EDUCAÇÃO E BARBÁRIE: A FAMÍLIA, A ESCOLA E A DOMESTICAÇÃO DAS CONSCIÊNCIAS

June 2, 2017 | Autor: A. Dos Santos | Categoria: Education, Family studies, Family history
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EDUCAÇÃO E BARBÁRIE: A FAMÍLIA, A ESCOLA E A DOMESTICAÇÃO DAS CONSCIÊNCIAS Andressa Regina Bissolotti dos Santos1

RESUMO

As instituições de controle social requerem, para seu funcionamento, que as consciências dos indivíduos estejam previamente adaptadas para a recepção das informações que serão por elas passadas. Pensar a possibilidade da existência de indivíduos capazes de resistir a essas manipulações e de pensar a realidade conforme suas próprias consciências, requer identificar quais as instituições que servem como conformadoras das mentalidades individuais, para que se possa pensar as formas adequadas de impedir essa conformação. Para tanto, é preciso que se volte para o processo de desenvolvimento do sujeito, ou seja, para a criança, pois é através da atuação dessas instituições na formação psicológica desta que a mentalidade vai sendo conformada e torna-se domesticada o suficiente para que esse sujeito seja útil ao mercado e à sociedade de classes no geral, e não apresente qualquer resistência a seus instrumentos de controle. Ao procurar identificar essas instituições, e os meios através dos quais elas operam essa domesticação das consciências, a família burguesa e a escola mercantilizada mostram-se como centrais nesse processo – aliadas ao controle da indústria de brinquedos e dos discursos pedagógicos. Quebrar o controle dessas instituições sobre o indivíduo em formação se mostra, assim, como uma necessidade primordial para que se possa pensar uma transformação social que elimine a barbárie que se estabeleceu na nossa sociedade ocidental. Palavras-chave: Infância, Família, Escola, Lúdico, Normalização, Barbárie.

1 Aluna do 3º ano do Curso de Direito – Habilitação em Direito do Estado, da Universidade Federal do Paraná, turno Diurno; Bolsista do Grupo PET-Direito.

1. INTRODUÇÃO “ Nunca houve um monumento da cultura que não fosse também um monumento da barbárie. E, assim como a cultura não é isenta de barbárie, não o é, tampouco, o processo de transmissão da cultura.”2

Em suas Teses sobre o Conceito de História, BENJAMIN coloca a História como uma sucessão catastrófica de acontecimentos, desembocando no atual estado de barbárie em que a dominação da natureza convive com “retrocessos na organização da sociedade” 3. Da mesma forma ADORNO conceitua a barbárie como um atraso peculiar do desenvolvimento humano em relação ao alto desenvolvimento tecnológico de sua civilização, ao mesmo tempo em que estabelece como objetivo prioritário da educação o que ele chamou de desbarbarização4. Para além das determinações materiais de exploração do homem pelo homem através do trabalho alienado, reconhece-se que, nos moldes atuais, requer-se “o estabelecimento de um consenso que torna possível a reprodução do injusto sistema de classes”5, não bastando para sua sustentação a repressão violenta, mas mostrando-se necessária a adaptação e manipulação eficiente das consciências dos indivíduos a esse sistema submetidos. A questão que nos é colocada, portanto, nesse momento histórico, é desvendar as maneiras pelas quais se transmite essa cultura de barbárie; perceber como tal paradoxo histórico se mantém como sustentável – e, afinal, se não é apenas através do paradoxo que ocorre a sustentação do momento histórico. É a partir do reconhecimento do estado de barbárie da tão aclamada civilização ocidental – que se expande e se impõe de maneira mundial através da globalização do mercado – e do papel central da transmissão da cultura como possibilitadora da reprodução da ordem, que se coloca a necessidade de se identificar quais instituições, e de que maneira, ocupam essa função de moldar o indivíduo para que seja passível da adaptação e da manipulação que o sistema exige para seu funcionamento. A abordagem recai, portanto, ao sujeito em formação; a identificar como se dá seu desenvolvimento e sua normalização para que cumpra o papel do qual se reveste socialmente. 2 3 4 5

BENJAMIN, Walter. Teses sobre o conceito da história. Pag. 2 Ibid. Pag. 4 ADORNO, Theodor W. Educação e Emancipação. MÉSZÁROS, István. A educação para além do capital. Pag. 15

Assim, a análise parte da construção da infância, e do movimento operado pela família e pela escola – e em conjunto à essas duas instituições, do lúdico como se apresenta atualmente – para enquadrar essa infância no que nela se exige: ou seja, um desenvolvimento voltado para sua futura absorção pelo mercado, e a morte de qualquer faísca de resistência que possa nela existir. 2. A FAMÍLIA E A FORMAÇÃO DO SUJEITO “A família desempenha um papel primordial na transmissão da cultura”6

LACAN reconhece que a estruturação hierárquica da família a coloca como privilegiada na coação da criança pelo adulto e, portanto, nas bases arcaicas da formação moral do sujeito7. Num sentido ainda mais amplo, RODULFO coloca a importância do mito familiar na constituição do sujeito, afirmando:

A questão do que é uma criança, em que consiste uma criança, condus à préhistória (…) em direção às gerações anteriores (pais, avós, etc.), a história dessa família, seu folclore (…).8

O autor coloca a questão em termos de que o sujeito se constitui, se constrói, a partir dos significantes que lhe são ofertados no meio em que se encontra; esse meio é a família na qual se insere, e as diferenças na estrutura familiar – e até mesmo no que se entende por família – serão capazes de gerar sujeitos com diferentes valores9. Assim, a família coloca-se como o ambiente no qual a identidade e a personalidade do indivíduo, com seus valores, suas habilidades, seus traumas, se formam em sua predominância – ainda que se observe influências externas, como por exemplo da escola, da mídia, e das determinações materiais do sistema de classes. A importância desse desenvolvimento que se dá na infância, principalmente através das influências e dos significantes presentes na pré-história familiar, é frisada por RODULFO10 quando este afirma que não há trabalho mais importante e complexo para o ser humano, do que aquele realizado por ele durante a infância. 6 LACAN, Jacques. Os Complexos Familiares. Pag. 9 7 Ibid. 8 RODULFO, Ricardo. O Brincar e o Significante: um estudo psicanalítico sobre a constituição precoce. Pag. 17 9 Ibid. 10 Ibid.

Não estão errados, portanto, os políticos conservadores que bradam o mantenimento da estrutura familiar burguesa como elemento necessário para conservação da ordem e da sociedade como dada: de fato, não é possível operar mudanças efetivas na sociedade sem que se modifique a estrutura opressora da família patriarcal. Assim, o próprio MARX compreende que a crítica das relações privadas, familiares e de propriedade se coloca como necessária a partir da experiência política das várias revoluçãos – a partir de 1789 – que sucumbiram em desilusões11. Coloca-se, a partir disso, como necessária a desnaturalização da estrutura familiar de nossa sociedade, através da pontuação de suas modificações no decorrer da História, e da demonstração de outros modelos, ainda existentes, em comunidades não atingidas (ou ao menos não transformadas) pelo capital. Acrescente-se aqui, também, o entendimento de que “as instâncias culturais dominam as naturais”12, concluindo-se, portanto, que a estrutura familiar é um elemento cultural, devendo ser observada no tocante aos complexos, e não como manifestação de uma natureza de qualquer ordem, que pudesse se deduzir do comportamento humano em relação à família.

2.1. Breve Contextualização Histórica da Família Burguesa “A revolução (de 1789) não derrubou todas as tiranias; os males que se reprovavam nos poderes despóticos subsistem nas famílias; nelas eles provocam revoluções”.

crises

análogas

àquelas

das

13

Através da análise histórica de como os indivíduos e a sociedade se relacionavam (com) e viam a família, observamos que até o século XVI esta detinha pouquíssima importância no tocante à vida afetiva e social das pessoas; a família não era campo de afeto e socialização, essas funções pertenciam à comunidade. Dessa forma, o próprio espaço privado e a ideia de intimidade eram inexistentes,

11 MARX, Karl. Sobre o Suicídio. 12 LACAN, Jacques. Os Complexos Familiares. Pag. 8 13 KARL, Marx, citando PEUCHET. Sobre o suicídio. Pag. 28-29

na realidade não existia quase nenhuma intimidade, (…) as pessoas viviam misturadas umas com as outrs, senhores e criados, crianças e adultos, em casas permamentemente abertas às indiscrições dos visitantes.14

O sentimento de família desenvolveu-se, portanto, muito recentemente, e com íntima relação com o desenvolvimento do sentimento da infância. De fato, vemos que nessa antiga família a criança era praticamente anônima, e até mesmo as idades da vida se confundiam; não havia, por exemplo, uma diferença clara entre a criança e o adolescente, ou entre ambos e os adultos. Excetuando-se a fase em que a criança era ainda muito pequena e, portanto, incapaz de assumir qualquer função social – fase essa que se estendia geralmente até os sete anos – ela era considerada apenas como um adulto em menores proporções, e incorporada ao universo das relações sociais, completamente imersa no mundo adulto. No entanto, com o desenvolvimento do sentimento da infância e do sentimento de família propriamente dito, a família separou-se do restante da comunidade, isolando-se num núcleo fechado, muitas vezes até mesmo hotil ao restante da sociedade – que agora não deve mais ser vista enquanto 'comunidade'. Esse momento equivale ao momento em que supostamente teria ocorrido a chamada 'emergência do sujeito', ou o triunfo do individualismo, a partir do qual os indivíduos teriam a possibilidade de pensarem a si mesmos sem a conexão necessária com o restante da comunidade. A questão máxima que nos é colocada aqui, é em que ponto essa emergência ocorreu. “Não foi o individualismo que triunfou, foi a família”15, afirma ARIÈS, e essa é uma importante reflexão sobre o papel do indivíduo e da família na sociedade moderna. As funções de socialização e proteção, antes pertencentes à comunidade, passam a pertencer à família. Nesse sentido, a família passa a ter uma existência de certa forma autônoma do restante da sociedade; de certa forma, porque uma estrutura rígida é classificada como família, e apenas aquelas conformações familiares que se enquadrem nessa estrutura terão sua autonomia reconhecida pelos demais16. Aqui reside a família burguesa: sua estrutura tradicionalmente aceita (formada por pai, mãe e filhos, orientada pelo poder patriarcal e pela proteção e centralidade da criança) é naturalizada e sacralizada pela sociedade, enquanto lugar único de realização dos valores burgueses e do sujeito socialmente reconhecido e aclamado. 14 ARIÈS, Philippe. História Social da Criança e da Família. Pag. 190-191 15 ARIÈS, Philippe. História Social da Infância e da Família. Pag. 191 16 Nesse ponto, cabe lembrar das lutas histórias dos movimentos LGBT, que acabam confluindo para a pauta de adaptação a esse modelo burguês fechado, ao invés de questionar esse mesmo modelo. Dessa forma, a sociedade somente permite aceitar e reconhecer a existência desses sujeitos desde que eles se adaptem aos padrões ditados por esse modelo, exigência à que o movimento tem cedido.

A pergunta que se faz sobre a emergência (ou não) do sujeito, reside no fato de que fora desse parâmetro dado, ou seja, sem se enquadrar dentro de um núcleo familiar, ou apresentando comportamentos internos a esse núcleo que não sejam os ideais, não há reconhecimento do sujeito; muito pelo contrário, há todo um esforço social, reforçado por aparatos institucionais, para que haja a normalização de todo e qualquer sujeito desviante dos padrões colocados pela família burguesa.

É que a organização social em que vivemos continua sendo heterônoma, isto é, nenhuma pessoa pode existir na sociedade atual realmente conforme suas próprias determinações (…).17

A família é visivelmente central; “preside os processos fundamentais do desenvolvimento psíquico, (…) transmite estruturas de comportamento e de representação cujo jogo ultrapassa os limites da consciência”18. Se o sujeito é capaz de agir e se adaptar socialmente, é porque a família o constituiu e o formulou para tal. A família burguesa tem, portanto, a função histórica de normalizar o sujeito, massificá-lo ao mesmo tempo que lhe inculca o egoísmo, preparar as bases psicológicas que permitirá à escola a finalização do processo de integração do sujeito como mercadoria e, portanto, socialmente útil.

2.2. O Modelo Familiar Burguês e Outros Modelos Familiares

Enquanto no nosso modelo familiar o cuidado das crianças é responsabilidade direta da família nuclear, ou seja, dos pais – no máximo dos avós – em diversas comunidades o cuidado das crianças é dividido entre várias outras pessoas.

As condições que dão conforto aos bebês muitas vezes envolvem outras pessoas, além da mãe. Seus vínculos estão intimamente relacionados a sistemas de cuidado de crianças da comunidade, refletindo circunstâncias históricas e valores culturais em relação aos papéis da família nesse cuidado.19

Nessas comunidades, em que vários indivíduos participam da educação e do cuidado das crianças e dos bebês, é comum também que as famílias sejam maiores, que haja uma maior interação entre as crianças e um número maior de parentes, para além da família

17 ADORNO, Theodor W. Educação e Emancipação. Pag. 181 18 LACAN, Jacques. Os Complexos Familiares. Pag. 9 19 ROGOFF, Barbara. A Natureza Cultural do Desenvolvimento Humano. Pag. 101

nuclear, ou até mesmo com pessoas da comunidade que não possuem vínculo biológico. Outra manifestação observável em várias comunidades ditas de 'terceiro mundo' é o cuidado das crianças menores pelas crianças maiores, sem supervisão direta dos adultos – ainda que haja um cuidado indireto destes. O curioso nessas maneiras de cuidado diferenciado das crianças é que muito cedo elas aprendem a cuidar de si mesmas com certa autonomia, “os bebês aprendem a confiar em si próprios e a não atrapalhar”20, enquanto na nossa sociedade a dependência das crianças em relação à adultos dura por vários anos de sua vida, estendendose muitas vezes para além da adolescência. Há, ainda, uma maior liberdade de movimentação das crianças nessas comunidades, uma vez que não há espaços institucionais estabelecidos para esses crianças, separados dos adultos, e que o cuidado de todos os membros permite que elas transitem por todos os espaços, mesmo sem a presença dos pais ou parentes.

Nessas circunstâncias, as crianças têm liberdade para observar as atividades em andamento na comunidade e se envolver nelas segundo seu interesse e suas habilidades emergentes.21

Assim, as crianças tem a oportunidade de observarem as atividades dos adultos, e aprenderem através da observação e interação com estes, além de, muitas vezes, contribuírem com o trabalho como ajudantes, de modo que a criança é vista como membro útil da comunidade.22 Aspecto importante é, também, os modos de interação com os demais membros da comunidade. Enquanto em nossa sociedade euro-americana de classe média as crianças só interagem diretamente com os pais, e precisam da autorização destes para interagir com outras pessoas, de modo que eles são verdadeiros reguladores de sua socialização, em comunidades de família ampliada as crianças se socializam mais facilmente, por si mesmas, com diversas pessoas. Em artigo que analisa as manifestações da infância em uma Comunidade Camponesa da Paraíba, e suas relações com a comunidade, SOUSA afirma: “os fatores que definem e

20 Ibid. Pag. 108 21 Ibid. Pag. 114 22 Neste aspecto cabe uma ressalva. Não trata-se aqui de exploração do trabalho infantil, porque nessas comunidades o trabalho é geralmente socializado e não explorado. O trabalho infantil como ocorre na nossa sociedade é mal visto e proibido devido à exploração de trabalhos mecânicos e alienados, que de nada contribuíam para o crescimento, o aprendizado e a socialização da criança. Mas o trabalho feito em conjunto com a comunidade, num caráter complementar ao trabalho dos adultos, é positivo, pois socializa e inclui a criança às atividades da comunidade, estimulando sua autonomia e o desenvolvimento de suas habilidades, além de permitir a inclusão do aspecto lúdico.

caracterizam a infância das crianças Capuxu estão estritamente relacionados à organização da comunidade em geral”23. Observa, neste trabalho, que todas as mulheres24 da comunidade são cuidadoras das crianças, e que estas transitam livremente por todas as casas, alimentando-se e banhando-se na casa em que estiverem quando chegam os horários estabelecidos para tais atividades. Depreende-se, portanto, que a exclusão das crianças da sociedade como um todo, e seu isolamento dentro da família nuclear, é manifestação histórica de nossa sociedade burguesa, sintoma da visão da criança como propriedade de seus progenitores, de maneira que os pais exercem uma autoridade absoluta, impedindo qualquer espécie de autodeterminação infantil, de agir do sujeito em prol de sua própria formação e, portanto, de se pensar uma emancipação individual – que, certamente, teria repercussões coletivas.

3. A ESCOLA E A NORMALIZAÇÃO DO SUJEITO “Nossa sociedade depende e sabe que depende do sucesso de seu sistema educacional”.25

A perpetuação da ordem vigente, da exploração do homem pelo homem, da bárbarie enquanto progresso científico e involução humana, depende diretamente do sucesso do sistema educacional em normalizar os indivíduos, e prepará-los com os conhecimentos técnicos – e nada além dos conhecimentos técnicos – que lhes permitam ser úteis aos ideais do mercado. Nesse sentido MÉSZAROS aponta duas funções primordiais da educação dentro do sistema do capital: a de fornecer indivíduos capacitados para serem absorvidos pelo mercado, e a de transmitir valores capazes de legitimar os ideais dominantes.26 O desenvolvimento das escolas ocidentais, tendo como marca principal a valorização da autoridade e da disciplina, juntamente com a especialização e tecnização do ensino, em detrimento de matérias de índole reflexiva, demonstra que os interesses por trás das 23 SOUSA, Emilene Leite de. A experiência com a Infância em uma Comunidade Camponesa na Paraíba. Pag. 215. In: SCHREINER, Davi Félix; PEREIRA, Ivonete; AREND, Silvia Maria Fávero. Infâncias Brasileiras: experiências e discursos. 24 Aqui cabe pontuar que o modelo de família ideal seria igualitário quanto aos papéis de homens e mulheres, e não deixaria a cargo especificamente destas o cuidado das crianças. Não estamos falando de uma sociedade revolucionária, e nesta, também a dominação patriarcal, e não apenas a dominação das crianças, teria de ser abolida. 25 ARIÈS, Philippe. História Social da Criança e da Família. Pag. 193-194 26 MÉSZAROS, István. A Educação para além do Capital.

instituições responsáveis pela educação dos indivíduos, desde a pré-escola até o ensino superior, não se direcionam à emancipação, mas sim à adaptação destes no sistema vigente.

3.1. Disciplina na Escola: Criança Encarcerada

Nas comunidades tradicionais citadas anteriormente, o aprendizado não se concentra em instituições especializadas para tal, assim como também não ocorria em nossa sociedade até meados do século XV. Somente entre os sécs. XV e XVII, quando se experimentava cada vez mais uma burguesia em ascensão, um pequeno número de pedagogos burgueses poderosos, que cada vez mais pretendiam a moralização da sociedade, instituíram um sentimento de infância longa, aprisionada aos limites e muros da escola onde era orientada e disciplinada. A escola se tornou, a partir de então, diretamente ligada às idades. As classes escolares se separaram pelas idades dos alunos, e não mais houve intercâmbio livre de saberes entre as crianças mais velhas e as crianças mais novas; o professor tornou-se o único acesso possível ao conhecimento, ao mesmo tempo em que foi revestido de autoridade, recebendo a função – até então inexistente – de formar moralmente seus alunos. Revestida dessa nova função de formação moral, a escola se tornou instrumento disciplinador; de fato, a inclusão de uma disciplina rígida é a característica essencial da instituição escolar e dos colégios que surgiram à época, e embora os meios de aplicação tenham se modificado, sua essência permanece vigente até hoje. Da mesma forma, foi nessa época em que a escola diferenciou-se pela classe social. Antes, a escolarização era diferenciada pelas funções exercidas, e não pela classe social a qual pertencia o indivíduo. A partir do séc. XVIII, no entanto, esses “homens esclarecidos”, defensores da disciplina, diferenciavam a educação conforme a classe: (Defendia-se) limitar a uma única classe social o privilégio do ensino longo e clássico, e condenar o povo a um ensino inferior, exclusivamente técnico.27

Em suma, a escola retirou a criança do mundo dos adultos, separou-a do convívio social como se esta precisasse passar por uma rígida normalização e adaptação, para só então juntar-se à sociedade, ao meio social. Conjuntamente, a imensa literatura produzida sobre a fraqueza física e moral da infância foi vulgarizada e dedicada aos pais, que se tornaram

27 ARIÈS, Philippe. História Social da Criança e da Família. Pág. 128

também responsáveis por essa educação moral dos corpos e das mentes. Em termos foucaultianos, poderíamos dizer que todo um discurso de moralização dos corpos infantis foi produzido, mas é importante destacar que o controle institucional aqui colocado de modo algum se deu unicamente de forma simbólica: a autoridade dos professores e dos pais tornou-se absoluta, e uma série de castigos – muitas vezes físicos – foram pensados para manter essa autoridade e garantir a adaptação. ARIÈS fala, então, em enclausuramento da infância28, para se referir a essa separação da criança do mundo adulto, criando-se um mundo especificamente infantil – no qual o aspecto central é a escola e a obediência – onde a criança permanecerá até que a sociedade permita – ou até mesmo exija – que dela se faça parte, depois de se responder corretamente ao longo processo de domesticação ao qual foi submetida.

3.2. A Mercantilização da Educação e a Semiformação A função disciplinadora da escola é incontestável ainda na nossa sociedade; através dos uniformes, das cadeiras em fila, da postura correta, do silêncio absoluto frente ao professor e da inexistência da voz estudantil, percebemos a função escolar de normalização, que parece ser central para essas instituições. Mas se a formação de valores está diretamente ligada à internalizar os valores burgueses de moderação e severidade, a transmissão dos conteúdos também não está menos ligado à esses valores. Ainda que se devam diferenciar as escolas de acordo com as classes sociais as quais elas se orientam – uma vez que as condições materiais das escolas públicas são inferiores às das escolas privadas29 - há um movimento geral de nossa educação no sentido de responder às demandas do mercado e, portanto, de formar indivíduos estritamente profissionais, e não intelectuais30. O movimento de se conectar diretamente a escola e até mesmo as universidades às necessidades apresentadas pelo mercado é denominado 'mercantilização da educação'; trata-se a educação como uma mercadoria, e mais do que isso, o indivíduo educado como uma mercadoria. Nesse sentido o conteúdo é ofertado de maneira mecânica, rasa, para ser 28 Ibid. 29 “Quaisquer considerações quantitativas possuem afinal um objetivo qualitativo de conhecimento” (ADORNO, 1995, pag. 139) 30 O intelectual aqui é pensado como aquele indivíduo que possui uma “consciência verdadeira”, capaz de refletir sobre a realidade, a sociedade na qual está inserido, podendo resistir a ela e contestá-la, sem apenas adaptar-se de maneira acrítica.

meramente decorado, simplesmente reproduzido, jamais refletido. Uma educação de tal forma orientada leva a uma semiformação – em termos adornianos – do indivíduo31. Há uma desvalorização do processo de conhecimento, e uma supervalorização em termos de resultado; da mesma forma, isola-se a educação ao âmbito escolar formal, em detrimento da compreensão de que uma educação de qualidade, que se dirige à emancipação dos indivíduos, necessita de um processo contínuo e que vá além das salas de aula institucionalizadas. A autoridade professoral limita, e às vezes até exclui, a possibilidade de uma educação autodeterminada, ou autogestionada. Não há espaço para a reflexão individual, ou para questionamentos; a tradição de avaliações que nossa sociedade apresenta exige que o aluno se adeque aos entendimentos vigentes, caso contrário não será aprovado. Em consonância, há uma extrema simplificação dos conteúdos, bem como uma tecnização deles. A matemática, que poderia ser utilizada como formadora de um complexo raciocínio lógico, é ministrada apenas em termos de fórmulas, excluindo-se completamente seus aspectos reflexivos. O intelecto do indivíduo vai sendo moldado para não questionar, não resistir, não refletir sobre os objetos que lhe são apresentados, apenas observá-los, decorá-los, e reproduzi-los, de forma obediente e precisa. Matérias como a filosofia, a sociologia e até mesmo a história32, são sucateadas, manipuladas, quando não completamente deixadas de lado. As duas primeiras só são ofertadas aos estudantes, no nosso país, quando estes já estão num momento tardio de sua educação, ou seja, no ensino médio – ao qual nem todos tem acesso. Ao invés de se pensar um ensino filosófico que contribua para a formação de uma mente voltada à reflexão, e que, portanto, se faça desde as mais tenras idades, ensina-se a filosofia como uma sucessão de filósofos de outras épocas, como se nada houvesse de interessante para a nossa própria época ou para os indivíduos que a estudam, num momento em que a consciência técnica já está praticamente consolidada. Tal formação da infância resulta, por óbvio, em adultos incapazes de formular por si próprios, de questionar sua realidade, ou até mesmo de enxergar os processos à sua

31 ADORNO, Theodor W. Educação e Emancipação. 32 O passado é ensinado de maneira superficial, em termos de decorar causas e efeitos, datas e lugares. É narrado como uma estória qualquer, tal como se não tivesse acontecido, e completamente manipulado para justificar os valores e os sistema vigente, num processo de 'destruição da memória' sobre o qual ADORNO (1995, pag. 29-50) alerta, identificando-o como a necessidade dos dominadores, de calarem qualquer possibilidade de resistência dos dominados. Também BENJAMIN (1987, pag. 222-232) aborda a importância da história enquanto elemento necessário para o pensar revolucionário, de modo que fica evidente os riscos e os interesses nesse ensino superficial da história.

volta.33Dessa forma, a ciência – num sentido amplo – perde, ela mesma, seu significado, tornando-se algo meramente formal: uma vez obedecidos certos comportamentos e utilizadas certas fórmulas, faz-se ciência, não importando o seu conteúdo. A pedagogia burguesa se orienta, portanto, a partir de uma psicologia rígida da criança e do adolescente, como se ela pudesse conhecer-lhes sua essência; e a partir de uma ética burguesa com interesses claros, de modo a formar indivíduos úteis, cidadãos confiáveis, capacitados a manter o sistema em movimento. Esse método educacional, abstrato e doutrinador, leva eminentemente à barbárie acusada por Adorno e por Benjamin. Mune-se o indivíduo de variadas técnicas, complexas e avançadas tecnologicamente, sem que este tenha trabalhado minimamente uma mente reflexiva. A reprodução da mentalidade técnica inculcada através de anos de disciplina ao indivíduo, leva à utilização destes instrumentos para a melhoria e perpetuação dos mesmos instrumentos, como se estes fossem fins em si mesmos, não enxergando a necessidade de se pensá-los humanamente, ou seja, de que maneira o progresso científico poderia levar a um progresso real e igualitário dos seres humanos. A emancipação dos sujeitos fica, assim, claramente impossibilitada. Não há como pensar em emancipação sem se pensar a modificação do sistema educacional, com a adoção de métodos mais humanos e menos autoritários de formação – e não de semiformação – da mente humana.

3.3. Notas sobre uma Educação Emancipatória “A educação por meio da família, na medida em que é consciente, por meio da escola, da

universidade,

teria

neste

momento

de

conformismo onipresente muito mais a tarefa de fortalecer a resistência do que fortalecer a adaptação.”34

Pensar uma educação emancipatória perpassa pensar para que afinal serve a educação, qual é a sua função, a que ela se destina. Não em termos de para que ela tem servido – 33 Leva, também, à produção de 'intelectuais' que na verdade só fazem reproduzir aquilo que leram em vários autores, incapazes de formular algo orgânico a partir de suas leituras, e que tenha repercussão e ligação com sua época. 34 ADORO, Theodor W. Educação e Emancipação. Pag. 144

assunto que tratamos no tópico anterior – mas sim em termos de para quê ela deve servir. No trecho acima citado Adorno nós dá uma direção: na medida em que nossa sociedade é heterônoma, e nos impõe diariamente de maneira forçada um determinado estilo de vida, – e que portanto a adaptação acaba ocorrendo de forma automática - uma das tarefas fundamentais que a educação parece ter em nosso meio é a de fortalecer no indivíduo a capacidade da resistência, de questionar as imposições dessa sociedade heterônoma e de ser capaz de manter seus elementos individuais apesar das pressões externas para enquadrar-se. A superação da situação de alienação geral requer a formação de uma prática contínua de apropriação dos conteúdos e de reflexão da realidade, que se estenda para além da sala de aula, e que não tenha como fim primeiro resultados em avaliações virtuais que pouco dizem sobre as habilidades desenvolvidas, como é de praxe atualmente. É preciso que se desenvolva nos estudantes a aptidão à experiência, ou seja, a vontade e a habilidade de experimentar, de questionar, de observar; apropriação dos conteúdos faz sentido, assim, quando eles deixam de ser meramente reproduzidos e passam a ser refletidos e realmente compreendidos pelos estudantes. Faz-se necessário para isso, principalmente no campo da infância, que se estimule a imaginação e a espontaneidade. Todas as iniciativas da chamada reforma educacional realista (…) no fundo eram hostis em relação à imaginação. Elas conduzem a uma aridez e até mesmo a um emburrecimento a que precisamos nos opor (…).35

Com uma educação que trata excessivamente do mundo como é, sem pensar, no entanto, nos processos históricos, de modo aprofundado, que culminaram no que ele é, e, portanto, no que ele poderia (poderíamos mesmo colocar em termos de deveria) ser, nossos estudantes não mais vislumbram possibilidades de mudança, e por isso tornam-se adultos que pouco resistem, e muito se adaptam, com uma resignação desolada. Para rumar à desbarbarização, seria necessária uma educação que, embora preparasse o indivíduo para viver em sociedade, não subjugasse suas manifestações individuais frente àquelas convencionadas pela maioria, o que significa que essa maioria deveria ser educada para desfazer-se sem medo (ou ódio) dessas convenções, e, portanto, não preocupar-se com o diferenciado. Só então poderia falar-se em 'emergência do sujeito'; o paradoxal é que essa emergência do sujeito só se coloca possível frente ao desenvolvimento de um senso

35 ADORNO, Theodor W. Educação e Emancipação. Pág. 151

comunitário (ou ao menos de uma tolerância) que ao menos reconheça e respeite a existência do Outro. Quando BENJAMIN fala em uma 'educação proletária'36, afirma exatamente a necessidade de se pensar o mundo de maneira concreta, de ver a criança conforme inserida em sua classe social; a sua educação deve, portanto, servir como meio de resistência aos ideais burgueses que lhes são apresentados, e não de enquadramento nestes. Tanto a tomada de consciência do papel de explorado, quanto a tomada de consciência do papel de explorador, podem levar à contestação da realidade vigente mediante uma educação que se baseie em valores humanos, como aquela que aqui se defende. Essa concretude não se coloca de forma antagônica à imaginação anteriormente citada, pois é importante dizer que quando se coloca a necessidade de observar a realidade concreta, não se está falando do pragmatismo da educação burguesa; a análise do concreto, o reconhecimento da criança com sua classe social, só se faz de maneira positiva exatamente quando ela está munida da imaginação, no sentido de que a percepção da barbárie leve à resistência e ao sentimento da necessidade de mudança, e não àquela adaptação resignada a qual já nos referimos. Nada disso se apresenta como possível se não houver o questionamento da autoridade absoluta em que se coloca o professor frente aos alunos. Não que a autoridade não deva existir: o processo de emancipação é exatamente aquele em que se supera a autoridade de modo que ela é, em determinado período, necessária. Mas ela deve se colocar enquanto uma autoridade meramente técnica, e exatamente por isso, seu fim é o de ser superada; a autoridade técnica tem como função conduzir o aluno à superação dela mesma; a autoridade que se pensa num sistema educacional emancipatório deve ter consciência de sua responsabilidade, e, portanto, não se colocar em termos coativos, mas orientadores. No entanto, MÉSZAROS alerta que pensar mudanças pontuais ou graduais em nosso sistema educacional, de nada adianta sem ter em vista que sem mudanças estruturais gerais, o sistema sempre tratará de enquadrar novamente a educação aos fins que dela se espera 37; assim, pensar um sistema educacional verdadeiramente emancipatório, ainda que seja necessário para se pensar uma mudança real na sociedade, não pode ser pensado separadamente dessa mudança em questão, visto que sem ela, ele não se sustenta.

36 BENJAMIN, Walter. Reflexçoes sobre a Criança, o Brinquedo e a Educação. 37 MÉSZAROS, István. A educação para além do capital.

4. ANÁLISE DO LÚDICO: O ISOLAMENTO E A ALIENAÇÃO DA INFÂNCIA “(...) Onde as crianças brincam existe um segredo enterrado.”38 Entender a importância do lúdico como manifestação central da infância – ainda que certamente não seja a única – leva à problematização do espaço que o lúdico tem ocupado na vida da criança contemporânea, e da maneira como ele tem sido vivenciado por ela. De fato, se existe um momento em que a constituição infantil se dá de forma autodeterminada é o momento do brincar, e a liberdade do brincar se mostra como essencial para a formação de uma consciência emancipada, capaz de questionar o mundo39. O brincar, muitas vezes, reveste-se ele mesmo de questionamento, quando se manifesta enquanto meio infantil de fazer uso da experiência, de apropriar-se do mundo e refletir sobre ele, de transformá-lo à sua maneira.

Entender a ludicidade como essência da infância é pensá-la como invólucro no qual todos os demais aspectos da infância se revestem. (…) ela não ocorre em tempo e espaço reservado necessária e exclusivamente para ela, mas (…) é o fio condutor da infância, permeando todas as ações das crianças.40

Nesse aspecto, é importante ressaltar a centralidade da espontaneidade e da imaginação no brincar, pensando-as como algo que está para além da compreensão dos adultos, e que, portanto, não deve ser controlado ou vigiado por eles. “A prática, por excelência, em que a espontaneidade (…) como propriedade subjetiva se articula e se desdobra é o brincar infantil.”41

4.1. O Lúdico: a História, o Isolamento e a Alienação

Muitos dos jogos e brinquedos que hoje são considerados estritamente infantis, já 38 BENJAMIN, Walter. Reflexões sobre a Criança, o Brinquedo e a Educação. Pag. 142 39 Tanto é assim, que a maneira pela qual se faz terapia com crianças é a chamada ludoterapia; através da interação das crianças com os brinquedos da sala de terapia, livremente, a criança vai aos poucos trabalhando os próprios traumas, através de estímulos e questões oferecidos pelo terapeuta. 40 SOUSA, Emilene Leite de. A experiência com a Infância em uma Comunidade Camponesa na Paraíba. Pag. 215. In: SCHREINER, Davi Félix; PEREIRA, Ivonete; AREND, Silvia Maria Fávero. Infâncias Brasileiras: experiências e discursos. 41 RODULFO, Ricardo. O Brincar e o Significante: um estudo psicanalítico sobre a constituição precoce. Pag. 78

foram divididos de maneira mais natural com os adultos42; o jogo ocupava uma parte muito importante da vida adulta e a socialização entre crianças e adultos acontecia naturalmente através dessa prática. Apenas a partir do século XVII – momento em que há a consolidação daquele sentimento longo da infância, moralizado e severo – é que se começa a entrever uma separação mais rigorosa desses jogos. O brinquedo, portanto, não era especificado ou controlado. Era muitas vezes produção marginal de variadas manufaturas, ou até mesmo produção doméstica; as crianças e os adultos participam juntos de sua confecção, utilizando-se dos refugos provenientes de atividades adultas como a costura, ou a marcenaria. O comerciante de brinquedos é fruto de uma especialização comercial extrema, assim como do isolamento da infância, e essa produção externa e bem definida de brinquedos absolutamente não foi necessária por séculos, para que a infância expressasse seu lúdico. (…) acreditava ser a brincadeira da criança determinada pelo conteúdo imaginário do brinquedo quando, na verdade, dá-se o contrário. A criança quer puxar alguma coisa e torna-se cavalo, quer brincar com areia e torna-se padeiro, quer esconder-se e torna-se bandido ou guarda.43

A partir desse entendimento, que de maneira alguma o adulto pode compreender o mundo infantil e, portanto, produzir os brinquedos que guiarão o brincar infantil, entende-se a ineficácia e o risco das tentativas dessas orientações. É verdade que o colorido, as formas extravagantes e as miniaturas representativas do mundo adulto atraem as crianças, mas o brinquedo não se torna brinquedo em sua produção; o brinquedo só é brinquedo a partir do momento em que se torna instrumento do brincar, só então ganhará sua significação. A questão que se coloca é em que medida essa especificação dos brinquedos é interessante para o desenvolvimento infantil, uma vez que tolhe a imaginação. “(...) jamais são os adultos que executam a correção eficaz dos brinquedos (…), mas as crianças mesmas, no próprio ato de brincar.”44 Caso contrário, o brinquedo se torna uma massa homogênea e estéril do qual a criança não pode apropriar-se; a liberdade do brincar requer destruir essa massa homogênea, contestar a função designada a ela pelos adultos: mas essa atitude tem sido 42 ÁRIES (1981) aponta como a sociedade do Ancien Régime possuía o que ele chama de “brinquedinhos”, que hoje seriam classificadas como “bobagens de criança”, mas que naquela época pertenciam aos adultos. Assim, por exemplo, as bonecas eram frequentemente utilizadas para presentear as mulheres que recentemente haviam se tornado mães, e não os bebês que delas haviam nascido. Da mesma forma, a divisão entre os jogos e brincadeiras que pertenciam às crianças ou aos adultos praticamente não existia: muitos jogos que hoje classificamos como infantis eram jogados também por adultos, e vice-versa. 43 BENJAMIN, Walter. Reflexões sobre a Criança, o Brinquedo e a Educação. Pag. 93 44 Ibid. Pag. 87

premiada, pelos pais e pela escola, com o uso daquela autoridade não-esclarecida, para coagir a criança. Quando Benjamin alerta para os segredos escondidos no brincar infantil, ele indica o caminho para se entender que o brincar é um ato muito mais complexo do que meramente divertir-se; brincar é a maneira pela qual a criança trabalha o mundo que a rodeia, vive esse mundo e forma suas próprias concepções através dele. Poderíamos dizer, com segurança, que o brincar é o experimentar infantil e que, portanto, aquela inaptidão à experiência observada nos indivíduos tanto tem a ver com a tecnização do ensino, quanto com a mecanização do brinquedo. O brincar que constitua uma consciência infantil apta à experiência e que, portanto, mantenha sua capacidade reflexiva e avance rumo ao indivíduo emancipado, precisa ser exatamente o contrário do que o brincar tem sido, ou seja: contestador daquilo que é dado pelos adultos. Todo brinquedo tem sua função previamente dada, e que a criança siga religiosamente essa função, mostra um sinal problemático quanto à capacidade normalizadora da nossa sociedade, uma vez que até mesmo o mundo infantil, incompreendido pelo adulto, acaba sendo por ele controlado. Ainda que não bastasse o controle direto sobre o próprio brinquedo, ao momento do brincar foram criados lugares e horários específicos, perdendo-se a compreensão de que o lúdico permeia todas as atividades desenvolvidas pelas crianças, que ele é o principal meio através do qual ela aprende e forma sua consciência. Isola-se assim a criança do mundo dos adultos, impedindo a ela que vivencie qualquer momento em companhia deles, ou que exerça sua ludicidade sobre os objetos aos quais eles a impedem de se aproximar. Os efeitos desse controle e isolamento da infância são uma consciência mecânica, praticamente incapaz de contestar a realidade dada, e uma dificuldade de adaptação das crianças ao mundo adulto, no momento em que a sociedade exige, uma vez que até então este lhes era completamente alheio.

5.

CONSIDERAÇÕES FINAIS “Se as crianças devem tornar-se um dia sujeitos completos, então não se pode esconder delas nada que seja humano.”45

45 BENJAMIN, Walter citando FRIEDLAENDER. Reflexões sobre a Criança, o Brinquedo e a Educação. Pag. 87

Se tomarmos como tarefa primordial de nossa civilização vencer a barbárie – e essa parece ser, de fato, a principal tarefa que nos apresenta o momento histórico – mudanças profundas nas instituições formadoras da consciência dos sujeitos se colocam como necessárias. Tanto a alteração do modelo familiar opressor, que considera a criança como propriedade dos pais, subjugando-a à autoridade destes e impedindo qualquer participação efetiva dela no processo de sua própria formação; quanto a alteração do sistema educacional mercantilizado e tecnicizado que tem como principal função a adaptação das crianças ao sistema vigente, se colocam como necessários para se pensar a desbarbarização. Uma sociedade pautada na valorização do ser humano, acima do progresso tecnológico, requer a emancipação dos indivíduos que a ela pertencem, e essa emancipação só é possível através da mudança conjunta das instituições (con)formadoras das consciências, e dos meios materiais de existência. Se mostra necessário, para isso, que se conteste a posição relegada hoje pela sociedade às crianças; que se observe que esse isolamento do mundo infantil, a disciplina imposta na escola e controle excessivo sobre todas as tarefas que eram antes realizadas de modo espontâneo pelas crianças, impossibilitam que o sujeito atue na sua própria formação, intereja de maneira livre e produtiva com o mundo que o rodeia; essas impossibilidades colocadas ao processo de constituição e aprendizado infantil, repercutem na consciência do adulto que será formado, deixando sequelas em sua capacidade cognitiva e intelectiva, cuja reversão se revela muito difícil – senão impossível, uma vez que as estruturas mais profundas da consciência, formadas nos primeiros anos de vida, dificilmente podem ser verdadeiramente modificadas. Pensar a questão da falsa emergência do sujeito, relacionada ao processo de suposta “valorização da criança”, que desembocou na alienação geral vivenciada pelos indivíduos, resultado do controle dessas instituições quanto à formação das consciências, inclusive através de discursos que delimitam e procuram estabelecer onde e como deve se fazer o brincar, parece ser a única forma de encontrar uma resposta adequada para a existência da barbárie e, consequentemente, para o enfrentamento desta.

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