Edmund Burke: As Reflexões em debate

June 7, 2017 | Autor: Filipe Roza | Categoria: Modern History, French Revolution, Conservatism, Edmund Burke, Conservadorismo
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPIRITO SANTO CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS E NATURAIS DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA CURSO DE HISTÓRIA

FILIPE LOMBA GARCIA ROZA

EDMUND BURKE: AS REFLEXÕES EM DEBATE

VITÓRIA 2015

FILIPE LOMBA GARCIA ROZA

EDMUND BURKE: AS REFLEXÕES EM DEBATE

Monografia apresentada junto ao curso de História da Universidade Federal do Espírito Santo, como requisito parcial à obtenção do título de licenciado e bacharel. Orientador: Prof. Dr. Josemar Machado de Oliveira

VITÓRIA 2015

Dedicado à Renata Lomba, por ter me incentivado desde o início de minha vida a fazer o que amo, sempre presente e sempre uma mãe maravilhosa.

Meus profundos e sinceros agradecimentos a todas as pessoas que contribuíram para a realização desse trabalho. Por tudo o que me foi ensinado, meus agradecimentos aos professores Dr. Fabio Muruci dos Santos, Dr. Julio Cesar Bentivoglio, Dr. Geraldo Antonio Soares, Dra.Patricia Maria da Silva Merlo, Dr. Ueber José de Oliveira, Dr. Andre Ricardo Valle Vasco Perreira e, em especial, ao Prof. Dr. Josemar Machado de Oliveira, por ter me orientado de maneira brilhante e por ter me inspirado a me transferir para o curso de História. Agradeço também pelas boas discussões acerca de meu tema, em especial ao doutorando Pedro Demenech (PUC-Rio), à doutoranda Layli Oliveira Rosado (UERJ), ao mestrando Hugo Ricardo Merlo (UFES) e ao meu grande amigo e professor de História, Abner Madeira Wotkosky (UFES). Agradeço a todos os meus amigos de curso, que tornaram meu curso um divisor de águas do ser humano que sou hoje. Por último, porém mais importante, agradeço a toda minha família e a Deus por mais uma etapa de minha vida concluída.

RESUMO O presente trabalho tem como objetivo principal analisar a importância da obra do historiador, filósofo e político anglo-irlandês Edmund Burke, em especial sua obra contrarrevolucionária Reflexões sobre a Revolução na França. Para isso, o trabalho se dividirá em um resumo e análise da obra; seguido de um capítulo dedicado ao principal opositor de Burke, Thomas Paine e logo em seguida por um capítulo em que se abre o debate da obra para outros grandes autores. Essa estratégia metodológica visa o resultado de demonstrar a importância da obra e suas múltiplas formas de interpretação ao longo do tempo. Palavras-chave: Edmund Burke; Revolução Francesa; conservadorismo; História Moderna. 1

GARCIA ROZA, Filipe Lomba. Edmund Burke: as Reflexões em debate. Vitória, UFES, 2015. 37 p. Monografia apresentada junto ao curso de História da Universidade Federal do Espírito Santo, como requisito parcial à obtenção do título de licenciado e bacharel. Vitória, 2015.

SUMÁRIO

Introdução......................................................................................................p. 6

Capítulo 1 – Resumo e análise da obra.......................................................p. 8

Capítulo 2 – Thomas Paine.........................................................................p. 23

Capítulo 3 – Outras análises.......................................................................p. 29 Alexis de Tocqueville...................................................................................p. 29 François Furet...............................................................................................p. 30 Modesto Florenzano.....................................................................................p. 33 John A. G. Pocock........................................................................................p. 34

Conclusão......................................................................................................p. 36

Referências...................................................................................................p. 37

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INTRODUÇÃO Considerado por muitos como o maior critico da Revolução Francesa, o anglo-irlandês Edmund Burke, filósofo, político e historiador foi o criador de uma das obras mais controversas sobre a Revolução, chamada de Reflexões sobre a Revolução na França (BURKE, 2014). Sua obra até os dias de hoje provoca o fascínio e a curiosidade, especialmente por ter sido escrita um ano após o início da Revolução. Com um sucesso estrondoso de vendas na Inglaterra e ao longo da Europa, Burke ganhou fama, positiva e negativa. Burke, ao longo de mais de duzentos anos ainda é questionado pelas suas posições, tendo em vista sua natureza liberal de membro do partido Whig inglês e seu tom agressivo em suas Reflexões (SOARES, 2014, p. 8). Após o lançamento de sua obra e a resposta dada pelo inglês iluminista Thomas Paine (PAINE, 2009), Burke tem sido acusado incansavelmente de abusar da retórica e de distorcer a realidade ao tratar dos fatos históricos. Para além de uma fundação do conservadorismo político moderno, Burke foi marcado pelo seu caráter retórico e romântico em seus escritos. O conservadorismo moderno, especificamente o que se pauta na ideologia inequívoca e cunhada de um corpo de ideias inabaláveis pelos fatos históricos, teve em Edmund Burke o seu fundador (VINCENT, 1995, p. 70). Ao questionar o caráter arrasador da Revolução Francesa, Edmund Burke demonstrou um leque de ideias não inéditas, mas combinadas em um novo estilo de pensamento, o qual não se encaixava nem como parte da ideologia Tory – posteriormente adotada pela nova onda de membros - ou Whig. Para uma análise mais detalhada de seu pensamento nas Reflexões, este trabalho será iniciado por uma explanação e análise dessa obra, buscando destacar os principais pontos elucidados por Burke que o caracterizam e o singularizam. Logo na sequência, será analisada a resposta dada por Thomas Paine em sua obra Os direitos do homem (PAINE, 2009), um trabalho que acabou por se tornar o escrito iluminista e republicano mais inflamado do século XVIII. A obra de Paine, desde o prefácio, mostrava o teor de indignação à obra de Burke. Para além do embate Burke-Paine, as Reflexões serão analisadas pelo que outros historiadores falam dela. Os historiadores selecionados foram os franceses Alexis de Tocqueville (TOCQUEVILLE, 2009) e François Furet (FURET, 2003); o britânico J. G. A. Pocock (POCOCK, 2003) e o historiador brasileiro Modesto

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Florenzano (FLORENZANO, 1993). Cada historiador auxiliará esse trabalho, que tem como objetivo abordar as diversas formas de tratamento que as Reflexões foram e podem ser estudadas.

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CAPÍTULO 1 – Resumo e análise da obra

Este capítulo terá como pretensão a explanação das primeiras considerações da densa obra Reflexões sobre a Revolução na França do inglês Edmund Burke. Edmund Burke inicia suas reflexões como uma troca de correspondências com o fidalgo francês Charles-Jean-François Depont, quando este perguntou como o inglês enxergava as profundas mudanças que estavam ocorrendo na França. Burke começa falando dos dois clubes ingleses que apoiaram a Revolução Francesa – a Sociedade Constitucional e a Sociedade da Revolução. A Sociedade Constitucional é vista por Burke como louvável, tendo em vista seu objetivo de propagar na Inglaterra alguns escritos que poucos teriam condições de comprar. Porém Burke não conseguiu encontrar uma única pessoa que realmente tivesse se beneficiado dessa medida de caridade (BURKE, 2014, p. 27). O alvo de críticas do historiador paira sobre a Sociedade da Revolução, elogiada e aclamada pela Assembleia Nacional Francesa. Burke reconhece o clube como um composto de membros influentes no cenário político, todavia, não poupa críticas às suas posturas e aos seus membros. Inicialmente ele escreve sobre a importância de se ter cautela em felicitar uma revolução recente, pois é necessário o conhecimento da maneira que os revoltosos se utilizarão de suas recémconquistadas liberdades e que a liberdade coletiva é um sinônimo de poder (BURKE, 2014, p. 31). Burke subsequentemente passa a demonstrar o medo pelo seu próprio país se aproximar dos ideais franceses, especialmente pela produção das atas da Sociedade da Revolução, demonstrando simpatia pela Assembleia Nacional Francesa, especificamente pelas atas e obras do pároco inglês Dr. Richard Price, que pregava em um templo no bairro judeu londrino de Old Jerry. Edmund Burke não poupa críticas às falas de Price, especialmente devido a sua posição de pároco: Poucas arengas sacras, salvo no tempo da liga na França e no tempo de nosso Pacto Solene, respiraram tão pouca moderação quanto este de Old Jerry. Mesmo considerando-se que houvesse algo de moderado em tal discurso, ainda assim deveríamos ter em mente que a política e o púlpito pouco se harmonizam. Nas igrejas não se deveria ouvir senão a doce voz da caridade cristã. A causa da liberdade e do governo ganha tão pouco quanto a da religião com essa confusão de deveres. Aqueles que abandonam seu próprio caráter para assumir um outro que não lhes pertence ignoram, em geral, tanto o caráter que deixam quanto o que assumem. Totalmente

9 desconhecedores do mundo no qual gostam de se misturar e inexperientes nos negócios sobre os quais se pronunciam com tanta confiança, eles só têm [sic] em comum com a política as paixões que excitam. A Igreja é certamente um lugar onde as dissensões e as animosidades da humanidade deveriam ter um dia de trégua (BURKE, 2014, p. 34).

Edmund Burke prossegue nas críticas contra Price, pois o apoio do pároco à Revolução Francesa se dá de forma distorcida, citando a noção de legitimidade de governo como exemplo. Pois Richard Price impõe sua desaprovação com a não legitimidade da linhagem real francesa, pois não partiu da escolha de seu povo e diz que o rei inglês é o único legítimo. Burke nos conta que essa afirmação é muito perigosa, pois o rei vigente na Inglaterra no momento da Revolução não havia sido eleito pelo povo e que o Dr. Price estaria sendo incoerente, pois o rei comanda a Inglaterra pelas leis e regras que vão além da ideia de uma eleição (Idem, p. 36-37). Burke vai além e critica Price quando este menciona que após a Revolução de 1688 (Gloriosa), o povo inglês passou a ter três direitos fundamentais: escolher os próprios governantes; destituí-los por má conduta e constituir o próprio governo do povo. Segundo os escritos de Burke, esses direitos são existentes apenas pelos membros da sociedade da Revolução, mostrando como nenhum dos três direitos existe na Inglaterra e que nenhum poder tem a capacidade de acabar com uma estrutura garantida por lei – sobre a segunda proposição de má conduta (BURKE, 2014, p. 43). Sobre a crítica feita pela Sociedade da Revolução à hereditariedade, Burke declara que a sucessão hereditária inglesa é vista como um direito, não como um erro. Afirma ainda que: [...] Nenhuma experiência nos ensinou que, se tivéssemos seguido outro caminho ou método que não o da transmissão hereditária da coroa, pudessem ser perpetuadas regularmente e conservadas como sagradas nossas liberdades como direito hereditário nosso. Um movimento irregular convulsivo pode ser necessário para combater uma enfermidade convulsiva e irregular. Mas o hábito saudável da Constituição britânica é a sucessão [...] (BURKE,

2014, p. 47).

A obra continua sendo desenvolvida sempre enfatizando o sucesso do governo inglês e a forma equivocada de revolta na França. Burke faz uma crítica à Revolução

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Francesa por ela acabar com as instituições antigas do país – o historiador dezenovista Alexis de Tocqueville dirá o contrário em sua obra O Antigo Regime e a Revolução (TOCQUEVILLE, 2009) – e demonstra medo do pensamento inglês ser contaminado, assim como seu território. Ao longo das páginas subsequentes, Edmund Burke continua com suas ponderações acerca das proposições colocadas pela Sociedade da Revolução, mostrando o equívoco em apoiar as deposições dos reis e que estas deposições são tratadas como um caso de guerra e não de Constituição. Além disso, se uma Revolução acontece, assim como a Revolução Gloriosa, ela serve para preservar as leis antigas, sem a necessidade da criação de um novo tipo de governo (BURKE, 2014, p. 52-53). Em suma, o inglês nos dá um período inteiro sobre os benefícios da tradição: [...] Assim, segundo o método natural na condução do Estado, no que melhoramos nunca somos completamente novos, e no que conservamos nunca somos completamente obsoletos. Permanecendo ligados a nossos ancestrais desta maneira e sobre estes princípios, não nos guiamos pela superstição de antiquários, mas pelo espírito de analogia filosófica. Nessa escolha de herança, demos à nossa moldura política a imagem de uma relação de sangue; unindo Constituição de nosso país aos nossos mais caros laços domésticos; adotando nossas leis fundamentais no seio de nossas afeições familiares; mantendo inseparáveis e cultivando com o calor de todos os seus benefícios combinados e recíprocos, nosso Estado, nossos corações, nossos sepulcros e nossos altares

(BURKE,

2014, p. 55-56).

Ainda tomando como exemplo a experiência de seu próprio país, Burke mostra como os revolucionários franceses erraram em destruir o sistema monárquico, pois bastava apenas uma manutenção aos moldes ingleses de preservação de tradições – já mencionado. Assim, Burke elogia a antiga Constituição francesa e como o rei era fundamental para a harmonia entre os diversos poderes discordantes. Todos assumiam suas posições designadas, respeitando seus ancestrais (BURKE, 2014, p. 56-57). Para Edmund Burke, os franceses não estavam preparados para o uso indiscriminado de sua liberdade. Eles deveriam ter aprendido com experiências

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passadas em seu próprio país e aprendido lições de virtude para a melhor tomada de decisões. Para o inglês, a procura pela liberdade não justifica as atrocidades cometidas no meio do caminho. Os líderes a Assembleia Nacional Constituinte e da Revolução são considerados por Burke como desprezadores do próprio passado, de seus contemporâneos

e

de

si

mesmos.

Além

disso,

são

responsáveis

pelo

enfraquecimento da confiança dos reis: Pela perfídia de seus líderes, a França desmoralizou por completo nos gabinetes dos príncipes o tom do conselho indulgente, tirando de tais conselhos seus argumentos mais fortes. Ela santificou as sombrias máximas ditadas pela desconfiança tirânica e ensinou os reis a tremerem diante daquilo que o futuro designará como enganosos prognósticos de

políticos

morais.

Os

soberanos

considerarão

como

elementos subversivos aqueles que os aconselham a ter ilimitada confiança em seu povo, como traidores que visam à sua destruição, levando sua bondade natural a admitir, sob pretextos capciosos, a participações de homens desleais no poder. Isso apena, sem necessidade de outra coisa, é uma calamidade irreparável para os senhores [lembrando que Burke escreve a um fidalgo francês] e para a humanidade [...]

(BURKE, 2014, p. 59). A perda de confiança no povo e o acesso de “incapazes” no poder foram o produto dessa Revolução não só na França, mas em outros reinados, segundo essa citação. Segundo Burke um Estado que concedia graças e favores, assim como “todo o resto” foram sacrificados. Edmund Burke afirma que não se surpreendeu com as medidas tomadas pela Assembleia Nacional ao ver os membros do Terceiro Estado nessa assembleia. Burke afirma que esses membros eleitos não tinham experiência com assuntos políticos. Apenas se seus membros possuíssem elevado grau de virtude que poderiam conduzir corretamente o futuro da nação, pois “[...] se uma Assembleia é viciosa e fragilmente composta em sua maior parte, nada senão um supremo grau de virtude, tal como raramente surge no mundo e com o qual, pois, não se deve contar, pode impedir os homens de talento disseminados por ela de se converterem

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em instrumentos hábeis de projetos absurdos!” (BURKE, 2014, p. 61). Burke faz uma profunda defesa do fator financeiro dos membros como diferencial nos assuntos políticos e sua necessidade na Assembleia Nacional: [...] Nada pode assegurar em tais assembleias uma conduta séria e moderada, a menos que o corpo delas seja composto de pessoas respeitáveis por sua condição de vida, propriedade permanente, educação e hábitos de vida que possibilitam uma visão mais ampla e liberal (BURKE,

2014, p. 62).

Nenhum, ou quase nenhum, dos membros da Assembleia apresentava os traços que Burke julgava louvável, especialmente pelo seu alerta de que um trabalho nobre só poderia ser feito por pessoas de boa reputação, sendo a Assembleia composta de muitos advogados, profissão criticada por Burke. Essa crítica vinha junto com o receio dos membros rústicos e os negociantes dessa Assembleia serem influenciados por esses homens da lei. Burke mais uma vez – como em quase toda a obra – se remonta ao modelo inglês para apontar as mazelas da máquina de governo dessa nova França. Para ele, a Assembleia Nacional Francesa era incontrolável, pois não tinha uma lei que a freasse; ela poderia criar uma constituição que atendesse seus interesses, diferente da Câmara dos Comuns na Inglaterra, que, por mais que fosse formada pela classe liberal, ainda era freada pela Câmara dos Lordes e pela Coroa inglesa. Outro grupo de membros desse novo governo era representado pelo Baixo Clero; vigários enviados até a Assembleia para ajudar na remodelação do Estado. Estes por sua vez nada sabiam sobre propriedade privada e não poderiam atuar em prol de todos do país. Esses membros do Clero eram coniventes e passivos com os burgueses da assembleia; facilmente maleáveis (BURKE, 2014, p. 66). Esse senso de igualdade da nova França, em tratar todos como dignos de agirem na política é, para Burke, um erro. [...] quem quer que, em seu país, seja capaz de agir motivado por um princípio de honra é aviltado e humilhado, não podendo nutrir

sentimento

algum

exceto

o

de

uma

indignação

mortificada e humilhada. Todavia, essa geração passará bem depressa. A geração seguinte de sua nobreza assemelhar-se-á à dos

charlatães

e

dos

palhaços,

dos

especuladores

13 financeiros, usuários e judeus que serão sempre seus companheiros e, às vezes, seus senhores. Creia-me, Senhor, aqueles que tentam nivelar nunca igualam. Em todas as sociedades, consistindo em várias categorias de cidadãos, é preciso que alguma delas predomine. Os niveladores, portanto, somente alteram e pervertem a ordem natural das coisas sobrecarregando o edifício social ao suspender o que a solidez da estrutura requer seja posto no chão. As corporações de alfaiates e carpinteiros de que se compõe, por exemplo, a República de Paris, não podem ser elevadas à situação na qual, pela pior das usurpações – a das prerrogativas da natureza -, os senhores tentam força-las

(BURKE, 2014, p.

70).

Burke continua sua obra escrevendo sobre direitos e propriedades de terra. Para ele, para se assumir o controle de um governo, a honra e a aptidão são fatores indispensáveis. Como um meio de exemplificar sua afirmação, Burke cita o exemplo da dos membros da Câmara dos Lordes na Inglaterra, que possuem propriedade e distinções hereditárias e que são aptos ao governo. Junto com essa citação, ainda aborda a temática da propriedade de terras. Para Edmund Burke, a divisão de propriedades territoriais entre muitos debilita seu poder defensivo e torna a propriedade mínima. A divisão territorial da França feita pela Assembleia tornará sua nação fraca e fragmentada. A nação ficará desmembrada com esse novo governo democrático com a capital em Paris. Nesse momento, volta-se a critica à Sociedade da Revolução pelo seu apoio massivo aos acontecimentos de 1789. Sobre o apoio de Dr. Price, filósofo anglo-irlandês escreve se é do desejo de Price que as coisas na Inglaterra também tomem esse rumo: [...] Deve-se aniquilar nossa monarquia com todas as leis, todos os tribunais e todas as antigas corporações do reino? Deve-se suprimir todos os marcos do país em favor de uma constituição geométrica e aritmética? A Câmara dos Lordes, por votação, ser declarada inútil? O episcopado, abolido? As terras da Igreja vendas a judeus e especuladores, ou doadas como suborno para as repúblicas municipais recentemente inventadas participarem do sacrilégio? Deve-se estabelecer pelo voto que todos os impostos são gravosos e reduzir a arrecadação a uma contribuição ou liberdade patriótica? [...] (BURKE,

2014, p. 75).

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Essa crítica às inclinações de um dos membros da Sociedade da Revolução – nesse caso de todos os membros – continua com Burke deixando mais do que claro que a Constituição inglesa atende perfeitamente ao seu povo. O traço de conservador e moderadamente reformador de Burke se expressa latente quando, após afirmar que não consegue aceitar calamidades em nome de um bem maior, critica os franceses em não aprenderem com a própria história e com a experiência de seus antigos governantes. Esse traço de Burke de um resgate do passado para o enaltecimento de atitudes coerentes se mostra presente a todo o tempo ao longo de sua obra. Portanto, para ele, uma boa Constituição de Estado necessita de profundos conhecimentos da natureza humana; que os efeitos reais dessa modificação nem sempre são imediatos e que é necessária uma cautela ímpar em derrubar estruturas de séculos (BURKE, 2014, p. 81). A simplicidade dos planos propostos nessa nova Constituição francesa preocupa Burke justamente por causa dessas condições citadas por ele. Burke logo em seguida demonstra preocupação em sua obra sobre o que seriam esses Direitos do Homem criados na França, uma vez que direitos são subjetivos e que os reformadores franceses ainda o usam como sinônimo de poder: Para esses teóricos, o direito do povo é quase sempre sofisticamente confundido com seu poder. O corpo da comunidade, onde quer que possa atuar, não pode encontrar nenhuma resistência efetiva; mas ate que o poder e o direito se igualem, a massa do povo não tem direitos incompatíveis com a virtude, e com a primeira das virtudes, a prudência. Os homens não tem nenhum direito ao que não é razoável e ao que não é para o seu próprio benefício [grifo meu] [...] (BURKE,

2014, p. 82).

Edmund Burke retorna a sua constante crítica a Assembleia Nacional francesa (presente em quase toda a sua obra) dizendo que ela é incapaz de punir os autores da Revolução pelos seus atos “bárbaros”. Ainda diz que a Assembleia reside em um lugar em que a Constituição não emanou de uma carta do rei, nem de seu poder legislativo, além de não possuírem um exército real. A Assembleia ainda seria uma criação com um propósito de subversão e que as suas sessões eram teatros de decisões já tomadas por homens selvagens. Do início ao fim de suas Reflexões, Burke se mostra irredutível quanto ao fato

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de achar uma lástima à submissão outorgada sobre os nobres franceses. Esses nobres teriam descendência da cavalaria medieval; cavalaria essa que seria a conferidora do caráter da Europa Moderna e seus traços gerais. Para ele, os costumes de um país são a dignidade para que se ocorra um sentimento de amor de seu povo para com sua nação. Tal cavalaria teria sido esquecida pelos revoltosos; que o rei e a rainha agora eram apenas humanos e que as homenagens às mulheres eram vistas como românticas e loucas. Para Burke, essa nova sociedade perdeu seu culto à personalidade, assim como todo um sistema de costumes. [...] Regicídio, parricídio e sacrilégio são apenas ficções da superstição, corrompendo a jurisprudência ao destruir sua simplicidade. O assassinato de um rei, de uma rainha, de um bispo ou de um pai são apenas homicídios comuns; e, se porventura o povo obtiver proveito com eles, tornam-se uma espécie de homicídio extremamente perdoável, qual não deveríamos submeter a um escrutínio demasiado severo (BURKE,

2014, p. 96).

A crítica aos legisladores continua nas páginas subsequentes, ao serem chamados por Burke de pregadores ateus e legisladores loucos. Para Burke a liberdade e a moral já foram descobertas no passado e continuarão até o dia em que todos morrerem. Portanto não houve descoberta alguma por parte desses legisladores da França. Edmund Burke considera esses políticos e filósofos franceses como seres que desprezam tudo o que é velho e obsoleto e só confiam em suas próprias sabedorias. Por desprezarem o que é velho e obsoleto, tais políticos destroem tudo que entra nessa categoria. [...] Creem que o governo deveria mudar como a moda, e tão impunemente quanto ela; que nenhuma Constituição do Estado necessita de um princípio de solidariedade, além de um sistema de conveniência atual [...]

(BURKE,

2014, p. 107).

Ao longo de sua obra, Burke continua com um apelo à religiosidade frente aos “ateus” que estão moldando a França. Um dos alvos destes seria a instituição Igreja e o confisco de suas terras por parte da Assembleia. Essa temática por diversas vezes aparecerá nas páginas da ora, pois é um assunto que interligam outras

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discussões incitadas por Burke, como o uso ilimitado de papel-moeda a partir de arrendamentos das antigas terras do clero francês. Porém tal assunto será mais bem aproveitado no final do capítulo. Burke faz uma crítica ao confisco geral das terras e ao suposto desdém às posses dos eclesiásticos, que para as academias francesas “[...] são pessoas fictícias, criaturas do Estado que podem ser suprimidas à vontade e, naturalmente, limitadas e modificadas em todos os seus aspectos; que os bens que possuem não são propriamente seus [...]” (BURKE, 2014, p. 124). A reivindicação do cidadão, entretanto, ultrapassa o Estado vigente e o direito de propriedade está acima de qualquer governo. Edmund Burke continua nessa esfera de propriedades de terra e de economia comentando que o interesse monetário na França ganhou corpo especialmente com a enorme dívida interna e externa francesa desde antes da Revolução. Tal interesse estimulou e veio junto com o enriquecimento econômico dos burgueses, muitas vezes prestes a ascenderem à classe nobiliária. Segundo Burke, essa ascensão veio junto com um ódio acumulado da nobreza tradicional, a qual foi atacada pelas frentes da coroa e da Igreja. Uma forma então de minar a nobreza e vingar os ultrajes de anos sofridos por ela foi a de confiscar após a Revolução, os bens da Igreja (p. 128). Para Burke, esse confisco de terras pela Assembleia veio de uma cultura criada há uns anos antes da Revolução pelos “Homens de Letras” franceses, que elaboraram obras literárias para destruir a religião cristã. Para Burke, os homens de fé deveriam ser os últimos a arcar com o prejuízo fiscal, mas: [...] segundo o novo estatuto dos Direitos do Homem, as únicas pessoas que, por justiça, deveriam arcar com o prejuízo eram as únicas que nada tinham a desembolsar, que responderam pela divida sem terem sido emprestadoras ou credoras, fiadoras ou hipotecárias [...]

(BURKE, 2014,

p. 131).

Os bens deveriam ser recolhidos dos banqueiros, ministros e financistas que enriqueceram enquanto a sociedade francesa estava à bancarrota. Burke, porém não viu nenhum crime nos membros do clero para sofrerem esse destino; e ainda se mostra surpreso e estarrecido com um espírito de vingança contra o clero por ações de outras épocas, criticando quem castiga outrem pelos crimes de seus pais (BURKE, 2014, p. 156).

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Burke indaga se realmente a situação da nação francesa carecia de rapinas e confiscos para sair da crise, ou se não poderiam optar pelo imposto indiscriminado. Para ele, o clero e a nobreza não teriam apelado de seus privilégios para fugir de uma contribuição (BURKE, 2014, p. 137). Burke ainda acrescenta os impostos que os chamados Primeiro e Segundo estados tinham, tais como a capitação e o vigésimo. Pior que a situação de rapinas, foi a forma que as terras confiscadas foram jogadas no mercado e como essa atitude destruiu o lucro dessas terras. Para evitar a maior crise dos lucros das terras confiscadas, o governo optou por receber o valor das terras ao longo de anos, para o não esgotamento das terras como papel-moeda. Burke também demonstra a preocupação com esse tipo de política e sobre o risco dela atravessar o Canal da Mancha e adentrar as terras britânicas (BURKE, 2014, 169). Burke (2014) nas páginas subsequentes indaga sobre a questão da destituição da monarquia. Nos Estados Gerais, todas as ordens sociais estavam de acordo em realizar mudança e reformas, mas poucos – ou nenhum – se manifestariam pela queda do rei. Por mais que o Ministro das Finanças Jacques Necker tivesse feito um prognóstico preocupante quanto à crise na França, Burke percebeu a quantidade de riquezas e o poder de aquisição de certas camadas francesa que realmente o fazem duvidar se o Antigo Regime estava em tão maus lençóis quanto dizem. [...] As causas desse poder de aquisição e conservação não podem fundamentar-se em uma indústria desencorajada, em uma propriedade insegura e em um governo verdadeiramente destrutivo. Com efeito, quando considero o aspecto do reino da França; a multidão e a opulência de suas cidades; a magnificência útil de suas estradas e pontes; a vantagem de seus canais e meios artificiais de navegação que abrem os benefícios da comunicação marítima através de um continente sólido de tão imensa extensão; quando volto os olhos para os trabalhos prodigiosos de seus portos, ancoradouros e toda a sua frota mercantil ou de guerra; quando considero o número de suas fortificações construídas com uma técnica tão arrojada e magistral, feitas e mantidas a um custo tão prodigioso e apresentadas a seus inimigos de todos os lados como algo inexpugnável; quando recordo a parte mínima deste extenso território que se encontra sem cultivo e a que nível de completa perfeição alcançou a introdução da cultura de muitos dos melhores produtos da terra; quando reflito sobre a excelência

18 de suas fábricas e manufaturas, nada inferiores às outras salvo as nossas e que, em certos ramos até nos equiparam [...]. Nesse estado de coisas não encontro nada que remeta ao despotismo dos turcos, e tampouco distingo o caráter de um governo que seja tão opressor, tão corrompido ou tão negligente a ponto de ser absolutamente incapaz de toda reforma [...]

(BURKE, 2014, p. 147-148). Essa enorme reflexão de Burke – supracitada em diversos pontos devida sua extensão – o coloca em posição de desconfiança sobre a necessidade de se construir uma nova sociedade a partir de uma tábula rasa. Em contrapartida, Burke observa que essa nova França pós-revolucionária estaria repleta de mendicância e desemprego e que a pobreza se encontraria disfarçada pela afirmação dos chefes de Estado de ser uma nação de filósofos (BURKE, 2014, p. 151). Para Burke (2014, p. 153-154), a nobreza não apresentava essa ameaça à liberdade e não era opressora ao ponto que se falavam. Burke chega a falar sobre nobrezas ao redor da Europa que são muito mais abusivas que a francesa.2 O que fez com que a classe nobiliária não resistisse à Revolução era a cisão interna entre as chamadas Nobrezas da Espada – de linhagem remetente aos antigos povos de origem germânica - e Togada – de antigos burgueses que compraram títulos e de membros do corpo administrativo que receberam honrarias dos antigos monarcas; eram menosprezados pela outra nobreza por terem sido originalmente plebeus (LEFEBVRE, 1989, p. 40). Como Burke não percebe os abusos que tanto falavam, ele declara: Encaro esse clamor violento contra a nobreza como algo meramente artificial. Receber honras e mesmo privilégios das leis, das opiniões, dos usos arraigados de nosso país, nascidos do preconceito dos séculos, não é algo que deva provocar horror e a indignação de ninguém. Tampouco constitui um crime a defesa ardorosa de seus privilégios. A dura combatividade que se encontra em cada indivíduo para preservar a posse do que ele acha que lhe pertence e o distingue é uma das garantias contra o despotismo e a injustiça enraizados em nossa natureza [...]

(BURKE,

2014, p. 155).

2

Alexis de Tocqueville em sua obra O Antigo Regime e a Revolução (2009) – obra que será utilizada em outro capitulo que não tratará desse tema - também abordará essa questão da nobreza francesa ser menos opressora que outra da Europa, citando especialmente o caso alemão.

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O que Edmund Burke tenta explicar é que o espírito de luta pelas posses e pelos bens pertencidos funcionaria como uma arma contra o despotismo, pois seria uma classe forte. Burke esbanja todo o seu espírito conservador quando começa a falar sobre a função da história. A história mostraria os acontecimentos passados e o que se poderia extrair para não cometer os mesmos erros futuros. Para Burke, a história pode ser uma aliada, mas se não usada com cautela, pode criar facções e instituições que saibam usá-la como instrumento de discórdia e de renascimento de uma rivalidade antiga, vide o caso da vingança contra o clero (BURKE, 2014, p. 157). A aversão de Burke às mudanças radicais muito se justificam pela justificativa da tábula rasa, ou seja, de que os reformadores não podem simplesmente demolir um Estado até chegar ao marco zero para só depois se construir um novo tipo de Estado. Na página 172 (2014), Burke continua seu desenvolvimento com a cautela das mudanças e ainda cria um modelo de estadista: “[...] Meu tipo ideal de estadista seria aquele que reunisse uma tendência para conservar e uma capacidade para aperfeiçoar. Fora disso, há apenas vulgaridade na concepção e perigos na execução” (BURKE, 2014, p. 172). Independente desse modelo ideal Burke retorna ao apoio ao monarca deposto na França e diz em sua obra que não conseguiu enxergar qualquer traço de tirania por parte de Luís XVI. Para Edmund Burke, os associados com a Assembleia apenas se aproveitaram das circunstâncias para tomar o poder do Estado. (BURKE, 2014, p. 178-179). A França aos olhos de Burke longe estava de necessitar de uma mudança radical, apenas – como já mencionado anteriormente – por pequenas reformas: Algo totalmente distinto é conservar e reformar simultaneamente. Quando as partes úteis de uma velha instituição são preservadas, e se adapta o que acrescentamos àquilo que conservamos, um espírito vigoroso, uma atenção firme e perseverante, variados poderes de comparação e combinação, e os recursos de uma inteligência pródiga em expedientes devem ser exercidos. É preciso exercê-los na luta contínua contra forças combinadas dos vícios opostos, contra a obstinação que rejeita todo melhoramento e frivolidade, que se fatiga e se desgosta de tudo o eu possui [...]

182).

(BURKE, 2014,

20

Burke a partir da página 186 adentra mais profundamente no estabelecimento do poder legislativo, nacional e local, os quais seriam regidos por três bases diferentes: “[...] uma geométrica, a base territorial; outra aritmética, a base populacional; e a terceira, financeira, baseada na tributação [...]” (BURKE, 2014, p. 186). A base territorial seria a divisão do território francês em 83 partes (departamentos), ocorrendo mais duas divisões internas nestas (comunas e cantões), com um contingente populacional em cada parte. Tal medida poderia ser proveitosa para a melhor organização regional, com um aparato administrativo moldado para o tamanho dessa região. Burke – inicialmente – não comenta muito mais sobre os problemas que se acarretariam com a mera fragmentação simbólica territorial. A chamada base populacional trataria mais da obrigação de cada membro dessas regiões, considerados pela Declaração dos Direitos do Homem como livres. Burke, contudo, observa contradições nessa medida, especialmente no que tange o voto de cada indivíduo, que além de ter que passar por duas instâncias superiores – voto indireto – ainda deveria ter certa quantia de riquezas para o voto. Burke revela aí uma medida totalmente contrária à Constituição. Não obstante essas contradições analisadas por ele, a base da tributação colocaria um fim definitivo na moral da Assembleia. A tributação seria a contribuição de cada território para com a nação, mas essas contribuições variavam pelo número populacional, ou seja, no final alguns territórios dariam mais do que outros, ocorrendo uma desigualdade dos departamentos. Burke ainda reitera a problemática das eleições não diretas. Pois os votos sairiam dos cantões para as comunas e, posteriormente, das comunas com alguns membros para os departamentos. Finalmente cada departamento declarava seu voto para o Estado. O grande problema dessa burocratização por parte de Burke seria a distância do eleito com seu povo, uma vez que não haveria uma forma do povo reivindicar melhores posturas de seus eleitos, pois pouquíssimo contato teriam. Poucas páginas seguintes, Edmund Burke procura descobrir os meios que o Estado se utiliza para manter suas pequenas divisões territoriais unidas. O primeiro para ele seria o chamado “confisco”. Este trataria justamente da elaboração de um papel-moeda chamado de assignats valorizado pelo confisco de terras na Revolução – especialmente o confisco das já comentadas terras eclesiásticas (BURKE, 2014, p. 202). Essa modalidade de união territorial para Burke não duraria muito tempo, pois se os valores da terra alterassem interminavelmente, os preços entrariam em

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instabilidade. E quem mais sofreria com isso seria o camponês que não saberia jogar esse jogo de especulações fiscais. O segundo tipo de poder aglutinador das pequenas repúblicas na França seria a autoridade da cidade de Paris. Além de tratar dos confiscos e do papelmoeda, a Assembleia ainda usa Paris para controlar o poder executivo e legislativo francês. Burke se coloca veementemente contra a falta de um Senado; deixar o legislativo e executivo nas mãos da Assembleia e a submissão do judiciário para com esta. Esses poderes da Assembleia deixaram o monarca Luís XVI com funções meramente secundárias e dependentes da decisão da Assembleia. O rei apenas executaria as ordens como um carrasco obedecendo. Edmund Burke acaba por reprovar esse poder aglutinador em uma única cidade. O terceiro poder de coesão seria o exército. Burke questiona a fidelidade de um exército que viu muito de seus antigos comandantes serem perseguidos pela Revolução (BURKE, 2014, p. 220). Ao comentar sobre a deserção de diversos membros do exército, Burke dispara: [...] Eles [os membros das tropas deserdadas] sabem as doutrinas que [os membros da Assembleia] pregaram, os decretos que aprovaram, as práticas que fomentaram, Os soldados se lembram do dia 6 de outubro [marcha para Versalhes]. Recordam-se dos guardas franceses. Não se esqueceram da tomada dos castelos reais em Paris e Marselha. O fato de que os governantes de ambas as cidades tenham sido assassinados impunemente é algo que não lhes saiu da memória. Eles não abandonaram os princípios da igualdade dos homens, estabelecidos de modo tão ostensivo e laborioso. Não podem fechar os olhos à degradação de toda a nobreza francesa, e à supressão da própria ideia de um cavalheiro. A total abolição de títulos e distinções não se perdeu para eles [...]

(BURKE, 2014, p. 222).

Além do citado por Burke, a figura do rei degradado já não provocaria o respeito pelos membros das tropas. Burke diz que imaginava que a solução para as deserções seriam alguma medida autoritária e de terror, mas se surpreendeu por ser uma medida mais incoerente ainda. A Assembleia simplesmente convocou novos membros, ignorando os anteriores rebelados (BURKE, 2014, p. 223). A respeito desses distúrbios do exército, é valida a citação de Burke: [...] É igualmente impossível propor um remédio para a incompetência da

22 coroa sem pôr em evidência a debilidade da Assembleia, Não se pode deliberar sobre a confusão do exército sem revelar as piores desordens das municipalidades armadas. A anarquia militar escancara a anarquia civil, e vice versa [...]

(BURKE, 2014, 225).

Pode-se observar que, elencando as municipalidades armadas - criadas pela divisão feita pela Assembleia - e a anarquia militar, a municipalidade armada com grupos de soldados rebeldes, os problemas de coesão de territórios franceses estiveram por um triz. O soldado se veria no direito de fazer o que bem entendesse, uma vez que ele também estava incluso nos Direitos do Homem. Burke finaliza sua obra recapitulando os problemas que essa Revolução traria para a França e sobre o uso indiscriminado de assignats, como pagamentos sem consequências, sendo estes uma espécie de “bomba-relógio” com a valorização e desvalorização de terras. Por ter se tratado de uma obra polêmica e um pilar para o pensamento conservador, Edmund Burke não deixou de ter estudiosos sobre suas obras e pensadores que entrariam em conflito contra ele e sua obra, como o inglês Thomas Paine.

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CAPÍTULO 2 – Thomas Paine É impossível falar das repercussões das Reflexões de Burke sem abordar a obra Os Direitos do Homem do inglês Thomas Paine (PAINE, 2009), uma obra inflamada e revolucionária que serviu tanto para uma resposta a Edmund Burke, quanto para agitar aqueles que queriam uma nova revolução na Inglaterra no final do século XVIII. Segundo o historiador brasileiro Modesto Florenzano, os que queriam a mudança na Inglaterra encontraram o caminho pela obra de Paine, pois não era apenas uma refutação ao anglo-irlandês, mas a apresentação de um novo sistema de princípios (FLORENZANO, 1993, p. 86-88). Já no prefácio de seu livro, Paine já apresenta o teor de sua obra ao chamar as Reflexões de insulto ultrajante e declarar Burke como um fomentador de preconceitos entre Inglaterra e França. Tal posição seria imperdoável tanto no âmbito dos costumes quanto diplomático (PAINE, 2009, p. 74-76). A primeira refutação da obra de Burke por parte de Paine seria o apoio ao membro da Sociedade da Revolução, Dr. Price, e a incompreensão de Paine com as declarações de Burke acerca da nação não ter direitos sobre a ótica de Richard Price (BURKE, 2014, p. 43). Edmund Burke em sua obra, ao chamar a Assembleia de usurpadora e ter afirmado que na Inglaterra, o povo inglês abriu mão de seus direitos quando os membros do Parlamento introduziram uma cláusula a Guilherme e Mary se prontificando em renegar sua posteridade “para sempre” (BURKE, 2014, p.42), provoca a incredulidade de Thomas Paine. Para este, não existe tal contrato de se governar além do tumulo, pois os vivos que deveriam ser favorecidos e não os mortos e nenhuma autoridade ou parlamento pode controlar a liberdade (PAINE, 2009, p. 79-80). Paine vai adiante quanto a esse falso consentimento de abnegação da liberdade das gerações passadas e o destino da futuras: ”[...] Uma lei não revogada continua em vigor não porque não possa ser revogada, mas porque não foi revogada, A não-revogação é tomada por consentimento” (PAINE, 2009, p. 82). Portanto, o homem não quis abrir mão desse tipo dessa lei por vontade própria, não por uma sina eterna. O livro do sr. Burke parece ter sido escrito como um regulamento para a nação francesa. Mas, se me permito usar uma metáfora exagerada, adequada ao exagero do caso, diria que são trevas tentando iluminar a luz [...]. Quão árida, estéril e obscura é a fonte da qual o sr. Burke se serve; e

24 quão ineficazes, ainda que adornados com flores, são toda a sua declamação e seu argumento quando comparados a esses sentimentos claros, concisos e animadores! [declaração do marquês de La Fayette] [...]

(PAINE, 2014, p. 82-83).

O fato de Edmund Burke considerar o monarca francês indulgente e legítimo transparece para Paine uma ignorância por parte de Burke sobre as causas e princípios da Revolução Francesa. Thomas Paine continua dizendo que a Revolução não era contra o rei, mas contra os princípios despóticos. O despotismo não se originou com Luís XVI, mas com uma longa tradição de despóticos que se arraigou na nação francesa de uma forma muito funda para não ser eliminada sem uma revolução. A razão da Revolução por Paine era contra os princípios, não contra os homens, esses sendo despóticos ou não (PAINE, 2009, p. 85). Thomas Paine segue adiante demonstrando que não era apenas a tradição monárquica que era despótica. Pode-se dizer então que o fato da Revolução Francesa não ter partido de um cenário estritamente atual, mas de uma série de fatores que envolviam tradição e costume, ela foi gerada pelo pensamento racional. Ao longo da obra, Thomas Paine faz provocações a Burke, especialmente no que tange à linguagem abstrata e alegórica das Reflexões. A partir de um certo ponto, Paine começa a separar o real do fictício em Burke: [...] Mas o sr. Burke tem que lembrar que está escrevendo história e não pelas teatrais, e que seus leitores esperam a verdade e não o jorro exclamativo de uma linguagem pomposa e oca. Quando vemos um homem lamentando – usando um tom dramático, em um escrito que se pretende confiável – que “a era dos cavaleiros se foi!”, que “a glória da Europa está extinta para sempre!”, que “a insubornável graça da vida (se alguém sabe o que isso significa), a defesa comum das nações, o cultivo do sentimento viril e do heroísmo se foram!”, e tudo isso porque a era quixotesca da bobagem cavalheiresca se foi, que opinião podemos formar do seu discernimento, ou que respeito podemos ter dos fatos? Na sua imaginação extravagante, ele descobriu um mundo de moinhos de vento e lamenta não haver Quixotes para ataca-los. Mas se a era da aristocracia, como a da cavalaria, acabar – e, originalmente, elas tinham uma conexão -, o sr. Burke, o trombeteiro da Ordem, poderá continuar sua paródia até o fim, finalizando-a com a exclamação: “O ofício de Otelo acabou!” [...]

(PAINE,

25

2009, p. 87-88).

Após mais algumas observações sobre a omissão de Burke em certos aspectos, como a pouca menção dos horrores feitos na Bastilha, Paine começa a falar sobre as causa e sobre os acontecimentos que precederam a Revolução. Dentro dessa narrativa, Paine mostra como a França vivia um momento conturbado e como a assembleia Nacional recém-formada nos Estados Gerais sofria constantes ameaças, ameaças essas esquecidas por Edmund Burke (PAINE, 2009, p. 95). Logo após a descrição das causas imediatas da Revolução, Paine adentra de vez na obra de Burke: Preciso agora seguir o sr. Burke por uma selva intransitável de rapsódias e uma espécie de contraponto sobre os governos, onde ele afirma tudo o que lhe apraz supondo que recebe crédito, sem apresentar evidências ou razões para suas afirmações (PAINE,

2009, p. 103).

Thomas Paine questiona Burke quanto suas concepções sobre o direito dos homens. Pois se Burke criticava a Declaração dos direitos do homem, que direitos os homens teriam? Teriam algum direito? É o que Paine começa a fazer nas páginas seguintes, ou seja, um estudo aprofundado dos direitos do homem (PAINE, 2009, p. 104). Paine realmente adentra no assunto de direitos, tanto natural quanto civil, não apenas pela crítica de Burke, mas como um pretexto para iniciar um dos maiores tratados iluministas sobre liberdade, direitos e tipos de governo. Paine percebe ao longo das Reflexões de Burke que o filósofo anglo-irlandês tenta comparar as duas nações. Para Thomas Paine, só existem duas maneiras de um governo emergir, ou do povo, ou desde acima (sobre) do povo. E a Inglaterra tão defendida por Burke veio da segunda forma, por meio de conquistas bélicas (PAINE, 2009, p. 111). Se ela foi fruto De Guilherme, o Conquistador, ela necessitaria de uma Constituição. Na verdade, Paine adentra a essa questão da Constituição justamente por Burke ter se recuado a abordá-la em sua obra, sabendo que a Inglaterra se encontrava em situação pior. Paine adentra na formulação de uma Constituição francesa pela Assembleia: A atual Assembleia Nacional da França é, falando estritamente, o pacto social feito em pessoa. Seus membros são os representantes da nação em

26 seu caráter original; futuras assembléias serão os representantes da nação em seu caráter organizado. A autoridade da atual assembléia é diferente daquelas futuras assembléias. A autoridade da atual assembléia é a de criar uma Constituição; a das futuras será a de legislar de acordo com os princípios e moldes pescritos naquela Constituição. E se a experiência demonstrar no futuro a necessidade de alterações, emendas ou adições, a Constituição indicará o procedimento pelo qual tais coisas serão feitas, não o deixando nas mãos do poder discricionário do futuro governo

(PAINE,

2014, p. 112). Em um momento da obra de Burke já mencionado, ele critica a necessidade do pagamento de um imposto para se garantir o direito de voto, como se tal atitude fosse um contrassenso perante a Declaração. Porém Paine indaga Burke em saber o porque de Burke se opor a isso, se na Inglaterra as eleições ainda são pautadas pela herança sanguínea de um período remoto, governada ainda por um monopólio aristocrático, onde as cartas de patente ainda são o principal símbolo de qualificação e onde a liberdade ainda não é plena devido ao estrago causado por Guilherme, o Conquistador da Normandia (PAINE, 2009, p. 113-115). Mais adiante, Paine tenta compreender o pensamento de Burke em sempre atrelar Estado e Igreja como um governo ideal. Não alguma Igreja em particular ou Estado, mas qualquer um deles. Ao fazer isso, concomitantemente, ele censura a Assembleia Nacional pelo desvinculo religioso, além da abolição do dízimo. Paine escreve: Isso resulta da ligação recomendada pelo sr. Burke. Ao unir a Igreja ao Estado, uma espécie de mula, capaz somente de destruir e não criar, é gerada. Ela se chama Igreja estabelecida pela lei, e é uma estranha, já desde o seu nascimento, para qualquer mãe que a tenha gerado, a quem, com o tempo, ela expulsa e destrói (PAINE,

Paine

continua

sua

obra

retomando

2009, p. 130).

momentos

importantes

pré-

revolucionários e sempre desqualificando as Reflexões de Burke sempre quando pertinente. Ao tratar da Assembleia dos Estados Gerais e a reprovação de Burke pela forma que estava sendo conduzida: O sr Burke (e devo tomar a liberdade de lhe dizer que ele está muito

27 desinformado sobre os assuntos franceses), aludindo a essa matéria, diz: “A primeira coisa que me impressionou na convocação dos Estados Gerais foi a grande divergência com o antigo procedimento”. E em seguida ele continua: “No momento que li a lista percebi claramente – e me aproximei bastante do que aconteceu – tudo o que estava por suceder”. O sr. Burke certamente não percebeu tudo o que estava por suceder”. Esforcei-me para convencê-lo, antes e depois de os Estados Geras terem se reunido, de que haveria uma revolução, mas não pude faze-lo perceber, e ele também não acreditaria nisso. [...] A divergência era necessária, pois a experiência tinha comprovado que o antigo procedimento era ruim [...]

(PAINE, 2009, p.

145).

São nítidas em ambas as obras como a Revolução despertou paixões e sentimentos distintos e como para muitos – incluindo Edmund Burke – ela foi um fenômeno monstruoso nunca visto antes e que foi muito mais longe do que a simples destruição do despotismo vigente (PAINE, 2009, 156). Burke ao longo de sua obra – e isso é percebido e mencionado por Paine – ainda se encontrava preso a conceitos arcaicos em relação ao momento revolucionário, tanto pela defesa da monarquia; pela defesa da herança de títulos e propriedades; pela defesa da hereditariedade nos governos e pela reafirmação de que um povo não saberia cuidar de si sem um governo acima e que esse governo – essa coroa hereditária – era um produto da natureza humana. Quando Paine entra no âmbito da economia, ele tenta mostrar a Burke como a nação francesa se diferenciava do governo francês e como a queda do governo não prejudicaria seus credores. As formas, segundo Paine, que a nação francesa encontrou para a não insolvência do país perante seus credores foi uma profunda reforma fiscal, pautada em duas medidas: [...] primeiro, reduzir as despesas do governo; segundo, vender as propriedades rurais monásticas e eclesiásticas. Os devotos e os devassos penitentes, usuários e avarentos de outrora, a fim de assegurar para si mesmos um mundo melhor do que aquele que estavam a ponto de deixar, haviam legado imensas propriedades em custódia do clero para obras pias. O clero as manteve para si mesmo. A Assembléia Nacional ordenou que fossem vendidas para o bem de toda a nação e que o clero fosse decentemente provido (PAINE, 2009, p. 181).

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Percebe-se aí uma diferença gritante entre Burke e Paine sobre consequências que o confisco de terras monásticas teriam para a França. Paine encerra sua obra reafirmando suas discordâncias com Burke e sobre como as Reflexões não deveriam ser levadas a sério. Na segunda parte da obra de Paine, a crítica vai para as outras obras não inclusas nesse presente trabalho.

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Capítulo 3 – Outras análises

As Reflexões de Edmund Burke, especialmente depois da crítica de Thomas Paine, tiveram ao longo dos séculos XIX e XX uma série de análises de diversas correntes historiográficas e até hoje é motivo de fascínio e deslumbre. Esse capítulo irá tratar da menção e análise das Reflexões por alguns historiadores, cada um com suas particularidades e diferentes formas de abordagem.

Alexis de Tocqueville

Nada mais digno de se iniciar essas discussões com o historiador francês do século XIX, Alexis de Tocqueville. Em seu O Antigo Regime e a Revolução, Tocqueville menciona o trabalho de Burke. Tocqueville faz sua primeira menção a Burke quanto o seu caráter combativo contra a Revolução e seu espanto sobre esse novo fenômeno: Burke, cujo espírito foi abrasado pelo ódio que já desde o início a Revolução lhe inspirou, o próprio Burke por alguns momentos fica incerto ao vê-la. O que ele pressagia inicialmente é que a França ficará desfibrada e como que aniquilada [...] (TOCQUEVILLE,

2009, p. 4).

Tocqueville em sua obra analisa o caráter revolucionário de se criar uma nação a partir das ruínas do Antigo Regime. Entretanto ele analisa alguns políticos que não perceberam que o propósito revolucionário era esse e que ainda defendiam a mera reforma. Burke era um dele, com toda a sua cautela e apologia à tradição: “Queríeis corrigir os abusos de vosso governo”, diz o mesmo Burke aos franceses, mas por que fazer algo novo? Por que não vos apegastes as vossas antigas tradições? Por que não vos limitastes a retomar vossas antigas franquias? Ou, se vos era impossível recuperar a fisionomia indistinta da constituição de vossos pais, por que não olhastes para nosso lado? Teríeis encontrado então a antiga lei comum da Europa”. Burke não percebe que tem ante os olhos a revolução que precisamente deve abolir essa antiga lei comum da Europa; não percebe que é exatamente disso que se trata e não de outra coisa (TOCQUEVILLE,

2009, p. 25).

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Como um apoiador, porem cauteloso, da Revolução Francesa, Alexis de Tocqueville viu em Burke uma presente ingenuidade em seu espanto e uma defesa equivocada do antigo governo francês. Edmund Burke não tinha a ciência de como estava a situação pré-revolucionária na França, especialmente como a monarquia havia deixado a França internamente. [...] A administração do Antigo Regime tirara antecipadamente dos franceses a possibilidade e o desejo de se ajudarem mutuamente. Quando a Revolução sobreveio, em vão se procuraria na maior parte da França por dez homens que tivessem o hábito de agir em comum de um modo regular e de zelar pessoalmente por sua própria defesa; o poder central devia encarregar-se disso, de tal modo que o poder central, tendo caído das mãos da administração régia para as mãos de uma assembléia irresponsável e soberana, e que passara de cordata a terrível, nada encontrou diante de si que pudesse detê-lo ou sequer retardá-lo por um momento. A mesma causa que fizera cair tão facilmente a monarquia tornara tudo possível após sua queda (TOCQUEVILLE,

2009, p. 225-226).

Pode-se interpretar essa declaração de Tocqueville, além da faceta de uma denuncia do que haveria de se tornar a Assembleia, uma análise de como cidadão francês por tradição e por autoridade monarca, já permanecia necessitando de alguém que o defendesse, excluindo o próprio indivíduo.

François Furet

Junto com a análise de Tocqueville, outro francês, um século depois, deixaria suas análises sobre as Reflexões de Edmund Burke. Tratar-se-ia do historiador François Furet e suas obras polêmicas sobre a Revolução Francesa. Em seu capítulo intitulado Burke ou o fim de uma história só da Europa (FURET, 2003), Furet tece análises sobre a obra de Burke e como ele foi visto ao longo do século XIX e XX, ou seja, sumariamente ignorado por grande parte dos historiadores franceses da Revolução. Furet mostra como Burke se espantou não apenas com os

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acontecimentos factuais, onde Tocqueville mais se centra, mas nas mudanças políticas e filosóficas e em como a maioria dos pensadores acolhem a Revolução como um acontecimento que foi manifestado pela razão e que estava previsto. Para Furet, Burke se prendeu em sua obra em analisar a Revolução como uma ruptura com a civilização europeia (FURET, 2003, p. 94). Entretanto, Furet analisa como Burke apresentou em suas Reflexões um receio dessa “crise” que foi a Revolução se tornar continental. Pois o rompimento com as tradições europeias deu espaço à outra tradição criada pela Revolução. Furet vê em Burke um agente investigativo de qualidade, pois a proximidade temporal junto com a distância da realidade inglesa de Burke – antagônica com a francesa em inúmeros aspectos - com o acontecimento na França fez de sua obra um livro aberto, onde o espanto de Burke e sua sinceridade sem mascarar a natureza do acontecimento se tornaram sua marca. [...] Enquanto o pensamento contra-revolucionário tiver tendência a fecharse na recusa, e a interpretação liberal ou jacobina nas ilusões retrospectivas da necessidade, ele [Burke] consegue medir plenamente a novidade filosófica da Revolução, graças à distância que conserva em relação a ela. Ele é o primeiro a compreender muito rapidamente, que a França inaugura uma História enquanto ele encarna uma outra. A partir dele, através dele, a Europa apresenta, daí em diante, duas figuras antagônicas, inconciliáveis, a Inglaterra e a França (FURET,

2003, p. 94).

Furet analisa as Reflexões como uma forma combativa de frear esses acontecimentos, para essa Revolução não se alastrar para a Inglaterra, pois a Inglaterra por pouco não passou por uma terceira pouco tempo antes da Revolução Francesa. Em sua obra, Burke procurou silenciar os membros dos clubes radicais, como a Sociedade da Revolução. Para isso, ele não poderia e não tratou da Revolução Inglesa em seu primeiro momento de guerra civil em 1640, mas na chamada Revolução Gloriosa de 1688, onde a monarquia havia sido restaurada junto com a participação mista das ordens sociais inglesas. Segundo François Furet, Burke foi o primeiro a perceber a total renegação do passado pelos revolucionários franceses, uma espécie de ruptura com a própria história. A diferença entre a história inglesa e francesa para Burke, segundo Furet, é exatamente nesse aspecto de fuga com o passado que a Revolução Francesa criou

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(FURET, 2003, p. 99). Além dessa ruptura observada por Furet, Burke também desaprova a noção de direitos universais e do fim do governo misto: Ora, Burke vê nessa concepção [de universalidade sem se preocupar com os poderes intra-socias] a prova de que a partir da figura dos indivíduos ao mesmo tempo particulares e iguais, não há mais lugar possível para a coletividade senão na exaltação ao mesmo tempo abstrata, ilusória e perigosa, do Estado-comunidade. A seus olhos, ao contrário, a única representação justa da sociedade, em relação ao poder, é a dos corpos, produtos da história, definidos por sua relação concreta com a repartição das vantagens sociais e da propriedade. Foi assim que a Constituição inglesa elaborou progressivamente seus elementos de representação política dom as estruturas da antiga sociedade, e constituiu o Parlamento com a nobreza, de um lado, e os Comuns, do outro. A idéia de uma criação ex nihilo do político, tal como a manifesta a Revolução Francesa, é para Burke um escândalo e um absurdo. Não pode existir política verdadeira, a seus olhos, a não ser no ajustamento do poder à sociedade real. Enquanto 1789 separou o político do social, o Estado da sociedade civil, construindo o conceito de soberania indivisível, independente dos interesses de seus outorgantes, a Inglaterra oferece o exemplo de um sistema político plural [grifo meu], no qual os poderes exercidos são inseparáveis das posições sociais e do respeito que elas inspiram, segundo o próprio princípio do mundo aristocrático. É nesse arranjo secular de instituições pelos interesses e pelos preconceitos que Burke vê a garantia de uma verdadeira representação política da sociedade

(BURKE, 2003, p. 106-107).

Para Furet, Burke se destacou nesses aspectos analisados, especialmente no conceito de que a Revolução para Burke não foi apenas o rompimento com a monarquia – muito menos absoluta, uma vez que Burke não considerava Luís XVI um déspota –, mas uma introdução à democracia pura que se rompeu com a ordem do tempo (FURET, 2003, p. 110).

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Modesto Florenzano

O historiador da Universidade de São Paulo, Modesto Florenzano, em sua brilhante tese de doutorado intitulada As Reflexões sobre a revolução em França de Burke:

uma

revisão

historiográfica

(FLORENZANO,

1993), destaca

várias

características marcantes da obra célebre de Burke, dentre elas a defesa da religião ao longo de sua obra. Florenzano não se mostra surpreso com o ódio que Burke transmite em sua obra contra o ateísmo, pois este seria o inimigo mortal de todas as religiões. Somado a esse ódio, Burke faz uma crítica velada à concepção e atitude da aristocracia francesa de não se levar a religião a sério, apenas para as camadas subalternas. Florenzando escreve que, para Burke, a aristocracia deveria se portar de forma honrosa e digna com o intuito de ser um espelho às demais ordens da sociedade francesa. Tal crítica pesa de forma pior aos revolucionários: [...] Para Burke a prova de que a filosofia do século XVIII na França, dominada pelo ateísmo, degenerou em fanatismo, superstição e loucura, está na própria revolução francesa e no seu ódio (e dos filósofos) à Igreja, ao clero e às religiões. (FLORENZANO,

1003, p. 230).

Florenzano adentra à comparação de Burke, também feita por Alexis de Tocqueville, do caráter religioso da Revolução no que tange a forma de propagação desta. Para ambos, a Reforma em muito se assemelha ao proselitismo e ao efeito fulminante da Revolução Francesa. Florenzano destaca que não foi a concepção do homem ser um animal religioso ou a defesa do cristianismo que fazem de Burke um autor revoltoso com o século XVIII, “[...] mas sua defesa apaixonada, incondicional, da Igreja e do clero em sua conjuntura histórica em que, tanto na Inglaterra quanto na França, a opinião pública ilustrada em geral estava em franca ofensiva contra ambos [...] (FLORENZANO, 1993, p. 235). Florenzando ainda analisa Burke como um político que pouco considerou o Renascimento e a Reforma como marcantes, próximo aos efeitos da cavalaria medieval: Religião e cavalaria, clero e nobreza, que na concepção iluminista burguesa

34 do passado europeu são considerados como símbolos de um era de violência, de superstição e incultura, transformam-se na concepção de Burke, que já anuncia a concepção romântica, em berço e conduto da civilização do progresso. A visão da história europeia de Burke, é, pois, já romântica e anti-burguesa [...]

Tal tema da tese de Florenzano serviu para preencher a lacuna religiosa, embora a sua tese completa possa ser utilizada em todos os âmbitos de abordagens possíveis dentro desse trabalho.

John G. A. Pocock

Como último historiador a contribuir para este trabalho, o britânico John Pocock em seu artigo A economia política na análise de Burke da Revolução Francesa (POCOCK, 2003) preencherá o âmbito econômico de abordagem das Reflexões de Edmund Burke. Assim como este trabalho, Pocock também menciona como a obra de Burke pode ser analisada como um artefato poli facetado, pois apresenta diferentes tipos de abordagens. Ele começa falando sobre a influência que o britânico Adam Smith teve nos escritos de Burke, especialmente na hora de tratar da situação monetária da França. Para além de sua posição favorável ao mercantilismo, Pocock apresentará Burke não como um anti-mercado, mas como um anti-especulação fiscal: [...] Argumentaremos que Burke era um defensor do governo aristocrático Whig; que o governo Whig identificava-se com o desenvolvimento da sociedade mercantilista; que Burke viu a Revolução como um desafio à ordem Whig. Emergindo de dentro das condições que a ordem tornava possíveis; e que ele empregou a linguagem e as categorias da economia política a fim de analisar a ameaça revolucionária e responder a ela [...]

(POCOCK, 2003, 247).

Uma percepção interessante de Pocock acerca da obra de Burke era a crítica incessante aos assignats – forma de pagamento em papel-moeda gerado pelo confisco de terras eclesiásticas – franceses, porém o silêncio de Burke quanto a sua própria nação, que teve sua Revolução de 1688 garantida pela fundação do Banco

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da Inglaterra. Como já mencionado, esses assignats incomodava Burke não por sua característica de compra e venda de terras, mas pelo seu caráter especulativo (POCOCK, 2003, p. 249-250). Burke não admitia uma economia sem os valores virtuosos da sociedade; como se o comércio dependesse das maneiras e não o contrário: [...] Burke, caracteristicamente, considera isso [as maneiras dependerem da economia] um absurdo, como tomar o efeito pela causa. Ele insiste em que o comércio pode florescer somente sob a proteção das maneiras, e que as maneiras requerem a preeminência da religião e da nobreza, os protetores naturais da sociedade. Provocar a derrocada da religião e da nobreza é, portanto, destruir a própria possibilidade de comércio. O assalto contra Maria Antonieta é o indício da destruição das maneiras cavalariana, que é parte da destruição do segundo estado. E isso por sua vez conduz, como Burke explica em maior detalhe, à destruição do primeiro, à tomadas das terras da Igreja e sua utilização para instaurar um despotismo da papelmoeda, em si mesmo fatal para a propriedade, o comércio, a troca e a manufatura [...] (POCOCK,

2003, p. 252).

Assim percebe-se que o comércio entra em choque com a especulação de papelmoeda, ao ponto de ser destruído pelo “despotismo” deste. A grande controvérsia para a Inglaterra com a obra de Burke era que este estava se utilizando de terminologias da classe Tory para atacar a Revolução. Os argumentos de Burke tiveram então efeito de beneficiar ambos os lados na Inglaterra. Pocock afirma que Burke considera os “Homens de letras” como antigos aliados da monarquia que deixaram de ser bajulados. Tais homens teriam escrito obras contra a religião e às terras da Igreja que justificaram os confiscos feitos pela Assembleia. Pocock continua seu desenvolvimento do que Burke considerava burguês, mas não utilizava a terminologia em inglês, mas em holandês Burghers, pois tinham propósitos fiscais diferentes dos enobrecidos comerciantes ingleses.

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Conclusão

As Reflexões sobre a Revolução na França de Edmund Burke se tratou de um dos maiores e mais controversos escritos sobre a Revolução Francesa e a sociedade francesa como um todo. A análise de sua obra elucida como Burke transitava com facilidade entre seu caráter aristocrático e político. Preocupado com a possibilidade desse tipo de acontecimento se alastrar pela Europa e atravessar o Canal da Mancha, Burke fez de sua obra uma arma de combate e freio da Revolução Francesa e sua política da tábula rasa. Percebe-se como Thomas Paine revolucionou o universo iluminista com sua indignação furiosa com a obra de Burke, tratada por Paine como mais uma peça teatral preenchida de devaneios e distorções da realidade do que como reais reflexões

sobre

um

acontecimento.

O

historiador

Modesto

Florenzano

(FLORENZANO, 1993) bem pontua a respeito da cisão ocorrida na Inglaterra após as Reflexões e Os direitos do homem entre os que queriam a permanência do sistema inglês de governo e os que queriam uma ruptura como na França. Junto com Thomas Paine, outros historiadores contribuíram e analisaram de diferentes formas o fenômeno burkeano: o próprio Modesto Florenzano, ao tratar da importância da religiosidade para um governo e para a estruturação da sociedade europeia; François Furet e sua análise sobre a obra de Burke como uma declaração de que a França teria se desprendido do restante da Europa; Alexis de Tocqueville e sua crítica à Assembleia e à Burke por seu desconhecimento quanto às condições da sociedade francesa no período pré-revolucionário e ao britânico J. G. A. Pocock e sua profunda análise no viés da economia política da obra de Edmund Burke, onde se encontra um Burke mercantil, mas profundamente receoso e crítico com a adoção de papel-moeda provinda do confisco de terras monásticas. O presente trabalho conseguiu com sucesso analisar a obre de Edmund Burke e apresentar diferentes formas de abordagens de uma obra cada vez mais necessária de se estudar nos dias atuais, tão cheios de incertezas e imprecisões sobre as ideologias políticas modernas. A obra Reflexões sobre a Revolução na França é de fundamental aquisição àqueles que desejam adentrar com mais profundidade sobre a historiografia da Revolução Francesa.

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REFERÊNCIAS

BURKE, Edmund. Reflexões sobre a Revolução na França. São Paulo: EDIPRO, 2014.

FLORENZANO, Modesto. As Reflexões sobre a revolução em França de Edmund Burke: Uma revisão historiográfica. São Paulo: USP, 1993. 446 p. Tese de Doutoramento apresentada ao Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. São Paulo, 1993.

FURET, François. Burke ou o fim de uma só história da Europa. In: FURET, François. A Revolução em debate. Bauru, SP: EDUSC, 2001.

LEFEBVRE, Georges. 1789, o surgimento da Revolução Francesa. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1989.

PAINE, Thomas. Os Direitos do Homem. In: Senso comum. Porto Alegre, RS: L&PM, 2009.

POCOCK, J. G. A. A Economia Política na análise de Burke da Revolução Francesa (1995). In: POCOCK, J. G. A. Linguagens do ideário político. São Paulo: Edusp, 2003.

SOARES, José Miguel Nanni. Introdução. In: BURKE, Edmund. Reflexões sobre a Revolução na França. São Paulo: EDIPRO, 2014.

TOCQUEVILLE, Alexis de. O Antigo Regime e a Revolução. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2009.

VINCENT, Andrew. Ideologias políticas modernas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1995.

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