Educação do Campo, Letramento Midiático e Formação de Professoras(es)

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EDUCAÇÃO DO CAMPO, LETRAMENTO MIDIÁTICO E FORMAÇÃO DE PROFESSORAS(ES): REFLEXÃO SOBRE ENSINO DE CIÊNCIAS E AGROECOLOGIA A PARTIR DE UMA PRÁTICA PEDAGÓGICA Marcelo Vaz Pupo – Doutorando Faculdade de Educação FE/Unicamp. [email protected] Tarcila Mantovan Atolini - Professora Assistente Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri – UFVJM. Grupo de Trabalho: Educação do Campo Resumo Esse artigo apresenta uma análise reflexiva a partir de uma atividade pedagógica que utilizou materiais audiovisuais para abordar temas relacionados à Educação do Campo e Economia Solidária. A atividade em questão representa o segundo módulo do Curso de Aperfeiçoamento em Educação de Jovens e Adultos no Campo com ênfase em Economia Solidária, oferecido pela UFVJM às professoras e professores do campo, no campus de Diamantina-MG. Os vídeos utilizados, “Queremos uma Kombi” e “Dona Ileide ganha uma forcinha para produzir alimentos orgânicos”, abordam o mesmo grupo popular, a Associação de Mulheres Agroecológicas do Vergel. A partir dos contrastes trabalhados em sala de aula, foi possível debater a relação entre visão de mundo e projeto de sociedade, evidenciando as intrínsecas relações entre produção agrícola e ciência, tecnologia, sociedade e ambiente – CTSA. Para apoiar a análise reflexiva sobre essa aula, dois campos do conhecimento foram mobilizados: a Educação em Letramento Midiático e a História e Filosofia das Ciências. Concluímos, a partir dessa análise, que o Ensino de Ciências no âmbito da Educação do Campo deve problematizar a natureza da ciência e do trabalho científico, compreendendo os processos históricos que estão implicados na produção e reprodução do conhecimento hoje socialmente legitimado. Concluímos, igualmente, que a produção de conteúdo audiovisual pelos grupos populares é elemento pertinente tanto para o letramento midiático quanto para a construção popular do conhecimento científico. Palavras-chave: educação do campo, formação de professoras(es), educação em letramento midiático, ensino de agroecologia, conhecimento popular.

Introdução Em 2013, por ocasião da última edição dessa Jornada de Estudos em Assentamentos Rurais, escrevemos sobre a experiência de produção audiovisual que resultou no vídeo “Queremos uma Kombi”, em parceria com a Associação de Mulheres Agroecológicas do Vergel (AMA) e a Incubadora Tecnológica de Cooperativas Populares, a ITCP Unicamp 1. A proposta daquele texto foi compartilhar os caminhos metodológicos percorridos na criação do vídeo, realizado durante alguns meses de 2012. Relatamos o contexto institucional da experiência, ao lembrarmos que ele fazia parte de uma campanha de financiamento colaborativo nomeada "Uma Kombi para as Mulheres da AMA". A explicitação desse contexto se justificava na medida em que apontávamos importância para os elementos de produção partilhada que naquele momento foi possível conceber. Hoje, em 2015, retomamos o debate e o próprio vídeo para discutirmos alguns pontos que intencionalmente queremos relacionar com a Educação do Campo, o Ensino de Ciências e a Educação em Letramento Midiático. Consideramos que a conjuntura presente seja capaz de fornecer uma análise inicial a respeito dessas três áreas do conhecimento, fundamentais para as lutas e avanços da Agroecologia nos assentamentos de reforma agrária e para a soberania alimentar no país. Essa conjuntura envolve a repercussão do vídeo “Queremos uma Kombi” nas redes sociais e na comunicação de massa (representada pelo programa “Caldeirão do Huck”, da Rede Globo) e na realização de uma atividade pedagógica em um curso de aperfeiçoamento para professores do campo da região de Diamantina, em Minas Gerais, oferecida pela Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri (UFVJM). O Curso de Aperfeiçoamento em Educação de Jovens e Adultos no Campo com ênfase em Economia Solidária2 faz parte do catálogo de cursos de formação continuada da SECADI — Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão — e foi planejado pela Incubadora Tecnológica de Cooperativas Populares do Vale do Jequitinhonha da UFVJM. A demanda surge a partir da realidade diagnosticada na região na qual o analfabetismo atinge índices alarmantes, quadro que tende a se agravar na zona rural. A educação popular serve de referência, uma vez que, historicamente, a EJA se caracteriza por articular processos de aprendizagem que ocorrem na escola e em diversos espaços educativos. Apesar disso, o curso baseia-se no referencial teórico-metodológico da 1

A participação na VI Jornada se deu pela submissão de resumo expandido, intitulado “Bastidores Da Cena – A Produção do Vídeo "Queremos Uma Kombi!" no Assentamento Vergel”, de autoria de Marcelo Vaz Pupo e Wilon Mazalla Neto. 2 O curso é coordenado pela co-autora desse artigo, Profa. Tarcila Atolini.

pedagogia histórico-crítica. Os fundamentos visam proporcionar aos cursistas o acesso às teorias do conhecimento que subsidiam a compreensão da realidade do aluno trabalhador e sua contextualização histórica, para então se construir condições de uma passagem da classe trabalhadora em si para uma classe trabalhadora para si, com potencial de transformação da sua realidade concreta. O curso também reflete uma concepção de educação baseada no exercício do diálogo, em um processo de construção contínua da cidadania, considerando a diversidade, a educação inclusiva, a relação intergeracional, dentre outras. Reconhece a perspectiva intersetorial da EJA e potencializa sua articulação com o mundo do trabalho. O conteúdo do curso está organizado em 5 módulos. O primeiro refere-se apenas à ambientação dos cursistas com a equipe do curso, sua estrutura e colegas cursistas. O segundo módulo, Educação de Jovens e Adultos no campo: aspectos introdutórios, abre o curso trazendo a reflexão sobre a educação e suas diferentes concepções, em especial Educação do Campo. A atividade aqui descrita, como elemento central para as análises, compreende as 15 horas desse segundo módulo do curso, concentradas em um final de semana. O terceiro módulo, Educação de jovens e adultos e a realidade do Campo, aprofunda o reconhecimento sobre o contexto geral e regional do campo e aponta para a definição de um possível papel da EJA a partir disso. O quarto módulo, Educação de jovens e adultos e o mundo do trabalho: reflexões a partir da Economia Solidária, introduz a temática da Economia Solidária como proposta teórico-metodológica na formação de Jovens e Adultos no campo. Por fim, o quinto módulo, Estratégias político-didático-pedagógicas para EJA no Campo, retoma o tema da educação com a intenção de pensar como os temas trabalhados nos módulos anteriores dialogam com a formação dos jovens e adultos no campo. As aulas presenciais (100 horas) são aos finais de semana. À distância (90 horas) são sugeridas atividades com o apoio da plataforma Moodle de educação à distância. Conflui para esse momento da escrita do artigo, com igual importância, os debates que têm sido realizados por conta do curso Meio Ambiente, Questão Agrária e Multimeios, oferecido pelo Laboratório Terra Mãe (Nepam/Feagri/IA – Unicamp), e a finalização do curso de especialização Residência Agrária – Educação do Campo e Agroecologia na Agricultura Familiar e Camponesa (Feagri – Unicamp). O trabalho de conclusão de curso intitulado “Comunicação, Educação e Produção de Sentidos pela Linguagem Audiovisual: experiências em grupos de Agricultura Camponesa” (VAZ PUPO, 2015), é lembrado ao final para que o “processo crioulo de produção simbólica” reforce a concepção de que os grupos populares, tal qual a AMA, devem produzir seus próprios olhares sobre as relações de produção.

Recentemente, por conta de alguns estudos no campo da História e Filosofia das Ciências, foi possível conhecermos a Educação em Letramento Midiático (em inglês “MLE” — media literacy education). Além dessa, outra tradução poderia ser Educação em Literacia Midiática, já que “letramento” e “literacia” são tidos como sinônimas para o dicionário Houaiss. Mas as palavras “alfabetização” (outra possível tradução para literacy) e até mesmo “letramento” passam a ideia de que seria uma prática educativa partindo do “zero”, quando, no entanto, todos nós já temos uma longa estrada no tema. Afinal, são horas e horas gastas entre filmes, séries, tv, facebook, livros, youtube, novelas… De fato não somos tábula rasa no assunto. A extensa dedicação que socialmente é dada aos meios de comunicação de massa (entre outros) nos preenche de aprendizagens e significados, somos portadores e reprodutores das inúmeras mensagens transmitidas por esses veículos, alguns de nós somos especialistas — bem mais do que alfabetizados — ao dissertarmos sobre os assuntos que circulam na novela das oito. Ou no Big brother, ou no Porta dos fundos, etc. Mas, certamente, temos pouquíssima sabedoria do que se passa em programas como o “Observatório da imprensa”. Não trata-se de vangloriar esse programa, mas de reconhecer que seu conteúdo televisivo é único em seu gênero: analisar de forma crítica o desempenho da mídia a partir de assuntos que estão em destaque na imprensa. Cremos que sabemos pouco analisar a mídia no conjunto de suas características, que envolve formatos, conteúdos e mensagens. Por essa razão, mantemos a escolha do termo “letramento” ao se referir o esforço educacional que envolve a compreensão das mídias. Essa é a distinção a que se propõe a Educação em Letramento Midiático: educar sobre a comunicação de massa, e não apenas educar através dela. O foco deste letramento está tanto na elaboração do material midiático quanto na mensagem que ele transmite. O Letramento Midiático reúne cinco ideias centrais (KLOSTERMAN; SADLER; BROWN, 2011, p.53): 

Toda mídia é construída com propósitos específicos para específicos públicos;



Mídia constrói (e é construída por) representações da realidade;



Indivíduos interpretam os significados das mensagens individualmente;



As mensagens da mídia têm implicações sociais, políticas, estéticas e econômicas;



Cada tipo de comunicação possui características próprias.

É bem fácil de se encontrar exemplos na área de educação utilizando mídia (impressas, visuais, digitais) para se abordar um assunto qualquer, mas arriscamos dizer que é pífio o esforço pedagógico (com base teórica e metodológica) para tomarmos consciência de que toda mídia é socialmente construída. No geral, as práticas educativas poucas vezes

aprofundam sobre a mídia utilizada, permanecendo no através. Contradições da era da comunicação, num contexto em que ela, a comunicação, tranquilamente poderia ser interpretada como um dos mais poderosos instrumentos de pacificação (anestesia) social, invisibilizando os principais conflitos e contradições da (des)ordem capitalista que nos rege a existência. Tem responsabilidade grande, também, a comunicação de massas nas distorções propagadas quanto à natureza da ciência e ao trabalho dos cientistas (REIS; GALVÃO, 2007). A produção do conhecimento acadêmico é uma atividade socialmente localizada, está permeada por influências políticas e expressa a visão de mundo de um determinado grupo de pesquisadores. Mas a comunicação de massas, importante mediadora de nosso cotidiano, permanece propagando uma suposta neutralidade das relações entre ciência e tecnologia, permanece disseminando que a sistematização científica do conhecimento humano é uma atividade para poucas pessoas, “iluminadas” por uma inteligência fora do padrão (GILPEREZ et all, 2001). Um equívoco bem conveniente que alimenta as relações de dominação, e que esforços feitos pela Educação do Campo, por exemplo, evidenciam esse erro ao criar as condições para que os trabalhadores e trabalhadoras do campo também elaborem produções científicas. Consideramos, portanto, que a Educação do Campo tem se constituído como um vetor importante no debate acerca das teorias pedagógicas, contribuindo para que a natureza da ciência reassuma sua vinculação explícita com os processos e movimentos que se dão socialmente. Objetivos O objetivo desse artigo é apresentar, através de uma proposta educativa que utiliza o vídeo “Queremos uma Kombi”, uma análise que correlacione conceitos e práticas pedagógicas fundamentais para o atual momento da Educação do Campo, em particular às questões que envolvem o Ensino de Ciências e o modo como o ser humano deve relacionar-se com a natureza. Compreende, igualmente, o objetivo desse artigo, articular, para o descrito acima, elementos da História e Filosofia das Ciências e da Educação em Letramento Midiático reforçando o argumento de que é fundamental a produção simbólica realizada pelos grupos populares de agricultura camponesa.

Metodologia e Resultados Ainda que, coletivamente, tenhamos pouca consciência acerca da intrínseca elaboração sociopolítica onde inserem-se a produção das mídias que hoje nos tocam, nos movem, tivemos a oportunidade de experimentar, em sala de aula, o que propõe a Educação em Letramento Midiático (ELM), ainda que naquele momento da experiência nós ainda não conhecíamos seus princípios. “A ELM incentiva a audiência a compreender que os autores(as) das mídias escolhem o que mostrar-nos e evidenciam alguns elementos enquanto ignora outros.” (KLOSTERMAN; SADLER; BROWN, 2011, pág.53). Talvez essa tenha sido a principal característica do uso que fizemos dos vídeos “Queremos uma Kombi” e “Dona Ileide ganha uma forcinha para produzir alimentos orgânicos” 3. O primeiro vídeo é uma produção em que um de nós, autores desse artigo, fez parte da equipe, concebido conjuntamente com a Associação de Mulheres Agroecológicas do Vergel (AMA) e a Incubadora Tecnológica de Cooperativas Populares da Unicamp (ITCP). O vídeo, elemento chave para o financiamento colaborativo e a compra de um veículo para o grupo, teve a intenção de apresentar ao público alvo um pouco do trabalho que desenvolve as mulheres com a produção de alimentos sem agrotóxicos, expor a necessidade de um transporte para a comercialização direta de seus produtos, cultivados a partir do trabalho associativo e das questões de gênero, de forma integrada às condições ecossistêmicas do Assentamento Vergel, em Mogi Mirim-SP. O segundo vídeo, por conta da repercussão do primeiro, exibe a participação da AMA no programa “Caldeirão do Huck”, da Rede Globo. Luciano Huck e Marcos Palmeira envolvem a associação de mulheres em um dos quadros do programa, chamado “Mandando Bem”. Nesse quadro, o apresentador oferece ao grupo um conjunto significativo de materiais, veículos e equipamentos de infraestrutura necessários à produção, beneficiamento e comercialização de bens agrícolas. Utilizamos esses vídeos no curso de aperfeiçoamento para professores do campo da região de Diamantina, em Minas Gerais (Educação de Jovens e Adultos no Campo). O propósito da aula era problematizar quais princípios pedagógicos são necessários para lidar com os temas do curso (Educação do Campo e Economia Solidária), reconhecendo as relações entre educação, visão de sociedade e transformação (ou manutenção) social. Havia um desafio interessante na aula, que implicava justamente encontrar as formas 3

Os vídeos podem ser vistos pelos seguintes links: https://vimeo.com/53014999 (Queremos uma kombi) e http://globotv.globo.com/rede-globo/caldeirao-do-huck/v/dona-ileide-ganha-uma-forcinha-para-produziralimentos-organicos/2582912/ (Caldeirão do Huck).

adequadas para se utilizar os vídeos ao mesmo tempo que pretendíamos sensibilizar a turma para as relações conceituais inicialmente planejadas. Ou seja, era preciso, pelos vídeos, reconhecer as distintas visões de mundo e de sociedade a partir do contraste entre as duas narrativas audiovisuais. Esses contrastes foram fundamentais para discutirmos os três eixos de análise, propostos pela Educação do Campo, envolvidos na atividade agropecuária: a organização do trabalho produtivo, as dinâmicas socioculturais e suas relações agroecossistêmicas e, por fim, como se dá a produção, reprodução e legitimação do conhecimento envolvido no mundo rural (CALDART, 2014). A aula foi introduzida com os principais conceitos da Educação do Campo, da Agroecologia e da Agricultura Camponesa. Buscamos expor os processos e a epistemologia da atividade científica relacionada a estes campos do conhecimento. Para essa tarefa, apontamos quatro fotografias que ilustravam diferentes realidades de escolas ou espaços escolares no mundo rural. Debatemos a estrutura/espaço escolar em cada imagem, buscando relações entre escola, meio rural e sociedade, com o intuito de pensarmos o sentido político da necessidade de uma educação do campo. Expusemos a relação entre Educação do Campo — a partir de sua origem nos movimentos sociais — e o projeto de sociedade a partir da Reforma Agrária Popular e a Agricultura Camponesa. Esse debate também compreendeu que a escola é um espaço de contradições, já que cumpre um papel necessário à produção do capital ao mesmo tempo que permite a formulação de outros pensamentos e ideologias. Nesse sentido, é fundamental nos perguntarmos que elementos pedagógicos permitem à escola a superação das relações de exploração e opressão necessárias à manutenção da ordem capitalista. Em seguida, comparamos diferentes visões de mundo, e consequentemente de educação, através da análise dos vídeos produzidos sobre o mesmo grupo de mulheres e sobre a mesma temática — produção orgânica, comercialização, conhecimento e sua validação, etc.. Para esse objetivo exibimos o vídeo “Queremos uma Kombi” e sugerimos as seguintes perguntas para o debate em grupos: 1. Quem é(são) a(s) personagem(s) do vídeo? 2. Quem são elas e o que fazem? 3. Quem é a liderança? 4. As personagens são sujeitos ou receptoras da ação? Elencamos os principais pontos tratados no audiovisual, de forma que os estudantes formulassem uma sinopse que sintetizasse a percepção coletiva sobre o vídeo. Após exibirmos o programa “Dona Ileide ganha uma forcinha para produzir alimentos orgânicos”, repassamos os passos metodológicos anteriores mas oferecendo evidência para os distintos modos de ver

de Ciência e Tecnologia imbricados nas narrativas explicativas (FIGUEIRÔA, 2009). Nesse sentido, ressaltamos as principais divergências surgidas a partir das respostas dadas em relação às do primeiro vídeo, que podem ser sintetizadas assim: 

Trabalho associativo versus individual: Dona Ileide é apresentada na formulação do mito do herói, uma heroína que foi responsável por tudo que a AMA é hoje, desconsiderando, apesar da formulação da heroína, as questões de gênero e produção;



Validação do conhecimento e das práticas sociais na agricultura familiar e camponesa: Ao desprezar a construção social em torno das práticas agroecológicas e de certificação orgânica, Marcos Palmeira é convidado a dar um aval sobre o status do grupo de mulheres;



Luciano Huck como messias salvador do grupo versus ação social coletiva e continuada;



Produção orgânica como nicho de mercado versus segurança alimentar e direito a boa alimentação;



Descontextualização dos elementos agroecossistêmicos a partir da reprodução da racionalidade técnica versus uma integração das práticas agriculturais com as dinâmicas de cada ecossistema. O fechamento da aula percorreu algumas reflexões que consideramos apontar aqui,

pelo valor que têm para o campo de estudos articulados nesse artigo. Ao descrever de forma mais detalhada as características dos materiais audiovisuais, prerrogativa da Educação em Letramento Midiático (KLOSTERMAN; SADLER; BROWN, 2011), foi possível discutirmos os méritos educacionais dessas fontes (“acesso” à mídia, no código de análise dessas autoras), que ao tratarem de assuntos sócio-científicos ganham relevância para o Ensino de Ciências em uma visão crítica. Além dessa característica, determinamos os autores, público alvo, as mensagens e os conteúdos científicos de cada mídia (“análise” da mídia); outros códigos de análise da Educação em Letramento Midiático foram também utilizados, como aqueles que envolvem a “avaliação” da mídia — discutir o valor dos vídeos quanto ao rigor do conteúdo científico, sua credibilidade, adequação, relevância e utilidade para o aprimoramento da turma nos temas da Educação do Campo e Ensino de Ciências. As questões-chave abaixo materializam um pouco da proposta desses códigos de análise: 

Quem são as pessoas envolvidas no enredo videográfico?



Qual a intenção do(s) autor(es) do audiovisual?



Onde repousa o protagonismo da trama e da ação?



Como está caracterizado o trabalho produtivo?



Que relações socioambientais são acentuadas?



Quem constrói e quem legitima o conhecimento em cada narrativa?



É importante que os grupos populares desenvolvam sua própria interpretação dos fatos, sistematizem o conhecimento produzido?

Esse último ponto de reflexão é especialmente caro à Educação em Letramento Midiático, já que ela preconiza a criação de conteúdo por parte dos sujeitos, e não apenas seu consumo. O último código de análise utilizado pela Michelle Klosterman (et all, 2012), “criação” de mídia, envolve a produção escrita e visual de representações de ciência para um público mais amplo, geograficamente disperso. Esse último código de análise nos faz pensar que, se os vídeos “Queremos uma Kombi” e “Dona Ileide ganha uma forcinha” produzem significados sociais para a Associação de Mulheres, que significados produziriam/produzem essa associação para todas as outras coisas, inclusive para as formas como essas produções audiovisuais são realizadas? São algumas provocações que esse tipo de abordagem pedagógica nos traz, e que apontam pesquisas e ações que atendam a esse tipo de demanda, que relaciona estética e política na formação dos trabalhadores e trabalhadoras do campo. Estamos falando desde uma perspectiva que afirma a necessidade de um processo coletivo na produção do conhecimento, através de um processo dialógico na relação entre todas as pessoas envolvidas, na relação educador e educando; afirma o trabalho como eixo articulador de processos pedagógicos, processo esse problematizador e histórico dos conhecimentos, em claro contraponto ao Agronegócio e à recauchutada Revolução Verde que o sustenta. Conclusões O vídeo “Queremos uma Kombi” possui alguns traços, em sua elaboração, que apontam ou indicam caminhos para que os grupos assumam o comportamento de criação de conteúdos midiáticos. As mulheres estiveram presentes nos principais momentos de tomada de decisão quanto ao enredo e roteiro do filme, apontaram as diretrizes para a edição e linguagem final do vídeo. Cremos que já são elementos distintivos se comparados às outras produções audiovisuais, em especial as televisivas e jornalísticas. Por outro lado, experiências como essas indicam que o caminho para aprofundamentos desse tipo ainda é bem longo, de

modo que os grupos populares estão longe de possuírem as condições materiais e intelectuais que os permitam expressar e divulgar de maneira mais ampla (ainda que “apenas” nas redes sociais da internet) a simbologia que oferecem às coisas do mundo. Nossos olhares para a vida cotidiana permanecem sob custódia e isso fica bem evidente se aceitamos a ideia de que nossa relação com o mundo se dá de forma simbólica e política, de que nossa posição de sujeito está constituída pela linguagem, pelas marcações ideológicas e pelo inconsciente coletivo. Nossa compreensão a respeito de coisas do tipo “como organizar a produção agropecuária” está restrita ao que pensa meia dúzia de corporações privadas. Esse contexto implica numa determinada “configuração” de Ciência, Tecnologia, Sociedade e Ambiente (CTSA), de projetos pedagógicos e diretrizes curriculares e de políticas públicas para o setor. Ao mesmo tempo que o Agronegócio (organização hegemônica da produção rural) se vale de parte do conhecimento científico, outras bases científicas são completamente desprezadas (e desmerecidas), inclusive — e principalmente — aquelas que fazem a necessária crítica quanto às severas consequências socioambientais do Agronegócio. Perceber essas fragilidades na organização social nos aponta ações no campo da educação e da comunicação. Os aportes da História e Filosofia das Ciências mostram-se fundamentais para desconstruirmos os mitos em torno do conhecimento científico, em especial aqueles relacionados às tecnologias “de ponta”. Complementarmente, a comunicação de outras formas de se produzir e legitimar o conhecimento também precisa ser ampliada. São ações sociais que relacionam novas teorias pedagógicas, democratização da comunicação e soberania alimentar no país. Desafios significativos que diversos movimentos de resistência vêm assumindo como temas de trabalho, e que temos a responsabilidade de conhecer, apoiar e disseminar. Articular e colocar em rede essas ações sociais pode ser uma das descrições possíveis para a Plataforma Sementeia, que também fortalece ações e resistências de outras naturezas4. Vimos, através da aula, que os sentidos fornecidos para o mesmo grupo de mulheres são diferentes e até antagônicos. Ou seja, o mesmo objeto videografado foi capaz de gerar distintos signos socioculturais, em especial aqueles relacionados à agricultura, sociedade e ambiente. São mensagens díspares que implicam em diferentes posturas educativas, que apontam projetos de educação e de sociedade conflitantes. Argumentamos que, na Educação do Campo, seja necessário trabalhar a partir dos seguintes princípios educativos:  4

Trabalho (gestão e produção) e relações de gênero como eixos articuladores de

Acesse a Plataforma Sementeia pelo link: http://sementeia.org/

processos pedagógicos; 

Processo dialógico relação educador educando;



Produção de conhecimento é um processo coletivo;



Conhecimento é histórico e deve ser problematizado;



Unificação de corpos coerentes de conhecimento, enfrentando sua fragmentação, através de temas geradores e articuladores (como a agroecologia);



Conhecimento está vinculado às complexas relações entre CTSA.

O aporte da História e Filosofia das Ciências nos permite, exatamente, problematizar as relações entre ciência e tecnologia, e discernir os projetos de sociedade em jogo, os significados partilhados a partir da produção de conhecimento, as propostas políticopedagógicas dos esforços em educação e apontam a melhor forma para se constituir um Ensino de Ciências adequado à Educação do Campo. A disciplina de Meio Ambiente, Questão Agrária e Multimeios, realizada no primeiro semestre de 2015 na Unicamp, aponta-nos que a produção partilhada para a produção de linguagens audiovisuais não tem regra única, ela se dá a partir da realidade de cada grupo popular. Acreditamos que os grupos de agricultura camponesa devem desenvolver formas próprias e autônomas (que metaforicamente estamos chamando de “processo crioulo”), de maneira que se busque integrar comunicação, educação, redes sociais e tecnologias da informação para apoiar e estimular a memória cultural e as semânticas camponesas usualmente marginalizadas pelos discursos hegemônicos. A Plataforma Sementeia e o processo crioulo de produção simbólica compreendem, assim, o esforço em proliferar sentidos e simbologias, através da linguagem audiovisual, que retomem a mediação popular — das assentadas e assentados — entre signo e significado, militando na transformação social pelo viés da cultura, disputando os sentidos partilhados na sociedade, principalmente aqueles relacionados aos temas da reforma agrária, produção agroalimentar, agroecologia, etc. Bibliografia CALDART, Roseli Salete. Educação do Campo. Valinhos: Sonoro-data Show, 2014. 18 slides, color. Aula curso especialização Educação do Campo e Agroecologia — Residência Agrária (Feagri/Unicamp); 2º Tempo Escola.

FIGUEIRÔA, Silvia. F. M., 2009. História e Filosofia das Geociências: relevância para o ensino e formação profissional. Terræ Didatica, 5(1):63-71 GIL–PÉREZ, Daniel.; FERNÁNDEZ, I.; CARRASCOSA, J.; CACHAPUZ, A.; PRAIA, J. Para uma imagem não deformada do trabalho científico. Ciência & Educação, Bauru, v. 7, n. 2, p. 125–153, 2001. KLOSTERMAN, Michelle L.; SADLER, Troy D.; BROWN, Julie. Science Teachers’ Use of Mass Media to Address Socio-Scientific and Sustainability Issues. Res Sci Educ, [s.l.], v. 42, n. 1, p.51-74, 9 set. 2011. Springer Science + Business Media. DOI: 10.1007/s11165-0119256-z. REIS, Pedro; GALVÃO, Cecília. Reflecting on Scientists’ Activity Based on Science Fiction Stories Written by Secondary Students. International Journal Of Science Education, [s.l.], v.

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