Educação como Prática da Liberdade para Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais: Saberes, Vivências e (Re)Leituras em Paulo Freire

June 1, 2017 | Autor: Cleyton Feitosa | Categoria: Paulo Freire, Educação, Diversidade Sexual, Psicologia Social da Libertação
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EDUCAÇÃO COMO PRÁTICA DA LIBERDADE PARA LÉSBICAS, GAYS, BISSEXUAIS, TRAVESTIS E TRANSEXUAIS: SABERES, VIVÊNCIAS E (RE)LEITURAS EM PAULO FREIRE Cleyton Feitosa1 Allene Lage2 RESUMO Paulo Freire nos deixou um grande legado através de seu pensamento e de sua obra. Destacamos sua contribuição para a educação da América Latina como instrumento social de superação de desigualdades históricas enraizadas nas comunidades, territórios e populações subalternas. Nesse contexto, encontra-se a população de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais ainda alijada de direitos, de acesso a cidadania e muitas vezes ausência do direito pleno à dignidade humana. Através de uma pesquisa bibliográfica, com foco nas obras “Educação como Prática da Liberdade” e “Pedagogia do Oprimido”, tecemos reflexões e conexões entre o pensamento freireano e a luta cotidiana do Movimento LGBT. O desenvolvimento dessas análises apontaram perspectivas de existir e estar no mundo (a integração ou a acomodação), a relação que a população LGBT estabelece com o enfrentamento à heteronormatividade remetendonos à contradição opressor-oprimido muito bem apresentado pelo mestre pernambucano. Entendemos essa complexa conjuntura violadora de direitos por aquilo que Freire chamou de “inexperiência democrática” como sendo parte da realidade construída historicamente, através da colonização de povos latinoamericanos. Mas compreendemos também que sua emancipação se dará através de uma educação horizontal, dialógica, plural e conscientizadora. Uma educação como prática da liberdade. Palavras-Chave: Educação. Diversidade sexual. Libertação.

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Graduando em Licenciatura em Pedagogia pela UFPE/CAA. Endereço eletrônico: [email protected]. 2 Pós-doutora em Educação na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (2012). Doutora em Sociologia pela Universidade de Coimbra (2006). Mestre em Administração Pública pela Fundação Getulio Vargas - RJ (2001). Graduada em Administração - Faculdades Integradas Anglo Americano - RJ (1993). Desde março de 2006 é Professora Adjunta da Universidade Federal de Pernambuco/Núcleo de Formação Docente do Centro Acadêmico do Agreste (Caruaru). Professora do quadro pernamente do Programa de Pós-Graduação em Educação Contemporânea e Coordenadora do Observatório dos Movimentos Sociais na América Latina da UFPE/CAA. Endereço eletrônico: [email protected].

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INTRODUÇÃO Cultura, humanização, diálogo, libertação, emancipação. São vocábulos e expressões que marcaram a trajetória e a obra de Paulo Freire em muitos de seus livros, textos e escritos. Representam também objetivos políticos essenciais empreendidos pelo Movimento Social de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (LGBT) no Brasil e no mundo. Assim como a leitura que Freire nos deixou, alcançando distâncias e territórios a níveis globais, a luta política do Movimento LGBT é forjada no seio das localidades e globalidades. Embora o Patrono da Educação Brasileira não tenha claramente falado ou discutido sobre as identidades LGBTs, seu pensamento se coaduna à proposta de educação para a cidadania e emancipação dos homens e mulheres, reivindicada por este Movimento e pelo reconhecimento da opressão posta contra cidadãos/ãs homossexuais e bissexuais. Essa sintonia entre o pensamento de Paulo Freire sobre a humanidade e a capacidade latente de nos humanizarmos cada vez mais, através do diálogo e da educação libertadora, aliada ao protagonismo de milhões de LGBTs que militam mundo afora no afã de conquistar o princípio básico da dignidade humana, da igualdade de direitos e da cultura de paz, ou seja, à emancipação e à humanização, nos motivam a desenvolver (re)leituras do educador pernambucano numa perspectiva reflexiva, problematizadora e, sobretudo, esperançosa. Não é nosso objetivo esgotar as possibilidades de análise sobre o quanto a obra de Paulo Freire contribui para a luta política do Movimento LGBT na atualidade, pelo contrário, aqui intencionamos demonstrar a rica fonte teórica desenvolvida, que tem inspirado estudiosos e estudiosas, das diversas áreas do saber, a envidar esforços acadêmicos para o reconhecimento de diferentes práticas populares das comunidades, periferias, escolas, ONGs, sindicatos, partidos, grupos organizados, etc. Com efeito, buscamos nesse ensaio teórico, desenvolvido através de uma metodologia de pesquisa bibliográfica das obras de Paulo Freire3, tecer reflexões, enviesados pela ótica e conceitos freireanos, tentando relacioná-los à resistência à homofobia e à heteronormatividade que recai contra LGBTs numa relação que pode ser comparada à ideia desenvolvida na obra Pedagogia do Oprimido (2005), opressores(as) e oprimidos(as), numa sociedade normatizada, vigiada e punitiva. Neste trabalho, 3

Os livros utilizados para o desenvolvimento desse artigo foram o Pedagogia do Oprimido (2005) e o Educação como Prática da Liberdade (2009), com ênfase neste último.

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utilizaremos o conceito de heteronormatividade na perspectiva de Rogério Junqueira que reflete: Por meio da heteronormatividade, observa Michael Warner (1993), a heterossexualidade (e acrescente-se: pensada invariavelmente no singular, embora seja um fenômeno plural) é instituída e vivenciada como única possibilidade legítima (e natural) de expressão identitária e sexual. As homossexualidades tornam-se: desvio, crime, aberração, doença, perversão, imoralidade, pecado mesmo que distintos, homofobia e heteronormatividade são conceitos próximos, convergentes e, não raro, sobrepostos (JUNQUEIRA, 2007, p. 10)

Assim como Freire, acreditamos no potencial transformador da educação para a superação de desigualdades cidadãs. Mas também como ele, compreendemos o caráter perverso em que muitas práticas pedagógicas tem se desenvolvido, reproduzindo violações de direitos humanos. Ditamos ideias. Não trocamos ideias. Discursamos aulas. Não debatemos ou discutimos temas. Trabalhamos sobre o educando. Não trabalhamos com ele. Impomos-lhes uma ordem a que ele não adere, mas se acomoda. Não lhe propiciamos meios para o pensar autêntico, porque recebendo as fórmulas que lhe damos, simplesmente as guarda. Não as incorpora porque a incorporação é o resultado de busca de algo que exige, de quem o tenta, esforço de recriação e de procura. Exige reinvenção. (FREIRE, 2009, p. 104 e 105).

De fato, a ideia de educação bancária elaborada por Freire nos ajuda a compreender as relações autoritárias e hierárquicas presentes no fazer pedagógico, em que pululam homofobia, racismo e machismo nas relações sociais escolares. De modo mais específico, pretendemos relacionar a obra “Educação como Prática da Liberdade” às agendas emancipatórias construídas pelo Movimento LGBT na tentativa cidadã de resgatar sua humanidade. Conforme proposto no temário do VIII Colóquio Internacional Paulo Freire, desejamos (re)conhecer saberes, compartilhar vivências e promover (re)leituras do legado freireano na esperança libertadora de que nossas compreensões correspondam a ações. Acontece, porém, que a toda compreensão de algo corresponde, cedo ou tarde, uma ação. Captado um desafio, compreendido, admitidas as hipóteses de resposta, o homem age. A natureza da ação corresponde à natureza da compreensão. Se a compreensão é crítica ou preponderantemente crítica, a ação também o será. Se é mágica a compreensão, mágica será a ação (FREIRE, 2009, p. 114)

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Desse

modo,

acreditamos

que

a

consciência

crítica

proporciona

o

autorreconhecimento de sermos “esfarrapados do mundo”, que sofremos, mas, sobretudo, lutamos.

OBJETIVOS E PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS

Diante do exposto, temos como objetivo neste trabalho analisar as aproximações Teóricas e políticas entre o Movimento LGBT e o pensamento de Paulo Freire. Para desenvolver e atingir o objetivo proposto, desenvolveremos, a partir de uma abordagem qualitativa, uma pesquisa bibliográfica. Elegemos as obras “Educação como Prática da Liberdade” (2009) e “Pedagogia do

Oprimido”

(2005)

por

entendermos

ser

estes

livros

fundamentais

no

desenvolvimento educacional proposto por Freire.

PENSAMENTO FREIREANO

E O

MOVIMENTO LGBT: APROXIMAÇÕES

TEÓRICAS E

POLÍTICAS

É no contexto repressor das décadas de 60 e 70 no Brasil que os primeiros passos para a organização social de LGBTs são dados. Nesse mesmo período obras clássicas de Paulo Freire são escritas e publicadas. A ditadura militar ao mesmo tempo que produziu inúmeras violações de direitos humanos, provocou uma resistência política nos movimentos populares que resultaram intensas iniciativas culturais, artísticas, intelectuais e políticas. Em “Educação como Prática da Liberdade”, Freire (2009) aponta duas perspectivas do relacionar e estar no mundo: o conceito de integração e acomodação (ou ajustamento). Segundo o autor, A integração ao seu contexto, resultante de estar não apenas nele, mas com ele, e não a simples adaptação, acomodação ou ajustamento, comportamento próprio da esfera dos contatos, ou sintoma de sua desumanização, implica em que, tanto a visão de si mesmo, como a do mundo, não podem absolutizar-se, fazendo-o sentir-se um ser desgarrado e suspenso ou levando-o a julgar o seu mundo algo sobre que apenas se acha. A sua integração o enraíza. Faz dele, na expressão de Marcel, um ser “situado e datado”. Daí que a massificação implique no desenraizamento do homem. Na sua “destemporalização”. Na sua acomodação. No seu ajustamento (2009, p. 50).

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Com efeito, a perspectiva da integração apresenta conexões com o Movimento LGBT, Movimento que é uma resposta coletiva a um fenômeno social construído historicamente e que hierarquiza sujeitos a partir de suas identidades sociais, orientações sexuais e identidades de gênero: a homofobia. Em oposição a esta definição, encontra-se a definição de acomodação ou ajustamento. Para Freire, Não houvesse esta integração, que é uma nota de suas relações, e que se aperfeiçoa na medida em que a consciência se torna crítica, fosse ele apenas um ser da acomodação ou do ajustamento, e a História e a Cultura, domínios exclusivamente seus, não teriam sentido. Faltarlhes-ia a marca da liberdade. Por isso, toda vez que se suprime a liberdade, fica ele um ser meramente ajustado ou acomodado. E é por isso que, minimizado e cerceado, acomodado a ajustamentos que lhe sejam impostos, sem o direito de discuti-los, o homem sacrifica imediatamente a sua capacidade criadora (2009, p. 50).

Sem dúvidas, este sentido da existência, acomodado/ajustado, não se aplica ao Movimento LGBT que assume o protagonismo da luta contra a homolesbotransfobia no cotidiano de sua construção. Desde a Revolta de Stonewall, passando pela despatologização das identidades gays, pelo combate ao estigma da Aids e as altas taxas de infecção até as resistências atuais como o avanço de setores conservadores nas esferas do Poder Público e projetos legislativos degradantes como o “Cura Gay”, o Movimento LGBT demonstra que assume o significado de integração com o mundo. Além dessas fases e episódios mencionados, podemos destacar desafios outros, que marcam a trajetória de lutas e pontos de enfrentamento da população LGBT (sem a intenção de esvaziar as inúmeras lutas travadas nos diferentes tempos e contextos): o Estado brasileiro que ainda viola a laicidade constitucional, implicando em consequências como a não-elaboração e não-desenvolvimento de políticas públicas específicas, bem como leis e projetos para LGBTs e decisões judiciais que precisariam ser conferidas à luz dos direitos civis e não de orientações ou diretrizes religiosas. Embora a homossexualidade tenha sido retirada, através da luta organizada do Movimento LGBT, do Código Internacional de Doenças da Organização Mundial da Saúde no ano de 1990, a transexualidade, travestilidade e outras identidades que atravessam as fronteiras do gênero ainda são consideradas patologias passíveis de tratamento psiquiátrico/psicológico. Aqui incide sobre essa população a arrogância da

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ciência moderna que classifica e subjulga identidades, subjetividades e expressões alternativas de vida. As violações de direitos humanos, através das diversas manifestações e expressões da violência ainda não foram (e estão longe na conjuntura atual) superadas. Não é raro tomar ciência de alguma violência mais grave ou vivenciar uma situação concreta de homofobia. Esse difícil contexto social na qual está inserida a população LGBT no Brasil tem implicado por muitos anos sua organização social e definição de estratégias políticas que visem dar respostas contra-hegemônicas a tal estrutura desigual e desumana. Nessa direção, a História e a cultura já demonstraram que essa organicidade, organicidade esta forjada na leitura crítica e reflexiva do mundo, resultou em muitas conquistas que foram obtidas no seio da luta social. Na ótica de Freire,

A desesperança das sociedades alienadas passa a ser substituída por esperança, quando começam a se ver com os seus próprios olhos e se tornam capazes de projetar. Quando vão interpretando os verdadeiros anseios do povo. Na medida em que vão se integrando com o seu tempo e o seu espaço e em que, criticamente, se descobrem inacabados. Realmente não há por que se desesperar se se tem a consciência exata, crítica, dos problemas, das dificuldades e até dos perigos que se tem à frente (2009, p. 62).

De fato, a leitura crítica do mundo foi um dos grandes legados deixados por Freire. Para o educador, a alfabetização decodificadora não seria o suficiente para compreender os processos que estão em jogo no mundo, mas sim um letramento que possibilitasse a escrita e a leitura reais da vida e proporcionasse utilidade social. Essa perspectiva de educação foi marcante na vida e obra de Paulo Freire, reproduzida e difundida em grande parte de sua atuação educadora e política entre trabalhadores, comunidades populares, periféricas e sujeitos diversos em situação de opressão. “Sem esta consciência cada vez mais crítica não será possível ao homem brasileiro integrar-se à sua sociedade em transição, intensamente cambiante e contraditória” (FREIRE, 2009, p. 65). Seus conhecimentos também ganharam adesão e reprodução nos ambientes da academia, espaço ainda marcado pela presença das elites. De modo especial, o Movimento LGBT tem se valido de práticas educativas diferenciadas e alternativas à perspectiva tradicional, hierárquica e neoliberal de educação. Sua luta tem dito à sociedade que deseja nas escolas deste país uma

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Pedagogia do diálogo, da horizontalidade e do reconhecimento da pluralidade humana e suas múltiplas identidades. Esse desejo pedagógico, inspirado na educação freireana, se mostra contundente nas manifestações, nas rodas de diálogo, nas diversas ações e atividades, assim como nos espaços estratégicos de debate público, a exemplo das audiências públicas, conselhos, conferências, entre outros instrumentos de participação social.

(...) E esta passagem, absolutamente indispensável à humanização do homem brasileiro, não poderia ser feita nem pelo engodo, nem pelo medo, nem pela força. Mas, por uma educação que, por ser educação, haveria de ser corajosa, propondo ao povo a reflexão sobre si mesmo, sobre seu tempo, sobre suas responsabilidades, sobre seu papel no novo clima cultural da época de transição. Uma educação que lhe proporcionasse a reflexão sobre seu próprio poder de refletir e que tivesse sua instrumentalidade, por isso mesmo, no desenvolvimento desse poder, na explicitação de suas potencialidades, de que decorreria sua capacidade de opção. Educação que levasse em consideração os vários graus de poder de captação do homem brasileiro da mais alta importância no sentido de sua humanização (FREIRE, 2009, p. 66 e 67).

Este trecho da obra “Educação como Prática da Liberdade” representa bem o ideário da educação pensada por Paulo Freire e fundamenta muitas das iniciativas de educação popular desenvolvidas em movimentos sociais, ONGs, partidos políticos, igrejas, associações e outros grupos da sociedade civil. A educação emancipadora proposta por Freire, nos colocaria numa situação pela qual é chamada de transitividade crítica. Para o teórico,

A transitividade crítica por outro lado, a que chegaríamos com uma educação dialogal e ativa, voltada para a responsabilidade social e política, se caracteriza pela profundidade na interpretação dos problemas. Pela substituição de explicações mágicas pro princípios causais. Por procurar testar os “achados” e se dispor sempre a revisões. Por despir-se ao máximo de preconceitos na análise dos problemas e, na sua apreensão, esforçar-se por evitar deformações. Por negar a transferências da responsabilidade. Pela recusa a posições quietistas. Por segurança na argumentação. Pela prática do diálogo e não da polêmica. Pela receptividade ao novo, não apenas porque novo e pela não-recusa ao velho, só porque velho, mas pela aceitação de ambos, enquanto válidos. Por se inclinar sempre a arguições (2009, p. 69 e 70).

Neste sentido, temos assistido esforços hercúleos de ativistas LGBT intencionados e intencionadas a empoderar outros sujeitos que ainda estão imersos e

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imersas num processo de alienação, de reprodução do machismo, da homofobia, classismo e racismo. Conforme Freire pensou em “Pedagogia do Oprimido”, os oprimidos hospedam em si o opressor. Esta relação dicotômica, complexa e contraditória está presente na forma como a população LGBT, alienada, imersa nas tramas da heteronormatividade, procura imitar e reproduzir normas hegemônicas de ser e estar no mundo, norma essa heterossexual, como frágil e equivocada resposta à exclusão e ao estigma.

Há, por outro lado, em certo momento da experiência existencial dos oprimidos, uma irresistível atração pelo opressor. Pelos seus padrões de vida. Participar destes padrões constitui uma incontida aspiração. Na sua alienação querem, a todo custo, parecer com o opressor. Imitálo. Segui-lo. Isto se verifica, sobretudo, nos oprimidos de “classe média”, cujo anseio é serem iguais ao “homem ilustre” da chamada classe “superior” (FREIRE, 2005, p. 55).

E completa, Na “imersão” em que se encontram, não podem os oprimidos divisar, claramente, a “ordem” que serve aos opressores que, de certa forma, “vivem” neles. “Ordem” que, frustrando-os no seu atuar, muitas vezes os leva a exercer um tipo de violência horizontal com que agridem os próprios companheiros (FREIRE, 2005, p. 55)

Essa tese explicaria o porquê de LGBTs afirmarem que muitos de seus algozes homofóbicos seriam outros e outras LGBTs que não assumiram publicamente (nem para si, num processo subjetivo de sublimação, sofrimento psíquicos e baixa autoestima) suas orientações sexuais, identidades de gênero e performances identitárias. O fato é que a heteronormatividade, como um fenômeno social complexo, difuso, enraizado na estrutura das relações sociais brasileiras que impõe aos sujeitos uma ditadura fincada no alinhamento padronizado entre sexo – gênero – sexualidade. Para isso ela produz um conjunto de dispositivos, discursos e normas que visem eliminar identidades desviantes desse padrão. Por isso que ela é compreendida como produzida e construída histórica e socialmente. Uma das teóricas brasileiras que discutem esse fenômeno é a Louro. A esse respeito, ela elabora:

Esse alinhamento (entre sexo-gênero-sexualidade) dá sustentação ao processo de heteronormatividade, ou seja, à produção e à reiteração compulsória da norma heterossexual. Supõe-se, segundo essa lógica, que todas as pessoas sejam (ou devam ser) heterossexuais – daí que os

9 sistemas de saúde ou de educação, o jurídico ou o midiático sejam construídos à imagem e à semelhança desses sujeitos. São eles que estão plenamente qualificados para usufruir desses sistemas ou de seus serviços e para receber os benefícios do Estado. Os outros, que fogem à norma, poderão na melhor das hipóteses ser reeducados, reformados (se for adotada uma ótica de tolerância e complacência); ou serão relegados a um segundo plano (tendo de se contentar com recursos alternativos, restritivos, inferiores); quando não forem simplesmente excluídos, ignorados ou mesmo punidos. Ainda que se reconheça tudo isso, a atitude mais freqüente é a desatenção ou a conformação. A heteronormatividade só vem a ser reconhecida como um processo social, ou seja, como algo que é fabricado, produzido, reiterado, e somente passa a ser problematizada a partir da ação de intelectuais ligados aos estudos de sexualidade, especialmente aos estudos gays e lésbicos e à teoria queer (LOURO, 2009, p. 90).

Dessa maneira, a lógica heteronormativa instituída promove a alienação de muitos LGBTs de modo a não reconhecerem a si nem a seus/suas pares. O nãoreconhecimento mútuo tem resultado na reprodução de atitudes, posturas e expressões machistas, homofóbicas e racistas. A definição de heteronormatividade encontra abrigo no pensamento de hospedagem proposto por Freire. Isso ocorre porque a população LGBT ainda encontra-se em situação de opressão. Sofrem uma dualidade que se instala na “interioridade” do seu ser. Descobrem que, não sendo livres, não chegam a ser autenticamente. Querem ser, mas temem ser. São eles e ao mesmo tempo são o outro introjetado neles, como consciência opressora. Sua luta se trava entre serem eles mesmos ou serem duplos. Entre expulsarem ou não o opressor de “dentro” de si. Entre se desalienarem ou se manterem alienados. Entre seguirem prescrições ou terem opções. Entre serem espectadores ou atores. Entre atuarem ou terem a ilusão de que atuam na atuação dos opressores. Entre dizerem a palavra ou não terem voz, castrados no seu poder de criar e recriar, no seu poder de transformar o mundo (FREIRE, 2005, p. 38).

Estar (e não ser) oprimido implica uma oposição e relação com o opressor, pois estão imbricados e coexistem mutuamente. Não há opressor(a) sem oprimidos(as) assim como não há oprimidos(as) sem opressores(as). Por isto é necessário a libertação de ambos, através de uma práxis libertadora evitando a superação do oprimido sobre o opressor, haja visto que a estrutura de dominação e desumanização não estaria rompida, mas apenas trocadas as posições de dominação. “Não basta saberem-se numa relação dialética com o opressor – seu contrário antagônico – descobrindo, por exemplo, que sem eles o opressor não existiria (Hegel), para estarem de fato libertados. É preciso, enfatizemos, que se entreguem a práxis libertadora” (FREIRE, 2005, p. 39).

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Esse conjunto de reflexões ensaiadas nesse texto, assim como essa conjuntura de dificuldades e violações, em nossa compreensão, também pode ser respondida a partir do pensamento freireano. Segundo o pernambucano, a experiência histórica e social brasileiras é profundamente marcada por grupos e pessoas privilegiadas em detrimento de outras. Neste caso, é por ele chamado de “inexperiência democrática” (2009).

Realmente o Brasil nasceu e cresceu dentro de condições negativas às experiências democráticas. O sentido marcante de nossa colonização, fortemente predatória, à base da exploração econômica do grande domínio, em que o “poder do senhor” se alongava “das terras às gentes também” e do trabalho escravo inicialmente do nativo e posteriormente do africano, não teria criado condições necessárias ao desenvolvimento de uma mentalidade permeável, flexível, característica do clima cultural democrático, no homem brasileiro (FREIRE, 2009, p. 74 e 75).

Tal trajetória social colonizadora tem produzido até a contemporaneidade inúmeras desigualdades cidadãs e nesse contexto está inserida a população LGBT. Esta população também foi perseguida e silenciada em tempos obscuros de repressão da liberdade de expressão e exploração humanas. Nossos colonizadores portugueses trouxeram consigo não apenas o trabalho escravo e predatório, como também suas normas, culturas e religião. E com elas a imposição de vivências do gênero e da sexualidade, imprimindo uma moral branca inexistente até então em nossas terras. Ao mesmo tempo em que a leitura freireana nos dá ferramentas para um pensamento crítico do mundo e nos possibilita compreender a realidade pelo qual foi forjado o Brasil, o autor desenvolve uma rica literatura que apresenta perspectivas progressistas, e mais que isto, emancipadoras de educação. Ele faz isto no “Educação como Prática da Liberdade” e aprofunda no “Pedagogia do Oprimido”. Assim, uma educação emancipadora passa diretamente pelo reconhecimento das diferenças, característica inerente à humanidade, sendo cara sua valorização pelo Movimento LGBT. Outro elemento intrínseco a proposta de educação emancipadora é o exercício do diálogo autêntico.

Por isto, o diálogo é uma exigência existencial. E, se ele é o encontro em que se solidarizam o refletir e o agir de seus sujeitos endereçados ao mundo a ser transformado e humanizado, não pode reduzir-se a um ato de depositar ideias de um sujeito no outro, nem tampouco tornarse simples troca de ideias a serem consumidas pelos permutantes (FREIRE, 2005, p. 91).

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Nessa direção o Movimento LGBT tem procurado se organizar com vistas ao enfrentamento dessas dificuldades sociais. Para isso, tem se valido de estratégias políticas diversas. Podemos destacar a forte pressão por uma educação pública e de qualidade, educação essa pautada na proposta de Paulo Freire minimamente exposto neste trabalho. É por acreditar nesta proposta e por encontrarmos tantas conexões entre os objetivos políticos e a prática do Movimento LGBT e as contribuições, o pensamento e a filosofia democrática, popular e humanizadora de Freire é que nos sentimos motivados a produzir este trabalho.

CONSIDERAÇÕES

Foi através do pensamento de Paulo Freire que muitas das reflexões sobre as desigualdades sociais, violações históricas e possibilidades de superação destas problemáticas que muitos dos movimentos populares se constituíram. Destacamos, sobretudo, a proposta de educação libertadora desenvolvida por ele. Educação essa construída com as pessoas e não para as pessoas. Isso implica urgentemente em reformas e práticas educacionais que promovam o diálogo, a troca de experiências, os saberes locais, as vivências e experiências. A população LGBT possui ricos saberes muitas vezes menosprezados, desconsiderados e silenciados no chão das escolas, assim como outros segmentos minoritários, a exemplo de negros e mulheres. Suas identidades, culturas e Histórias são desprezadas ou inferiorizadas. Concluímos desse trabalho que embora Freire não tenha escrito ou mencionado a especificidade social LGBT, sua obra converge para a libertação também deste povo, num engajamento universal que prima pela justiça social e humanização da humanidade. Que se empenha na libertação de toda e qualquer situação de opressão. É nesta direção que encontramos conexões entre o Freire e o Movimento LGBT. Extraímos também de nossos estudos uma análise conjuntural que responde algumas das questões políticas da população LGBT e a situação histórica em que ela está inserida. Para além disso, aprendemos que a educação como prática da liberdade, resultará na conquista da igualdade, requerida por estes cidadãos e cidadãs.

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Essa compreensão justifica e fundamenta a luta empreendida no âmbito da área educacional e suas reivindicações para melhoria das escolas públicas e privadas brasileiras. Por isso, é com insistência esperançosa que o Movimento LGBT demanda formação continuada adequada para os e as profissionais da educação, subsídios pedagógicos para elaboração e construção de aulas fomentadoras do respeito, currículos engajados com uma cultura de paz e processos escolares que promovam o reconhecimento da pluralidade e das diferenças na sociedade. REFERÊNCIAS FREIRE, Paulo. Educação Como Prática da Liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2009. _____. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2005.

JUNQUEIRA, Rogério Diniz. Homofobia: limites e possibilidades de um conceito em meio a disputas. Bagoas, Natal, v.1, n.1, p. 1-22, jul./dez. 2007.

LOURO, Guacira Lopes. Heteronormatividade e homofobia. In: JUNQUEIRA, Rogério Diniz (Org.). Diversidade sexual na educação: problematizações sobre a homofobia nas escolas. Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade, UNESCO, 2009.

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