Editar Álvaro de Campos: o primeiro «Arco de Triumpho»

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Descrição do Produto

Bazar DO TemPO

Genuína Fazendeira Os frutíferos 100 anos DE

Cleonice Berardinelli

©Bazar do Tempo, 2016

Sumário

Todos os direitos reservados e protegidos pela Lei n. 9.610, de 12.2.1998. É proibida a reprodução total ou parcial sem a expressa anuência da editora.

Este livro foi revisado segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, em vigor no Brasil desde 2009, à exceção dos seguintes textos, por opção dos autores: Artur Anselmo, José Cândido de Oliveira Martíns, Ernesto Rodrigues, Helder Macedo, Helena Carvalhão

.{ I}·

Buescu, Isabel Almeida, Isabel Pires de Lima, Ivo Castro, João Dionísio, José Augusto C. Bernardes, José Blanco, Lui2 Fagundes Duarte, Maria Alzira Seixo, Maria Elsa Gonçalves, Maria de Lourdes

"A JUSTIÇA É QUE ME

" FAZENDA

A. Ferraz, Marcelo Rebelo de Sousa, Ofélia Paiva Monteiro, Sérgio Pachá e Vasco Graça Moura.

[NOS] IMPELE"

VASTA E BELA"

[Da vida e obra de Cleonice]

Esta publicação foi financiada por Fundos Nacionais através da FCT - Fundação para a Ciência e a Tecnologia no âmbito do projeto «UID/ELT/ooon!2013"

Editora Ana Cecilia Impellizieri Martíns

Orgallizadores Gilda Santos Paulo Motta Oliveira

Gilda Santos e Paulo Motta Oliveira

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Este livro-oferenda

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Créditos das imagem de abertura Págs.2-3

p . i8

e Solange Gomes de Pinho

Cleonice Berardinelli em seu ofício.

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Págs 4-5

Editar Cleonice Berardinelli

da vida e obra de Cleonice Serôa

Cleonice Berardinelli toma posse, em 5 de abril

p . 22

da Motta Berardinelli

Ana Cecilia Impellizieri Martins

de 2010, da cadeira n. 8 da Academia Brasileira de Letras (ABL).

Ida Alves

FOTO GENTILMENTE CED IDA PELA ABL

Sofia de Sousa Silva

Imagem de fechamento Págs. 892-893

Coordenação editorial

FOTO FÁBIO SEIXO/AGÊNCIA

Marcelo Rebelo de Sousa

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Co-orgallizadores Júlio Cesar Valladão Diniz

o

Canteiros cronológicos

P·3 6 ().\.>

e da nossa língua comum

Uma biografia mais, ou

p . 24

d. Cleo - a ave e a rima

GLOBO

Victor Burton

Designers assisten tes Adriana Moreno Anderson Junqueira

Genuln. fazendei ra: os frutíferos 100 anos de Cleonice Berardinelli. / Organização de Gilda Santos e Paulo Motta Oliveira. - Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2016. 896 p.; il. Inclui bibliografia.

O currículo e a vida

" A,

/

GENUINA

Revisão

CDD 923-7

CDU 929

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[Poemas para Cleonice]

Serôa da Motta, Regina Serôa da Motta,

Impressão Edelbra

Acervo iconográfico gentilmente cedido por Cleonice Berardinelli

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~I

BAZAR DO TEMPO PRODUÇÕES E EMPREENDIMENTOS CULTURAIS LTDA.

Rua Alexandre Stockler, 353 - Gávea. 22451-230 - Rio de Janeiro - RJ [email protected] www.bazardotempo.com.br

Carlos Drummond de Andrade

[Genuína fazendeirn]

Sônia Maria Paixão Botelho, Glória

Cleonice em família p.64

p.28 ().\.>

Lucca Tartaglia Mariana Gonçalves

P·5 2

FAZENDEIRA"

e Ronaldo P. de Moraes Coutinho Berardinelli, Cleonice, 1916- .2. Literatura portuguesa - Crítica e interpretação. l. Oliveira, Paulo Motta (O rg.) .11. Título. 1.

Elisabeth Lissovsky

Margarida de Souza Neves

Santos, Gilda (Org.)

Lívia Prata

Preparação de originais

Mônica Genelhu Fagundes

P·48 ().\.>

5237

Vanie Mari Cavichioli

Amiga de Portugal e dos portugueses,

Maria de Andrade

Projeto gráfico

MAIS

Luís Filipe Castro Mendes

Romance de Dona Cleonice Berardinelli P·3 0 ().\.>

Vasco Graça Moura

Glosa para Dona Cleonice P·3 2

[VOZ] "COMO SINO QUE SOA / NO COPIAR DA FAZENDA"

[Cleonice por ela mesma]

Jerónimo Pizarro / Filipa de Freitas Editar Álvaro de Campos: oprimeiro Arco de Triumpho

LEONICE BERARDINELLI FOI A PRIMEIRA EDITORA CRÍ-

tica da poesia de Álvaro de Campos. Dizemos "crítica", pois a edição da poesia do heterónimo teve início muito antes, em 1944, publicada pela Ática. O que Berardinelli, em 1990, trouxe de novo para a fixação e para a subsequente leitura e interpretação da poesia de Campos foi, por um lado, a primeira tentativa real de oferecer ao leitor um conjunto mais completo de poemas do heterónimo, uma vez que a primeira edição, de 1944, era limitada e, por outro, o estabelecimento desse mesmo corpus com base em critérios "crítico-genéticos": a discussão da materialidade dos textos (suportes físicos, tintas etc.), o confronto entre testemunhos manuscritos e datilografados, a apresentação dos projetos que Fernando Pessoa deixou em esboço e a proposta de datação dos poemas. Neste sentido, Berardinelli foi, de fato, a primeira a abrir caminho para uma apresentação crítica do heterónimo pessoano. No seu intento, Berardinelli procurou também reconstruir um projecto particular de Fernando Pessoa, designado Arco de Triumpho, cuja realização levanta várias dificuldades, atendendo ao estado fragmentário em que o autor deixou o corpus constituinte desse mesmo projeto. Em 1915, Pessoa projetou a publicação de um livro intitulado Arco de Triumpho, cuja primeira e única menção pública surgiu no primeiro número da revista Orpheu, em 1915, no fim da "Ode triunfal",' sem o "ph" habitual da ortografia pessoana (cf. "Triunfal" vs. "Orpheu"). Esta ode constituía, como é corroborado por outros projectos conservados no espólio pessoano, um dos poemas a figurar no respectivo livro (ver Figuras 3 e 4). Recorde-se que a "Ode Jerónimo Pizarro é professor da Universidad de los Andes, titular da Cátedra de Estudos Portugueses do Instituto Camões na Colômbia. Filipa de Freitas é doutoranda pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa (FCSH-UNL). 1 Orpheu, Revista Trimestral de Literatura, Lisboa: Tipografia do Comércio, 1915, p. 83.

32 9 ~

ENSAIOS E REVISÃO CRÍTICA

triunfal", juntamente com "Opiário", foram as primeiras manifestações poéti_ cas públicas sob a assinatura de Álvaro de Campos. O que pretendia Pessoa, então, era apresentar Campos em todo o seu fulgor decadentista e pseudofu_ turista, antes de dar a conhecer o sensacionismo da "Ode marítima". Os esque_ mas onde se encontra incluído o Arco de Triumpho, seja como parte de projetos maiores, seja como projeto independente, revelam que Pessoa não abandonou o plano de publicar o Arco até quase ao fim da sua vida. Embora a datação de alguns projetos seja hipotética, os mais tardios em que se incluem referências ao livro datam provavelmente de 1930 e 1932, apenas cinco e três anos antes da morte de Pessoa, respectivamente (ver Figuras 5 e 6). Os projetos pessoanos que incidem directamente sobre o Arco de Triumpho revelam que o autor ponderou continuamente sobre o seu corpus (que ora incluiria poesia e prosa, ora apenas poesia, variando no número de poemas), alterando-o ao longo do tempo, como Berardinelli esclarece na sua introdUção: Destaca-se, no âmbito de planos e projetos que fez Pessoa para Campos, um número considerável de projetos e de menções de um livro que conteria os poemas iniciais e dois textos em prosa deste heterónimo, e se intitularia Arco de Triumpho (...). Acalentado durante, pelo menos, dez anos, o sonho de um livro em que Pessoa pretendeu, a princípio, conter a poesia dos vinte anos do engenheiro naval e poeta sensacionista (de 1914 a 1916, Campos tinha de 24 a 26 anos, já que nascera em 1890), o projeto evoluiu durante esse tempo. Passou, como vimos, de

nta do modo como Cleonice Berardinelli reconstruiu e reorganizou esr · dar Co mas em conf onto postenor com as novas propostas d a u' 1· 11ma e d·lçao tes poe , ,. de Campos.3 Como foi mencionado previamente, a primeira grande

cn uca

de _ a "Ode triunfal" - foi publicada ainda em vida de Pessoa, em 1915, no o. rne iro número da revista Orpheu. O mesmo sucedeu com a "Ode marítima", pn ublicada no mesmo ano, no segundo número da revista, com uma dedica~óp. a Santa Rita Pintor. A publicação destes dois grandes poemas em 1915 valIda na . estado definitivo, uma vez que não se encontrou no espólio de Pessoa o se U m texto manuscrito ou datilografado que indicie posteriores alterações nenhu autorais, embora existam dois testemunhos antigos da "Ode marítima" localizados tardiamente (ver Figuras 7 e 8). As demais odes que compõem o Arco de Triumpho encontram-se num estado completamente diferente: fragmentadas, inacabadas, por vezes com notas destinadas à sua organização. Correspondem à "Saudação a Walt Whitman", à "A passagem das horas" e à "Ode marcial". Como Berardinelli indicou, os poemas podiam ter sido mais do que cinco - até o "Ultimatum", um híbrido de prosa e poesia podia ter feito parte do Arco de Triumpho -, mas o nosso entendimento é que o projeto ulterior era constituído fundamentalmente por cinco grandes odes e que, se hoje, quiséssemos publicar um livro de Campos intitulado Arco de Triumpho, este deveria conter esse núcleo de cinco composições poéticas.

um conjunto de dez textos em verso e dois em prosa [cf Figura 31 a outro [cf. Figura 51 em que se eliminou a prosa em favor de sete poemas indubitavelmente escolhidos, mais quatro prováveis (um deles, pelo menos, datado de ano bem posterior ao das últimas odes também datadas) e, finalmente, a apenas cinco odes. [cf Figura

4r

Estas cinco odes constituem o corpus principal do livro Arco de Triumpho, segundo um plano de circa 1925, e serão o núcleo desta exposição, que pretende

2

Fernando Pessoa, Poemas de Álvaro de Campos, Ed. Cleonice Berardinelli, Edição Crítica de

Fernando Pessoa, Série Maior, vol. II, Lisboa: INCM,

1990,

p.

40-42.

Saudação a Walt Whitman A "Saudação a Walt Whitman" é, sem dúvida, de entre as cinco odes, o poema que pressupõe mais dificuldades de edição. O poema já tinha sido publicado na primeira edição da poesia de Campos, em 1944, mas contendo apenas uma parte cuja leitura era a mais fácil: os testemunhos datilografados. A proposta de edição de 1944 e a de 1990 diferem em mais de cem versos. Para além de trazer à luz um número considerável de fragmentos pertencentes à ode, Berardinelli também deu a conhecer duas versões incompletas do poema, para além de dois esquemas

Berardinelli não conhe-

ceu o projeto que é referido como Figura 6, porque se encontra numa folha que ficou com sobrinhos-herdeiros de Fernando Pessoa.

3 Fernando Pessoa, Obra completa de Álvaro de Campos, Ed. Jerónimo Pizarro e António Car-

330 ""

331 CQ..> E N S AIOS E REVISÃO C RíTI C A

GENUíNA FAZENDEIRA

diello, coI. Jorge Uribe e Filipa Freitas, Colecção Pessoa, Lisboa: Tinta-da-china, 20 14.

para a construção do mesmo: um mais pormenorizado e outro apenas com bre-

A nOSSo ver, esquemas como esté são mais um auxílio para pensar a organi-

ves indicações (ver Figuras 9 e 10) . Neste sentido, é indubitável que Berardinelli

ão da ode do que "instruções" para a reconstruir. Por este motivo, princi-

completou os elementos que estavam em falta nesta ode, para além de propor uma nova organização, diferente da que fora até então conhecida através da pri-

;:irnente, a proposta de Berardinelli difere de algumas edições posteriores,6

meira edição. Servindo-se também das outras duas versões encontradas como

nas quais não se pretende dar uma forma a um poema que dela carece. Na edição de Jerónimo Pizarro e António Cardiello, o esquema de Pessoa para

auxílio para a sua proposta de reorganização, foi possível a Berardinelli corrigir

a elaboração do seu poema serviu, também, como ponto de partida para orien-

a ordem de alguns papéis (e de alguns versos) que sustentou a edição de 1944.

tar a ordenação dos fragmentos, mas estes foram considerados não como partes

Se a leitura dos datiloscritos, pela sua própria natureza, não levanta proble_

de

um todo, mas como núcleos individuais, o

que impediu qualquer tentativa

mas substanciais, o mesmo não pode ser dito no que respeita aos manuscri_

de articulação de versos de diversas proveniências. Em confronto com as edições

tos: para além de dificuldades inerentes à conservação dos papéis (muitos já

anteriores, e a par da análise dos suportes materiais dos documentos, que podem

desgastados) e aos suportes materiais utilizados pelo autor, um dos grandes

sugerir proximidade ou afastamento entre os mesmos (e sugerir uma datação),

desafios encontra-se na decifração da letra de Pessoa, geralmente muito com-

delineou-se a separação entre os fragmentos que fariam parte do poema (indi-

plexa. Neste âmbito, a edição de Berardinelli também constituiu um contribu_

cados por a, b, c etc.) e os que seriam publicados em anexo. A "Saudação a Walt

to fundamental, através da publicação de manuscritos inéditos. Naturalmente,

Whitman" tem mais de trinta fragmentos datilografados e manuscritos identi-

a leitura de um manuscrito está sempre sujeita a erros e a lacunas, de modo

ficados, de entre os quais alguns apresentam um estado claramente incompleto

que as edições posteriores - incluindo a de Berardinelli em 1999 corrigir e completar, por vezes, essas leituras.

(pOUCOS versos numa folha, vários conjuntos de versos separados por uma linha,

_4

puderam

Não é necessário analisar detidamente a construção da "Saudação a Walt

ou repetição de versos encontrados noutros fragmentos, denotando variação da mesma parte etc.). Estes foram, por conseguinte, considerados textos suple-

Whitman" de 1990, uma vez que essa análise depende inteiramente da

mentares do poema. Com os núcleos principais da ode, e usando o esquema de

da respectiva edição. Mas é necessário, todavia, indicar que .Berardinelli

Pessoa, que definia mais ou menos explicitamente os principais temas e a ordem

por intuito a recriação integral e unitária da ode, de modo a aproximar-se

do poema, procurou-se formular e justificar uma hipótese de organização que

uma eventual vontade do autor manifesta nos seus esquemas:

resultou, no seu todo, diferente das que haviam sido propostas anteriormente.

o [fato de o poema} ter sido deixado inacabado e a significativa O1JontuJ.rJd4 de textos experimentais - algo como o que em música se chama de lInrM'rn....

A passagem das horas

sobre um mesmo tema, nos quais o poeta buscaria afinar o instrumento, até seguir a nota desejada -, despertam o desejo de tentar completá-lo, em parte

nA passagem das horas" corresponde a outra das odes fragmentadas de Pessoa.

menos, tarefa em que é preciosa a existência de um projeto bastante t;~~'LJI"U.''''~ do poema [cf Figura 9}.5

Segundo uma carta de Mário de Sá-Carneiro,7 Pessoa desejava incluir o poema no terceiro número de Orpheu, mas o fim precoce da revista e o estado inacabado da ode não permitiram realizar esse desejo. Deste modo, "A passagem

5 Fernando Pessoa, Poemas de Álvaro de Campos, Ed. Cleonice Berardinelli, Edição Crítica

6 Fernando Pessoa, Álvaro de Campos -livro de versos, Ed. Teresa Rita Lopes, Lisboa: Estampa, 1993; Alvaro de Campos - poesia, Ed. Teresa Rita Lopes, 2 3 • ed., Lisboa: Assírio & Alvim, 2013; Obra completa de Álvaro de Campos, Ed. Jerónimo Pizarro e António Cardiello, Lisboa: Tinta da China, 2012. 7 Mário de Sá-Carneiro, Em ouro e alma. Correspondência com Fernando Pessoa, Ed. Ricardo

Fernando Pessoa, Série Maior, vol. II, p. 111.

Vasconcelos e Jerónimo Pizarro, Lisboa: Tinta-da-china, 2015, p. 369.

332 ~ GENUíNA FAZENDEÍRA

333 ~

4 Fernando Pessoa, Poemas de Álvaro de Campos, Ed. Cleonice Berardinelli, Rio de Nova Fronteira, 1999.

ENSAIOS E REVISÃO CRíTICA

das horas" também suscita problemas de edição, especialmente por Pessoa não ter deixado, neste caso, nenhum projeto sobre uma possível organização do poema. A datação aproximada dos fragmentos permite constatar que o poema teve o seu período áureo de desenvolvimento entre 1915 e 1916, e foi brevemen~ te retomado em 1918 e 1923. Antes da edição crítica de 1990, Berardinelli já tinha proposto uma orga~ nização do poema, em 1988, procurando conjugar os fragmentos soltos que o constituem numa ordem mais ou menos fluida, dividindo-o em duas partes. Esta divisão provém de um dos fragmentos ser encimado pelo número II, jus~ tificando, por isso, a escolha da editora. Esta edição crítica de 1988 trouxe, mais uma vez, o conhecimento de alguns trechos ainda inéditos e dos esquemas que figura alguma menção ao poema. Também implicou a contestação da ordem assumida pela primeira edição, em 1944; e uma proposta de o galruz,aôlo,,' defendida por Ivo Castro, 8 mas não ado ta da por editores posteriores, dado seu caráter tendencialmente unitário. Na edição crítica da poesia de Álvaro Campos, em 1990, Berardinelli não alterou a primeira ordenação prnr\n"'~A reiterando, assim, o seu trabalho prévio. "A passagem das horas" é constituída por 14 fragmentos, datilografados (apenas cinco são manuscritos). Em 1988 e 1990, tentou recriar a ode, procurando organizar os fragmentos através de mações temáticas:

Fig. 1. BNP/E3, 66A-29r (pormenor)

Fig. 2. BNP/E3, 71-24r (pormenor)

Tomando conhecimento dos textos manuscritos inéditos, colhi duas 'ntf1lr",lnr,'i-" um tinha como subtítulo "end of morning hymn'; o que significa que o Poeta rira em A passagem das horas algo que se poderia chamar Hino da manhã; havia a indicação: "parte II'; a apontar para uma divisão do poema em duas Com estas ideias em mente, procurei estabelecer um encadeamento semântico as folhas não obrigatoriamente, isto é, materialmente, ligadas entre si. 9

Tendo em conta que o encadeamento semântico tinha sido predominante, em relação ao encadeamento material, no estabelecimento da ordem do poema, mas que o contrário também era possível, a edição de 2014 propôs uma organização diferente à de 1990, seguindo um caminho paralelo ao da "Saudação": fornecer núcleos separados e identificados (constituídos, por vezes, por mais de uma folha), dispostos cronologicamente, e partindo, sempre, da fragmentação inerente à ode, da análise dos materiais e da respectiva datação. Não se descuraram eventuais ligações semânticas, mas privilegiaram-se as unidades materiais, evitando a migração de fragmentos de uma follia para outra. Os textos suplementares (apenas dois) circunscreveram-se a dois escritos em estado mais inacabado (com apenas alguns versos em estado de esboço) em relação aos textos principais.

Vejam-se os pormenores das duas "informações" referidas nesta citação Figuras 1 e 2:

Ode marcial

8 Fernando Pessoa, Álvaro de Campos - A passagem das horas, Ed. Cleonice Berardinelli;

A "Ode marcial" é o último grande poema do Arco de Triumpho, embora me-

9 Fernando Pessoa, Álvaro de Campos - A passagem das horas, Ed. Cleonice Berardinelli, p.

nos extenso do que as odes previamente mencionadas. Composta igualmente por fragmentos, de entre os quais apenas um foi publicado em 1944, pela Ática,

334

335

prévia de Ivo Castro, Edição Crítica de Fernando Pessoa, vol. o, Lisboa: INCM, 1988, p. x-xi.

C\.v GENUÍNA FAZENDEIRA

C\\.> ENSAIOS E REVISÃO CRíTICA

a ode foi redescoberta por Berardinelli na sua edição crítica de 1990, que reúne alguns trechos inéditos e um esquema para a sua organização. Todavia, seis novos fragmentos foram posteriormente identificados por Teresa Rita Lopes, em 1993, como parte do poema, tornando-o mais completo. Estes textos foram incluídos por Berardinelli na sua edição de 1999, identificados como novos textos suplementares da "Ode marcial". Contrariamente ao método empregue na "Saudação a Walt Whitman" e n"'A passagem das horas", Berardinelli não tentou, na "Ode marcial", recriar uma unidade com os novos fragmentos que encontrara, mas estabeleceu, como texto principal do poema, um núcleo diferente do que tinha sido publicado em 1944: um documento inédito (ver Figura 11) que se tornou então nuclear. A par deste trecho, Berardinelli remeteu para anexo do poema os quatro fragmentos que encontrara no espólio (outros três inéditos e aquele publicado pela Ática na primeira edição de Campos) . Mediante a reunião dos vários textos passíveis de integrar a ode que editores anteriores identificaram e do projeto deixado por Fernando a edição crítica de 2014 propôs uma nova organização do poema, cleos. Deste modo, e seguindo os princípios previamente referidos \~... ~..... dos materiais, elementos afins entre os fragmentos etc.), foram seleClOnadc). os trechos que poderiam ser incluídos em cada um dos pontos do pessoano (ver Figura 11), e estudadas as características internas e externas texto (proximidade entre versos, conteúdo temático, identidade A par desta organização, os demais fragme,ntos foram incluídos nos suplementares, dado o seu caráter excessivamente incompleto ou as ... a.a""'I;" rísticas materiais que sugeriam uma composição cronológica tardia em ção aOS núcleos principais. A organização das grandes odes de Campos é, por conseguinte, um «avw...... que suscita questões e que justifica as diferenças entre as edições críticas, afastando, ora aproximando as escolhas dos editores. Dado o estado damente fragmentado da obra de Pessoa, a edição crítica fornece ao leitor conhecimento de todos os elementos relativos aos originais, de.slgnadame~ntj notas de aparato que permitem acompanhar o processo de escrita do Todavia, o papel do editor é mais comprometedor quando tem de ae~;errIIJCl! nhar, ainda, o papel de coautor. A vontade final de Pessoa em relação a

das suas criações poéticas não pode ser conhecida. Neste sentido, cada edição crítica da sua obra fragmentada é uma possível leitura dos textos e, por isso, nenhuma pode ser considerada definitiva.

palavras finais Uma forma de homenagear Cleonice Berardinelli parece-nos a de voltar a abrir a "arca" de Álvaro de Campos, a de voltar a colocar sobre a "mesa" do papel de um artigo alguns documentos que ela consultou nas décadas de 19 80 e 1990 (e outros a que não teve acesso ou não identificou) . Berardinelli foi pioneira na edição crítica de Álvaro de Campos e toda a edição posterior a 1990 é "devedora" dessa edição que inaugurou o projeto da edição crítica das obras pessoanas em Portugal. Os documentos seguintes, já referidos nas páginas anteriores, revelam as dificuldades que habitualmente deve vencer um editor de Fernando Pessoa: ler uma letra complexa, organizar conjuntos de textos num volume mais ou menos coeso e coerente, consultar os projetos "editoriais" (planos, esquemas etc.) desse autor de autores que foi Pessoa, datar criticamente os documentos do arquivo pessoano, estudar todos os testemunhos de uma composição e familiarizar-se com uma bibliografia vasta. Berardinelli ultrapassou estas dificuldades todas e contribuiu durante três décadas para o nosso conhecimento e compreensão de Álvaro de Campos, e não só . Com gratidão reconhecemos o seu labor e tornamos, neste artigo, mais visíveis alguns documentos que para ela foram fulcrais para propor uma determinada forma de editar as odes pertencentes ao Arco de Triumpho.

UH,' UU'&-.

336

~ GENUíNA FAZENDEIRA

337 ~ ENSAIOS E REVISÃO CRÍTICA

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x...=!L- ft_ ~ _______~# GENUíNA FAZENDEIRA

349 C'II..> E NSAIOS E R E VISÃO C RíTICA

1~ - H o..pheu - Vol. 1- 19'5

Ah, o orvalho sobre a minha excitação! O frescôr nocturno no meu oceano interior! Eis tudo em mim de repente ante uma noite no mar Cheia do enorme mistt:rio humanissimo das ondas noctllrnas. A lua sobe no horizonte . E a minha infancia fe 'iz acorda, como uma lágrima, em mim. O meu passado ressurge, como se esse grito maritimo Fôsse um arõma, uma voz, o eco duma canção Que fôsse chamar ao meu passado Por aquela felicidade que nunca mais tornarei a ter.

~) .4

3.

Era na velha casa socegada, ao pé do rio ..• (As janeJas do meu quallo, e as da casa de jantar tambem, Davam, por sobre umas casas baixas, para o rio proximo, Para o Tejo, este mesmo Tejo, mas noutro ponto, mais abaixo •.. Se eu agora chégasse ás mesmas janelas não chegava ás mesmas janelas. AquEle tempo passou como o fumo dum vapôr no mar alto ... ) Uma inexplicavcl ternura, Um remorso comovido e lacrimoso, Por todas aquélas victimas - principalmente as criançasQue son~ei fazendo ao sonhar-me pirata antigo, Emoção comovida, purque elas fôram minhas victimas; Terna e suave, porque não o fôram realmente; Uma ternura confusd, como um vidro embaciado, azulada, Canta velhas canções na minha pobre alma dolorida. Ah. como pude eu pensar, sonhar aquelas cousas? ' Que longe estou do que fui ha uns momentos! Histe' ia das sensações - ora estas, ora as opostas! Na loura manhã que se ergue, como o meu ouvido só esçolhe As cousas de acôrdo com esta emoção - o marulho das ágoas. O marulho leve das ágoas do rio de encontro ao cais ... , A vela passando perto do outro lado do rio, Os montes longinquos, dum azul japonez, _ As casas de Almada, E o que ha de suavidade e de infancia na hora matutina! •.•

(! .

r.

L:t Fig. 9. BNP/E3, 7I-ur (pormenor)

Saud. W Whitman

Schema: A

Saudação inicial. 2 . Razões para a saudação.

1.

B 3· 4-

C. 5. Final

Uma gaivota que passa, E a minha ternura é maior. Mas todo este tempo não estive a reparar para nada. Tudo isto fui uma imprt:ssão s~ da pele, como uma caricia. Todo este tempo não tirei os olhos do meu sonho longinquo, Da minha casa ao pé do rio, Da minha infancia ao pé do rio, Das janelas do meu quarto dando para o rio de noite, E a paz do luar esparso nas ágoas I .•.

Fig. 8e. Orpheu 2, p. 146

350

~ GENUÍNA FAZENDEIRA

351 ~

EN SAIOS E REVISÃO CRÍTICA

...

saudaçãO a Walt Whitman

1.

2.

!

Introducção. Maneira como saúdo Walt Whitman. Descripção de quem era Walt Whitman e de porque é que o saúdo.

porisso em natural e artificial Em feito e por fazer te saudo, em prompto E em irrealizante universal parto a saudar-te Emerjo de mim até ti para me encontrar E [i pra] saudar-te, procuro Como quem procura palavras estranhas no diccionario, e as esquece, Todas as fórmas psychicas de m[inha] consciencia de mim!

.J.

ef.

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Fig. lOa. BNP/E3, 71-2'

352

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GENUfNA FAZENDEIRA

353

~ ENSAIOS E REVISÃO CRfTICA

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Fallencia da saudação. porque falha. Natureza do artista em geral, e sua fraqueza essencial. Fraqueza minha propriamente. E eu, que nem sequer sou O Artista, mas Um Artista, Não um Poeta, mas simplesmente Alvaro de Campos. Conclusão. Conclusão a rodas partidas! Final a motores parados. Panne no genio por nascer! Dérapage da consciencia em mim, Folgas, /falhas/, laqueio no encontro comigo Parafusos que faltam no meu dynamismo.

f.

Fig. lOa. BNP/E3, 71-2'

354

~ GENUíNA FAZENDEIRA

355 ~ ENSAIOS E REVISÃO C Rí TICA

• .0

... la



..

.,

Fig. 11. BNP/E3, 71-1 v (pormenor)

Cavalgada 2. Saudação aos combatentes 3. Os Destroços. 4. Philosophia da guerra - (Dobre) 5. Prece. 1.

356

~ GENUÍNA FAZENDEIRA

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