Educação ambiental e gestão participativa em comunidades rurais e tradicionais: desafios para uma atuação educativa na perspectiva de diálogos de saberes

August 14, 2017 | Autor: Rio Avanzi | Categoria: Environmental Education
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Educação ambiental e gestão participativa em comunidades rurais e tradicionais: desafios para uma atuação educativa na perspectiva de diálogos de saberes Maria Rita Avanzi PROGRAMA DE PÓS GRADUAÇÃO EM ENSINO DE CIÊNCIAS UNIVERSIDADE BRASÍLIA - BRASIL Contato: [email protected]

Resumo Com o propósito de desenvolver reflexões sobre o tema Educação Ambiental e gestão participativa em comunidades rurais e tradicionais, este artigo trata de desafios postos a educadores ambientais que buscam atuar na perspectiva do diálogo de saberes. São tratadas quatro facetas desses desafios: a) ruptura com uma postura colonialista na relação entre Ciência e conhecimentos plurais; b) busca pela centralidade dos conhecimentos tradicionais na elaboração de políticas, leis e instrumentos de regulação na área ambiental; c) reconhecimento da pluralidade de leituras sobre as relações entre povos tradicionais e ambientes, no interior do ambientalismo; d) resistência à mercantilização das relações entre saberes e desses com o ambiente. As reflexões são desenvolvidas a partir de um cotejamento entre as facetas desses desafios, algumas características de populações tradicionais e estudos empíricos desenvolvidos em localidades brasileiras, colhidos a partir de um levantamento bibliográfico sobre o tema.

1. Introdução Este artigo tem o propósito de desenvolver reflexões sobre o tema Educação Ambiental e gestão participativa em comunidades rurais e tradicionais a partir da proposição de práticas educativas pautadas pelo diálogo de saberes. A noção de diálogo é aqui apresentada na perspectiva da hermenêutica filosófica e pressupõe o processo de compreensão como um encontro entre diversas formas de interpretar o mundo. Nessa abordagem, o verdadeiro diálogo se dá pelo encontro de pessoas dispostas a ouvirem-se mutuamente, expondo-se ao outro e abrindo-se “ao que nunca emergira, até então, no horizonte de sua própria compreensão” (FLICKINGER, 2000, p. 46). Para isso, a reciprocidade entre diferentes interpretações é considerada fundamental para a ampliação de nossa leitura de mundo (FREIRE, 1989), permitindo uma experiência compreensiva à qual não teríamos acesso individualmente, em nosso horizonte histórico-cultural específico. Pensar práticas educativas pautadas por essa perspectiva dialógica coloca em pauta um desafio basal para atuação de educadores e educadoras: o exercício de desestabilização de certezas, pressuposto para que possamos considerar a importância do outro no movimento de produção de

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significados e sentidos sobre o mundo. “Este outro é o que interpela o sujeito desde a natureza, o ambiente, e os outros humanos e não-humanos com quem compartilhamos nossos saberes e JODFSUF[BTEPNVOEPw $"37"-)0(36/"7"/;*  Q  Esse desafio transita desde uma dimensão pessoal, relativa à postura assumida pelo/a educador/a em sua prática junto a grupos com os quais trabalha, a uma dimensão política, historicamente constituída, já que o reconhecimento da existência de uma diversidade de saberes e de sua legitimidade traz consigo a necessidade de questionamento do status ocupado pelo conhecimento técnico-científico na relação com outros conhecimentos e práticas sociais. Significa problematizar os formatos impositivos que por vezes pautam a relação entre saberes quando tratamos de Educação Ambiental e gestão participativa em comunidades rurais e tradicionais. Portanto, neste artigo procurarei tratar de algumas facetas do desafio posto a educadores e educadoras dispostos a assumir, em sua prática, uma postura de diálogo como abertura a um encontro com o outro. Serão abordadas quatro facetas desses desafios: a) ruptura com uma postura colonialista na relação entre Ciência e conhecimentos plurais; b) busca pela centralidade dos conhecimentos tradicionais na elaboração de políticas, leis e instrumentos de regulação na área ambiental; c) reconhecimento da pluralidade de leituras políticas sobre as relações entre povos tradicionais e ambientes, no interior do ambientalismo; d) resistência à mercantilização das relações entre saberes e desses com o ambiente. Antes de dar continuidade a esse debate, cabe fazer considerações sobre o conceito de comunidades tradicionais. Paul Little (2002), dentre outros autores, aponta para a pluralidade de termos utilizados na tentativa expressar a diversidade sociocultural existente no Brasil e América do Sul. Categorias como populações, comunidades, povos, culturas, são acompanhadas por um dos adjetivos: tradicionais, autóctones, rurais, locais. Ressalta que, de uma perspectiva etnográfica, qualquer dessas combinações seria problemática devido à abrangência e diversidade dos grupos. No entanto, opta pela noção de povos tradicionais, um conceito que faz referência à luta intrínseca desses povos pela permanência em seus territórios, situando-a nos debates sobre justiça social (LITTLE, 2002). Ainda segundo o autor, a constituição dos povos tradicionais como categoria analítica envolve fatores que são marcos históricos desses grupos: “a existência de regimes de propriedade comum, o sentido de pertencimento a um lugar, a procura de autonomia cultural e práticas adaptativas sustentáveis que os variados grupos sociais analisados mostram na atualidade”. (LITTLE, 2002, p. 23). Antonio Carlos Diegues e Rinaldo Arruda (2001) trazem importantes contribuições para pensarmos as relações entre trabalho-cultura-ambiente que marcam o fazer desses povos. Em uma releitura do trabalho desses autores, relacionando-o com outros importantes estudos de antropologia, Carlos Rodrigues Brandão (2011) apresenta características das populações tradicionais que destaco em uma citação mais longa por serem de especial interesse para as reflexões deste artigo: a) dinâmicas temporais de vinculação a um espaço físico que se torna território coletivo pela transformação da natureza por meio do trabalho de seus fundadores que nele se instalaram; b) um saber peculiar, resultante das múltiplas formas de relações integradas à natureza, constituído por conhecimentos, inovações e práticas gerados e transmitidos pela tradição ou pela interface com as dinâmicas da sociedade envolvente; 82 | ANAIS DA VI CONFERÊNCIA DE EDUCAÇÃO AMBIENTAL E SUSTENTABILIDADE

c) uma relativa autonomia para a reprodução de seus membros e da coletividade como uma totalidade social articulada com o “mundo de fora”, ainda que quase invisíveis; d) o reconhecimento de si como uma comunidade presente herdeira de nomes, tradições, lugares socializados, direitos de posse e proveito de um território ancestral; e) a atualização pela memória da historicidade de lutas e de resistências no passado e no presente para permanecerem no território ancestral; f) a experiência da vida em um território cercado e/ou ameaçado; g) estratégias atuais de acesso a direitos, a mercados de bens menos periféricos e à conservação ambiental (BRANDÃO, 2011, p. 14).

Essas características em seu conjunto configuram o contexto de produção dos saberes tradicionais. É a partir do reconhecimento da contribuição desses saberes para uma reinvenção de alternativas de práticas socioambientais2 que me proponho a refletir neste artigo sobre os desafios postos a educadores e educadoras ambientais cujo trabalho seja pautado pelo diálogo de saberes. Desenvolverei as reflexões a partir de um cotejamento entre as facetas desses desafios, as características das populações tradicionais apontadas por Brandão (2011) e referências a estudos empíricos desenvolvidos em algumas localidades brasileiras, colhidas a partir de um levantamento bibliográfico sobre o tema Educação Ambiental e gestão participativa em comunidades rurais e tradicionais.

2. Desafio de ruptura com uma postura colonialista na relação entre Ciência e conhecimentos plurais Todos os saberes são socialmente construídos, i.e., resultam de práticas socialmente organizadas envolvendo recursos materiais e intelectuais de diferentes tipos, vinculados a situações específicas. (SANTOS, 2005, p. 34)

Uma das facetas do desafio que se apresenta a educadores e educadoras ambientais, que optam por uma perspectiva dialógica de abordagem, é a reversão de uma postura de dominação e subjugação assumida por um conhecimento validado cientificamente sobre outras tantas formas de conhecimento. Para tratar dos saberes e práticas sociais que historicamente foram silenciados pela ciência, Boaventura de Sousa Santos estabelece uma relação entre o colonialismo exercido por países europeus na época imperial e o que chama de “colonialismo epistemológico na atualidade”, que levou a um empobrecimento de saberes. O processo de colonização dos “países do Sul” se deu pela criação de um outro desqualificado - o selvagem considerado arcaico, a natureza tratada como lugar da exterioridade - o que resultou na objetificação do outro (SANTOS, 2005). 2. Aqui tomo a liberdade de parafrasear Boaventura de Sousa Santos em sua proposta de comunidades interpretativas: “A proposta das comunidades interpretativas é justamente favorecer a reinvenção de alternativas de prática social, assim como a legitimação das práticas silenciadas de hoje e de ontem, tendo como ponto de partida a horizontalidade entre diferentes formas de conhecimento.” (AVANZI; MALAGODI, 2005, p.97).

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A reversão de uma postura de dominação pressupõe desconstruir essa objetificação que está na raiz de nossa relação epistêmica com o mundo. O reconhecimento da legitimidade do saber tradicional como parceiro na produção de alternativas que nos conduzam a sociedades sustentáveis requer uma reconfiguração dessa relação. Desse reconhecimento pode configurar-se uma experiência compreensiva para além de dicotomias instauradas pela ciência moderna: natureza-cultura; sujeito-objeto; desenvolvido-subdesenvolvido; conhecimento-ignorância; ensinar-aprender; pensar-atuar; recomendar-seguir (SANTOS, 2005). O desafio pressupõe criar espaços de diálogo como abertura, que nos levem a constituir novos saberes resultantes de uma fusão de horizontes. Pressupõe ir além do conforto da extensão de um saber técnico-científico ao outro, pois nessa extensão está implícita uma relação de subjugação de outros sistemas de atribuição de significados. A dominação muitas vezes vem justificada por uma intencionalidade de usar métodos científicos para sistematizar práticas sociais, mas cabe considerar que nos sistemas tradicionais são outras as relações que o sujeito do conhecimento estabelece com o ambiente, como podemos acompanhar nesse trecho que trata de saberes dos pescadores e vazanteiros3 do Rio São Francisco: (...) os pescadores e vazanteiros pensam o mundo natural através dos princípios sociais, a relação deles com o rio e com os seres que o habitam é um relacionamento entre sujeitos. O rio não é apenas uma coisa viva, mas é algo animado, dotado de intencionalidade, um ser com quem eles estabelecem laços de reciprocidade social. (LUZ de OLIVEIRA, 2005, p. 91).

As várias características que marcam a vivência dos povos tradicionais em seus territórios nos dizem do pertencimento a um lugar, da indissociabilidade entre as dimensões ambiente-trabalho-cultura em seu saber-fazer cotidiano, da relação sujeito-sujeito na atribuição de significados sobre o mundo, dos mitos e narrativas que sustentam seu saber e do reconhecimento de si como uma comunidade. Um aspecto relevante na definição dessa culturas tradicionais é a existência de sistema de manejo dos recursos naturais marcados pelo respeito aos ciclos naturais, e pela sua explotação dentro da capacidade de recuperação das espécies de animais e plantas utilizadas. Esses sistemas tradicionais de manejo não são somente formas de exploração econômica dos recursos naturais, mas revelam a existência de um complexo de conhecimentos adquiridos pela tradição herdada dos mais velhos, por intermédio de mitos e símbolos que levam à manutenção e ao uso sustentado dos ecossistemas naturais (DIEGUES; ARRUDA, 2001, p. 20)

Cabe aqui retomar as críticas de Boaventura Sousa Santos sobre a oposição global-local, em que a primeira característica – globalidade – é associada ao conhecimento científico e a segunda – localidade - ao conhecimento tradicional. Ainda que os termos conhecimento local, conhecimento indígena, conhecimento tradicional tenham ganhado espaço ultimamente com o 3. Vazanteiros são as populações residentes nas áreas inundáveis das margens e ilhas do rio São Francisco que se caracterizam por um modo de vida específico, construído a partir do manejo dos ecossistemas são-franciscanos, combinando, nos diversos ambientes que constituem o seu território, atividades de agricultura de vazante e sequeiro com a pesca, a criação animal e o extrativismo”. (LUZ de OLIVEIRA, 2005, p. 10) 84 | ANAIS DA VI CONFERÊNCIA DE EDUCAÇÃO AMBIENTAL E SUSTENTABILIDADE

objetivo de chamar atenção para a pluralidade de saberes e sua importância nos processos de desenvolvimento, a referida oposição coloca esses sistemas de produção de conhecimento como homogêneos, circunscritos, monolíticos e culturalmente delimitados (SANTOS, 2005 p. 32-33). Primeiramente, a noção de homogeneidade traz à tona o debate sobre tradição e mudança que tem acompanhado a discussão sobre o conceito de tradicional. Aceitar esses sistemas de conhecimento como homogêneos significa desconsiderar as constantes renovações pelas quais passam em resposta a novas experiências e desafios atrelados a novas situações históricas. Assumo aqui uma compreensão sobre o conceito de tradicional em afinidade com a ideia que “as tradições culturais se mantêm e se atualizam mediante uma dinâmica de constante transformação” 4")-*/4  Q BQVE-*55-&   As críticas apresentadas por Santos se pautam no reconhecimento de que todo saber é vinculado a contextos específicos, inclusive o saber científico. A hierarquia entre os saberes está situada no processo histórico que posicionou a ciência como paradigma do conhecimento e que rotula de não-saber os demais sistemas de produção de significados. É a partir dessa compreensão que podemos enfrentar o desafio da transição de colonização à solidariedade entre saberes. Isso nos coloca frente a segunda faceta desses desafios que apresento em seguida.

3. Desafio da busca pela centralidade dos conhecimentos tradicionais na elaboração de políticas, leis e instrumentos de regulação na área ambiental A formulação e implementação de políticas tendem a seguir um modelo de verticalidade que reproduz as relações de dominação tratadas anteriormente. Um trabalho de educação ambiental (EA) na perspectiva dialógica, visando uma gestão compartilhada de bens ambientais com povos tradicionais, requer uma batalha de educadores e educadoras pela busca de uma horizontalidade no tratamento dos diferentes saberes envolvidos no processo. Eduardo Ribeiro e Flávia Galizoni (2003) acompanham desde a década de 1990 o manejo do território e das águas por populações rurais do Vale do Rio Jequitinhonha, no Norte de Minas Gerais. Analisando o descompasso entre os sentidos atribuídos ao ambiente por moradores e moradoras dessas localidades e a forma como são propostas as políticas sociais para a região, denunciam: As populações rurais permanecem quase que absolutamente desconhecidas para os formuladores de políticas. Nas propostas de desenvolvimento e gestão local elas costumam ser tratadas como objeto passivo, o que as tem levado à desobediência pacífica ou a enfrentamentos e disputas em torno do seus direitos relativos a costumes, terras e recursos (RIBEIRO; GALIZONI, 2003, p. 129).

O desafio tratado neste tópico envolve a busca por uma compreensão ampliada de ambiente que resulte de uma fusão de horizontes interculturais. Sem desconsiderar as contribuições dos conhecimentos técnico-científicos, cabe reconhecer oportunidades de construção de novos

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caminhos para a sustentabilidade que resultem do encontro desses conhecimentos com a diversidade cultural das populações rurais e tradicionais e seus sistemas de conhecimento. Comunidades rurais tendem a perceber a falta de água de forma muito específica, diferente mesmo daquela percepção das agências de regulação. As agências, por pensarem em escalas, concebem sua ação a partir de grandes corpos de águas para elevados consumos (energia, abastecimento urbano, irrigação) e negócios. Já comunidades rurais elaboraram um conceito de qualidade e, a partir dele, uma percepção cultural de escassez, que pode ser ao mesmo tempo qualitativa e quantitativa, porém jamais mercantil. Qualidade tem a ver com classificações culturais, captação e partilha; por isso a prioridade de zelo é pequenas águas, não as grandes. Água grande está, para essa população, fora das dimensões que costumam conceber para a ação humana. (RIBEIRO; GALIZONI, 2003, p. 142).

Novamente requer um olhar que não busque homogeneizar o que se guarda sob o termo populações tradicionais. Se olhamos, por exemplo, a partir das formas de usos dos bens ambientais relacionadas aos regimes de propriedade comum, como nos apresenta Paul Little, acessamos diversas maneiras das coletividades se organizarem no território, que variam segundo o grupo social considerado. Entre povos indígenas, as formas de parentesco são importantes para se determinar o acesso a certas terras; já entre os quilombos, ainda que se mantenham as formas de propriedade comum, há diferenças marcantes em seus regimes de propriedade em relação aos povos indígenas. Os grupos extrativistas da Amazônia, por sua vez, possuem uma apropriação familiar e social dos bens naturais, segundo a qual “as ‘colocações’ são exploradas por famílias, os recursos de caça e pesca são tratados na esfera coletiva e a coleta dos recursos destinados ao mercado é feita segundo normas de usufruto coletivamente estabelecidas”. (LITTLE, 2002, p. 9). Essas formas de estabelecer as relações entre si e com o ambiente, obviamente, refletem em seus sistemas de conhecimento. Como argumenta a antropóloga Manuela Carneiro da Cunha (2007, p. 78), “há pelo menos tantos regimes de conhecimento tradicional quanto existem povos”. O desafio posto a educadores e educadoras ambientais não está em se apossar desses saberes, mas relaciona-se, primordialmente, à promoção de práticas educativas que ampliem as possibilidades de acesso dessas comunidades ao discurso argumentativo, de modo que elas próprias possam comunicar seus conhecimentos em processos de elaboração de políticas públicas, de leis e de instrumentos de regulação do uso dos bens ambientais. A conquista desse espaço de legitimação de saberes e práticas tradicionais não é algo trivial por tudo que foi tratado até o momento, mas também por um aspecto que apresento no tópico a seguir.

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4. Desafio do reconhecimento da pluralidade de leituras políticas no interior do ambientalismo sobre as relações entre povos tradicionais e ambiente Apresento neste tópico mais uma faceta de desafios que se colocam a trabalhos de EA com comunidades tradicionais na perspectiva da dialogicidade, agora desde dentro do movimento ambientalista. É sabido que o campo ambiental4 se constitui a partir de uma diversidade de matizes. Isabel Carvalho destaca o aspecto instável e contraditório do campo, com interpretações multifacetadas acompanhadas de um amplo leque de ações. Se, por um lado, a autora visualiza indícios de uma politização da natureza pelos movimentos sociais e lutas ambientais de cunho emancipatório, por outro, nota um risco de naturalização da política que pode ser identiĕDBEBOBNBSDBGPSUFNFOUFOBUVSBMJ[BEBUBNCÏNQSFTFOUFOPDBNQPBNCJFOUBM $"37"-)0  2001). Podemos pensar a EA configurando-se a partir de relações com esses diversos sentidos do ambiental. Em relação ao tema tratado neste artigo, duas vertentes presentes no movimento ambientalista são de especial importância para educadores e educadoras ambientais que desenvolvem trabalhos com povos tradicionais, o preservacionismo e o socioambientalismo. A noção de natureza intocada (wilderness) é cara à vertente preservacionista, surgida no século XIX, e marca o histórico de criação de Parques Nacionais nos EUA como áreas isoladas da ocupação humana, os quais se disseminaram pelo mundo a partir de 1950 (McCORMICK, 1992). O modelo de unidades de conservação pautado na wilderness tem por base o princípio de que qualquer relação entre sociedade e natureza é degradadora do ambiente natural, não distinguindo os modos de apropriação dos bens ambientais entre as diversas formas de sociedade, sejam elas urbano-industriais, rurais, indígenas ou tradicionais. A implantação dessas áreas protegidas na África, Ásia e América Latina, a partir das primeiras décadas do presente século, começou a gerar conflitos sociais e culturais sérios com as populações locais e que se tornaram ainda mais sérios a partir da década de 70, quando essas comunidades locais/ tradicionais começaram a se organizar e em muitos casos, a resistir à expulsão ou transferência de seus territórios ancestrais como dita o modelo preservacionista. (DIEGUES; ARRUDA, 2001, p. 6)

A vertente socioambiental, por sua vez, consolidou-se no Brasil nos anos 1980 e se constituiu na esfera política da sociedade civil por meio de articulações entre grupos ambientalistas e movimentos sociais que incorporam gradativamente a questão ambiental como uma dimensão de sua atuação (JACOBI, 2003). Dentre as lutas sociais aliadas à vertente socioambiental, encontramos distintos grupos que historicamente têm se relacionado de modo sustentável com sistemas naturais, muitos deles categorizados como povos ou comunidades tradicionais. Essa parceria vem gerando formas de gestão compartilhada do território, alguns exemplos são os movimentos de grupos extrativistas na Amazônia brasileira, os varzeiros do Baixo Amazonas, vários grupos indígenas (LITTLE, 2002), comunidades em unidades de conservação de uso sustentável brasileiras (SANTOS, 2008), dentre tantos outros. 4. Apoiando-se no conceito de campo social de Bordieu, Isabel Carvalho propõe o campo ambiental como “espaço estruturado e estruturante (...) [que] inclui uma série de práticas políticas, pedagógicas, religiosas e culturais, que se organizam de forma mais ou menos instituída, seja no âmbito do poder público, seja na esfera da organização coletiva dos grupos, associações ou movimentos da sociedade civil; reúne e forma um corpo de militantes, profissionais e especialistas; formula conceitos e adquire visibilidade através de um circuito de publicações, eventos, documentos e posições sobre os temas ambientais.” (CARVALHO, 2001) ANAIS DA VI CONFERÊNCIA DE EDUCAÇÃO AMBIENTAL E SUSTENTABILIDADE

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O enfrentamento de desafios que se apresentam a trabalhos de EA na perspectiva dialógica envolve o reconhecimento da heterogeneidade das práticas educativas sob influência das diferentes matizes do campo ambiental. E mais, requer um posicionamento consciente do/a educador/a frente aos sentidos atribuídos ao ambiente, rejeitando práticas educativas que silenciam a pluralidade de saberes ao impor regras construídas em um contexto cultural alheio àqueles que se relacionam historicamente com os bens ambientais de seu território. Frases como: “Depois que o meio ambiente chegou, nossa vida virou um inferno5” são ouvidas de moradores e moradoras de regiões no entorno de unidades de conservação de proteção integral e revelam seu descontentamento com um sentido coercitivo que a expressão meio ambiente assume - um ambiente que nada tem a ver com seu espaço de vivência e trabalho. Falam-nos também de uma resistência a propostas de sustentabilidade impostas para seu território, das quais seu saber-fazer está ausente, sendo muitas vezes enquadrado como criminoso. O aprendizado com a lida diária dessas populações é tarefa essencial para as práticas de educadores e educadoras ambientais. Se o que pretendemos são relações dialógicas entre saberes, cabe atentar para a postura que assumimos frente ao outro quando são estabelecidos os encontros comunicativos. A busca é pela construção de caminhos para sustentabilidade que resultem da fusão de horizontes, daqueles acessados a partir dos conhecimentos técnicos com outros BDFTTBEPTQFMPTDPOIFDJNFOUPTUSBEJDJPOBJT)ÈRVFTFDPOTJEFSBSBEJWFSTJEBEFRVFIÈFNVN e outro polo dessa relação, ou seja, lembrar que não há uma única resposta técnica nem uma expressão homogênea do saber-fazer desses povos.

5. Desafio da resistência à mercantilização das relações entre saberes e desses com o ambiente A consciência sobre a intencionalidade educativa que rege uma prática é considerada primordial para assim adjetivá-la. Para além de um aspecto metodológico, trato aqui da intencionalidade política presente em toda prática educativa. Em especial sobre o tema de que trata este artigo, cabe questionar sobre a finalidade que rege a busca por acessar conhecimentos e práticas tradicionais, considerando os riscos subjacentes de que o trabalho educativo pretendido favoreça a transformação desses saberes em mercadoria. Podemos tomar o debate sobre conservação da biodiversidade como ilustrativo dessa faceta de desafios tratada neste tópico. A relação intrínseca entre conhecimentos tradicionais e conservação da diversidade biológica é reconhecida e conquistou espaço em instrumentos e acordos internacionais que buscam regulamentar o direito de propriedade dos saberes por povos tradicionais (ALONSO, 2005). No entanto, no Brasil a regulamentação desses instrumentos tem TJEPCBTUBOUFDPOĘJUVPTB $6/)"  FSFDPMPDBFNQBVUBPDPMPOJBMJTNPFQJTUFNPMØHJDP tratado anteriormente. 5. Depoimento de morador da Vila Itinguçu, município de Peruíbe, entorno da Estação Ecológica Juréia Itatins, em abril de 1999 (AVANZI, 2005).

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O crescente interesse por espécies situadas em refúgios de biodiversidade como matéria-prima para fins cosméticos, farmacêuticos ou biotecnológicos imprime a elas, e aos saberes dos povos que com elas convivem, um valor utilitário que os transforma em mercadoria. O mesmo ocorre quando é atribuído um valor estético a essas áreas pela indústria do turismo, tratando-as frequentemente como paraísos de ecoturismo - um objeto de consumo por suas paisagens idílicas e quase selvagens. Avanços da biologia, da biotecnologia e da microeletrônica transformam a reserva da biodiversidade num dos recursos naturais mais preciosos e mais procurados. Como parte desta biodiversidade está localizada nos países do Sul e é sustentada por conhecimentos populares, camponeses ou indígenas, a questão (e o conflito) reside em como defender essa biodiversidade e esses conhecimentos da voracidade com que o conhecimento científico-tecnológico-industrial transforma uma e outros em objetos e conhecimentos patenteáveis. (SANTOS, B. S., 2005, p. 15)

Um trabalho de EA na perspectiva dialógica e emancipatória requer uma explicitação das intencionalidades que subjazem na conexão que se busca entre as espécies/bens ambientais, o saber-como usar esses bens, o contexto cultural de povos e comunidades que sustentam esse saber-fazer, os interesses econômicos e políticos que financiam projetos de “resgate” desses saberes. Na convivência com comunidades no entorno de unidades de conservação em remanescentes da Mata Atlântica na região do Vale do Ribeira, sul do Estado de São Paulo, durante a elaboração de minha tese de doutorado juntamente com um grupo de pesquisadoras e educadoras ambientais, foi possível notar um olhar de descrédito de moradores e moradoras da região em relação àqueles que “coletavam” conhecimentos sem oferecer de volta sequer um esclarecimento sobre a finalidade da recolha dessas informações. Criticavam também as vezes em que esse saber retornava sistematizado pelos métodos científicos na forma de verdades a se imporem sobre seus sistemas de conhecimento (AVANZI, 2005). A condução de práticas educativas dialógicas requer uma atenção redobrada ao uso que será feito dos saberes partilhados em encontros comunicativos, sob o risco de que saberes das populações tradicionais tornem-se objeto do mercado. Atrelada ao argumento de que o mercado é a melhor forma de conservação da diversidade costuma se instaurar uma negação de valores culturais em que esses saberes são construídos, justificando a extração de informações sobre uma espécie ou uma prática do contexto que as sustenta, tornando-as peças de folclore consumíveis ou patenteáveis.

6. Considerações finais As reflexões apresentadas neste artigo intentam contribuir para a atuação de educadores e educadoras ambientais com populações rurais e tradicionais na perspectiva dialógica. Com base no pressuposto de que a criação de caminhos rumo a sociedades sustentáveis resulta do encontro de conhecimentos plurais, os desafios aqui apresentados nos falam da importância de explicitação das intencionalidades políticas que subjazem nos processos que buscam promover esses

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encontros comunicativos. Também nos chamam a reconhecer a diversidade sociocultural que se guarda sob o termo conhecimentos tradicionais, assim como são diversas as vertentes do campo ambiental e as práticas educativas por elas influenciadas. A expectativa é que desse reconhecimento possa vir tanto a recusa a um consenso fabricado artificialmente, em que as diversidades são esvaziadas, como um convite à ousadia de vivenciar experiências compreensivas para além do enunciado de certezas construídas a partir de uma suposta superioridade de saberes científicos sobre outros sistemas de atribuição de significados.

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Educação ambiental para biodiversidade: reflexões sobre conceitos e práticas Edgar González-Gaudiano INSTITUTO DE INVESTIGACIONES EN EDUCACIÓN DE LA UNIVERSIDAD VERACRUZANA – MEXICO Contato: [email protected]

“Somente peço a Deus, Que a vida não me seja indiferente” Paráfrase de uma música de León Gieco

1. As controvérsias Embora o conceito de educação ambiental tenha estado tenso desde a sua criação, isto se incrementou desde meados dos anos 90, quando surgiram os primeiros sinais na UNESCO de querer substituí-lo pelo de educação para o desenvolvimento sustentável6. Como em todas as áreas da pedagogia, na educação ambiental coexistiram (às vezes não tão pacificamente) diferentes aproximações, desde aquelas que deram ênfase à conservação ecológica, até as que articularam a problemática da deterioração com o conjunto de condições sociais, 6. A tensão sobre o conceito de educação ambiental foi tratada por diversos autores. Boada e Toledo (2003), por exemplo, desde meados dos noventa falaram de um “babelismo” para se referir ao uso de diversas linguagens para designar as mesmas coisas. O mesmo Capítulo 36 da Agenda 21 aprovada na Cúpula do Rio, já não faz referência ao conceito de educação ambiental como tal. Tratei este assunto em outros trabalhos: González-Gaudiano, E. (1998, 1998a, 2003).educação ambiental como tal. Tratei este assunto em outros trabalhos: González-Gaudiano, E. (1998, 1998a, 2003).

ANAIS DA VI CONFERÊNCIA DE EDUCAÇÃO AMBIENTAL E SUSTENTABILIDADE

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