesia, contos, romance e crônicas. Publicou em mais de 22 países.

NelsoN jorGe da silVa jr. Ambientalismo sustentável

Professor universitário, biólogo e historiador. Movido pela paixão do trabalho com serpentes venenosas há mais de 30 anos. Às vezes reúne-se, a trabalho, nos botecos mais deslocados da cidade.

tayNara BorGes

Florestan Fernandes e a derrocada do mito

É formada em Jornalismo e produtora cultural na Fuzuê Eventos. Sempre que a rotina permite, cai no samba.

raFaella pessoa Diagramação

Formada em Design Gráfico e fotógrafa atuante, faz dessa combinação seu estilo de vida . É uma esteta nata e está sempre tentando extrair o belo das coisas.

serGio Vaz

Poesia - Magia Negra

É poeta. Fundou a Cooperativa Cultural da Periferia, que semanalmente promove leitura e escrita poética para cerca de 400 pessoas no Jardim Guarujá.

cartas do leitor

Fogaréu! Fogaréu!

“E

stou aqui para parabenizá-los pelas matérias que vocês publicaram. Eu adorei. As informações são ótimas, pois me ajudaram nos meus estudos sobre Sociedades Secretas. O texto é de confiança e posso ter certeza de que vou tirar 10. Só tenho que agradecer a vocês pelas ótimas matérias e informações. Abraços! ” Carla Carolinie de Oliveira (Goiânia – GO)

Que bom saber que nossa revista está ajudando leitores em questões práticas! Continue conosco, e além de bagagem cultural você certamente somará boas notas ao seu boletim! Abraços.

“E “C

u degustei os artigos. Excelente formatação e bom gosto na estrutura.” Marisa (a)Penas (Goiânia – GO)

hega-me a revista como algo surpreendente, a começar pela capa, conseguindo se destacar em forma e conteúdo ao turbilhão de materiais e suportes que nos cercam no dia a dia. Estilo leve, bem-humorado já na apresentação dos editores e

“E

colaboradores, provoca em quem lê uma sensação de familiaridade gostosa. As matérias estão bem editadas e ilustradas em doses agradáveis, um convite para serem lidas e apreciadas junto com um cafezinho de coador ou um chá. Deixei a matéria assinada pelo Yuri para ser lida à noite com meu vinho Memórias, que esperava essa ocasião. As memórias da minha terra avivadas pela revista me enchem de emoção e orgulho. Vida longa para a publicação e, como dizem no teatro: Merde. Abraços.”

“G

m muito boa hora chegou a versão impressa do Raízes Jornalismo Cultural. Fruta madura, como um pequi colhido no chão, é muito mais saborosa. Em oito anos de atividade televisionada, o projeto foi muito bem gestado e amadurecido. Antes de qualquer particularização de uma ou de outra matéria, a revista tem uma concepção de cultura. Não se está falando de guardados em um baú, que, de tempos em tempos, são apenas revirados. Cultura é no gerúndio: como é que nosso modo de pensar e nossas escolhas são afetados pelos desenhos da moda nos cinemas; como é que uma lenda antiga, como a da Juriti Pepena, pode nos convencer de que precisamos urgentemente de uma outra lógica na organização da produção no cerrado. E Raízes chega com um diálogo amplo, como no Programa de Televisão, englobando todas as manifestações da cultura – a literatura, as artes plásticas, o cinema e as manifestações religiosas populares, como o Fogaréu. Nossas melhores boas-vindas. Esta foi a impressão de uma primeira e dinâmica leitura. Vou voltar mais detidamente em cada matéria. Na condição de entrevistado do primeiro programa na televisão – o Nº 1 – fico feliz e agradecido pelo esforço de vocês. Abraço e bons trabalhos em vista do próximo número.” Jadir Pessoa (Goiânia – GO)

Ítalo Campos (Vitória- ES)

ostei muitíssimo da revista Raízes e estou feliz pela aquisição. Nela tudo é encantador! Parabéns a seus editores pela beleza estética e conteúdo. Eu mesma me sinto orgulhosa de ser assinante de tão brilhante Obra. Abraços” Maria Loussa (Goiânia – GO)

“F

oi demais essa coisa dos deuses desempregados, no Cartoon. Cheguei a imaginar as pessoas admirando as estátuas petrificadas da Medusa e, ao olhar para a artista, virando arte de pedra também. Muito bom. Inteligente e divertido. Ansioso esperando a próxima façanha de Celso Moraes F. “ Guto Jr. (Rio de Janeiro – RJ)

Obrigado, Guto Jr. Espero que goste do cartoon desta edição, em que Hamlet recebe uma releitura na “voz” de Ariano Suassuna. Não sei se foi, só sei que foi assim!

Raízes Jornalismo Cultural

7

antropologia

Locais como a cachoeira Santa Bárbara impulsionam o ecoturismo na região Adelano Lázaro / Cópia Livre

Raízes Jornalismo Cultural

8

antropologia

BRASILIDADE ORIGINAL

Da redação

A fuga para a liberdade é o principal ponto em comum na ancestralidade dos povos Kalunga, escravos de diferentes origens que se ajuntaram num quilombo único na história brasileira

Q

uando as bandeiras lideradas por Bartolomeu Bueno da Silva, em 1722, iniciaram o ciclo da mineração do ouro e pedras preciosas, principalmente esmeraldas, na região das “Minas dos Goyazes”, a dificuldade na utilização dos nativos como mão-de-obra forçou a importação do escravo africano. Obrigados a um trabalho difícil e condições de vida ainda mais duras, as fugas eram constantes. Àqueles recapturados restavam castigos muito severos, o que os impelia a procurar refúgios em lugares cada vez mais isolados, dando origem aos quilombos. E os Kalunga são os maiores representantes desses grupos em Goiás. Eles escolheram a região que se localiza na parte norte do atual Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros, nordeste do estado. A área ocupada pela comunidade foi reconhecida pelo Governo do Estado de Goiás em 1991, como sítio histórico que abriga o Patrimônio Cultural Kalunga e suas terras titularizadas pelo governo federal na mesma época, fruto da intervenção, estudo e dedicação da professora Mari de Nasaré Baiocchi. Seu livro “Kalunga, Povo da Terra” foi o pontapé inicial de todo o processo para obter os decretos que os protegem. Com dois mil hectares, essa região ainda permanece intacta e com grande riqueza natural. Abriga cerca de 4.400 pessoas em um território que se estende pelos municípios de Cavalcante, Monte Alegre e Teresina de Goiás. Devido à inacessibilidade da região, seus antigos proprietários não arriscaram procurar por eles naquele lugar. É um mar de montanhas e colinas cheias de palmeiras de buriti que se estendem até o horizonte. São encostas íngremes, de ventos fortes, cheias de pedras soltas nas trilhas estreitas, difíceis de escalar e fáceis de cair abruptamente dos paredões de pedra para os vales abaixo. A vegetação densa faz o incauto se perder pelo caminho. Os Kalunga se estabeleceram nas montanhas de ambos os lados do rio Paraná, nas encostas e nos vales, chamado de

vãos. A mais populosa comunidade está situada no município de Cavalcante, com pouco mais de duas mil pessoas, distribuídas nas localidades do Engenho II, Prata, Vão do Moleque e Vão das Almas. Os outros assentamentos estão na região de Contenda, o Vão do Calunga e o Ribeirão dos Bois. Mais recentemente, alguns estudos têm indicado a presença de kalunga também em regiões do estado do Tocantins, nos arredores de Natividade e regiões isoladas do Jalapão. Foi nesse refúgio que os descendentes dos escravos passaram a viver em relativo isolamento das cidades de “Goyaz”. Relativo, pois durante todo esse período houve miscigenação com habitantes locais. Eles aprenderam a viver com o que o cerrado lhes deu em alimentos, bem como em materiais e ferramentas de construção. Mesmo vivendo isolados uns dos outros, eles se consideravam parentes. Periodicamente, porém, faziam o seu caminho para fora de seu esconderijo para se aventurar nas cidades da região em busca de utensílios de cozinha ou certos alimentos. Seus meios de transporte eram barcos primitivos ou tropas de burros. Permaneceram semi-descobertos durante mais de 250 anos, tendo sido incorporados pela sociedade brasileira somente no fim dos anos 1960. Se o isolamento foi a sua força, pois permitiu conservar seu modo de vida tradicional e sua identidade própria, ao mesmo tempo acabou sendo a sua fraqueza. Quando foi abolida a escravidão e já não tendo mais motivos para se manter afastados, foi o resto da sociedade brasileira que se afastou dos Kalunga. Assim, foram ficando longe dos benefícios que o progresso ia trazendo para os outros brasileiros. Mas, a partir das décadas de 1970 e 1980, eles foram sendo obrigados a interagir cada vez mais com pessoas de fora da comunidade. E, conforme isso foi acontecendo, foram sentindo que estavam despreparados para lidar com aquele mundo novo. Raízes Jornalismo Cultural

9

antropologia

Foi em 1982 que um grupo de antropólogos chamou a atenção da Companhia de Furnas: a construção de uma usina hidrelétrica no Rio Paraná iria desabrigar centenas de famílias do povo Kalunga. O resto do país passou, então, a conhecê -los. “Por causa do isolamento, os kalunga construíram uma cultura própria, que precisa ser preservada’’, diz Baiocchi. “Com os kalunga podemos entender como seria o pensamento do negro brasileiro isolado do modo de pensar europeu’’, afirma Wilson Fernandes de Oliveira, professor da Universidade Federal de Mato Grosso. Foi esse isolamento que proporcionou a criação de identidade e cultura próprias. Os kalunga construíram sua tradição em uma mistura de elementos africanos e europeus com forte presença do catolicismo tradicional do meio rural, além da influência cultural de padres católicos, dando origem a uma cultura hibridizada, característica que se manifesta na alimentação e no forte sincretismo religioso. Seu patrimônio cultural celebra datas santas repletas de rituais cerimoniosos. A forte religiosidade do povo é demonstrada por meio dos festejos em homenagem aos santos de cada época e todos os anos atraem turistas para a região. Suas festas são a manifestação genuína da cultura kalunga, em que o sagrado e o profano se misturam. Apresentam ritos complexos, com simbolismos peculiares, como o tradicional Levantamento do Mastro na festa do Divino Espírito Santo (a principal festividade no calendário Kalunga), a mesa cheia de comidas e bebidas para a Festa do Império Kalunga (em que se dá a coroação e o início do reinado do Imperador e da Rainha), a Congada para Nossa Senhora do Rosário, as coroas, a corte em procissão, as bandeiras, as espadas, o terço com as ladainhas das rezadeiras, os foguetes e as danças da Sussa (referência à dança sagrada de pagamento de promessas nascida de tradições africanas; geralmente feita em pedido de prosperidade da lavoura, com um ritmo marcado pelo som da viola, do pandeiro, da sanfona e da caixa, caracterizada por giros em que as mulheres equilibram garrafas de cachaça sobre a cabeça) e do Bolé (voltada para as crianças, é dançada em pares embalados pelo pandeiro, sanfona e caixa, o grupo faz uma grande roda e uma dança de ritmo acelerado, com muitos giros). Tudo isso reflete a alegria desse povo. Mais do que comemoração religiosa, as festas têm um papel social. É nelas que parentes se reencontram, crianças são batizadas, casamentos são realizados, reivindicações são ouvidas por representantes políticos etc. Quando reunidos, os Kalunga mostram ainda mais sua humildade, sua alegria e o valor de se preservar as tradições. Sempre dispostos para o trabalho e para o festejo, são exemplo da brasilidade mais genuína, que mais do que qualquer outra necessidade, requer respeito. No entanto, apesar do contato com a “civilização moderna”, os Kalunga mantém os mesmos hábitos dos seus pais e avós. Suas casas, seus hábitos e costumes ainda são como no

Raízes Jornalismo Cultural

10

A dança Sussa é uma das manifestações culturais exclusiva dos kalunga divulgação AQK

século 18. Os Kalunga não vivem em cidades, mas sim em casas espalhadas pelas margens dos rios. Não há luz, nem água encanada. Os destinos das comunidades são determinados pelos mais idosos e a vida corre mansa e tranquila, mantida pela agricultura familiar e a criação de alguns animais. Para os Kalunga, a terra é muito importante para seus moradores. Hoje, vivem das roças de mandioca, arroz, feijão e cana. A divisão das terras é simbólica. Cada um tem

Com os kalunga podemos entender como seria o pensamento do negro brasileiro isolado do modo de pensar europeu

um espaço definido, com liberdade para ir onde quiser, usar as águas, caçar e pescar, por exemplo. Deste modo, cada núcleo de famílias pode manter sua própria vida, de maneira independente, mas sem perder os laços com os parentes mais distantes. Protegidos pelos governos Federal e Estadual, a comunidade aos poucos tem sido integrada ao “mundo moderno”. Em 1999, foi criada a Associação Quilombo Kalunga, com a missão de defender e representar esse povo. Desde então, foram criadas duas usinas de beneficiamento de frutos do cerrado capazes de produzir, além do sabão tradicional, sabonete e outros cosméticos. Isso foi possível com o desenvolvimento de planos de negócios em parceria com o SEBRAE e cursos de capacitação em parceria com o SENAR (Serviço Nacional de Aprendizagem Rural). Aproveitando que o Sítio Histórico faz parte da reserva do Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros, reconhecido como Patrimônio Natural Mundial pela Unesco, a comunidade também desenvolve projetos ligados ao ecoturismo, oferecendo ao visitante várias trilhas e passeios entre serras e veredas, bem como inúmeros atrativos turísticos ecológicos como rios, cânions, cachoeiras e águas termais, em especial as regiões das cachoeiras de Santa Bárbara e do Rio Prata.

O beneficiamento ecológico de produtos naturais do cerrado é uma das novas atividades econômicas desenvolvidas pela comunidade divulgação AQK

antropologia

Apontamentos sobre o livro Kalunga - Povo da Terra, de Mari Baiocchi A antropóloga Mari Baiocchi é autora de uma obra consistente que aborda quase 200 anos de história

O

livro “Kalunga - Povo da Terra” é o resultado de um minucioso trabalho de pesquisa de 24 anos em que trabalhou na região quilombola, pesquisando hábitos como a língua, os festejos, a comida, a forma de viver de uma comunidade remanescente de escravos. No livro, Baiocchi explica que a palavra kalunga, ou calunga (as duas grafias estão corretas) tem origem banto dos africanos angolanos, congos e moçambiques que foram trazidos para o Brasil. Kalunga pode ser uma boneca de madeira que os moradores de comunidades do rio Lui, na África, fabricavam. Pode ser também uma palavra mágica, uma divindade do culto banto. Baoicchi defende, entre outras ideias, a de que o africano foi o principal elemento colonizador do vasto território goiano. “Foi um excelente desbravador. Desmontou cascalhos, revirou grupiaras, deslocou rochedos, fez obras de engenharia com aterros e cortes por dezenas de qui-

lômetros como os regos de Luziânia, Santa Cruz, Cidade de Goiás e Jaraguá”. Baiocchi dedicou-se a descrever o agrupamento, mencionou os possíveis traços de herança africana no grupo, abordou o universo cultural e preparou um Relatório Técnico Científico para demarcação do Sítio Histórico e Patrimônio Cultural Kalunga. Segundo a pesquisadora, as comunidades do Sítio Histórico e Patrimônio Cultural Kalunga - SHPCK estão localizadas em cinco núcleos: Contenda, Kalunga, Vão de Almas, Ribeirão dos Bois e Vão do Moleque, nos municípios de Monte Alegre, Cavalcante e Teresina de Goiás. São egressos das Minas de Ouro de Cavalcante, Monte Alegre, Arraias e Niquelândia, desde os séculos XVIII e XIX. Observa-se que, ao longo da história, vários quilombos foram dizimados, a exemplo do Quilombo dos Palmares, cuja existência foi registrada entre 1630 e 1695, na capitania de Pernambuco, hoje estado do Alagoas. Mas o Kalunga subsistiu até os dias de hoje devido à miscigenação com os indígenas e alguns posseiros que

O povo kalunga foi um excelente desbravador. Desmontou cascalhos, revirou grupiaras, deslocou rochedos, fez obras de engenharia com aterros e cortes por dezenas de quilômetros

BIO GRA FIA Na década de 1960, Mari Baiocchi estudou Antropologia com Antônio Theodoro da Silva Neiva, no Centro de Estudos Brasileiros (CEB) da Universidade Federal de Goiás (UFG). Tornou-se sua auxiliar em 1966 e veio a substituí -lo na UCG (hoje PUC) de 1967 a 1974. Assim, tornou-se Pesquisadora e Antropóloga Social após o doutorado na USP, tendo como orientador Dr. João Baptista Borges Pereira, sob cuja

orientação iniciou, em 1969, os estudos sobre as populações negras no estado de Goiás. Dez anos depois, obteve o doutorado na USP com a tese Os Negros de Cedro, que ganhou o Prêmio “Destaque e Citação de Relevância de Obra para a Compreensão das Relações de Raças nos Países em Desenvolvimento”, pelo Comitê Executivo do Conselho de Ciências Sociais da UNESCO, em Paris.

adentraram a região. Esse encontro se dá em um momento da história em que o isolamento impera, o que torna mais difícil o entrosamento do Povo Kalunga com os demais, haja vista as dificuldades geográficas que circundam a região, assim o efeito disso é um povo forte, unido e autêntico, além de certo “isolamento”, e também por causa de sua organização social e política muito peculiar. A partir da miscigenação biológico-cultural, principalmente com os autóctones, os Kalunga construíram cultura própria. Depois da abolição da escravatura se tornou comum os moradores do quilombo deixá -lo para ganhar a vida “lá fora”. Porém, conforme depoimentos colhidos pela autora, os Kalunga estabeleceram, com a sociedade regional, um processo de troca de produtos (troca por querosene, sal, farinha etc.). Em suma, “Kalunga - Povo da Terra” é um ensaio destinado aos que percebem os direitos humanos existindo a partir do momento em que se respeitam as diferenças e se incentiva a prática da tolerância e do bem comum.

Em 1981, iniciou o Projeto “Kalunga, Povo da Terra”, atendendo às demandas dos então 3.600 habitantes. A partir de 1983, contabilizou conquistas, como titulação e registro das terras em benefício dos moradores (1985), vacinação, atendimento médico, implantação de escolas, implantação do Sítio Histórico e Patrimônio Cultural Kalunga.” Raízes Jornalismo Cultural

11

poESia

magia negra sérgio vaz Magia negra era o Pelé jogando, Cartola compondo, Milton cantando. Magia negra é o poema de Castro Alves e o samba de Jovelina… Magia negra é Djavan, Emicida, Racionais MC´s, Thalma de Freitas, Simonal. Magia negra é Drogba, Fela kuti, Magia negra é dona Edith recitando poesia no Sarau da Cooperifa. Carolina de Jesus é pura magia negra. Garrincha tinhas 2 pernas mágicas e negras. James Brown e Milton Santos é pura magia. Não posso ouvir a palavra magia negra que me transformo num dragão. Michael Jackson e Michael Jordan é magia negra. Cafu, Milton Gonçalves, Dona Ivone Lara, Jeferson De, Robinho, Daiane dos Santos é magia negra. Magia Malê Luísa Mahin Calafate. Fabiana Cozza, Machado de Assis, James Baldwin, Alice Walker, Nelson Mandela, Tupac, isso é o que chamo de escura magia. Magia negra é Malcolm X. Martin Luther King, Mussum, Zumbi dos Palmares, João Antônio, Candeia e Paulinho da Viola. Usain Bolt, Elza Soares, Sarah Vaughan, Billie Holliday, Nina Simone é magia mais do que negra. Eu faço magia negra quando danço Fundo de Quintal e Bob Marley. Cruz e Sousa, Zózimo, Spike Lee, tudo é magia negra neles. Umoja, Espírito de Zumbi, Afro Koteban… É mestre Bimba, é Vai-Vai, é Mangueira, todas as escolas transformando quartas-feiras de cinzas em alegria de primeira. Magia negra é Sabotage, MV Bill, Anderson Silva e Solano Trindade. Ondjaki, Ana Paula Tavares, João Mello… Magia negra. Magia negra são os brancos que são solidários na luta contra o racismo. Magia negra é o RAP, O Samba, o Blues, o Rock, Hip Hop de Afrika Bambaataa. Magia negra é magia que não acaba mais. É isso e mais um monte de gente que é magia negra. O resto é feitiço racista.

iLustração ceLso moraes f

Raízes Jornalismo cultural

12

Raízes Jornalismo cultural

13

POLÍTICA

Florestan fernandes e a derrocada do mito

POR TAYNARA BORGES

Fundador da sociologia crítica no Brasil, Florestan Fernandes apresenta as chaves para destrancar o passado e desmascara a pecha de país justo e igualitário em suas relações sociais.

N

A pintura “Segunda Classe”, de Tarsila do Amaral retrata como o negro era visto no Brasil. (domínio público)

“ Tudo não passava

de um grande engodo, um desvario coletivo”.

Florestan Fernandes

Raízes Jornalismo Cultural

14

o Brasil, o mito da democracia racial ganhou corpo nos anos 1930, dentre outras coisas, pelas publicações do antropólogo e educador Gilberto Freyre que, embora não tenha cunhado o termo em nenhum de seus livros, foi o responsável por lançar as bases desse pensamento de que o Brasil seria uma sociedade sem “linha de cor”, ou seja, sem barreiras legais que impedissem a ascensão social de pessoas de cor a cargos oficiais ou a posições de riqueza ou prestígio. Em suma, uma sociedade em que todos tivessem oportunidades. Esse pensamento, que tomou forma durante a ditadura militar, quando as relações raciais sumiram de pauta e o racismo ganhou contornos de uma prática individual, vigorou na produção intelectual brasileira até que uma pessoa teve a coragem de colocar o dedo na ferida e dizer que tudo não passava de um grande engodo, um desvario coletivo. Esse foi Florestan Fernandes, político e sociólogo brasileiro, fundador da Sociologia Crítica, que descortina novos horizontes para a reflexão teórica e a interpretação da realidade social no Brasil. Fernandes inicia sua pesquisa com Roger Bastide sobre relações entre brancos e negros em São Paulo, ainda no ano de 1951, quando volta os olhos para o problema do negro e da escravidão, da passagem traumatizante do ex-escravo para a condição de homem livre e de cidadão. Mais do que um tema acadêmico para estudos, ele compreendia a questão como um dilema nacional e para o qual as soluções apresentadas até então eram irrelevantes e retóricas. Ele idealizava que “a democracia só será uma realidade quando houver, de fato, igualdade racial no Brasil e o negro não sofrer nenhuma espécie de discriminação, de preconceito, de estigma e segregação, seja em termos de classe, seja em termos de raça. Por isso, a luta de classes, para o negro, deve caminhar juntamente com a luta racial propriamente dita. Ele deve participar ativa e intensamente do movimento operário e sindical, dos partidos políticos trabalhistas, radicais e revolucionários, mas levando para eles as exigências específicas mais profundas da sua condição de oprimido maior. Ao mesmo tempo, o negro deve ter a

POLÍTICA

A Escola Nacional Florestan Fernandes (ENFF), em Guararema, na Região Metropolitana de São Paulo, é um centro de educação e formação, construído pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) (divulgação ENFF)

consciência de que sua emancipação coletiva põe o problema da democracia e de uma República democrática sem subterfúgios: a revolução dentro da ordem é insuficiente para eliminar as iniquidades educacionais, culturais, políticas etc. que afetam os estratos negros e mestiços da população. Mesmo quando o negro não sabe o que é socialismo, a luta por sua liberdade e igualdade possui uma significação socialista.” Para ele, a abolição da escravatura não foi, nem de longe, uma ação libertadora e igualitária para a população negra estabeleci-

da no Brasil. “O negro não ficou apenas à margem dessa revolução. Ele foi selecionado negativamente, precisando contentar-se com aquilo que, daí por diante, seria conhecido como ‘serviço de negro’: trabalhos incertos e brutos, tão penosos quanto mal remunerados. Em consequência, achou-se numa estranha situação. Enquanto a prosperidade bafejava todas as demais camadas da população, o ‘negro’ sentiu-se em apuros até para manter ou conquistar as fontes estáveis de ganho mais humildes e relegadas.”

Reprodução de notícia publicada pelo Jornal do Brasil sobre a morte do sociólogo com declarações de admiradores como Ruth Cardoso, Mário Covas, Lula e Cristovam Buarque.

A partir da releitura de teses de importantes nomes da intelectualidade nacional como Silvio Romero, Oliveira Vianna e Sérgio Buarque de Holanda, Florestan retoma autores do naipe de Euclides da Cunha, Manoel Bonfim e Caio Prado Júnior, com os quais dialoga explicitamente, inaugurando uma nova interpretação do Brasil, um novo estilo de pensar o passado e o presente, que revela a formação, os desenvolvimentos, as lutas e as perspectivas do povo brasileiro. Além disso, no âmbito da teoria sociológica, realizou uma obra fundamental ao dialogar com as principais correntes de pensamento do passado e presente, desde Spencer, Comte, Marx, Durkheim e Weber até Mannheim, Parsons, Merton e Marcuse, entre outros. A sociologia brasileira está amplamente marcada por sua obra e há quem diga que, dentro da produção acadêmica do Brasil, é aquela que apresenta maior leque de diversificações. Luciene Dias é Professora da Faculdade de Informação e Comunicação (FIC) da Universidade Federal de Goiás (UFG). Trabalha com pesquisas sobre relações étnico-raciais e de gênero em interface com os estudos de comunicação e da diferença e é a responsável pela Coordenadoria de Ações Afirmativas da universidade. Doutora em Antropologia Social pelo Departamento de Antropologia (DAN) da Universidade de Brasília (UnB), ela não hesita em afirmar que “a população negra no Brasil sofre um etnocídio permanente” e que “o racismo está presente nas relações sociais no Brasil desde a constituição do nosso país”. E, embora reconheça a grandeza e a força do legado do sociólogo Florestan Fernandes a respeito do tema, prefere traçar a linha que as pesquisadoras e os pesquisadores negros vêm elaborando em seus próprios movimentos e passando a ocupar lugares estratégicos na vida da coletividade, agenciando novas formas de viver: “isso é fantástico!”.

Raízes Jornalismo Cultural

15

POLÍTICA

Declaração de Luciene Dias O

Brasil é um país racista. O racismo está presente nas relações sociais no Brasil desde os primórdios. Nossas relações passam necessariamente por processos que racializam os sujeitos sociais. Todo brasileiro sabe exatamente quem é negro e quem não é quando entra em um elevador em um prédio de luxo. Mesmo ocupando vários postos de decisão, a população negra ainda ocupa majoritariamente as prisões, os bairros pobres, o sistema público de saúde e não raramente tem morte prematura e violenta. O Brasil, como toda sociedade civil organizada, é constituído a partir de muitos mitos. O mais pernicioso deles, no nosso caso, é o mito da democracia racial, que nega discursivamente o racismo, mas racializa as pessoas o tempo todo. Os olhares nos dão a certeza do nosso lugar nestas relações sociais. Para conseguirmos superar o imaginário nacional construído e consolidado pelo mito da democracia racial, teremos que lançar mão de ações afirmativas

pontuais. Cuidar e admitir nossos passivos históricos talvez seja o melhor caminho. Embora todos os movimentos tenham sua lógica e sua coerência internas, esses que defendem a necessidade de uma “segunda Abolição” parecem inadequados. Particularmente, penso que a proposta da Lei Áurea nunca foi “libertar” a população negra, mas sim entrar em sintonia com a emergência de um mercado de trabalho que acabou por absorver a mão de obra estrangeira e jogar nas ruas um sem número de pessoas negras que não foram absorvidas por esse mercado de trabalho. Falar em segunda abolição talvez não seja o caso, compreendo que a população negra no Brasil já dá sinais de que está assumindo a agência do seu processo de construção histórica. Estamos construindo nossa própria história e essa escrita tem que ter o nosso jeito de fazer as coisas. A relevância dos discursos sociológicos, em especial de Florestan Fernandes, é fundamental para construir imaginários nacio-

nais que nos façam agir no sentido de negar ou reforçar discursos racistas. Penso que hoje já temos pesquisadoras e pesquisadores negros elaborando nossos próprios movimentos e isso é fantástico porque quando passamos a ocupar lugares estratégicos na vida de uma coletividade, agenciamos novas formas de viver. Sou profundamente otimista com relação ao futuro da pessoa negra no Brasil. Hoje, nossas crianças já não têm vergonha de se afirmarem e nossa juventude já se engaja em movimentos de conquista equânime de espaços e poderes. Temos profissionais competentes em diversas áreas do conhecimento e não temos mais medo de conviver com a diferença. Contudo, um longo caminho ainda deve ser percorrido para que conquistemos uma sociedade sem racismo. A população negra ainda é vítima cotidiana de racismo e ainda tem que enfrentar situações que somente a força da lei consegue resolver.

BIO GRA FIA F

lorestan Fernandes foi mestre de sociólogos renomados como Octavio Ianni e Fernando Henrique Cardoso. Cassado com base no AI-5, em 1969, deixou o país e lecionou nas universidades de Columbia (EUA), Toronto (Canadá) e Yale (EUA). Retornou ao Brasil em 1972 e passou a lecionar na PUC-SP.

Raízes Jornalismo Cultural

16

Raízes Jornalismo Cultural

17

shutterstock

Raízes Jornalismo Cultural

18

Ecos do

racialismo As raízes eugenistas da visão policial sobre o negro

POR Paula Nogueira

A

importância do continente africano, bem como a sua memória coletiva, história, potencialidades, riquezas e belezas naturais, foram pautas constantes no mês de maio, mês em que se comemora, no dia 25, o Dia da África – um símbolo da luta dos povos desse continente contra a subordinação colonialista. A data foi instituída pela Organização da Unidade Africana (OUA) em 1963, ocasião em que chefes de 32 Estados Africanos se reuniram na cidade de Addis-Abeba, na Etiópia, visando tal enfrentamento. Ali, assinariam finalmente a carta que declarou a Libertação da África das garras europeias – garantida pela Partilha Africana, definida pela Conferência de Berlim, ainda na segunda metade do século XIX. No ano de 1972, o 25 de maio seria reconhecido pela ONU, em alusão ao reconhecimento da luta pela independência. Entretanto, ao lado da peleja pela emancipação africana, outros aspectos podem ser pensados, no sentido de questionar até que ponto houve uma verdadeira libertação do continente berço da humanidade e de seus povos – os quais conheceriam tão de perto o racismo, a exemplo do regime segregacionista do Apartheid, na República Sul Africana. Não por acaso a historiografia da África foi por tanto tempo ignorada – escuridão histórica, segundo Hegel – sendo pensada apenas a partir do elemento europeu. Nos próprios livros didáticos brasileiros ela é ainda um fato recente, ao qual muitos dos leitores não tiveram acesso, ou sequer foram provocados quanto à resistência africana frente ao imperialismo imposto.

Ainda hoje, se já assumimos esse continente como berço da única raça existente – a humana – ainda somos obrigados a admitir o quão pouco sabemos sobre ele, fato que nos leva a refletir também sobre a colonidade do nosso saber. Afinal de contas, um ponto é consenso: a história que nos é contada é, antes de tudo, a história dos vencedores. Talvez tenham nos ensinado o básico, mas que continua perdido quando olhamos para as relações raciais no Brasil. Sabemos que a história da humanidade deve muito à África, uma vez que o “Australopithecus” (surgido nas regiões da Etiópia e da África do Sul há mais de 3 milhões de anos) é a mais antiga espécie de hominídeo encontrada na Terra. Mas uma descoberta como essa não apaga as formas já institucionalizadas de racismo por essa mesma ciência ao longo dos séculos, que reverberaram em todo o mundo. O que dizer, afinal, sobre as suas consequências, que infelizmente permanecem atuais? Ao falarmos de “raça”, e inclusive saltando para o contexto brasileiro, alguns pontos precisam ser levados em consideração. Se em termos biológicos a ciência afirma a inexistência das raças, é desejável pontuar que a representação social brasileira da diferença será racializada, como nos lembra o antropólogo e professor da Universidade de Brasília, José Jorge Carvalho. Isso significa dizer que somos todos iguais, mas nem todos serão vistos socialmente dessa forma, considerando a existência da racialização fenotípica – o que abre margem para pensarmos o “nosso” racismo, que ao contrário do estadu-

nidense, de origem, é de marca no Brasil, bem como as suas consequentes outras violências – a exemplo da policial. Os casos envolvendo racismo e violência policial poderiam ser pontuais, mas não é o que os dados brasileiros relativos à violência contra a população negra revelam. Em estudo sobre o abuso policial em São Paulo, realizado pelo Gevac da UFSCar (Grupo de Estudos sobre Violência e Administração de Conflitos da Universidade Federal de São Carlos), o racismo institucional foi apontado como principal motivação. Ao considerarmos as ruas das cidades e os casos relatados, alguns pontos chamam a atenção para pensarmos a realidade, com a necessária atenção histórica ao que se tornou parte de um cotidiano. Voltando no tempo, percebemos que o processo de industrialização do século XIX não absorveu o recém-livre negro, que se viu na condição de desempregado. Sendo assim, as periferias e favelas continuariam historicamente ocupadas, em sua maioria, pela população negra, a quem os centros foram negados mesmo após a abolição da escravidão. Foi nesse contexto que surgiu um novo personagem da República: o vagabundo – não necessariamente alguém que não trabalhava, mas que não desempenhava atividades reconhecidas como trabalho. Ao mesmo tempo, o aparelho policial foi diretamente afetado pelas ideias racialistas, que têm fundo histórico nos adeptos do positivismo do século XIX e nos intelectuais influentes no país, como o médico Nina Rodrigues (1862-1906). Nesse contexto, cabia à polícia varrerdas ruas os vagabundos, que eram ainda punidos por exercer o trabalho não reconhecido naquele momento. Fazia parte do alvo policial também aquele que não possuía moradia. E se ainda no século XXI a atual polícia insiste em identificar suspeitos baseando-se nos traços físicos e cor de pele, essa identificação surge como validada pela ciência daquela época, com consequências extremas – a exemplo da eugenia, que sob o status de ciência ajudaria a embasar o nazismo e o holocausto. Fatos como esses demonstram então que, apesar de superado como ciência, as influências do racialismo de séculos atrás insistiriam em ecoar ainda em 2015 – o que torna urgente a sua discussão. Raízes Jornalismo Cultural

19

ECOS DO RACIALISMO

As cores das ciências no passado

O

ano é 1904. Henrique Roxo, médico brasileiro, em pronunciamento no Segundo Congresso Médico Latino -Americano, afirma que negros e pardos eram “tipos” inferiores que não evoluíram - e assim deveriam ser tratados. Haveria entre tais “tipos” uma carga hereditária “pesadíssima”, com maior propensão à “vadiagem, ao álcool e aos distúrbios mentais”. O médico também culpava a “repentina abolição” e o crescimento urbano pela degeneração de tais grupos. No início do século XX, não foi raro o emprego da noção de “loucura mestiça” entre os mais variados discursos de poder, incluindo instituições médicas e estatais. Ela atingiria negativamente inclusive alguns renomados artistas brasileiros, como foi o caso do escritor Lima Barreto, internado em um hospício no ano de 1914 por alcoolismo e “transformado num mulato” – que aqui significaria, de acordo com essa “ciência”, um completo degenerado - após a perda total de sua identidade. Em contrapartida, outros nomes, como Monteiro Lobato, flertariam com a eugenia. Em cartas reveladas em 2011, o escritor chegou a elogiar a entidade fundada no estado do Tennessee no fim da Guerra Civil Americana, a Ku Klux Klan, além de enaltecer práticas nazistas, como a instituição, na Alemanha, das Lebensborn, fazendas onde mãe solteiras criariam bebês “arianos”. A “teoria da degenerescência” surgira um século antes, com Morel (1809-1873). Segundo ela, haveria determinações hereditárias que guiariam as ações humanas. A “raça”, bem como seus estigmas, era um destino ao qual os sujeitos jamais escapariam. No século XIX, falava-se ainda em “estigmas de degeneração física”, termo que remete à antropologia criminal de Lombroso (1835-1909). Tal antropologia, que gozava do status científico, estudava as relações entre mestiçagem racial, criminalidade e loucura. A criminalidade seria um fenômeno físico e hereditário, que poderia ser detectável nas diferentes sociedades. Surge nesse contexto, portanto, a validação científica de uma noção perigosa: a de que a superfície do corpo seria capaz de expressar a profundeza de um espírito, assim como o caráter individual e social. Essa validação contribuiria para que o negro e o mestiço fossem enclausurados a uma marginalidade por mais tempo do que se poderia imaginar.

Raízes Jornalismo Cultural

20

Operação policial no Rio de Janeiro | divulgação PMERJ

Segundo os resultados da pesquisa do Gevac, dois em cada três jovens mortos pela polícia paulista são negros e 79% dos policiais envolvidos são brancos.

Dados claros, realidade obscura



S

éculo XXI. De acordo com os resultados da pesquisa do Gevac, dois em cada três jovens mortos pela polícia paulista são negros e 79% dos policiais envolvidos são brancos. Os dados abarcaram os anos de 2009 e 2011 e a análise sobre taxas de 100 mil habitantes indica que a mortalidade da população negra é pelo menos três vezes maior que a de brancos. No que concerne aos jovens entre 15 e 19 anos, são negras duas a cada três pessoas mortas pela PM paulista. A coordenadora da pesquisa, Jacqueline Sinhoretto, já desmentiu publicamente o mito de que os números seriam proporcionais à população – em São Paulo, apenas 30% dela é negra. As conclusões do estudo afirmam não ser possível analisar, no entanto, se negros cometem ou não mais crimes. O que ocorre-

ria seria um racismo construído a partir da concepção incorporada das próprias ações públicas – o que indica que há apenas uma vigilância policial que recai de forma mais intensa à população com determinado perfil: jovens negros e com determinadas características físicas. Mais vigiadas, seriam também mais facilmente surpreendidas ao cometerem delitos. Mas os dados de violência - institucionalizada ou não - não ficam restritos apenas à realidade paulista. De acordo com o Mapa da Violência 2012: a cor dos homicídios no Brasil, coordenado por Julio Waiselfisz, da Área de Estudos sobre Violência da Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (Flacso), a população negra teve uma taxa de morte por homicídio 73,1% maior que a população branca - o que demonstra a vulnerabilidade desse grupo social.

ECOS DO RACIALISMO

o olhar enviesado “S

er negro no Brasil é, com frequência, ser objeto de um olhar enviesado”. A frase é do geógrafo e professor emérito da Universidade de São Paulo (USP), Milton Santos, reconhecido como um dos maiores nomes dos estudos de urbanização do Terceiro Mundo. Ele ressaltou como os corpos das pessoas, bem como a cor que carregam, têm um significado imenso enquanto marca visível no Brasil. É esse racismo “de marca”, inclusive, que difere o racismo brasileiro do racismo norte-americano, o “de origem”. Aqui, as cores e traços físicos visíveis seriam responsáveis, ao lado de outros marcadores sociais como classe e gênero, pelo tom como os cidadãos seriam vistos e tratados pelo Estado e sociedade. Melhor dizendo: ditariam, em conjunto, quem poderia, de fato, reivindicar cidadania brasileira. Ainda de acordo com o pensamento de Milton Santos, o caso dos negros no Brasil é emblemático, considerando a cidadania mutilada. Haveria convicções escravocratas arraigadas, fruto de interesses cristalizados, e que incidiriam sobre outros aspectos das relações sociais. O que o professor Milton Santos nos conta é denominador comum, resultado também de sua vivência: mais do que o caráter ou o “espírito”, o corpo permanece

com um peso enorme na esfera pública, que dependendo de seus marcadores, pode ser fardo ou alívio. Em particular, o corpo negro ainda é tomado como informante por determinadas instituições, que nos traços físicos buscam decodificar quem são os “homens de bem”, ou os “mais iguais” perante uma tão desrespeitada lei. Em poucas palavras: mesmo com dois séculos de distância, nada muito diferente da antropologia criminal de Lombroso, que identificava na medição do crânio o tamanho de um caráter. Na espiral midiática do silêncio permanece a constituição desse olhar enviesado como parte de uma estrutura muito anterior às próprias instituições. Em contrapartida, estudos crescentes mostram os efeitos contemporâneos do racismo científico. Na dissertação de mestrado da socióloga Lívia Maria Terra, intitulada “Negro suspeito, negro bandido: um estudo sobre o discurso policial” (Unesp Araraquara, 2010), por exemplo, é argumentado como os modelos de pensamento adotados no Brasil se relacionaram com os processos históricos e políticos de épocas marcadas, contribuindo para a formação de um “sujeito perigoso, criminoso – uma identidade bandida”. Esse discurso serviria para legitimar uma ordem vigente, que determinaria

quais sujeitos poderiam ocupar quais espaços – discurso que não por acaso se assemelha aos modelos científicos empregados no século XIX. Ainda hoje, ao pensarmos a negritude Brasil-África, pode-se questionar: o que permanece, aqui e lá, da violência das relações de poder imperialistas? E em que medida a própria ciência – esta que hoje afirma a não-existência das raças - não permanece inserida nesses discursos de poder? Pode-se, inclusive, questionar: por que não ocupariam os negros, em grandes números, o centro - as ciências? Ademais, o que significa termos, no Brasil, uma historiografia da África tão apagada, aliada a uma ausência de cientistas e professores universitários negros, assim como a uma imensa resistência ao ensino de cultura africana, a exemplo das religiões dessa matriz, nas escolas? Quais violências, afinal, ainda perpetuamos cotidianamente? Questionamentos que, sem dúvidas, reverberarão enquanto houver uma sociedade armada por suas instituições, que insista nas variadas formas de encarceramento social.

Entre corpos nas ruas, celas cinzas e ciência Por que o racismo científico do século XIX e a abordagem policial brasileira contemporânea são lados de uma mesma algema

Operação policial no Rio de Janeiro | divulgação Portal Cidadão

M

arço de 2014. Rio de Janeiro. A auxiliar de serviços gerais Cláudia Silva é arrastada no asfalto por um carro da Polícia Militar (PM) durante um “resgate”. Comandando o veículo, três policiais do batalhão historicamente considerado um dos mais violentos do Rio, cujos membros ficaram conhecidos como “Cavalos

Corredores” na época da Chacina de Vigário Geral. Fevereiro de 2015, madrugada do dia 6. No bairro Cabula, em Salvador (BA), 12 jovens negros são executados pela PM. A versão dos moradores se contrapõe à da Secretaria de Segurança Pública e alega chacina. Meses antes, em agosto de 2014, no mesmo estado, um jovem negro de 22 anos desaparece: levado pela PM,

seria encontrado 15 dias depois, com o corpo esquartejado e carbonizado. Em comum ao caso de Cláudia, este último viria à tona porque fora filmado e divulgado na internet. Entretanto, muitos outros corpos violentados permaneceriam esquecidos, resumidos à escuridão das ruas e dos becos imundos – de onde há quem acredite que nunca deveriam ter saído.

Raízes Jornalismo Cultural

21

As diferenças da igualdade

30 anos no corredor da morte

A

Anthony Ray | Bob Farley - EPA

nthony Ray Hinton tinha 29 anos quando foi condenado à morte por dois homicídios em 1985, nos Estados Unidos. Depois de três décadas em uma prisão do Alabama, seu caso foi revisto recentemente - a condenação foi revertida após testes com as balas usadas nos crimes não comprovarem que elas haviam saído da arma encontrada na casa de Hinton. Em entrevista à BBC, ele afirmou que a cor da sua pele foi determinante para a condenação. “Meu caso foi construído em cima de racismo e mentira”, disse. “Eles tinham apenas um jovem negro – eu tinha 29 anos e não tinha dinheiro – e isso nos Estados Unidos, especialmente no Sul, significa condenação.” Não houve testemunhas, nem impressões digitais encontradas que comprovassem a culpa de Hinton no homicídio de dois gerentes de restaurantes. Hinton tinha um álibi para comprovar sua inocência, mas os investigadores nunca foram checá-lo. “Eu estava no trabalho quando um dos crimes aconteceu. Isso não era o suficiente para eles.” Hinton conta que procura viver ‘um minuto de cada vez’ agora que saiu da prisão e que sua maior tristeza é “estar livre e não poder ver sua mãe”, que faleceu em 2002. De acordo com Hinton, a própria polícia o havia ‘sentenciado’ antes do julgamento. “Eles disseram: ‘primeiro de tudo, você é negro; segundo, você já teve passagem na

prisão; terceiro, você terá um juiz branco; quarto, você provavelmente terá um júri branco; e quinto, quando a promotoria juntar tudo, você sabe o que vai dar: condenação, condenação, condenação, condenação, condenação.” Depois de 30 anos preso, o réu acredita que seu caso teria tido tratamento diferente se fosse branco. “Acho que se eu fosse branco, eles teriam testado a arma e veriam que as balas não poderiam ter vindo dela, e eu teria sido libertado. Mas quando você é pobre e negro nos Estados Unidos, você tem grandes chances de ir para a cadeia por um crime que não cometeu.” Uma das primeiras coisas que Hinton fez ao sair da prisão foi visitar o túmulo da mãe – ela faleceu quando ele ainda estava na cadeia. Questionado se sentia raiva das pessoas que o condenaram, Hinton respondeu: “Sou uma pessoa alegre. Tenho um bom senso de humor e foi isso que me manteve vivo nesses 30 anos. Eu não odeio ninguém, não guardo raiva, vou continuar rezando pelos que fizeram isso comigo, como rezei nos últimos 30 anos. Porque nesse tempo todo, eu não deixei que eles levassem minha alegria. Se eu tivesse deixado, eles teriam vencido. Eu me recuso a dar a eles minha felicidade.”

hurricane “H

urricane” é uma canção de protesto de Bob Dylan co-escrita com Jacques Levy, sobre a prisão indevida de Rubin “Hurricane” Carter, um boxeador negro cuja carreira estava em ascensão. Ele descreve alegados atos de racismo contra Carter. Dylan foi inspirado a compor a canção depois de ler a autobiografia de Carter,The Sixteenth Round, criada para o “African-American Civil Rights Movement (1955-1968)”, um movimento afroamericano para a luta pelos direitos civis. A história – Carter e um homem chamado John Artis foram acusados e julgados pelo triplo homicídio qualificado ocorrido no restaurante Lafayette Grill, localizado em Paterson, New Jersey, em 1966. Carter e Artis foram condenados pelo crime, de motivação racista. Foram verificadas diversas inconsistências nas acusações e controvérsias da parte da acusação. Mesmo assim, houve a condenação. Trecho da canção: “Tiros de pistola ouvidos no bar/ Patty Valentine entra pelo corredor de cima/ Ela vê o bartender em uma poça de sangue/ Grita, ‘Meu Deus, eles mataram todos!’/ Aqui vem a história do Hurricane/ O homem que a polícia veio culpar/ Por algo que ele não fez/ Foi colocado em uma cela, mas um dia poderia ter sido/ O campeão do mundo”.

Paula nogueira

Raízes Jornalismo Cultural

22

É jornalista, especialista em comunicação e marketing e mestranda em Antropologia Social, na linha de pesquisa “corpo, representações e marcadores sociais da diferença”.

ILUSTRAÇÃO CELSO MORAES F

HoMEnagEM

selVo aFoNso Um olhar mirado nos povos africanos e nas questões sociais.

S

elvo Afonso é um artista que se caracteriza por retratar o ser humano em todo o contexto social, menor abandonado, negro, índio… Usa com domínio incomparável a técnica do aerógrafo. Arredio às criticas, o artista tem compromisso apenas com os personagens que retrata nas telas e com os apreciadores de sua arte. A paixão pelo trabalho o leva a romper horizontes e a conquistar fronteiras que por longos anos aprendeu a usar. Isso é exercitar o dom da criação. Formado em Artes Visuais na UFG, Selvo Afonso descobriu que os povos da África seriam parte integrante do seu trabalho nos anos 1970, quando iniciou a carreira profissional. Em 35 anos, realizou mais de 300 exposições individuais e coletivas, conquistou importantes premiações e o reconhecimento da crítica. Além das mostras em museus e galerias de arte, expõe e comercializa seus trabalhos na Feira do Cerrado (Parque da Criança – Jardim Goiás) às quintas e domingos, o que torna sua arte acessível aos mais variados tipos de público. Neste espaço prestamos a ele a nossa homenagem.

Raízes Jornalismo cultural

23

Raízes Jornalismo Cultural

24

pIrENÓpOLIS tradição e fé

por aDriano curaDo

O culto ao Divino Espírito Santo une a cidade e atrai turistas

D

urante o período de Pentecostes, cinquenta dias após a Páscoa, Pirenópolis se rende à barulhenta e colorida Festa do Divino Espírito Santo, que foi tombada pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) como patrimônio cultural imaterial brasileiro. O registro mais antigo da festa data de 1819, mas há indícios de que ela já existia bem antes. Fato é que, após ser criado na cidade, o evento passou a ser comemorado todos os anos, até se tornar uma forte e enraizada tradição.

Há um festeiro, a quem chamam de “imperador”, que é sorteado entre candidatos previamente inscritos. Ele administra o andamento dos festejos, dá refeição aos que participam dos eventos, e o auge do seu reinado será o cortejo imperial no chamado Domingo do Divino. Dentro de um quadro, coroa na cabeça e cetro na mão, cercado por um cordão de virgens, segue ele pelas ruas enfeitadas com bandeirolas coloridas, enquanto é saudado pelo povo.

Raízes Jornalismo cultural

25

tradição

Mas a festa, na verdade, começa bem antes disso. Nas duas semanas anteriores ao Domingo do Divino, saem as folias que percorrerão as zonas rural e urbana. Os foliões seguem empunhando a bandeira do Divino, buscam arrecadar donativos para o imperador. Nas fazendas, há altares ricamente ornados, mesas imensas com fartura de comida e cantoria madrugada afora. São os pousos da folia. Embora a Festa do Divino de Pirenópolis seja mais conhecida pelas apresentações das Cavalhadas, o folguedo somente foi encenado a partir de 1826, por iniciativa do Padre Manuel Amâncio da Luz. E nem todos os anos havia Cavalhadas, porque sua apresentação dependia da vontade do imperador, que arcava com os altos gastos das vestimentas dos cavaleiros. Nos dias atuais, no entanto, os custos de

quase toda a festa são pagos pelo Governo de Goiás. Ainda sobre as Cavalhadas, é um espetáculo grandioso que envolve dezenas de pessoas em torno dos vinte e quatro cavaleiros. Há as bordadeiras, os lanceiros, aqueles que cuidam dos animais, e por aí vai. As “guerras” entre mouros e cristãos se estendem por três dias: domingo, segunda e terça-feira. Entre uma coreografia e outra, entram no campo os mascarados, anônimos populares que divertem a plateia com gracejos, palhaçadas e peripécias sobre os cavalos. Nas madrugadas geladas, a cidade é despertada pelos foguetes e pelo som hipnotizante da banda Fênix, convite para seguir o cortejo da alvorada pelo sobe e desce das ruas de pedras imprecisas. E todos param lá na casa do imperador, tomam café, ou-

vem o tradicional Hino do Divino. Há emoções, vivas, e mais foguetes. Impressionante também é a batida ritmada da chamada “banda de couro”, como se os africanos escravizados ainda andassem pelas ruas a bater seus tambores de banzo. Esse conjunto musical, formado por instrumentos de percussão e um de sopro, geralmente um saxofone, sai em alvorada antes da Fênix e por onde passa desperta na gente uma nostalgia estranha, semelhante a um portal do tempo que se abre e nos leva para épocas distantes. Já ocorreram festas mais animadas que as dos tempos atuais, quando, além das Cavalhadas, havia peças variadas de teatro, Pastorinhas, danças dramatizadas, Batalhão de Carlos Magno, leilões etc. Essas manifestações artísticas marcaram de tal forma a cidade que ficaram gravadas na memó-

Figurinos de deslumbrante riqueza visual compõem o cenário da batalha. (Ney Couteiro)

A representação do puro na beleza feminina jovem. (Ney Couteiro)

Raízes Jornalismo Cultural

26

Atrás das máscaras, os atores tornam-se personagens. (Ney Couteiro)

tradição

ria coletiva. Famosa e lendária, por exemplo, foi a festa do ano imperial do coronel Francisco José de Sá (1917), pela fartura de comida, bebidas e foguetes. Também ficou registrada na memória a festa de Geraldo d’Abadia de Pina (1969), porque houve divulgação para o País todo e foi a primeira vez que a cidade se encheu de turistas. Um fato interessante que deve ser ressaltado é a apresentação já tradicional do teatro de revista chamado “As Pastorinhas”. No ano de 1922, um telegrafista de nome Alonso, ao ser transferido para Pirenópolis, trouxe essa novidade que encantou a todos. Era uma peça toda bailada que encenava a visita de pastoras ao Menino Jesus. Foi apresentada na cidade, mas não fez muito sucesso porque os pais não quiseram que as filhas participassem. No ano seguinte, no entanto, foi sorteado imperador o maestro Joaquim Propício de Pina, fundador da banda Fênix. Ele então orquestrou as músicas, enquanto José Assuério de Siqueira copiava as falas dos personagens. Foi um êxito total. Ocorre que, chegado o momento de partida de Alonso, ele não quis doar o material para Pirenópolis e logo recolheu tudo e partiu. Só não sabia que cópias clandestinas tinham ficado. Hoje a peça é obrigatoriamente encenada durante os festejos e, inclusive, se tornou uma espécie de momento debutante das moças. Mas, voltando a falar das festividades, são dias de muita agitação em Pirenópolis. O espírito da festa encarna no povo e desperta a espontaneidade, diferencial que a torna singular. E é então que o cidadão decide participar de alguma maneira para o engrandecimento do evento, passando a contribuir, por exemplo, com o coro Senhora do Rosário, com a catira, Pastorinhas, congo (ou congada) e fabricação de verônicas e alfenins. O culto ao Espírito Santo é sempre bastante colorido e barulhento, uma manifestação de muita alegria e vida. Não há espaço para lamentações e melancolias. Até o relembrar dos que se foram é gracioso e ruidoso. Falo disso com tamanha certeza porque minha família fez seis imperadores, e portanto a festa esteve várias vezes dentro de nossa casa. A presença da coroa na sala principal, os enfeites com toalhas e cortinas em vermelho vivo e rutilante é um sentimento que extrapola o conceito de emoção. Palpita algo estranho dentro da gente. Passamos a meditar no significado de tudo aquilo, na responsabilidade de ter em nossa guarda uma peça histórica de quase dois séculos. Tudo isso muda nossa concepção íntima sobre o sentido da festa e até mesmo da real extensão da nossa fé no Criador. A Festa do Divino somente sobrevive há tantos anos porque o povo participa de forma espontânea e envolvente. Se fosse algo imposto ou regrado, já teria desaparecido faz tempo. E quanto ao seu futuro, dependerá do despertar da cultura no espírito dos jovens, pois são eles que sucederão a atual geração e tocarão adiante tão salutar manifestação folclórica.

adriano curado É escritor

As novas gerações seguem a tradição dos antepassados. (Ney Couteiro)

Raízes Jornalismo Cultural

27

tradição

“Comer,

rezar

e amar”

Artista homenageado Selvo Afonso (divulgação)

E

sse é título do filme de Ryan Murphy, baseado no romance de Elizabeth Gilbert, que aproveitei para falar da importância dos alimentos no dia a dia católico, dos pirenopolinos e, porque não dizer, dos goianos. Quarenta dias depois da quarta-feira de cinzas, temos a Semana Santa e, 40 dias depois desta, temos a celebração da Festa do Divino e a Folia do Divino Espírito Santo em Pirenópolis, evento que se encerra com as Cavalhadas. É festa que não acaba mais: são pousos, carreatas, procissões, comitivas, foguetes, cavalos e mais cavalos! Embalado pela fé, o povo festeiro não dispensa uma boa moda sertaneja, nem uma cervejinha (porque ninguém é de ferro). Existem dois tipos de folia, a folia da roça (ou rural) e a folia da cidade. Durante os dias de festa, uma infinidade de cerimônias toma conta de Pirenópolis e arredores, mas sempre tendo como figuras centrais a religiosidade e a comida. São fartos cafés da manhã, farofas de todos os tipos e muito ricas, e as famosas tachadas. Os romeiros e os membros das comitivas são sempre muito bem recebidos por onde passam, aonde chegam tem comida quente, farta, bem temperada e embalada por modas e cantigas religiosas. É muito interessante a gente observar que essas tradições provêm de períodos onde a realeza comandava. Todos sabem que o “povo” reage muito melhor com a barriga cheia e o coração feliz. Os Reis se achavam no dever de dividir todo o seu fausto e fartura com os menos bafejados pela sorte, e assim segue até os dias de hoje a tradição. Outro costume que chama a atenção é a confecção das “Verônicas”, tidos como doces santos. A iguaria consiste basicamente de água, açúcar e limão. É venerada pelos católicos que, inclusive, ao invés de comer os docinhos, muitas vezes os colocam no fundo de seus potes de mantimentos básicos, para que durante o ano nada falte em seus lares. É um trabalho lindo, artesanal, delicado, que traz cunhado o nome do Imperador da festa naquele ano. Um grupo de abnegados senhores e senhoras fica em um galpão aberto a todos Raízes Jornalismo Cultural

28

POR josé augusto de souza

que queiram colaborar. Envoltos em uma nuvem de algodão quente suspenso no ar, cumprem o seu ofício de fabricar as santidades em forma de medalhões. A gente pode observar que essas tradições acabam reverberando no dia a dia dos restaurantes de Pirenópolis, mesmo fora da época dos festejos pode-se encontrar comida farta, comercializada por preços convidativos e quase sempre com cozinhas comandadas por matriarcas e patriarcas, o restante da família se incumbe dos demais serviços. Atender bem, com fartura e bom preço, é tradição. Portanto, meus amigos, malas no carro e sigam com destino a Pirenópolis! Com festa ou não, a cidade tem muito a oferecer: cachoeiras de uma beleza cinematográfica, um sem-número de opções de pousadas, restaurantes, cafés, docerias, lojas de artesanato... e uma noite recheada de atrações cada vez melhores. Tudo isso te espera. Fica a dica. Conheçam a riqueza dos cardápios dessa linda cidade, onde até a comida é santa.

A fartura e a fé das Verônicas

josé augusto de de souza É jornalista e crítico de gastronomia

O empadão goiano traz o espírito dessa terra Acolhedora, deliciosa, cheia de segredos e mistérios. (rafaella pessoa)

litEratura

o embondeiro que sonhava pássaros pássaros, todos os que no chão desconhecem morada. 

Nota da reVisÃo: o conto a seguir

segue o estilo e as normas usadas em moçambique. há expressões que a princípio podem causar estranheza, mas nenhuma delas trava o entendimento do que se escreveu. e as palavras “novas” somente enriquecem o vocabulário do leitor brasileiro. iLustração rauBher neLson

E

sse homem sempre vai ficar de sombra: nenhuma memória será bastante para lhe salvar do escuro. Em verdade, seu astro não era o Sol. Nem seu país era a vida. Talvez, por razão disso, ele habitasse com cautela de um estranho. O vendedor de pássaros não tinha sequer o abrigo de um nome. Chamavam-lhe o passarinheiro. Todas manhãs ele passava nos bairros dos brancos carregando suas enormes gaiolas. Ele mesmo fabricava aquelas jaulas, de tão leve material que nem pareciam servir de prisão. Parecia eram gaiolas aladas, voláteis. Dentro delas, os pássaros esvoavam suas cores repentinas. À volta do vendedeiro, era uma nuvem de pios, tantos que faziam mexer as janelas: - Mãe, olha o homem dos passarinheiros! E os meninos inundavam as ruas. As alegrias se intercambiavam: a gritaria das aves e o chilreio das crianças. O homem puxava de uma muska (Muska - nome que, em chissena, se dá à gaita-de-beiços.) e harmonicava sonâmbulas melodias. O mundo inteiro se fabulava. Por trás das cortinas, os colonos reprovavam aqueles abusos. Ensinavam suspeitas aos seus pequenos filhos - aquele preto quem era? Alguém conhecia recomenda-

ções dele? Quem autorizara aqueles pés descalços a sujarem o bairro? Não, não e não. O negro que voltasse ao seu devido lugar. Contudo, os pássaros tão encantantes que são - insistiam os meninos. Os pais se agravavam: estava dito. Mas aquela ordem pouco seria desempenhada. Mais que todos, um menino desobedecia, dedicando-se ao misterioso passarinheiro. Era Tiago, criança sonhadeira, sem outra habilidade senão perseguir fantasias. Despertava cedo, colava-se aos vidros, aguardando a chegada do vendedor. O homem despontava e Tiago descia a escada, trinta degraus em cinco saltos. Descalço, atravessava o bairro, desaparecendo junto com a mancha da passarada. O sol findava e o menino sem regressar. Em casa de Tiago se poliam as lástimas: Descalço, como eles. O pai ambicionava o castigo. Só a brandura materna aliviava a chegada do miúdo, em plena noite. O pai reclamava nem que fosse esboço de explicação: - Foste a casa dele? Mas esse vagabundo tem casa? A residência dele era um embondeiro, o vago buraco do tronco. Tiago contava: aquela era uma árvore muito sagrada, Deus a plantara de cabeça para baixo. - Vejam só o que o preto anda a meter

na cabeça desta criança. O pai se dirigia à esposa, encomendando-lhe as culpas. O menino prosseguia: é verdade, mãe. Aquela árvore é capaz de grandes tristezas. Os mais velhos dizem que o embondeiro, em desespero, se suicida por via das chamas. Sem ninguém pôr fogo. É verdade, mãe. Disparate - suavizava a senhora. E retirava o filho do alcance paterno. O homem então se decidia a sair, juntar as suas raivas com os demais colonos. No clube, eles todos se aclamavam: era preciso acabar com as visitas do passarinheiro. Que a medida não podia ser de morte matada, nem coisa que ofendesse a vista das senhoras e seus filhos. O remédio, enfim, se haveria de pensar. No dia seguinte, o vendedor repetiu a sua alegre invasão. Afinal, os colonos ainda que hesitaram: aquele negro trazia aves de belezas jamais vistas. Ninguém podia resistir às suas cores, seus chilreios. Nem aquilo parecia coisa deste verídico mundo. O vendedor se anonimava, em humilde desaparecimento de si: - Esses são pássaros muito excelentes, desses com as asas todas de fora. Os portugueses se interrogavam: onde desencantava ele tão maravilhosas criaturas? onde, se eles tinham já desbravado os Raízes Jornalismo cultural

29

literatura

mais extensos matos? O vendedor se segredava, respondendo um riso. Os senhores receavam as suas próprias suspeições - teria aquele negro direito a ingressar num mundo onde eles careciam de acesso? Mas logo se aprontavam a diminuir-lhe os méritos: o tipo dormia nas árvores, em plena passarada. Eles se igualam aos bichos silvestres, concluíam. Fosse por desdenho dos grandes ou por glória dos pequenos, a verdade é que, aos pouco-poucos, o passarinheiro foi virando assunto no bairro do cimento. Sua presença foi enchendo durações, insuspeitos vazios. Conforme dele se comprava, as casas mais se repletavam de doces cantos. Aquela música se estranhava nos moradores, mostrando que aquele bairro não pertencia àquela terra. Afinal, os pássaros desautenticavam os residentes, estrangeirando-lhes? Ou culpado seria aquele negro, sacana, que se arrogava a existir, ignorante dos seus deveres de raça? O comerciante devia saber que seus passos descalços não cabiam naquelas ruas. Os brancos se inquietavam com aquela desobediência, acusando o tempo. Sentiam ciúmes do passado, a arrumação das criaturas pela sua aparência. O vendedor, assim sobremisso, adiantava o mundo de outras compreensões. Até os meninos, por graça de sua sedução, se esqueciam do comportamento. Eles se tornavam mais filhos da rua que da casa. O passarinheiro se adentrara mesmo nos devaneios deles: - Faz conta eu sou vosso tio. As crianças emigravam de sua condição, desdobrando-se em outras felizes existências. E todos se familiavam, parentes aparentes. - Tio? Já se viu chamar de tio a um preto? Os pais lhes queriam fechar o sonho, sua pequena e infinita alma. Surgiu o mando: a rua vos está proibida, vocês não saem mais. Correram-se as cortinas, as casas fecharam suas pálpebras. Parecia a ordem já governava. Foi quando surgiram as ocorrências. Portas e janelas se abriam sozinhas, móveis apareciam revirados, gavetas trocadas. Em casa dos Silvas: Quem abriu este armário? Ninguém, ninguém não tinha sido. O Silva maior se indignava: todos, na casa, sabiam que naquele móvel se guardavam as armas. Sem vestígios de força, quem podia ser o arrombista? Dúvida do indignatário. Em casa dos Peixotos: - Quem espalhou alpista na gaveta dos documentos?  O qual, ninguém, nenhum, nada. O Peixoto máximo advertia: vocês muito bem sabem que tipo de documentos tenho aí guardados. Invocava suas secretas funções, seus sigilosos assuntos. O alpisteiro que se denunciasse. Merda da passarada, resmungava. No lar do presidente do município: - Quem abriu a porta dos pássaros?  Ninguém abrira. O governante, em desgoverno de si: ele tinha surpreendido uma ave dentro do armário. Os sérios requerimentos municipais cheios de caganitas. - Vejam este: cagado mesmo na estampilha oficial. No somado das ocorrências, um geral alvoroço se instalou no bairro. Os colonos se reuniram para labutar em decisão. Se juntaram em casa do pai de Tiago. O menino iludiu a cama, ficou na porta escutando as graves ameaças. Nem esperou escutar a sentença. Lançou-se pelo mato, rumo ao embondeiro. O velho lá estava ajeitando-se no calor de uma fogueiRaízes Jornalismo Cultural

30

ra. - Eles vem aí, vêm-te buscar. Tiago ofegava. O vendedor não se desordenou: que já sabia, estava à espera. O menino se esforçava, nunca aquele homem lhe tivera tanto valor. - Foge, ainda dá tempo. Mas o vendedor se confortava, em sonolentidão. Sereno, entrou no tronco e ali se ademorou. Quando saiu já vinha gravatado, de fato mesungueiro (Mesungueiro - de “mesungo”, homem branco). De novo, se sentou, limpando as areias por baixo. Depois, ficou varandeando, retocando o horizonte. - Vai, menino. É noite. Tiago deixou-se. Espreitava o passarinheiro, aguardando o seu gesto. Ao menos, o velho fosse como o rio: parado, mas movente. Enquanto não. O vendedeiro se guardava mais em lenda que em realidade. E porquê vestiste o fato? Explicou: ele é que era natural, rebento daquela terra. Devia de saber receber os visitantes. Lhe competia o respeito, deveres de anfitrião.  - Agora, você vai, volta na sua casa.  Tiago levantou-se, difícil de partir. Olhou a enorme árvore, conforme lhe pedisse protecção.  - Está a ver a flor? - perguntou o velho. E lembrou a lenda. Aquela flor era moradia dos espíritos. Quem que fizesse mal ao embondeiro seria perseguido até ao fim da vida. Barulhosos, os colonos foram chegando. Cercaram o lugar. O miúdo fugiu, escondeu-se, ficou à espreita. Ele viu o passarinheiro levantar-se, saudando os visitantes. Logo procederam pancadas, chambocos, pontapés. O velho parecia nem sofrer, vegetável, não fora o sangue. Amarram-lhe os pulsos, empurraram-lhe no caminho escuro. Os colonos foram atrás deixando o menino sozinho com a noite. A criança se hesitava, passo atrás, passo adiante. Então, foi então: as flores do embondeiro tombaram, pareciam astros de feltro. No chão, suas brancas pétalas, uma a uma, se avermelharam. O menino, de pronto, se decidiu. Lançou-se nos matos, no encalço da comitiva. Ele seguia as vozes, se entendendo que levavam o passarinheiro para o calabouço. Quando se ensombrou por trás do muro, no próximo da prisão, Tiago sufocava. Valia a pena rezar? Se, em volta, o mundo se despojara das belezas. E, no céu, tal igual o embondeiro, já nenhuma estrela envaidecia. A voz do passarinheiro lhe chegava, vinda de além-grades. Agora, podia ver o rosto de seu amigo, o quanto sangue lhe cobria. Interroguem o gajo, espremam-no bem. Era ordem dos colonos, antes de se retirarem. O guarda continenciou-se, obediente. Mas nem ele sabia que segredos devia arrancar do velho. Que raivas se comprovavam contra o vendedor ambulante? Agora, sozinho, o retrato do detido lhe parecia isento de suspeita. - Peço licença de tocar. É uma música da sua terra, patrão. O passarinheiro ajeitou a harmónica, tentou soprar. Mas recuou da intenção com um esgar. - Me bateram muito-muito na boca. É muita pena, senão havia de tocar.  O polícia lhe desconfiou. A gaita-de -beiços foi lançada pela janela, caindo junto do esconderijo de Tiago. Ele apanhou o instrumento, juntou seus bocados. Aqueles pedaços lhe semelhavam sua alma, carecida de mão que lhe fizesse inteira. O menino se enroscou, aquecido em sua própria redondura. Enquanto embarcava no sono levou a muska à boca e tocou como se fizesse

o seu embalo. Dentro, quem sabe, o passarinheiro escutasse aquele conforto? Acordou num chilreino. Os pássaros! Mais de infinitos, cobriam toda a esquadra. Nem o mundo, em seu universal tamanho, era suficiente poleiro. Tiago se acercou da cela, vigiou o calabouço. As portas estavam abertas, a prisão deserta. O vendedor não deixara nem rasto, o lugar restava amnésico. Gritou pelo velho, responderam os pássaros. Decidiu voltar à árvore. Outro paradeiro para ele já não existia. Nem rua nem casa: só o ventre do embondeiro. Enquanto caminhava, as aves lhe seguiam, em cortejo de piação, por cima do céu. Chegou à residência do passarinheiro, olhou o chão coberto de pétalas. Já vermelhas não estavam, regressadas ao branco originário. Entrou no tronco, guardou-se na distância de um tempo. Valia a pena esperar pelo velho? No certo, ele se esfumara, fugido dos brancos. No enquanto, ele voltou a soprar na muska. Foi-se embalando no ritmo, deixando de escutar o mundo lá fora. Se guardasse a devida atenção, ele teria notado a chegada das muitas vozes. - O sacana do preto está dentro da árvore.  Os passos da vingança cercavam o embondeiro, pisando as flores. - É o gajo mais a gaita. Toca, cabrão, que já danças! As tochas se chegaram ao tronco, o fogo namorou as velhas cascas. Dentro, o menino desatara um sonho: seus cabelos se figuravam pequenitas folhas, pernas e braços se madeiravam. Os dedos, lenhosos, minhocavam a terra. O menino transitava de reino: arvorejado, em estado de consentida impossibilidade. E do sonâmbulo embondeiro subiam as mãos do passarinheiro. Tocavam as flores, as corolas se envolucravam: nasciam espantosos pássaros e soltavam-se, petalados, sobre a crista das chamas. As chamas? De onde chegavam elas, excedendo a lonjura do sonho? Foi quando Tiago sentiu a ferida das labaredas, a sedução da cinza. Então, o menino, aprendiz da seiva, se emigrou inteiro para suas recentes raízes. emigrou inteiro para suas recentes raízes.

Constante da obra “Cada Homem é uma Raça” mia couto É escritor moçambicano.

poESia

sônia maria COM O MESMO OURO

Com o poema de Borges, com o mesmo ouro com que dotou os tigres, as tardes, os desejos, a alma que tenho é para sempre tocada. Como se me assombrassem suas palavras, como se antes, sequestrada, ausentasse-me da árvore, da pedra, da manhã, do rio.” NATURALMENTE

Tudo nos invade Por toda a vida, como uma hélice invisível no rompido corpo. E todo o perfil nos toca de dor, e todo o sonho; doendo naturalmente, doendo aos poucos; na voz de dentro por onde nos abismamos todos.”

O PENSAMENTO ENTORNA

O pensamento entorna, mal adivinha, e nem precisa, da áspera cigarra o que o som quer dizer ainda, e dos trevos ainda o fôlego. Em segredo, nasço de novo. Já o epitáfio se desgasta. O favo é tenro, o filho, o fruto, sobretudo os olhos na campina vasta.

iLustração: rauBher neLson

Raízes Jornalismo cultural

31

Raízes Jornalismo cultural

32

Raízes Jornalismo cultural

33

HiStória

ArqUITETUrAS FAScINANTES

os Zigurates das culturas antigas como inspiradores de um povo construtor em pedras por maurício tovar

a pirÂmiDe De kukuLcán é um zigurate caLenDário com 365 Degraus na soma De seus Quatro LaDos. (DivuLgação / mtmx)

g

rande parte do território dividido entre a Síria e o Iraque possui uma vasta planície de lama seca, exceto onde correm os rios Tigre e Eufrates. O termo grego Mesopotâmia refere-se à região situada entre os dois rios e foi nela que floresceu uma das civilizações mais antigas da Humanidade. O Mahabarata, livro épico dos hindus, descreve uma civilização presente nas terras da atual Índia, com datação de mais de 5 mil anos a.C. Por volta do ano 2000 a.C., os sumérios viviam em cidades como Ur e Uruk, localizadas no atual sul do Iraque. Surpreendentemente, os sumerianos construíram estradas pavimentadas e desenvolveram uma escrita conhecida como Escrita Cuneiforme. Muitos registros com essa escrita foram encontrados em tábuas de argila. Além disso, os sumérios tinham escolas, códigos de leis, realizavam trabalhos bancários e criaram empresas. Tudo isso no berço da civilização humana. Começaram vivendo em aldeias que viraram cidades e posteriormente passaram a constituir um verdadeiro império. Com a decodificação dos hieróglifos das tabuletas de argila, foi possível reconstituir o modo de vida da sociedade sumeriana. Quanto aos restos de obras arquitetônicas, infelizmente muito pouco do império sumeriano restou para estudo dos arqueólogos, com exceção do Zigurate de Ur, uma pirâmide com 64 pés de altura e constituída da base

Raízes Jornalismo cultural

34

para o alto com plataformas sucessivamente menores. Muitos arqueólogos acreditam que o Zigurate de Ur pode ter sido um centro administrativo. Outros, entretanto, admitem que era a morada do deus da lua, identificado pelo nome Nanna. Quanto à origem de sua civilização, os sumérios, para desenvolverem uma cultura altamente organizada, teriam recebido ensinamento dos “Annunaki”, que significa povo do céu.

torre de babel

a

Torre de Babel existiu? Alguns arqueólogos acreditam que sim. Entretanto, admitem que a descrição bíblica pode ser em parte alegórica, ou seja, não deve ter sido uma torre tão alta, até porque, ao que se sabe, não havia tecnologia avançada para a construção de um edifício mais elevado do que o prédio mais alto da civilização atual, o Burj Khalifa, com 555m de altura. Contudo, estudos realizados na Universidade de Massachusetts sugerem que, caso os tijolos de barro tenham sido submetidos a temperaturas elevadas da ordem de 800 graus Celsius e a construção tenha sido feita na forma piramidal, ao modo do Zigurate de Ur, teoricamente a Torre poderia alcançar mais de quinhentos (500) metros de altitude, porque, nessas condições, os tijolos da base suportariam um peso bem maior.

a CiviliZaÇÃo maia

o

Grande Império Maia estabeleceuse em toda a Península de Yucatan, Guatemala, El Salvador e Honduras. Entre 1800 d.C. e 250 d.C., o povo Maia construiu grandes cidades de pedra e colossais monumentos que continuam fascinando estudiosos de todas as partes do mundo. A partir de 250 d.C., no início do período clássico, a civilização Maia chegou a ter quarenta cidades e admite-se que, no seu apogeu, a população de todo o império pode ter alcançado dois milhões de habitantes. Nesse período, muitos templos foram construídos em forma de pirâmides, com degraus contendo elaboradas inscrições em relevo. A exploração da maioria dos sítios Maias ocorreu a partir da década de 1830. Entretanto, só no século XX parte da sua escrita hieroglífica havia sido decifrada. Grande parcela do que os historiadores conheceram sobre a civilização Maia decorreu da análise minuciosa de sua arquitetura e de sua arte, e isso inclui as esculturas em pedra e inscrições nos seus edifícios e monumentos. A descoberta de quatro Códices (livros Maias) atesta que eles produziram papel a partir de casca de árvore. Entre os monumentos Maias, merece destaque a Pirâmide de Kukulcán. Trata-se de um Zigurate de pedra com a base qua-

HiStória

drilátera, e em cada lado existem noventa e um degraus que, juntamente com a sua base, somam 365, o que evidentemente, corresponde aos dias do ano. Portanto, a Pirâmide de Kukulcán é, na verdade, um calendário. Incrivelmente, ela foi construída de maneira tal que, no equinócio, o sol alcança a face norte projetando a sombra de uma serpente gigante, símbolo que representa o deus Quetzalcoatl. Embora estudiosos tenham desenvolvido diversas teorias para explicar a evacuação generalizada da população das cidades clássicas, situadas nas terras baixas do sul, no século X, a questão ainda não está plenamente esclarecida. A partir de 900 d.C., a civilização Maia já estava em franco declínio. A tese mais aceita é de que eles haviam esgotado os recursos existentes no meio ambiente. Uma drástica e longa seca pode ter sido a causa primordial do colapso da civilização Maia. Na verdade, quando os espanhóis chegaram, os maias já viviam em aldeias agrícolas e suas cidades já haviam sido engolidas pela floresta.

o império inCa e maChu piCChu

o

colossal Império Inca durou apenas cem anos. Ao contrário do que se supunha, os Incas não eram um povo tão pacífico, na realidade a descoberta de diversos crânios com perfurações revelam que os incas eram guerreiros. Liderados pelo seu primeiro imperador, Pachacuti, empreenderam conquistas de novos territórios e o império alcançou a extensão de 3.800 quilômetros na região Andina. Nos arquivos coloniais de Cuzco, há um registro espanhol de que o inca Yupanque foi o imperador que construiu Machu Picchu. No referido registro, está claro que esse inca é o imperador Pachacuti, personagem que pode ser considerado o ‘Alexandre, o Grande’ dos Incas. Machu Picchu se encontra a 2.450 metros acima do nível do mar, no alto das encostas dos Andes, e os arqueólogos identificaram cerca de 200 estruturas construídas com

machu picchu tamBém tem seu “zigurate” (DivuLgação / mtp)

rochas talhadas, como casas e templos que circundam um gramado de aproximadamente um hectare. Curiosamente, não há indícios de escritos na cidade e nada gravado para sugerir uma finalidade. Quando o arqueólogo inglês Hiram Binghan descobriu Machu Picchu em 1911, imaginou que ela era Vicabamba, a lendária cidade onde se acredita que Atahualpa, o último imperador Inca, teria se refugiado durante 35 anos de resistência ao domínio espanhol no século XVI. Binghan levou um perito forense ao local para que ele fizesse a análise dos crânios e esqueletos encontrados e ele concluiu que os esqueletos eram de pequeno porte, provavelmente de indivíduos de estrutura franzina. O arqueólogo deduziu, então, que havia uma proporção de quatro mulheres para um homem. Esse dado o levou à suposição de que o imperador, juntamente com os cortesãos mais próximos, teria levado as virgens do sol para aquela cidade oculta e protegida pelas montanhas a fim de que elas os servissem. Essa suposição foi descartada posteriormente por John Verano, antropólogo norte-americano, que através de exames mais minuciosos identificou a verdadeira proporção que era de um homem para uma mulher entre os esqueletos. Além disso, constatou inúmeras perfurações cranianas que sugerem o uso de artefatos de guerra no local, dando indícios de

que Machu Picchu pode ter sido uma fortaleza militar, no período de declínio do Império Inca, e que, anteriormente, poderia ter tido o papel de centro religioso e místico em que uma casta mais nobre ligada ao Imperador ali se estabelecia por algum tempo, usufruindo de mordomias ofertadas por um grupo de serviçais que estavam treinados para servi-los. É estranho o fato de que a construção de Machu Picchu tenha ocorrido em um lugar tão inacessível, em um prazo estimado de quase sessenta anos, tendo em vista que muitas pedras de grande porte foram talhadas e encaixadas com alta precisão sem o uso de argamassas, ferro e roda. Há indícios, também, de abandono da construção em alguns locais. O hidrólogo Ken Wright estudou durante 15 anos o colossal sistema hídrico existente nas escadas e nos subterrâneos das encostas das montanhas de Machu Picchu. Seus cálculos apontam para um regime de chuva anual de mais de 1900 mm³ em Machu Picchu, ou seja, duas vezes e meia maior do que a média da cidade de Chicago. Um sofisticado sistema de drenagem com mais de duzentos escoadouros e dezesseis fontes de água, alimentadas por uma nascente e encorpadas pelas águas das chuvas, levaram o hidrólogo a expressar um grande respeito pelos engenheiros incas. Ken descobriu que as escadarias com perfeita terraplanagem foram construídas por ca-

zigurate sumério De ur-nammu, em ur, iraQue. (DivuLgação / mtp)

Raízes Jornalismo cultural

35

HiStória

madas que, na ordem de cima para baixo, continham seixo arável, areia, cascalho e pedras maiores por cima do solo. Para o hidrólogo, os engenheiros incas arquitetaram um sistema hídrico de tal modo que, mesmo com grandes precipitações de água nas encostas da montanha, Machu Picchu permaneceria para sempre.

um povo Construtor em pedra

n

artista homenageaDo seLvo afonso (DivuLgação)

no seu livro “a Face oculta da natureza – o enigma de paraúna”, o pesquisador alódio tovar oferece farto material fotográfico e argumentos consistentes de que um povo construtor em pedras viveu no brasil Central.

maurÍcio toVar É biólogo, professor e articulista da Coluna Terra Sustentável do Jornal Diário da Manhã. Raízes Jornalismo cultural

36

o seu livro “A Face Oculta da Natureza – O Enigma de Paraúna”, o pesquisador Alódio Tovar oferece farto material fotográfico e argumentos consistentes de que um povo construtor em pedras viveu no Brasil Central. Em relação aos múltiplos monumentos dispersos encontrados em vários sítios arqueológicos do Município de Paraúna, escreveu Alódio Tovar: “Nós consideramos o acervo de valor arqueológico porque, numa visitação sistemática que realizamos de 1974 a 1983, pudemos anotar dezenas de informações e fotografar outras tantas peças que, para nós, já formam um quadro capaz de confirmar a indiscutível presença de uma civilização nas regiões da Serra dos Caiapós. Talvez nem tanto uma civilização, mas pelo menos a passagem de algum povo construtor em pedra, dotado de conhecimentos e técnicas capazes de exprimir um nível cultural superior àqueles que caracterizam os coeficientes das tribos indígenas em território goiano, conhecidas desde a chegada dos bandeirantes. Esse nosso enunciado coincide com a palavra oficial do Boletim do IBGE n° 211, de 1969, onde foram feitas referências às relíquias arqueológicas de Paraúna, com a transcrição do ponto de vista de pesquisadores do Centro Nacional de Pesquisas e Culturas, que concluíram: ‘... Tudo como se vê, embora em mau estado, comprova plenamente a presença de uma civilização superior à dos nossos índios, mas inferior à dos Incas’.” A Muralha estudada por Alódio Tovar possui uma extensão de 15 quilômetros e se encontra a 35 quilômetros da cidade de Paraúna, na região do Vale da Serra da Portaria. Trata-se de uma construção megalítica no interior do Brasil que causa estranheza porque, pelo menos em tese, os nossos antepassados indígenas não possuíam técnicas e saberes apropriados para projetar e construir edificações desse porte. Construída de basalto negro, um tipo de rocha vulcânica bastante resistente, também conhecida como pedra-ferro, a Muralha tinha altitude média de 4 metros e largura média de 1,30 metro. Os blocos de pedra apresentam forma retangular e estão perfeitamente talhados e encaixados. Tal descoberta somente reforça a ideia de que ainda sabemos pouco sobre as antigas civilizações e que essas, via de regra, são muito mais interessantes do que costumamos imaginar.

memória

Centenário de Carmo Bernardes O doutor do sertão POR Bento Alves Araújo Jayme Fleury Curado

C

armo Bernardes foi um dos maiores regionalistas goianos e um dos nomes mais expressivos da literatura sobre o Cerrado. Era um doutor em sertão. Contista, cronista, romancista, crítico de arte. Fez seu nome no cenário das letras de Goiás. Nasceu em Patos de Minas, estado de Minas Gerais, em 1915, e faleceu em Goiânia em 1996, aos 81 anos de idade. Residiu em Formosa, onde fez seus estudos. Em Anápolis, iniciou sua vida profissional como pedreiro e pintor, assim como redator de jornal. Trabalhou no serviço público. Foi contista, cronista, romancista. Membro da Academia Goiana de Letras. Recebeu prêmios internacionais de Literatura. Obras: Reçaga, Rememórias I e II, Vida Mundo, Jurubatuba, Idas e vindas, Ressurreição de um Caçador de Gatos, Santa Rita, Nunila, Quarto Crescente, Memórias do Vento, Jângala: Complexo Araguaia, Força da Nova. Escreveu muito e tinha amor pelas letras. Publicou dezenas de livros, estudos, participou de vários programas sobre o Cerrado. No Frutos da Terra, esteve por muitos anos ensinando sobre o mato, o cerrado, o sertão, a culinária e o receituário sertanejo, ao lado de Bariani Ortêncio e Hamilton Carneiro. Publicou textos em todos os grandes jornais goianos, notadamente no Cinco de Março, Diário da Manhã, O Popular e Folha de Goiaz. Em seu livro Quarto Crescente, destaca a macaúba e outras plantas do campo. Nessa obra, ainda discorre sobre as poucas frutas do mato crioulo, o lugar de terra boa, fértil e de cultura. O autor enfoca o uso medicinal de certas plantas feias e espinhentas como a jurubeba, o pé de perdiz e a lobeira. Estuda a mutamba, a leiteira, a garapa que apareciam muito em terra boa. Em todos os seus contos está o Cerrado vivo e latente, com suas histórias, dramas, desacertos, conflitos, gente. Há descrições belíssimas das matas antigas com suas árvo-

res e suas sombras, as queimadas persistentes que a tudo destruíam, os angicos e aroeiras, os bichos e as águas. Ambientalista e defensor do Cerrado e de nossas riquezas naturais, sua obra evoca a terra, o chão. Em seu livro Força da Nova, com temática telúrica, Bernardes destaca os pindaibais, veredas da região do Planalto Central, os atoleiros dos brejos, as madeiras das veredas, ilhas de verdura na imensidão planaltina. Fala das poucas árvores nessa região, geralmente entrelaçadas por um emaranhado de raízes obscuras e profundas. Continua a evocar nesse livro de contos a quaresminha, planta do mato, com suas flores roxas. Em sua obra Rememórias, misto de contos e crônicas, fala sobre o pau-d’arco-roxo nas lembranças da infância e seu uso medicinal na época; ressalta o fruto do pequi e, poeticamente, anota as plantas do Cerrado: “Sei que em muitos pontos a terra era branca e todas as vertentes eram de águas límpidas de doer. Gabirobas, araticum, cajuí e curriola em abundância. Apenas não era tempo de frutas, sol amarelo e doce pela manhã. Só viçavam, indiferentes à canícula perversa, a gabirobeira rasteira e o Angelim mata barata”. O seu mais reconhecido romance e o mais telúrico foi Jurubatuba, publicado na década de 1970. Revestiu-se de grande beleza poética e de expressividade regional. Nele, como descrição, mostra que no Cerrado, no sertão, nem sempre os próprios sertanejos percebem a beleza ali existente, só os forasteiros, porque o homem do sertão é muito machucado pela vida: “Nessas brenhas, a natureza canta, geme e suspira, faz tristeza e alegria, conforme é a disposição da gente. O povo do lugar não percebe, é calejado. Só os chegantes dão fé, enxergam que aqui tudo é estúrdio, é diferente de outros cantos”. E poeticamente, ainda no romance, destaca a beleza das plantas nativas do Cerra-

do, plangentes à luz do sol. Sobre os cheiros do cerrado, das flores do mato, poetiza. Ao descrever as madeiras, ainda na narrativa, evoca o araticum, a sua mania de ser árvore solitária e o uso de sua madeira para o eixo do carro de boi, em que não desgastava por ser muxibenta. Em outro trecho, Bernardes evoca os caminhos, as viagens, a paisagem vista pelo viajante, os ranchos, a palhada, a lembrança da queimada anterior; o vigor do mato a se refazer, os ranchos perdidos no caminho, os ninhos de animais nesses lugares abandonados. O romancista descreve os buritizais que marcavam qualquer passagem com a sua beleza, além de seu uso para beber água. Descreve os caminhos, as passagens de gado nas planícies e chapadas, os entroncamentos, a terra, a seca, os periquitos, a beleza dos campos. Continua a ideia de imensidão. Em todos os seus livros está o sertão, está Goiás, estão o Cerrado e os homens inseridos nesse espaço, com suas vidas plasmadas na essência do chão. A literatura de Carmo Bernardes nasce da terra goiana e, perfumada, floresce sempre na largueza desse chão parado. Que no seu centenário de nascimento ele seja sempre lembrado pela paz evocativa de seus textos/versos a recordar a vastidão do campo e as lutas das gerações na esteira interminável do tempo!

Bento alves araújo jayme fleury curado

É professor emérito, historiador formado em Letras Neolatinas.

Raízes Jornalismo Cultural

37

coLetores De Buriti no cerraDo procuram integrar a ação com o cicLo Da natureza. (DivuLgação / cerratinga.org)

Raízes Jornalismo cultural

38

MEIO AMBIENTE

AMBIENTALISMO SUSTENTÁVEL Apesar dos discursos, o crescimento econômico brasileiro sempre trafegou na contramão da preservação ambiental POR NELSON JORGE DA SILVA JR.

E

xiste uma ideia de que o ambientalismo é quase uma seita, seguida por um grupo de radicais que querem o atraso do crescimento do Brasil na defesa de algumas árvores. Não é verdade. Evidentemente, como em todas as áreas, existem pessoas mais apaixonadas e que usam essa paixão na verbalização de sérios problemas ambientais, principalmente a sustentabilidade de nossas ações sobre o meio ambiente. Em uma definição simples, desenvolvimento sustentável é um processo de transformação que busca beneficiar a coletividade a partir do equacionamento de problemas específicos por meio do inter -relacionamento não conflituoso entre os campos da economia, do espaço, da saúde, da educação, da cultura e do meio ambiente. Não existe radicalismo nessa definição. Partindo dessa definição, podemos apresentar dez incoerências que conflitam com a ideia de sustentabilidade no Brasil:

Crescimento vs Desenvolvimento – estamos tentando crescer para depois desenvolver. Crescimento a qualquer custo é tão obtuso que beira a insanidade. Todos os fundamentos de crescimento devem ser

muito bem ancorados em uma estratégia de Estado e não de Governo; Estado Agropastoril – o Brasil é um País que depende de produtos agrícolas como a maior fonte de riqueza de troca, o que não mudou muito desde o início da sua colonização; Recursos Naturais Brutos – a grande maioria dos recursos minerais do País é vendida como matéria-prima a países industrializados ou àqueles que tiveram a coragem de mudar a sua matriz produtiva; Recursos Hídricos – nossos recursos hídricos são utilizados como um bem natural infinito em todas as áreas da intervenção humana e pouco importam as lições de conflitos posteriores e atuais; Extrativismo – foi criada no Brasil a ideia do extrativismo de produtos naturais sem o comprometimento ambiental. Não existe um exemplo bem-sucedido dessa ideia maluca. Todas as iniciativas recaem sobre o comprometimento ambiental e a exploração de quem trabalha nesse processo e o enriquecimento brutal de quem se utiliza dos produtos em seu beneficiamento; Matriz Energética – nossa matriz é frágil. Usamos uma matriz hidrelétrica im-

A usina hidrelétrica de Corumbá 4 une desenvolvimento com responsabilidade ambiental. (Divulgação / Corumbá Concessões)

portada dos Estados Unidos da pós-crise de 1929, sem a garantia de outras opções. Novamente recaímos no uso irracional de nossos recursos hídricos “infinitos”. Nesses processos, viramos as costas para outras opções viáveis, para a matriz energética de um País que almeja o crescimento rápido, o que aconteceu com os Estados Unidos nas décadas de 1930 e 1940. Perpetua-se a ideia de que devemos usar o que temos, aproveitando-nos da inabilidade e ineficiência dos órgãos reguladores ambientais. A conta vai sobrar para as próximas gerações; Infraestrutura – nossa infraestrutura viária, fluvial e férrea é lamentável. A incoerência é a falta de vias de escoamento para a própria produção agrícola e de recursos minerais dos quais o País depende; Urbanização – o processo de urbanização no Brasil é o mais caótico e agressivo em todo o mundo. Não existem exemplos suficientes para a melhora de estragos já feitos ou para se evitar problemas futuros; Biocombustíveis – criada como uma resposta brasileira à crise do petróleo, essa ideia somente exacerbou a crise no campo e colocou o País na dependência de um bem de origem vegetal, que necessita mais e mais áreas plantadas para se manter e oferecer condições para uma população crescente, além da exportação; Industrialização importada – nossa indústria é pífia. A maioria absoluta de nossas indústrias é multinacional que se instalam no País à custa de mão-de-obra barata, financiamento fácil do próprio governo brasileiro, isenção de impostos e facilidades de licenciamentos ambientais. Poderíamos deixar essa discussão de sustentabilidade somente na mera citação desses itens, mas vale a pena pensar um pouco mais sobre os biocombustíveis. Em linhas gerais, a Europa tem muitas restrições ao etanol brasileiro, desde a sua estratégia de produção, que mascara os aspectos ambientais, até os gravíssimos problemas de condições de trabalho e mesmo de saúde pública. O Brasil se defende, colocando o etanol como o estandarte da remissão dos pecados econômicos do País em uma atividade ambientalmente sustentável. Raízes Jornalismo Cultural

39

MEIO AMBIENTE

Artista homenageado Selvo Afonso (divulgação)

Economias que se fundamentam na produção agrícola e de matérias-primas são altamente volúveis e alicerçadas na areia. Se voltarmos aos ciclos do Brasil-Colônia, todos, sem exceção, colidiram com a concorrência internacional e entraram em declínio, a saber: ciclo do Pau-Brasil (1500 – 1530), ciclo da Cana-de-Açúcar (1520 – 1650), ciclo da Mineração (1709 – 1789), ciclo do Café (1800 – 1930) e ciclo da Borracha (1866 – 1913). Hoje vivemos não um, mas vários ciclos, de atendimento aos interesses internacionais e retornamos a um novo ciclo da cana-de-açúcar, para a produção de etanol e da soja (sendo um dos maiores produtores desse grão), incoerente com um programa de Governo contra a fome. A proposta do antigo Proálcool era inovadora, com uma parcela razoável da frota automotiva brasileira passando a utilizar esse tipo de combustível em resposta à grande crise do petróleo do início dos anos 1970. Por diversas razões de estabilização econômica nacional (favorecendo o retorno aos veículos a gasolina), a fraca infraestrutura do programa o extinguiu. Com as grandes discussões ambientais centradas na emissão de gases do efeito estufa, alguns iluminados ressuscitaram a ideia da viabilidade do álcool. A princípio, faz sentido. O álcool combustível queima mais limpo e a tecnologia automotiva atual permite motores de bom desempenho, comparados com as carroças dos anos

Raízes Jornalismo Cultural

40

1970. Quem não se lembra da dificuldade de fazer um motor iniciar em uma manhã fria? Pior, só se o carro fosse um Fiat 147... A grande discussão ficou sobre a parte ambiental dessa estratégia. Em teoria, somente áreas de pastagens abandonadas ou

Economias que se fundamentam na produção agrícola e de matérias-primas são altamente volúveis e alicerçadas na areia. uma substituição à soja seriam utilizadas. Acontece que vamos chegar a um impasse, cedo ou tarde. O estímulo ao consumo do álcool e o discurso de exportação em massa do produto vão requerer mais e mais áreas para o plantio da cana-de-açúcar e, em breve, não serão somente as áreas antes anunciadas. Isso porque o País também tem que produzir outros produtos agrícolas e manter áreas para as atividades pastoris.

O problema se inicia na própria política agropastoril brasileira, que desrespeita as leis e os órgãos ambientais. Se fossem respeitadas as áreas de preservação permanentes, o quadro seria melhor. A pior prática é o desmembramento das propriedades e, consequentemente, o desmatamento referente a essas novas parcelas de propriedades. Quando chega essa nova fase da cana-de-açúcar, as propriedades já estão em estado ambiental deplorável e o trabalho é muito mais fácil. Isso provoca um licenciamento ambiental que, em grande parte, se restringe somente à planta industrial, e seu controle é extremante frágil pelos órgãos ambientais. Apesar dos avanços no início do processo de mecanização, ainda persiste o corte manual da cana-de-açúcar. O trabalho dos cortadores de cana-de-açúcar está entre os mais controversos do mundo e figura na galeria de maus exemplos do Brasil mundo afora. Toda a produção de cana-de-açúcar, que será transformada em álcool, é carregada e transportada por uma imensa frota de caminhões e utilitários movidos a combustíveis fósseis. O discurso brasileiro alerta que a cana-de-açúcar seria plantada preferencialmente em áreas planas, favorecendo a mecanização das culturas, evitando-se as queimadas que antecedem o corte e o trabalho miserável dos chamados “boiasfrias”. Como o programa de produção do álcool é uma prioridade nacional, o setor se

O extrativismo mineral (como o ouro) lida com recursos não renováveis e provoca grande impacto ambiental. (Getty)

organizou rapidamente em grandes cartéis de usineiros e qualquer um se entusiasma com os números mágicos e índices fantásticos desse programa. Entretanto, trata-se de muito mais que números. O ambiente perde com o desmatamento e o uso do solo. Enquanto não for obrigatória a mecanização das culturas, uma quantidade extraordinária de gases está sendo retornada à atmosfera quando das queimadas para redução da massa vegetal das folhas. Independentemente desse exemplo básico, a sustentabilidade ambiental transcende a ideia errônea do “ambientalismo”, que defende o equilíbrio entre o crescimento/

desenvolvimento e o meio ambiente. A implantação de uma estratégia de desenvolvimento, baseada na sustentabilidade, deve considerar um paradigma que englobe dimensões políticas, econômicas, sociais, tecnológicas e ambientais e que sirva como base para a procura de soluções de caráter amplo para o desenvolvimento das populações. Um sistema baseado no uso racional de recursos renováveis, na reciclagem de materiais, na distribuição justa dos recursos naturais e no respeito a todas as formas de vida oferece uma solução com equilíbrio dinâmico e harmônico entre o ser humano e a natureza.

NELSON JORGE DA SILVA JR. É Professor Titular do Departamento de Biologia e Departamento de Medicina, Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Ciências Ambientais e Saúde e Coordenador do Comitê de Ética na Pesquisa da Pontifícia Universidade Católica de Goiás.

Raízes Jornalismo Cultural

41

POR jonathans Medeiros

a conquista do mundo

parte 2

É

possível traçar a origem dos quadrinhos até os anos 1830 na Europa ou 1700 no Japão. Com boa vontade, vemos obras de arte sequencial (termo cunhado por Will Eisner) na Idade Média e até entre pictogramas pré-históricos. Mas o quadrinho moderno nasceu em julho de 1934, com a revista Famous Funnies (EUA, Eastern Color Printing). Impressão colorida, 68 páginas, preço de US$ 0,10 e tiragem de 200 mil exemplares, com 218 edições por 21 anos, até julho de 1955. No começo, com personagens “inocentes” e cartunescos, o humor imperava no mundo dos quadrinhos. Tudo mudou em junho de 1938, quando a National Periodical Publications (futura DC Comics) lançou a revista Action Comics, introduzindo um novo tipo de personagem arquétipo que provou ser um sucesso de

Em Watchmen, Alan Moore retrata as paranoias da Guerra Fria e de um possível conflito nuclear característicos dos anos 1980. (Reprodução)

Raízes Jornalismo Cultural

42

vendas. Seu nome: Superman (Super-Homem). O sucesso encorajou outras editoras a explorar esse mercado, na tentativa de igualar o sucesso da revista. A própria DC embarcou nessa com a criação de Batman, Flash, Mulher-Maravilha e Aquaman. Esse estilo de publicação obteve grande popularidade. Tinha início a Era de Ouro das HQs, que terminou abruptamente em 1954, com a criação de uma entidade reguladora das publicações de HQs, o Comics Code Authority (Código de Autoridade dos Quadrinhos), reação à onda moralista insuflada pelo psiquiatra Fredric Wertham, autor do livro Seduction of the Innocent (Sedução do Inocente), que provocou uma investigação por parte de um Subcomitê do Senado que investigava a delinquência juvenil. As principais linhas prejudicadas foram as de terror, porém o CCA era muito rígido e quase tudo o que era publicado de alguma forma atentava contra ele. A Era seguinte, a de Prata, foi um período de resgate do gênero de heróis a partir da segunda metade dos anos 1950 e durante a década de 1960. A DC repaginou o Flash

pela DC, pelas mãos da equipe formada por Julius Schwartz (editor), Gardner Fox (escritor) e Carmine Infantino (ilustrador). Logo começaram outras reformulações. E em novembro de 1961 surgiu o Quarteto Fantástico, uma família de super-heróis imperfeitos e consequentemente mais humanos do que qualquer herói publicado à época. Na esteira desse êxito, vieram Homem-Aranha, Hulk, Homem de Ferro, Thor, Demolidor e X-Men. Mais humanizados e verossímeis, os personagens eram muito mais originais, descolados e diferentes uns dos outros. E a coisa se espalhou. Estava a caminho uma nova revolução, chamada Era de Bronze, marcada por uma crescente tendência de “realismo”. Um novo conceito surgiu, o “realismo das ruas” de uma sociedade que, por um lado, está “perdida e sem rumo” e, por outro, celebra a si mesma como o ápice da civilização, pensamento característico dos anos 1970. Sai Julius Schwartz, entram Denny O'Neil e o ilustrador Neal Adams, além de Roy Thomas com sua bem-sucedida adaptação de um personagem criado por Robert

Em Sandman, Neil Gaiman narra a estória sob o ponto de vista de Sonho, um dentre os sete Perpétuos, as representações antropomórficas de aspectos comuns a todos os seres vivos: Destino, Morte, Sonho, Destruição, Desejo, Desespero e Delírio. (Reprodução DC Comics)

Raízes Jornalismo Cultural

43

A conquista do mundo marvel - parte 2

E. Howard em 1932: Conan, o Bárbaro. The Night Gwen Stacy Died (A noite em que Gwen Stacy morreu), publicada na Amazing Spider-Man #121, de junho de 1973, ganhou importância pela maneira como chocou os leitores e cristalizou os vários elementos dessa nova tendência sombria nas HQs. O padrão foi rompido: apesar dos superpoderes, nem sempre os super-heróis saem vitoriosos. O fim da Era de Bronze se deu com a explosão das “Graphics Novels”, termo cunhado por Will Eisner, que publicou Um Contrato com Deus em 1978. Não se chamava “comics” porque não era “nada engraçada”. Guerra Fria, recessão econômica, a ressaca das culturas Flower Power e DISCO, o hedonismo yuppie, o tráfico de drogas e novas tecnologias como os videogames, o computador pessoal e a transmissão de dados por satélite. Tudo isso provocou mudanças de linguagens em todas as mídias. O jornalismo passou a ser espetáculo, o cinema reacendeu a chama do cinismo crítico e, com a chegada da MTV, a música passou a ser visual. É claro que a indústria dos quadrinhos não ficaria imune. Vieram então títulos sombrios, maduros, angustiantes e com uma preocupação ainda maior em tornar as estórias verossímeis. O Cavaleiro das Trevas, de Frank Miller (1986) e Watchmen, de Alan Moore (1986). Crise nas Infinitas Terras, de Mark Wolfman (1985), A Queda de Murdock, de Frank Miller (1986) e a celebradíssima Maus de Art Spiegelman (1988) marcaram o início da Era de Ferro. Os críticos chamavam-na de “a era do grim and gritty" (algo como "durão e amargo"). Os quadrinhos começaram a lidar com muitos temas adultos (especialmente situações de sexo e violência) "nos limites da decência". Um novo público, o adulto, começava a se formar. Grandes obras surgiram: Sandman, de Neil Gaiman (1988) e Asilo Arkham, de Grant Morrison (1989), entre outras. Surgiram editoras independentes, como First Comics, Dark Horse Comics e Image Comics. A superficialidade começava a sumir das prateleiras. Houve reconhecimento da crítica: Art Spiegelman recebeu o Prêmio Pulitzer por Maus e a saga Sandman venceu o World Fantasy Award como "Melhor Conto". Watchmen foi premiada com vários Prêmios Kirby e Eisner, incluindo o de "Melhor Minissérie", além de uma honraria especial no tradicional Prêmio Hugo, voltado à literatura, sendo também a única história em quadrinhos presente na lista dos 100 melhores romances eleitos pela revista Time desde 1923. Os temas se tornaram mais e mais obscuros. "Morte em Família", a história em que o Coringa assassina brutalmente o segundo Robin, Tim Drake. A Marvel se manteve na vanguarda com X-Men, abordando genocídio de mutantes, alegorias sobre religião e perseguição étnica. Surgiram os grandes eventos, como o casamento do Homem-Aranha, a morte do Super-Homem e a morte do Capitão América. A atenção maciça da mídia provocou mudanças na forma como as HQs passaram a ser produzidas: edições de luxo encadernadas em capa dura, papel e impressão de melhor qualidade. EntraRaízes Jornalismo Cultural

44

No auge de sua capacidade criativa, Frank Miller criou uma das melhores estórias de super-heróis para o Demolidor e transformou um título prestes a ser cancelado num campeão de vendas. (Reprodução Marvel Comics)

da das revistas nas prateleiras de livrarias e bibliotecas públicas. Autores de agaquês virando escritores e diretores de cinema. E colecionadores dispostos a gastar muito! Isso durou até os anos 2000, quando as vendas declinaram, mas o licenciamento para vídeo-games e para o cinema revitalizou o mercado. É a 9ª Arte regurgitando a influência recebida e passando a ser a nova locomotiva da produção cultural contemporânea.

a conquista do mundo marvel - parte 2

WAKaNDA POR celso moraes f

A

ssim como a Metrópolis do Superman e a Gotham City do Batman, há outros lugares que existem apenas na ficção, mas que se tornaram – para os fãs – tão “reais” quanto os cenários com os quais interagimos no cotidiano. Wakanda é uma nação fictícia no Universo Marvel É o lar do Pantera Negra, ou T’challa. Localiza-se no nordeste da África, embora sua localização exata tenha variado ao longo da cronologia dos quadrinhos: algumas fontes colocam Wakanda na África Oriental , a norte da Tanzânia, enquanto outros – como a Marvel Atlas # 2 – a situam à beira do Lago Turkana, perto da Somália , Quênia e Etiópia (e cercado por países fictícios como Azania, Canaã e Narobia).Wakanda apareceu pela primeira vez em Fantastic Four # 52 (Julho de 1966), e foi criado por Stan Lee (texto) e Jack Kirby (arte). O nome é evocativo dos Wakamba, tribo do Quênia. Como todo local ficcional bem elaborado, essa nação tem uma história bem detalhada: num passado distante, um enorme meteorito constituído pelo mineral vibranium caiu em Wakanda, sendo desenterrado pelos nativos sob o comando do rei T’chaka. Este, temendo as consequências da ganância causada pelo elemento alienígena, escondeu seu país do mundo exterior. Negociando de forma discreta quantidades de vibranium para

fins científicos, conseguiu enviar muitos nativos, inclusive seu filho T’challa, para estudar nas melhores universidades do planeta. Com a volta desses acadêmicos, Wakanda se tornou uma das nações tecnologicamente mais avançadas do mundo. Mesmo com tantos cuidados, T’chaka encontrou a morte pelas mãos do explorador Ulysses Klaw, sendo vingado por T’challa, que assumiu o trono. Wakanda tem uma taxa anormalmente elevada de mutação devido às propriedades perigosamente mutagênicas do vibranium, cuja radiação permeou grande parte da flora e da fauna. Além de invasores terráqueos, o país já foi atacado pela raça extraterrestre Skrull e até pelo super-herói Namor, o Príncipe Submarino, quando dominado pelo poder cósmico da Entidade Fênix. Devido ao seu isolamento intencional, a tecnologia de Wakanda se desenvolveu num outro nível, superando qualquer outra nação. Também as filosofias e metodologias de concepção são diferentes, e muitas vezes incompatíveis com o pensamento (para os não-wakandans) convencional.  Seus computadores são avançadíssimos e imunes a qualquer ataque hacker exterior, uma vez que não se baseia no sistema binário.

PANTERA NEGRA E TEMPESTADE

T’challa, rei de Wakanda, já foi casado com Ororo Munroe, a Tempestade, membro dos X-Men. Na época, a badalação foi tanta que o vestido da noiva foi criado por uma estilista real, Shawn Dudley, vencedora de um prêmio Emmy pelo guarda-roupa da novela da rede CBS Guiding Light. Dudley, porém, ficou um tanto chocada com as alterações do visual (bem mais ousado) criado quando a Marvel colocou-o nas páginas dos quadrinhos, pela mão do falecido desenhista Michael Turner.

O casamento, que ocorreu no gibi Black Panther 18, publicado em julho de 2006, encerrou o arco em seis partes escrito pelo romancista afro-americano Eric Jerome Dickey. Mas a união do monarca de uma das nações mais evoluídas tecnologicamente com a mulher tida como deusa no continente africano não durou muito. A edição #9 de Avengers vs X Men, publicada seis anos depois,  mostrou uma discussão entre os dois e o rompimento.  Quem lê quadrinhos, sabe que o rei de Wakanda é um sujeito acostumado a arrogância típica dos nobres e usava isso em cima da esposa. Quando ela ficou do lado dos X-Men numa batalha, a fim de evitar um mal maior, T’challa lhe disse que o casamento deles havia sido anulado pelo Alto Sacerdote do Clã Pantera. Acontece que o próprio T’challa ocupava esse cargo. Depois de dar um soco no ex-marido, Ororo é convidada a nunca mais pôr os pés em Wakanda. Nos bastidores, o comentário é que a Marvel decidiu fazer isso porque os direitos dos dois personagens para o cinema pertencem a empresas distintas: o Pantera Negra pertence à própria Marvel, mas os direitos de Tempestade estão presos à 20th Century Fox. Isso, não havendo um acordo envolvendo altas cifras, impediria um filme mostrando os dois casados. Há também quem diga que os roteiristas estavam tendo dificuldades em lidar com a união dos dois e o potencial de ambos, como personagens, estava sendo desperdiçado.

Raízes Jornalismo Cultural

45

Desenho de Chistie Queiroz para colorir

Raízes Jornalismo Cultural

46

Raízes Jornalismo Cultural

47

tECnologia

O cAMINHO dA IMOrTALIdAdE por humBerto WiLson

graças a avanços da tecnologia, estará a raça humana se aproximando da vitória contra o tempo e do triunfo sobre a morte?

o anDroiDe DaviD Do fiLme prometheus (2012), De riDLeY scott, é um Dos meLhores exempLos De inteLigÊncia artificiaL no cinema. (DivuLgação 20th centurY fox)

i

nimigo comum a todos os homens, o tempo tem sido um rival implacável. Ao longo dos milênios em que a história da humanidade se desenrola, tornou-se o pai das saudades e das mudanças. A morte, temida, estudada com obsessão, simboliza com clareza apenas uma verdade entre tantas possíveis à esperançosa alma humana: o fim do tempo neste mundo. Na tentativa de entender – e um dia vencer – a inexorável simplicidade da ampulheta, o homem reinventou o mundo e a si mesmo. Criou deuses e monstros, lendas e história, máquinas e ideias, vida e morte. O flerte com a eternidade nunca abandonou o imaginário social, em qualquer época ou lugar. Por séculos, a fé vigorou como única promessa possível da vida eterna. À sua maneira, cada civilização inventou formas de desafiar o mistério final e deixou legados monumentais dessa busca incessante pelo conhecimento do tempo além do tempo: pirâmides, templos, igrejas, mausoléus, livros, enigmas. Durante essa batalha incessante, o inimigo conheceu derrotas: à medida que se tornou velho conhecido da humanidade, expôs seus pontos fracos, devidamente explorados e usados pela ciência. Raízes Jornalismo cultural

48

Laboratórios e indústrias produziram os primeiros artefatos capazes de confundir o monstro. Pelos séculos a fio, vive-se mais, e não apenas mais horas, ou dias, ou anos: vivem-se mais experiências em menos tempo. Graças ao carro, ao telefone, ao avião, à medicina, o homem conseguiu utilizar o tempo para vencer o espaço, a distância. Cada segundo, hoje, está repleto das possibilidades de uma vida inteira. Falta o golpe certeiro que decepará a cabeça do gigante infinito, mas, pelo andar da carruagem, ele não tardará a vir. De geração em geração, a humanidade parece se aproximar do fim da batalha. Vencidas as mais graves barreiras impostas pelos medos e incertezas da natureza humana, a busca pela imortalidade segue na pauta de estudiosos e cientistas. Males antes letais vêm sendo remediados de forma cada vez mais contundente, e o impossível se torna corriqueiro. RAÍZES foi em busca das mais recentes armas do aparentemente infindável arsenal humano para esse duelo milenar. A cada nova descoberta, o sonho de um mundo em que a humanidade se vê livre da foice do tempo aproxima-se cada vez mais da realidade. Acompanhe os dez passos que podem levar as próximas gerações à vitória sobre a morte:

1 impressÃo 3d

a

impressão tridimensional promete revolucionar não apenas a indústria como um todo, mas também a medicina. Há alguns anos essa tecnologia já é testada em uma série de laboratórios renomados ao redor do globo e, entre as diversas experiências realizadas, está a criação de próteses, ossos, cartilagens, pele e outros órgãos capazes de melhorar a qualidade de vida e mesmo prolongá-la indefinidamente dentro de algumas décadas. Já há exemplos práticos dos benefícios que esse advento tecnológico pode trazer: segundo estudo divulgado em março pela revista Science Translational Medicine, médicos americanos foram capazes de salvar a vida de três crianças que sofrem de traqueobroncomalácia – um transtorno incurável e fatal que provoca o colapso da traqueia – graças à produção de implantes personalizados que foram absorvidos por seus corpos e que lhes permitiram respirar normalmente.

tECnologia

a invenção Do sangue artificiaL é o ponto De partiDa para a série true BLooD Da hBo, inspiraDa na oBra Da norte-americana charLene harris. (DivuLgação hBo)

as céLuLas-tronco são a esperança para pacientes Que sofrem De Doenças como o aLzheimer e o parkinson. (DivuLgação ministério Da ciÊncia e tecnoLogia)

2

3

sangue artiFiCial

Células-tronCo

E

stipula-se que em cinco anos a transfusão de sangue bioartificial possa ser feita em larga escala, de forma acessível. Hoje, já é possível reproduzir glóbulos vermelhos a partir de células do cordão umbilical, mas o processo é caro e lento. Caso as projeções da comunidade científica se confirmem, a escassez de sangue para transfusão não será mais um problema já na próxima década.

4

a

inda em fase de experimentação, células-tronco têm se mostrado um curinga em várias situações extremas. Testes promissores têm sido realizados mundo afora a fim de recuperar os movimentos de pacientes paralisados, reverter a cegueira, reconstruir vasos sanguíneos e tratar um sem-número de doenças degenerativas – até mesmo curar o câncer.

a cLonagem humana como fonte De órgãos para transpLante e seu DiLema ético são aBorDaDos no fiLme a iLha (2005), Do Diretor michaeL BaY. (DivuLgação Warner Bros.)

Clonagem humana

a

pesar de todo o debate ético que envolve o assunto, é bem provável que já existam clones caminhando entre nós. A China revelou em 2002 que possuía em laboratório diversos embriões humanos clonados. De lá para cá, o mais populoso país do mundo manteve a cortina de fumaça que impede qualquer certeza sobre as experiências genéticas em seu território. Contudo, não é difícil depreender que uma das nações mais antigas e poderosas do mundo não perderia a oportunidade de ser pioneira nessa investida na busca pela imortalidade. Obviamente, não há referências para a utilização dessa tecnologia fora da ficção-científica, mas se unirmos a clonagem genética à próxima inovação de nossa lista, a ideia de um clone que partilha das memórias do original não parece tão distante. as próteses customizaDas Da Bespoke são feitas por encomenDa em impressoras 3D. (DivuLgação Bespoke)

Raízes Jornalismo cultural

49

tECnologia

artista homenageaDo seLvo afonso (DivuLgação)

5

6

inteligênCia artiFiCial animaÇÃo suspensa

a

IBM começou a testar neste ano algoritmos provenientes de uma tecnologia desenvolvida com base nos princípios do neocórtex. Em uma conferência realizada em fevereiro o líder do projeto, Winfried Wilcke, declarou que o software, produzido pela empresa Numenta, está mais próximo da realidade biológica do que qualquer outro software de aprendizagem de máquina. Para o cientista, a capacidade do cérebro de interpretar o mundo está enraizada nesses circuitos de repetição, e imitá-los em um software fará com que os programas de aprendizado de máquina sejam capazes de muito mais. Quanto tempo será necessário para repetir com perfeição o cérebro humano e a memória do homem ser gravada em um HD, podendo ser transferida para qualquer lugar?

f

oram anunciados em 2014 os primeiros testes de animação suspensa em seres humanos. O processo envolve a remoção do sangue dos pacientes, substituindo-o por uma solução salina especial que resfria o corpo, desacelerando as funções do organismo, retardando a morte por perda de sangue. Segundo os cientistas que desenvolvem essa técnica, atualmente é possível prolongar a vida do paciente por até quatro horas sem sequelas. Uma vez que a prática se torne comum, abre-se um novo campo a ser explorado, e com ele uma vasta gama de possibilidades que se confundem com ficção-científica. Em tempo: os pesquisadores preferem se distanciar do frisson evocado pelo termo “animação suspensa” e preferem chamar de “preservação e ressuscitação de emergência”.

7 Juventude eterna

n

ão basta viver para sempre, mas ser para sempre jovem: a juventude eterna é o ideal utópico que alimenta vários mitos e sonhos. Em maio de 2015 essa utopia ganhou contornos de realidade – cientistas identificaram uma droga capaz de retardar, simultaneamente, o envelhecimento do tecido muscular e cerebral. A pesquisa ainda está em estágio inicial e é realizada apenas em roedores, mas já representa o primeiro passo para um tratamento que restaura de uma só vez a juventude de diversas partes do corpo. A droga, nomeada “inibidora de quinase Alq5” pode reanimar células-tronco velhas em vários tipos de tecidos ao redor do corpo, restaurando o vigor que o tecido apresenta quando jovem.

com a tecnoLogia “Big Brother” reaLizaDa em níveL ainDa não oBservaDo na prática contemporÂnea, minoritY report (2002), De steven spieLBerg, mostra como seria a viDa em constante vigiLÂncia. (DivuLgação 20th centurY fox)

Raízes Jornalismo cultural

50

tECnologia

a tecnoLogia De exoesQueLetos promete aumentar a força e a resistÊncia como em homem De ferro (2008), De Jon favreau. (DivuLgação marveL stuDios)

8

9

10

vigÍlia Constante

membros biÔniCos

eXoesQueleto humano

p

ara antecipar problemas e executar soluções rápidas, nada como uma tecnologia que permita monitorar o corpo humano de dentro, da forma menos invasiva possível. Em 2010, a empresa suíça Novartis desenvolveu uma pílula equipada com um chip capaz de monitorar os efeitos de remédios no organismo do paciente que o ingere, e os dados desse pequeno radar corporal podem ser transmitidos diretamente para o médico. A novidade deve estar disponível no mercado em breve. O dispositivo funciona com base em tecnologia wireless e os dados do organismo são transferidos para um terminal – um adesivo fixado na pele. A partir daí, as informações são enviadas para um aparelho de posse do médico, que pode acompanhar a resposta do corpo aos medicamentos e corrigir qualquer problema com rapidez.

J

á começa a ser produzida em larga escala a mais sensível prótese de braço humano capaz de realizar movimentos complexos. Chamada DEKA, a inovação levou oito anos para ser desenvolvida pelo inventor Dean Kamen. O diferencial da DEKA em relação a outras próteses é o fato de que ela usa contrações musculares, e não sinais cerebrais, para ser controlada. Isso permite que ela execute 10 movimentos, mais de um simultaneamente. O braço pode realizar tarefas delicadas como fechar um casaco, segurar um ovo sem quebrá-lo ou abrir uma porta trancada usando uma chave.

o

pontapé inicial da Copa do Mundo 2014, no Brasil, foi realizado por um tetraplégico vestido em um exoesqueleto capaz de interpretar impulsos cerebrais. Enquanto as pesquisas para a reparação definitiva do corpo paralisado continuam, a utilização de um exoesqueleto possibilita não só a realização de movimentos como a percepção de respostas táteis. A tecnologia não significa apenas reparação de danos, mas prevenção dos mesmos: a criação de protótipos para a indústria pesada e outras tarefas de risco influencia diretamente na qualidade de vida e, por consequência, na longevidade de diversos profissionais.

1 + Cérebros Com ConeXÃo À internet

r

a Busca por uma “fonte Da JuventuDe” Já aLimentou toDos os tipos De LenDas, como em Branca De neve e o caçaDor (2012), De rupert sanDers. (DivuLgação universaL)

ay Kurzweil, futurólogo e diretor de engenharia do Google, afirmou acreditar que os cérebros humanos estarão conectados à internet em 2030, a se confirmar sua hipótese de que nanobots de DNA poderão ser usados para transformar humanos em seres híbridos, parte homem, parte máquina. Kurzweil acredita que essa transcendência acabará em grande parte com as limitações humanas. Se isso ocorrer, as pessoas pensarão na nuvem, à qual os cérebros estarão ligados por gateways. Apesar da empolgação, o futurólogo alerta quanto aos riscos do avanço no campo da inteligência artificial. Ele é conhecido por fazer previsões ousadas, porém, acertadas. Para 2009, ele deu 147 palpites e 86% deles estavam corretos. Ele se deu uma nota “B” por isso. Raízes Jornalismo cultural

51

Cartoon

quadrinhos

Raízes Jornalismo Cultural

52

quadrinhos

Cartoon Raízes Jornalismo Cultural

53

artigo

peQueNos seNtimeNtos por marcos faYaD

p

ode-se ler nos melhores livros de História das Artes que o genial Leonardo Da Vinci era muito mal falado na sua época, as pessoas diziam dele que era agressivo, arrogante, muitas vezes intratável por conta de seu temperamento forte, mas seus amigos retrucavam que eram os invejosos que espalhavam boatos e que o viam assim. O mesmo se dizia sobre outro gênio da humanidade, Michelangelo: fama de brigão, temperamental, instável no seu humor, de quem até os cardeais tinham certo receio. Mas consta que eram também os invejosos que, desagradados por sua genialidade, cuidavam de espalhar coisas miúdas a seu respeito para diminuí-lo e assim aplacar um pouco a inveja que sentiam. Pergunto a você, leitor: onde estão os que falavam mal de Leonardo Da Vinci e Michelangelo? Quem foram esses que se especializaram em semear ressentimentos contra eles? Ficaram na história da humanidade ou apenas as meras notícias de suas invejas sobrevivem como curiosidades nos livros de História da Arte? Mesmo que tudo isso fosse verdade, o que nos ficou foram as maravilhas produzidas pelas mentes e mãos desses gênios que até tinham o direito de ser como seus invejosos inimigos diziam que eram. Afinal, eles deixaram para o desfrute eterno das gerações vindouras o produto do que tinham de melhor, não seus temperamentos instáveis e suas irascibilidades. Algo estranho faz com que os homens divulguem o pior dos outros, por que será? A natureza humana parece que não muda nunca, é absolutamente previsível e, infelizmente, nem tudo no bicho homem são sentimentos de grandeza, convivemos com os pequenos homens e os conteúdos mesquinhos que vão armazenando nos corações vida afora, seus ressentimentos. De todos eles, o pior é a inveja, um dos sete pecados capitais para os católicos e o mais maléfico para quem o carrega na cabeça e no coração, ensina a psicologia. Surgiu no mundo através de Caim, enfurecido de inveja de seu irmão Abel. Foi o primeiro invejoso, mas há outros famosos como o músico e maestro Salieri, que se roía e definhava a cada nova partitura de seu desafeto genial chamado Mozart (que ele considerava um cretino). Como é que um menino levado e produtivo podia, com as mesmas sete notas musicais, criar obras celestiais enquanto ele, Salieri, vivido e experimentado, produzia apenas convencionalismos musicais medíocres? Invejosos sempre existiram e eles cuidam bem da agressão a seus alvos com palavras que foram se modificando no decorrer da história como: boêmio, cachaceiro, drogado, esquizofrênico, maconheiro, preto, bicha etc... Precisam desqualificar seu objeto de inveja para sentirem-se alguém. Um famoso escritor brasileiro, quando leu pela primeira vez os originais do genial Grande Sertão, Veredas, de Guimarães Rosa, disse que era uma porcaria que nem merecia ser publicada. Anos depois do sucesso do livro, ele ainda não tinha digerido a inveja que sentiu de Rosa. Não cito seu nome de propósito pra não lhe dar a chance de ser relembrado. Era um ressentido. Os tratados de psicologia sabem que o invejoso deseja mesmo é ser seu objeto de inveja, mas, como isso é impossível, ele quer que o outro não produza nada que possa ser comparado consigo para não ampliar ainda mais o fosso que os separa. Invejoso não vive, gravita em torno de si mesmo e seus minúsculos sentimentos, mas, principalmente gravita em torno de quem inveja. Amam o que invejam. Há uma lógica doentia, invertida e aleijada usada por invejosos: “Se eu não consigo, ninguém mais pode conseguir”. Não atinam que o ressentimento faz mal ao próprio ressentido. Mesmo que os curandeiros digam que ressentidos e invejosos não se curam nem com água benta, nem com pó de hóstia, acho que vale a pena tentar amenizar ressentimentos e inveja tomando chá de jurubeba, pra equilibrar o fígado e aceitar conformadamente que serão sempre coadjuvantes, nunca protagonistas, e tomar consciência de suas utilidades no mundo. Afinal de contas, Michelangelo e Da Vinci devem ter se sentido muito incentivados pela inveja e ressentimentos de seus detratores, porque continuaram criando obras transcendentais enquanto os outros nadavam em bílis. O povo da área cultural conhece bem o tema. Sem inveja, a vida fica mais alegre.

Raízes Jornalismo cultural

54

(foto neY couteiro)

marcos Fayad É ator e diretor de teatro

Quem confia no que lê

não teme debates

Assine: www.revistaraizes.com.br Raízes Jornalismo cultural

55

Arte e cultura

O Teatro Sesi promove variadas apresentações artísticas de alto nível. Shows, danças, peças, exposições,lançamentos literários e outras realizações fazem do espaço cultural um importante incentivador da criatividade e do conhecimento para o trabalhador industrial Raízes Jornalismo Cultural dependentes. e seus 56

sistemafieg/ascom

para o trabalhador da indústria e sua família.

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.