Ed Ruscha - A Verdade Mural

June 1, 2017 | Autor: Miguel Rodrigues | Categoria: Art Theory, Photography Theory
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Descrição do Produto

Miguel Rodrigues A Verdade Mural Uma ideia de Espetador/Consumidor através da obra de Ed Ruscha

Índice Introdução

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O regime escópico da modernidade

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A construção da subjetividade pela visão e o contraste com a sua objetividade 5 Ed Ruscha

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Hollywood

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TwentySix Gasoline Stations

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Every Building on the Sunset Strip

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ThirtyFour Parking Lots

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Conclusão

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Bibliografia

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A VERDADE MURAL The highway, and its role in the creation of American suburbia, fed into and off of the accelerated postwar production and consumption of cars, that emblem of Taylorized ’50s culture. Postwar modernity’s quintessential commodity object, in turn, produced a model of subjectivity. On the register of individual experience, the car naturalizes a sense of perception in movement: a new understanding of motion became integrated into the driver’s everyday perception, thereby tailoring subjectivity to assimilate new modes of sensory interaction with everyday objects and everyday spaces. This model of vision becomes an experiential norm.1

Resumo A verdade Mural explora a relação do estilo deadpan no trabalho visual de Ed Ruscha, com especial destaque para os photobooks TwentySix Gasoline Stations, Every Biulding on the Sunset Strip, ThirtyFour Parking Lots e Royal Road Test, e relaciona-as com a formação da perspetiva do espetador/consumidor a partir da distância a que a preponderância da visão nos coloca, a partir da obra de Jonathan Crary, Jean Baudrillard e Martin Jay, sobretudo.

Introdução Este trabalho lê a obra de Ed Ruscha, com especial incidência sobre os photobooks TwentySix Gasoline Stations, Every Biulding on the Sunset Strip, ThirtyFour Parking Lots e Royal Road Test, como um estudo sobre a formação da perspetiva do espetador/consumidor2. Traça uma ligação entre o estilo “deadpan” das imagens de Ruscha e a cultura de consumo de massas que se afirmava na altura, em particular, a

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Jay Mansoor, Ed Ruscha: One Way Street (2005)

Os dois termos estão ligados na medida em que o estatuto de consumidor pressupõe uma distância, uma exteriorização perante uma realidade que lhe é apresentada simbolicamente e sobre a qual este opera por via do consumo. O consumo determina os hábitos, tanto pelo facto da sua escolha aparente, como pelo que a identificação com estes determina na ação do consumidor. Essa distância, essa relação de passividade com um mundo que tem de nos ser apresentado através de signos para que possamos operar sobre ele, define a existência do espetador.

massificação do automóvel. A forma como, apesar de mostrar cada vez mais de uma paisagem exterior, este a torna, também, irremediavelmente exterior e transforma o observador num consumidor: alguém que segue parado, com o mínimo de ação possível, vendo desfilar à sua frente, as imagens de um mundo que lhe é ali projetado. Reduzindo os gestos ao mínimo, o automóvel coloca o observador numa posição análoga à do espetador de televisão3, por exemplo, e abre espaço para o mesmo tipo de movimento e comportamento no supermercado, essa grande cadeia onde se conduz o carro por grandes corredores nos quais os produtos desfilam como a paisagem no automóvel, ao alcance de um simples estender da mão – a relação do ver e do transformar, do olho e da inteligência, reduzida aqui à ação de mudar o canal ou pegar num produto e coloca-lo no carro de compras. Na primeira parte deste trabalho, resumo a perspetiva do observador e do regime escópico da modernidade e da forma como a imagem retiniana que Goethe estuda na sua teoria das cores vem, ao mesmo tempo, cimentar a posição da visão como órgão da alma e da profundidade do humano na visão individualista do romantismo e questionála pela clivagem que se abre entre um dentro e um fora. Guio-me, principalmente, pelos trabalhos de Martin Jay (1993) e Jonathan Crary (1992). Seguidamente, olho o trabalho de Ruscha e a forma como este bebe da cultura e da vida do seu tempo e permite, nos elementos com que trabalha e na forma como os trabalha, o acesso a essa rede de signos que permite o surgimento do espetador/consumidor.

O regime escópico da modernidade

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Jerry Mander (1999) compara os efeitos da televisão aos efeitos da prática de meditação. A observação prolongada provoca um aumento das ondas beta, conhecidas por baixar o nível de atividade cerebral e integrar as várias áreas do cérebro. Mander estabelece uma diferença entre as duas. Na meditação, esse processo de baixa de defesas do sistema nervoso é trabalhado a partir de dentro, num clima de redução de estímulo que conduz a uma noção de si cada vez maior, ao passo que, ao ver televisão, estamos a submeter o nosso sistema nervoso a um excesso de estímulo – a televisão emite sinais a um ritmo superior àquele a que o sistema nervoso os consegue integrar – criando um espaço de atordoamento que provoca o surgimento dessas mesmas ondas beta, mas desta vez, com toda a quantidade de informação que a televisão emite a passar sem reservas.

Martin Jay (1993) apresenta uma ideia do pensamento filosófico ocidental, desde a sua fundação na Grécia ao século vinte, baseada na visão. Descreve a forma como esta impregna as línguas indo-europeias; a forma como a nossa arte e ciência nos apresentam a visão da realidade. Apresenta como vantagens desta posição o objetivismo, a capacidade de ver um objeto desligado da forma como o sentimos, como algo que está ali – a visão como órgão extracetivo). Mostra-nos como, para Platão, a visão se afigura sobremaneira importante, dando o exemplo de como, no Timeu, distingue a criação do sentido da visão, que juntou com a criação da inteligência e da alma humanas, colocando os outros sentidos ao nível do seu ser material. A verdade, para Platão, estava na Ideia, ou no Eidos, vista por ele como uma forma visível destituída da sua cor. Jay diz-nos, ainda a respeito de Platão, que o olho humano conseguia ver os objetos por partilhar uma qualidade com a fonte de luz que os ilumina, o sol. Ligando o intelecto à ideia de visão “o olho da mente”, Platão liga também a capacidade de tornar inteligível a uma noção do Bem. N’A República, ainda de acordo com Jay, o homem justo consegue ver o que lá está, não no reflexo da água ou através dos seus fantasmas, mas em si e por si mesmo, onde se encontra, apesar de não ter certezas de que o homem possa olhar o sol (o Bem) de frente. Jay acrescenta a distinção operada por Platão entre o “olho da mente” e os olhos, fisicamente falando, em relação aos quais expressava severas reservas quanto à sua capacidade de atingir uma perceção fidedigna. Vemos através dos olhos, diz-nos, não com os olhos.

A construção da subjetividade pela visão e o contraste com a sua objetividade Crary (1992) descreve a forma como a visão se tornou essencial na criação da perspetiva do observador. Fala-nos da dupla significação da palavra, da observação como o ato de ver e, ao mesmo tempo, da observação como cumprimento de normas ou de regras.

O observador é, assim, ao mesmo tempo, aquele que observa a realidade e constrói um juízo crítico sobre esta e aquele que observa as regras que lhe permitem essa observação e esse juízo. Um dos aspetos necessários para a manutenção desse juízo crítico é a distância, a observação dessa distância que permite ver e ler uma situação. O sujeito lê uma situação e mantém a atualidade e a coerência dessa leitura graças à manutenção daquela distância. A descoberta das imagens retinianas parece conferir validade a uma visão subjetiva que afirma o indivíduo como uma entidade independente perante uma realidade inteligível e subsumível a uma vontade. Abre-se, assim, uma clivagem entre aquele que vê a paisagem representada como uma janela que se abre perante o seu olhar, e a imagem que fica na retina dessa paisagem. Qual destas imagens é real? A que está perante nós ou a que fica connosco? Se é a paisagem que está perante nós e que a janela abre, qual a validade dessa imagem retiniana? E se, pelo contrário, a imagem retiniana se sobrepõe ao que está para lá da janela, qual a validade da janela? Somos colocados num impasse, como se a janela que nos abre uma paisagem “lá fora” também a abrisse “cá dentro”; como se abrisse uma tensão essencial entre uma existência de uma realidade visível lá fora e uma realidade percebida cá dentro4. Surge a questão: como validar essas imagens que retemos sem um retorno ao “lá fora” e, se temos que recorrer a esse “lá fora”, que mediação será possível e quem medeia essa relação?

Ed Ruscha Ruscha nunca disfarçou o seu gosto pela cultura de massas e os seus objetos fetiche, em particular, o automóvel. Actual Size, (1962), uma representação em tamanho real de um

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É interessante, a este respeito, considerar a obra de Michael Biberstein, na forma como este explora a sua paisagem interior e contrapõe a essa mesma paisagem interior em relação com uma concretude, com o facto de vivermos, também, como matéria, rodeados por matéria.

bilboard com a palavra SPAM pintada na mesma fonte que a marca de comida enlatada, coloca-nos perante muitos dos traços distintivos de todo o seu trabalho. O estilo deadpan, os títulos secos e diretos, dizendo “apenas” o que lá está, o gosto pela palavra, não como expressão linguística, como significante para um termo qualquer, mas, quase pelo contrário, como termo opaco, como imagem de algo e, em resposta à escola onde fez a sua formação, referências estilísticas ao expressionismo abstrato, em voga na altura, sobre o qual no diz que era incompatível com as suas ideias. O quadro divide-se em dois, com a palavra spam escrita a amarelo sobre fundo azul – as cores da marca na metade superior, como um anúncio pintado, e um fundo claro, na metade de baixo, pintado ao estilo do expressionismo abstrato, sobre o qual uma lata de carne da marca Spam voa, pintada, qual nava espacial, com o rasto de um propulsor, invadindo o espaço desse mesmo expressionismo.

Figura 1 Ed Ruscha SPAM, 1962

Aqui, ao mesmo tempo, vemos, não só o esbater da perspetiva para o estilo deadpan que a metade superior já apresenta, mas, talvez de forma mais importante e denunciatória das suas intenções, a representação da própria lata de Spam como um ataque ao espaço do expressionismo. Assim, este quadro, mostrando o conflito entre a formação de Ruscha, por um lado, e a sua sensibilidade e ideias, por outro, espelha um mesmo conflito a uma escala maior, que a cultura pop vem trazer a uma sociedade dividida entre a cultura erudita e a cultura vernacular, por um lado, e a um

expressionismo como valorização, ainda, de um modelo de faz prevalecer o indivíduo, a imagem que este cria “dentro de si”, com a crescente mediação que os tais objetos fetiche operam entre o indivíduo e a tal realidade “lá fora”; entre a interioridade absoluta de um gesto que se materializa na imagem pintada dos quadros e a exterioridade absoluta dos símbolos que podem unir à sua volta um conjunto cada vez maior de indivíduos transformados, pela ação desses símbolos, em consumidores. Alexandra Schwarz (2010), diz-nos que a “monumentalização absurda de um produto de consumo descartável aponta delicadamente para o surgimento e crescimento da cultura de consumo americana.”

Ruscha desenvolve o seu conceito de “imagem premeditada”, que viria a ser central no seu trabalho, como uma vontade de dividir o ato de pintar em fases: um método que via como contrário ao advogado pelos seus professores que queriam “colapsar todo o processo artístico num único ato.”5 Ruscha interessa-se mais pelo resultado do que pelo processo. Que resultado? Apesar de, em repetidas ocasiões e entrevistas, ter afastado qualquer influência da cidade de Los Angeles no seu trabalho6, este está repleto de menções a esta através da representação do efeito da cultura de massas. Estaria Ruscha a ser provocador? Terá a cidade apenas uma importância circunstancial, por ser a cidade onde Ruscha vivia e vive? É certo que a cultura de massas não está exclusivamente relacionada com a cidade de LA. O movimento pop iniciou-se em Londres com Hamilton e teve expressão em Nova Iorque, com Warhol e Rauschenberg, por exemplo, mais do que em LA. Também o culto do automóvel extravasa largamente a cidade de LA, apesar de esta ter, reconhecidamente, uma construção voltada para o uso do automóvel. Mesmo a 5

Paul Karlstrom, “Interview with Ed Ruscha in his Western Avenue, Holliwood Studio”, In Ed Ruscha, Leave Any Information at the Signal p118 (tradução do autor) 6 Alexandra Schwarz abre o seu Ed Ruscha’s Los Angeles com a seguinte citação deste: “Being in LA has had little or no effect on my work. I could have done it anywhere. I don’t see any independente trends here. The climate isn’t conducive to painting.”

presença e influência deste no trabalho de Ruscha, vem da viagem que este fez a partir de Oklahoma até LA com o seu amigo e conterrâneo Mason Williams, em 1956.

Figura 2 Ed Ruscha LA County Museum on Fire 1968

É o fascínio pela cultura de massas que agora surgia e ocupava o campo visual e sensorial norte-americano que o motivava e alimentava, como Actual Size já mostrava. Ainda a reforçar esta ideia da imersão completa na contemporaneidade que abre essa sensibilidade ao consumismo, o quadro Los Angeles County Museum on Fire (1965-68), em resposta à construção, em Los Angeles, do museu com o mesmo nome, que fez correr tinta na imprensa especializada, tendo todos os destaques ficado ligados aos trabalhos mais antigos, com pouco destaque dado ao trabalho contemporâneo. O quadro, de grandes dimensões, mostra o mesmo museu a partir de cima em grande detalhe, com um ar majestático e sereno, com exceção para o fogo que sai de uma das alas. Poderia este fogo mostrar o desdém assumido por Ruscha pela cultura clássica, como o fizera já Actual Size?

Hollywood Estamos habituados a ver a animação dos estúdios da 20th Century Fox nos seus filmes, a ver o placard surgir e ser iluminado pelos holofotes enquanto atravessa o espaço do ecrã. Ao pintar esta estrutura, Schwartz diz-nos que Ruscha provoca uma dissonância

percetiva, pelo contraste daquela animação por esta imagem estática, majestática, de um símbolo da Hollywood do cinema. Convoca o facto de esta mesma cultura atravessar um período de crise na mesma altura em que o quadro foi pintado – havia um profundo desencontro entre os filmes produzidos em resposta aos cânones filmográficos anteriores e a nova geração de cinéfilos – para justificar esta dissonância, pondo em evidência esta crise através daquele contraste.

Figura 3 Ed Ruscha Hollywood is a verb, 1983

Para além desta visão, há também o gosto de Ruscha pelos símbolos da cultura de massas, não pelo que cada um deles representa, mas pelo imenso poder que tem sobre as pessoas a quem se dirige; como um encantamento. O próprio nome dado ao quadro, seco e direto como sempre, mostra isso mesmo. Large Trademark with Eight Spotlights (1983). Não é o facto de ser um símbolo dos estúdios de cinema que interessa a Ruscha. É o símbolo de cinema enquanto trademark, enquanto entidade quasi mágica que ocupa um lugar enorme na forma como convoca uma resposta emocional no público – nas massas - a que se destina; como imagem, ao mesmo tempo distante e opaca, por mostrar uma realidade apenas alcançável pelo consumo dos seus objetos, e íntima, visceral, pela forma como ocupa o imaginário das massas e dirige o seu olhar e os seus hábitos cada

vez mais para a prossecução de uma validação de si pelo consumo dos objetos que as representam.7

Figura 4 Ed Ruscha Large Trademark With Eight Spotlights, 1962

O que fascina Ruscha é esse poder que certas palavras, associadas a certas fontes e a certas cores, conseguem sobre as massas. Quase como se o deadpan fosse o modo dessa contemporaneidade perceber a realidade, mais do que uma técnica, apenas, de perspetiva.8 Ruscha parece por em evidência a forma crescente como as grandes marcas criam um campo percetual, como uma bolha que assegura a intermediação entre a massa e o meio – através da qual definem o seu comportamento. Talvez mais do que qualquer das outras imagens que Ruscha pintou do famoso bilboard Hollywood, Hollywood is a Verb (1983) denota exatamente essa ação que estas marcas têm sobre as massas: da forma como parecem agir sobre elas, dialogar, ainda que de um modo impositivo, com elas.

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Klein (1991) desenvolve um estudo completo e acutilante das marcas e do seu efeito na cultura de massas e nas sociedades globais, nas quais demonstra os efeitos nocivos, ao mesmo tempo pelo poder que conferem a quem administra as marcas, ganho por cedência daqueles que vivem as suas vidas sobre o seu signo, por um lado, e à custa daqueles que as marcas exploram na tentativa de produzir sempre mais por menos, de modo a ter um alcance e um poder cada vez maiores. 8 Desenvolvo esta ideia do esbatimento da perspetiva como efeito da cultura de massas nos photobooks.

Há uma relação de isolamento, surgido a partir dessa clivagem entre um dentro e um fora, que a cultura de massas consumista explora. Fazendo o seu alvo sentir-se especial, fazendo-o sentir-se a razão de toda a cultura9, trabalha sobre essa sensação de isolamento em relação aos outros consumidores, todos especiais, todos afastados uns dos outros, cheios da sua auto-importância10, da perceção do seu isolamento como auto-nomia, sustentada nos objetos consumidos, na fetichização da mercadoria, para empregar o termo marxista. Este isolamento acaba por substituir as relações sociais diretas, a forma como as pessoas coabitam e como o seu coabitar cria a comunidade11, para um espaço de aparente isolamento onde as ligações são feitas por uma rede de signos constituída pelos objetos e a publicidade. A comunicação passa, então, a efetuarse através desses signos, como nos mostra Baudrillard, atribuindo ao objeto de consumo essa dupla valia, de instrumento e de signo. O trabalho de Ruscha mostra uma sensibilidade à forma como essa nova relação de forças se instalou na sociedade norte americana, em particular, na sua cidade de Los Angeles. Ao longo da carreira, Ruscha vai sempre trabalhando esse fascínio por essa teia que a cultura de massas tece, transformando o sujeito em espetador/consumidor. Umas das suas palavras de eleição, Standard, surge como evidência dessa dupla valia que Baudrillard aponta. Standard é, ao mesmo tempo, uma bomba de gasolina, outro dos fascínios de Ruscha, e um signo. Ambos, a bomba de gasolina como símbolo da cultura e a palavra, como instrumento de catalogação de uma forma de ser12, serão repetidamente representados, seja em desenho, em pintura ou em fotografia.

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Baudrillard (1968) dá o exemplo da poltrona Airborne, mostrando como a sua publicidade retira a noção de conforto da mera passividade, mostrando que é preciso criar condições para que esse conforto seja válido, mostrando todo o trabalho que é feito, técnica, mas também historicamente, do artesão a toda a revolução industrial, até chegar ao destinatário último de todo este esforço: o consumidor. 10 Leia-se, também, a este respeito, a forma como Ortega y Gasset (1936) classifica o homem massa, como faz acompanhar a especialização técnica e tecnológica de que este é capaz de uma grosseria nos modos e nos costumes. 11 Edward Hall (1971) estuda a forma como o nosso relacionamento social tem como base a observação de um sistema de distâncias, a que chamou de proxémia, que define a natureza das relações, da íntima, onde quase não há distância entre duas pessoas, à social, onde a distância é maior. 12 Não é só a mercadoria que é standardizada, são as escolhas que, fruto da standardização dos objetos em escolha e da identificação crescente do consumidor com aquilo que consome, o tornam, ele também, num produto standardizado.

Figura 5 Ed Ruscha, Standard Station, Amarillo, Texas, 1966

Esta palavra, Standard, pelas múltiplas relações que abre nesta leitura e pela relação com as bombas de gasolina e o automóvel, assume uma importância central neste trabalho e na forma como, nele, os photobooks ganham especial relevo na obra de Ruscha. Michael Ausping (2011) refere a importância da estrada e do automóvel no percurso e na base conceptual da obra de Ruscha. Desde a viagem inicial – iniciática? – pela mítica Route 66 de Oklahoma City a Los Angeles, passando por muito do trabalho subsequente, compreender a visão do mundo de Ruscha torna-se mais fácil se se tentar “imaginar a experiência do oeste americano pelo para brisas de um carro”. Toda a sua obra parece ser um percurso descritivo pela paisagem norte americana, não no sentido em que o fizeram os pioneiros do Great American West, como Carlton Watkins ou Ansel Adams, mas no sentido de mostrar o condicionamento que essa cultura de massas operava; a forma como se imiscuía nas relações do homem com a paisagem, transformando ambos, homem e paisagem, num espaço de articulação dos seus objetos fetiche. Atribuo especial importância aos photobooks de Ruscha porque me parecem acrescentar algo que o trabalho em pintura não tinha: a mecanização; a total

independência, ou aparência de independência em relação ao gesto autónomo e da pintura - e o expressionismo abstrato da sua formação enfatizava, pela action painting, por exemplo, essa liberdade e autonomia do gesto como princípio de composição.

Figura 6 Ed Ruscha Standard Gas Station, TwentySix Gasoline stations, 1963

Com o recurso à fotografia e à tipografia, Ruscha standardiza completamente a sua produção. Ao desvalorizar o processo, o fazer, a favor da ideia, Ruscha coloca-se a par dos artistas conceptuais e ecoa as mesmas preocupações com a semiologia, a experiência e a sua representação. Apesar de muito do seu trabalho poder ser visto como paisagem, Ruscha mostra a paisagem cultural, e não a paisagem natural. Mostra-nos a tal rede de intermediação entre os espetadores/consumidores que os objetos, na sua dupla relação de instrumento e de signo, retomando, Baudrillard, operam. Já olhámos algumas das palavras que Ruscha trabalha. Olhemos agora outros dois elementos centrais ao seu trabalho: o automóvel (e a sua cultura) e a bomba de gasolina,

para perceber a forma como estes são essenciais à perceção do sujeito da realidade perante13 ele.

TwentySix Gasoline Stations

Figura 7 Ed RuschaUnion Station, TwentySix Gasoline Stations, 1963

Em 1962, Ruscha edita TwentySix Gasoline Stations, um livro de fotografia – interessante o interesse pelo livro para estes trabalhos, acrescentando uma imensa mobilidade ao objeto, a par do outro objeto que representa – com 26 bombas de gasolina, fotografadas a preto e branco, em viagens entre a Califórnia e Oklahoma, apenas com uma linha de descrição de nome e localização geográfica em cada uma. Não existe história ou 13

O uso do termo perante denota já esse posicionamento do sujeito em face a uma realidade sobre a qual deve operar que o faz, ao mesmo tempo, sentir-se superior a ela mas, para poder operar sobre a mesma, o faz também precisar dessa rede de objetos, ao mesmo tempo, instrumento operatório e signo interpretativo da mesma.

narrativa para estas imagens. Ausping cita Robert Irwin, artista e professor de Ruscha: “A resposta mais comum quando tínhamos um livro de Ruscha era olhar para ele com interesse, depois rir, depois olhar para ele com interesse. Ficava-se à procura da história”. O próprio Ruscha confirma essa ausência de história, uma vez mais, citado em Ausping: “Nunca pensei nas Gas Stations como uma história. Eram mais como pequenos factos que colecionava nas minhas viagens.” E que factos eram esses? O que documentavam esses factos?

Figura 8 Ed Ruscha TwentySix Gasoline Stations, 1962

Reconhecemos a importância do automóvel na construção da paisagem norte americana, sobretudo, desde Henry Ford e do seu modelo T. Sabemos como foi importante a massificação do automóvel na forma como o americano médio via e percebia a paisagem e no imaginário americano. Podemos dizer, até, que a imagem que o americano tem do seu país não seria possível sem o automóvel. Ansel Adams, Edward Hopper, Walker Evans, Robert Frank, Dennis Hopper, entre outros, todos têm em comum a perceção do automóvel, das viagens de Adams ao seu Yosemite, à solidão do homem pela paisagem com as suas bombas de gasolina, os seus diners e os seus motéis,

às viagens incontáveis pelo país. Em todos estes casos, o automóvel é o motor dos trabalhos, a condição sine qua non da sua exequibilidade. O automóvel aumenta enormemente a perceção do terreno ao alcance de cada um e coloca a paisagem longínqua e a ideia de natureza ao alcance do americano médio.

Figura 9 Bill Ownes Suburbia, 1973

A própria extensão das cidades pela vastidão do subúrbio é permitida pelo automóvel. Bill Owens, no seu trabalho Suburbia, documenta essa vontade de ter um terreno ligado à natureza para onde a família pudesse seguir para um descanso merecido depois de um dia de trabalho. O trabalho de Owens mostra-nos como essa vontade se espalhou. Fotografando todos os sábados ao longo de um ano, e procurando cobrir festas, desde o natal ao ano novo, dia de ação de graças e outras festas, como aniversários, casamentos ou batizados, Owens mostra-nos a família atomizada do subúrbio e a forma

como a sua casa isolada na natureza se transformou numa casa isolada no meio de tantas outras, e no nascimento de uma cultura de classe média suburbana. Até chegarmos a Kerouac e à geração beat. On the road é talvez a maior ode a essa estrada onde nos perdemos e encontramos, à viagem como encontro da natureza em nós com a natureza livre e aberta perante nós. Ruscha dedicará um dos seus photobooks, Royal Road Test, a esse mesmo livro, que veremos mais adiante.

No entanto, em relação a todos esses nomes, há uma diferença de base: Desde Adams a Kerouac, vemos sempre, ou a paisagem aberta perante nós, numa versão glorificada ou numa ironização dessa visão, ou a figura humana, nos quadros de Hopper assim como no trabalho de Kerouac, um auto-retrato em viagem. O tema é sempre a paisagem ou o retrato, no fundo. Em Ruscha, podemos ainda falar de paisagem, é certo, mas de um tipo muito particular de paisagem. A abordagem deadpan, para começar. Há uma implicação de exterioridade, de factualidade, quase uma abordagem forense, na forma como Ruscha recolhe as suas imagens. Deadpan significa que não entramos lá. Ficamos sempre à distância, observando pistas como um detetive em busca de provas de um crime. TwentySix Gasoline Stations mostra-nos os dados recolhidos em viagens na Route 66 entre Oklahoma City e L. A., como já vimos. A route66 é a estrada emblemática da cultura americana. Rasgando o país de este a oeste, oferece-nos uma espécie de panorama em movimento, quase que um filme da paisagem total do país. Numa consulta rápida à wikipedia, ficamos a saber um pouco da história da construção desta estrada e também do seu número. Originalmente, os seus construtores quiseram que fosse a US 60, mas este número já estaria atribuído a uma outra autoestrada. Surgiu assim a hipótese US66, número que estava disponível e que agradou aos construtores por ser, ao mesmo tempo, fácil de memorizar, por soar bem ao ouvido e pelas

propriedades numerológicas do número, que estava associado à prosperidade e à riqueza material.14 Se TwentySix Gasoline Stations não nos mostra nem a paisagem aberta nem o viajante, o que nos mostra, então? Ruscha faz o que parece, à primeira vista, um levantamento algo displicente das estações de serviço presentes na Route 66, entre Oklahoma e Los Angeles. Não vemos o sublime da paisagem. Não vemos o automóvel como o grande libertador da prisão da localidade. Não vemos, também, o homem como grande viajante – Royal Road Test mostra um comentário algo sarcástico - à ideia Beatnik da viagem como campo aberto da imaginação, como On the road de Kerouac tentara demonstrar. Olhemos outra vez a displicência aparente com que as imagens foram construídas. Não há cuidado aparente no enquadramento. As imagens surgem como snapshots e mostram quase uma aleatoriedade, um descuido com a aparência visual do seu tema. A máquina está sempre mais ou menos à mesma altura. Numa análise mais cuidada, notamos, também, que as bombas não aparecem na mesma ordem em que forma fotografadas. Porquê? As bombas: desde logo, porquê fotografar algo a que só prestamos atenção quando precisamos de combustível para continuar a nossa viagem? O que têm estas a ver com a paisagem, com o genus loci? Depois, se queremos, realmente, mostrar as bombas, porque não parar o carro e fotografar convenientemente?

Tim Ingold (2011) chama a nossa atenção para o facto de, na nossa cultura, dita materialista, se falar tão pouco da materialidade e da nossa relação da materialidade do meio que habitamos. Descreve a forma como a apreciação do meio é feita apenas em locais seletos considerados como belos e que toda o empreendimento de lá chegar; toda a corporeidade da viagem e da própria experiência, assim como a relação dessa corporeidade com a materialidade do terreno, ou da própria paisagem a apreciar, são

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Curiosamente, e de acordo com a mesma fonte, a US66 conheceu um dos seus picos de tráfego por altura da crise, da Dustbowl, que levou muitos a fazer a viagem este – oeste em busca de melhores condições de vida.

deixadas de parte em favor de uma visão do “exterior” como produto da nossa capacidade de abstração e da visão redutora que separa o espírito da matéria; a mente do corpo; a cabeça e as mãos do resto do corpo. Ao olhar a paisagem que o automóvel abre, não pela perspetiva de uma liberdade acrescida, mas mostrando essa rede de transformações na paisagem que sustenta essa abertura; ao colocar a máquina à altura do tabliê, não do olhar do condutor; ao fazer as imagens a partir da própria estrada, não nos mostrando, nem o viajante, nem a paisagem, aquilo a que o automóvel, supostamente, dá acesso, o que nos mostra, então, Ed Ruscha? A que é que todo este trabalho faz referência?

Every Building on the Sunset Strip Ruscha adopta essa posição da máquina ao nível do automóvel, de modo mais evidente, em Every Building on the Sunset Strip: somos levados a percorrer, mecanicamente, o percurso do Sunset Boulevard, nos dois sentidos, e a ver todos os edifícios aí presentes, sem escolha, uma vez mais, de perspetiva, de enquadramento ou de qualquer coisa que possa assemelhar-se, minimamente, a uma ação humana. Todo o trabalho apresenta um carater mecanicista e nos lança para fora do que se esperaria de um olhar humano, de uma visão seletiva, contemplativa e crítica. Existe uma distância aos objetos mas, sendo contínua, não podemos dizer que seja crítica no sentido de estar lá para nos permitir ver um qualquer tema em perspetiva. Quase se pode pensar na mecanicidade de uma linha de montagem, onde todo o processo se construção do automóvel se dá em contínuo, de forma suave, inalterada.

Figura 10 Ed Ruscha Every Building on the Sunset Strip 1963

Every Building on the Sunset Strip, como os outros photobooks de Ruscha têm esse carater de trabalho mecânico, de linha de montagem. São encarados como objetos no sentido mais destituído de personalidade que se possa imaginar. O próprio Ruscha refere a sua distância em relação à ideia, não só da aparência do objeto, como também do seu fazer. Interessa-lhe chegar ao objeto, apenas; o trabalho começa com a ideia final, e todo o processo é apenas a forma, obrigatória, por vezes, até entediante, de lá chegar. Ruscha é um funcionário numa linha de montagem que o próprio criou. No máximo, é o seu supervisor. Pensando desta forma, podemos olhar para estes photobooks como um trabalho, ao mesmo tempo, sobre o automóvel e sobre esse modelo de hábito que este criou, o automobilista, análogo ao do espetador/consumidor a tal ponto, que se pode considerar uma coisa na origem da outra.

Thirtyfour Parking Lots As imagens em TwentySyx Gasoline Stations já não surgem, assim, como imagens displicentes e descuidadas, mas como imagens que denunciam, não a ideia do automóvel enquanto meio que nos permite ir mais longe, ver e ter mais da paisagem, mas como algo que, apesar de nos permitir chegar a esses pontos, nos limita a apreciação destes pelo que opera sobre a nossa capacidade de perceber e agir, por um

lado, e de contactar com a matéria, por outro. O trabalho é sobre a estrada como a rede que nos permitiu criar toda esta imagem glamorosa do automóvel e falar de uma paisagem libertadora como se esta não desfilasse perante nós, perante a nossa imobilidade15. Há sempre este paradoxo entre a proximidade e a distância com relação ao que está acessível, visualmente, fora do automóvel e a velocidade e a imobilidade com relação à velocidade a que o automóvel pode andar – as estradas não são ainda congestionadas como virá a acontecer mais tarde – e o condutor lá dentro, sentado.

Figura 11 Ed Ruscha ThrityFour Parking Lots, 1967

Thirtyfour Parking Lots coloca ainda mais em evidência o desinteresse de Ruscha pela ideia do artista como realizador de uma interioridade qualquer que se materializaria num gesto criador ao abdicar do controlo sobre a execução de um trabalho, contratando um fotógrafo profissional para fazer as fotografias aéreas dos parques de estacionamento escolhidos. Os parques estão vazios, mas há um vestígio da presença dos automóveis. Ruscha diz-nos que era es

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Tornar-se-ia elucidativo fazer um estudo sobre os efeitos da mobilidade reduzida do condutor na perceção e apreciação do exterior.

se o seu interesse, as marcas de pneus e as manchas de óleo no chão, mostrando-nos, assim, e uma vez mais, não o espaço, mas a sua significação. Não é o parque em si que interessa, é a sua significação, como terminal, quase, e como ponto de chegada e partida a e dos sítios de relevo dessa cultura, uma vez mais, como, por exemplo, o Gillmore Drive in Theatre ou o parque da Universal Studios.

Figura 12 Ed Ruscha ThrityFour Parking Lots, 1967

A posição do automobilista em relação ao automóvel parece, em vários aspetos, análoga à do espetador de cinema. A paisagem e a ação ocorrem fora do carro. O automobilista seleciona o percurso quase como o espetador de cinema seleciona o filme, tudo o resto se desenrola perante a sua relativa passividade16 e, até certo ponto, fora do seu alcance. A este respeito, podemos pensar no trabalho de Jeff Wall sobre os movie goers, em que este foca o cinema, não como dispositivo que nos mostra uma realidade, mas como

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Podemos pensar na famosa expressão de McLuhan, the médium is the message, e focar a nossa atenção, não no que o automóvel permite de acesso a um “exterior”, mas das transformações que este opera sobre a nossa capacidade motora e percetiva. F. M. Alexander (CCCS) fala da relação entre a nossa falsa apreciação propriocetiva e a saúde, e de como a falta de atenção que votamos à forma como fazemos uso de nós mesmos nas atividades rotineiras provoca essas mesmas falhas na apreciação.

dispositivo que nos situa num determinado espaço, numa forma de estar (literalmente, o estar sentado) e numa passividade e exterioridade perante uma noção de realidade criada exclusivamente a partir de uma representação extracetiva. Wall mostra-nos a situação do espetador de cinema exatamente da mesma forma que Ruscha nos mostra o automobilista: um sujeito passivo, cuja ação real é reduzida a uma mecânica mínima, repetitiva, totalmente ao dispor de uma informação com caráter de verdade que lhe é dada a consumir apenas pela visão e pela audição. Todos os outros sentidos estão em isolamento dentro de uma caixa mágica. As palavras pintadas de Ruscha podem ser vistas, também, a esta luz. O automóvel, permitindo uma aceleração do movimento relativo, obriga a uma reação mais rápida ao estímulo visual. O crescimento das telas, a simplicidade com que as palavras são dispostas, tanto em tamanho como em significado, atestam esse pouco tempo que o automobilista tem para apreender uma mensagem. A informação torna-se icónica e simbólica. Standard, esse tema tantas vezes repetido, mostra-se, uma vez mais, na sua dupla acessão de standardização no sentido da mecanização e normalização do processo de abastecimento – qualquer automóvel pode abastecer em qualquer estação de serviço – e de mecanização da ação e da perceção do automobilista em relação ao meio. Toda a paisagem se transforma em função do automóvel e Los Angeles é um dos melhores exemplos dessa transformação.

Conclusão Ruscha abre um espaço entre esta ideia da perspetiva como algo que está para lá e o espaço da perspetiva invertida da arte contemporânea, na forma como olha a obra como objeto e trabalha as relações de forças que esse objeto gera na relação com a sala e o espetador, para nos situar, ainda dentro da visão e desse ocularcentrismo, acrescentando-lhe o novo elemento do automóvel como objeto de culto da cultura de massas e como criador de novos hábitos – talvez como O criador de todos os hábitos

que inauguram o consumismo: o dar ao consumidor esse poder do Demiurgo platónico colocando-o, ao mesmo tempo, numa caverna que se desloca enquanto este está parado lá dentro.

Figura 13 Kazimir Malevich Quadrado Preto Sobre Fundo Branco, 1914

Não estamos, já, no espaço clássico da contemplação da obra visual em perspetiva, do para lá, nem somos invadidos por esta num para cá, como, por exemplo, no quadrado preto sobre fundo branco de Malevich17. Estamos presos entre uma aparentemente infinita capacidade de escolha; de uma mobilidade infinita por conseguirmos chegar a qualquer lado sem sair do automóvel e, ao mesmo tempo, estamos presos nesse mesmo automóvel que nos permite lá chegar sem nos mexermos; estamos presos na parafernália de opções aparentes que se nos apresentam no ecrã em que o para brisas acaba, inevitavelmente, por se transformar. Esse lugar é idêntico, em tudo, à nossa posição, não só em frente a qualquer dos ecrãs agora comuns, da televisão ao cinema, mas também ao do supermercado, em que, também aí, conduzimos o nosso carro por avenidas de escolha possível, ao alcance de um pequeno gesto. A pintura de Ruscha mostra-nos isso, também, a paisagem exterior reduzida aos elementos apreensíveis a partir de um carro em movimento. O empobrecimento dos elementos visuais

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A este respeito, é importante a obra de José Gil, A Arte como Linguagem, e a leitura deste da relação de forças, da tensão entre perceção do objeto e o significado contido nesse objeto, me relação à obra Quadro preto sobre fundo branco de Malevich.

disponíveis corresponde, também, ao empobrecimento da nossa capacidade de sentir: todos os nossos sentidos são postos em isolamento naquela caixa mágica que é o automóvel. A expansão de uma liberdade entendida como aumento do que se pode ver e escolher coincide com a diminuição das capacidades motoras e percetivas (sabemos dessa ligação sensori-motora pelo trabalho de Roger Sperry). Os riscos que encontramos em McLuhan, da perda da sensibilidade própria com a crescente capacidade das “extensões do corpo” são enfatizadas com os riscos de perda da capacidade sensori-motora; de proprioceção e motricidade, a faulty sensory appreciation de que fala Alexander (CCCI). Esta perda de sensibilidade acaba por aumentar a nossa dependência em relação a uma tecnologia que, ao mesmo tempo, nos permite explorar mais do mundo do ocularcêntrico e ter menos capacidade para o apreciar como seres sencientes. Haverá uma oposição fundamental entre um mundo apreendido maioritariamente pela visão e a nossa condição de seres multissensoriais? Entre poder ver mais e deixar de confiar nos sentidos?

Figura 14 Ed Ruscha Royal Road Test, 1973

Voltemos a Royal Road Test. Ruscha parece colocar à prova a excentricidade do voo da alma de Kerouac pela estrada fora pondo-o à prova contra a realidade concreta do asfalto. Conduzindo um chevy, Ruscha, auxiliado por Mason Williams e Patrick Blackwell, lança borda fora uma máquina de escrever. O mesmo modelo que Kerouac usara para escrever o seu on the road. O livro mostra a documentação da ocorrência ao melhor estilo da polícia forense, descrevendo o processo e fotografando os destroços. Parece lembra-nos que, independentemente de quão longe os voos da imaginação possam ir, haverá sempre esta condição física, material da existência. Seremos sempre um ser que existe em, a partir de e em relação com a circunstância material de que faz parte.

Figura 15 Ed Ruscha Royal Road Test, 1973

Se em TwentySix Gasoline stations e Every Building on the Sunset Strip, Ruscha está a colocar-nos no dentro do automóvel, na forma de ver - reduzidos à questão do para brisas como um ecrã de cinema: o deadpan não é mais, neste caso, do que o vidro que nos separa daquilo que o carro, supostamente, nos mostraria - e nos modos de agir que este abre, e em ThirtyFour Parking Lots nos é apresentado um bird’s eye view de um retrato da transformação que o automóvel forçou na paisagem urbana, em Royal Road Test, somos nós, e não a estrada, o automóvel ou a paisagem, que estamos a ser mostrados. O carro é um veículo, não de subjetividade e libertação, como Kerouac nos quisera fazer crer, mas de enclausuramento e consumo. Na medida em que nos afasta do que nos mostra, o carro é o elemento essencial na formação do consumidor: sentado, passivo, com a ilusão da escolha subjetiva. Kerouac associa a estrada ao papel e, assim, ao espaço onde discorre a sua stream of consciousness e a sua liberdade, vista como um espaço de desmaterialização e de contra-cultura em relação a uma cultura crescente do espetador/consumidor. Ruscha parece colocar essa stream of consciousness na linha do próprio consumo que aquela denuncia.

Encontramos, aqui também, a ligação com os quadros e os textos como imagem. No fundo, identificam aa mesma noção de construção de perspetiva linear que a escrita oferece, um discorrer no espaço, semelhante ao que Kerouac descreve ao escrever num rolo contínuo. Ruscha denuncia a espacialização do tempo com este estilhaçar da perspetiva e abre noções de “leitura” imediatista, de um tempo não espacializado. Não é a suspensão do tempo, então, o que ocorre nestes trabalhos, é a suspensão da materialidade que o trabalho da era moderna sobre a perspetiva, tanto na pintura como na escrita e na imprensa18 (ver McLuhan na Galáxia de Gutenberg e a forma como associa as estradas à escrita) abre.

Para isso contribui, também, a questão da Taylorização que permite a produção em massa (da qual o automóvel é um perfeito exemplo – o ford T). É como o fechar de um 18

Marshall McLuhan (1972) tece uma ligação interessante entre a estrada e a escrita, pela linearidade que suporta ambas. Mostra como construímos um argumento para chegar de um ponto de partida A, a um ponto de chegada B, no mesmo sentido em que viajamos de um ponto de origem a um ponto de destino.

ciclo. A forma como a linha de montagem é organizada permite perceber exatamente como a relação de espacialização do tempo foi entendida. O deadpan surge um pouco como um fim de linha. A verdade mural é, ao mesmo tempo, um ideal a ser alcançado e, ao mesmo tempo, o seu alcance é o fim da linha, é, literalmente, o bater no muro que as imagens oferecem como forma de nos mostrar caminho. O muro mostra a ideia de simulacro de Baudrillard contra a ideia da possibilidade da imagem como representação da verdade defendida anteriormente. É a realidade enquanto experiência inclusiva que morre com o auge da sua representabilidade. Os objetos têm aura, não pela escassez da sua representação, perdem-na com ela, mas pela forma como a sua reprodução ad infinitum nos instala nessa cabine de escolhas que é o ecrã, a superfície onde se escolhe, seja ela o computador, a televisão, o automóvel o ou carrinho de supermercado. O próprio livro, não o sendo diretamente, é já a noção de caminho até aqui. A ideia de McLuhan da linearidade da escrita. Pode ver-se a construção de uma história no mesmo sentido da fabricação com que se vê uma linha de montagem do ford t. Terminando, ainda a ligação ao livro, Benjamin e o seu one way street e a referência ao facto de o livro se ler sempre mais ou menos à mesma distância e acaba por haver essa discrepância da realidade de estarmos perante uma deadpan image, constantemente focada à mesma distância e a realidade imaginada. Aqui, nesta deadpan que é a folha, a materialidade onde se inscreve a imaginação do viajante, Ruscha estatela a sua máquina de escrever, abrindo para todas as palavras e frases pintadas, mais tarde; para a fragmentação da paisagem linear unificada.

BIBLIOGRAFIA ALEXANDER, Fredrick M, Constructive Conscious Control of the Individual, Londres, Dutton and Co. Inc, 1923 BAUDRILLARD, Jean A Sociedade de Consumo Lisboa, Edições 70 O Sistema dos Objetos São Paulo, Editora Perspetiva, 2008 CRARY, Jonathan, Techniques of the Observer Cambridge Ma, MIT Press, 1992 FOSTER, Hal, The First Pop Age – Painting and Subjectivity in the Art of Hamiltonm Lichstenstein, Warhol, Richter and Ruscha Princeton e Oxford, Princeton University Press, 2012 GIL, José A Arte Como Linguagem Lisboa, Relógio D’Água 2010 INGOLD, Tim Being Alive Londres, Routledge, 2011 JAY, Martin Downcast Eyes: The Denigration of Vision in Twentieth-Century French Thought Berkeley e Los Angeles, University of California Press, 1992 KLEIN, Naomi, No Logo, Lisboa, Relógio D’Água, 2000 LYNCH, Kevin, A Imagem da Cidade Lisboa, Edições 70 MANDER, Jerry Quatro Argmentos Para Acabar com a Televisão Lisboa, Antígona, 1999 MCLUHAN, Marshall A Galáxia de Gutemberg São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1972 Compreender os Meios de Comunicação, Extensões do Homem Lisboa, Relógio D’Água, 2008 RUSCHA, Ed (ed Alexandra Schwartz) Leave any Information at the signal Writings, Interviews, Bits, Pages SCHWARTZ, Alexandra, Ed Ruscha’s Los Angeles Cambridge Ma, MIT Press

Online MORRILL, Cynthia, Bill Owens – Suburbia http://www.americansuburbx.com/2010/01/theory-bill-owens-suburbia-2000.html Consultado entre 27 e 30 de Junho de 2016 Ed Ruscha on Route 66, Making Books and “Choppy Movement”, consultado em http://www.americansuburbx.com/2015/01/ed-ruscha-on-route-66-making-booksand-choppy-movement.html entre 22 e 29 de Junho de 2016

MANSOOR, Jay, Ed Ruscha: One Way Street (2005) Consultado em http://www.americansuburbx.com/2012/04/ed-ruscha-one-way-street-2005.html entre 19 e 29 de Junho de 2016

Imagens recolhidas em http://www.moma.org/collection/artists/5086?direction=fwd&locale=pt&page=2 a 30 de Junho de 2016.

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