EDUCAÇÃO, ESPORTE E CAMPO VALORATIVO: SUBSÍDIOS PARA PENSAR A FORMAÇÃO HUMANA

June 14, 2017 | Autor: Sergio Santos | Categoria: Educação, Esportes, Motricidade humana
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Educação e Esporte: desafios da prática esportiva e educação física na formação cidadã

Educação, esporte e campo valorativo: subsídios para pensar a formação humana Education, sport and valuation: subsidies to think human development Sérgio Oliveira dos Santos* Resumo O texto pretende discutir o campo valorativo nas ações educativo-esportivas a partir da questão: como conduzir as práticas corporais esportivas para configurar uma educação humanizadora? Entendemos que não é problematizando a competição que vamos avançar qualitativamente nas relações inter-humanas e, sim, questionando os modos valorativos que permeiam as ações motrícias vividas na relação educação-esporte. Palavras-chave: educação; esporte; motricidade humana; campo valorativo. Abstract This paper addresses valuation in educational and sporting actions and questions: How can we lead sporting body practices to set up a humanizing education? We understand that the fostering of human interaction depends rather on discussing the valuation of motor actions experienced in the relationship between sports and education than on competition. Keywords: education; sports; human motor skills; valuation.

* Doutorando e mestre em Educação (Umesp), professor de Educação Física e Judô da PMSCS, coordenador do Núcleo de Formação de Judô de SCS e membro fundador da REMoHC (Rede Educativa de Motricidade Humana e Corporeidade), atuando na formação de professores do Cecape (Centro de Capacitação de Profissionais da Educação – São Caetano do Sul). Bolsista Capes/Prosup. [email protected]

Resumen Este artículo analiza el campo de valoración en la acción educativa y deportiva a partir de la pregunta: ¿cómo llevar a cabo las prácticas corporales deportivas ajustadas a una educación más humanizadora? Entendemos que el mejor camino no es seguir cuestionando la competición para obtener cambios cualitativo en las relaciones interhumanas, sino cuestionar los modos de valoración que impregnan las acciones motrícias vividas en la relación educación-deporte. Palabras clave: educación; deporte; motricidad humana; campo de valoración.

Introdução “O desporto é o fenômeno de maior magia do mundo contemporâneo. Façamos dele um fator de humanização” (SERGIO, 2003, p. 217)

Esse ensaio tem como propósito apresentar um modelo interpretativo das práticas esportivas para orientar a formulação de processos educativos da motricidade humana cuja finalidade é o desenvolvimento e emancipação do potencial humano. Nossas problemáticas centrais são: como conduzir as práticas corporais esportivas vivenciadas na educação formal e não formal contribuindo para uma educação humanizadora? Quais objetos valorativos são realizados na forma e na essência das práticas esportivas? Não desejamos problematizar a competição ou desmerecer o potencial educativo do esporte. Discutiremos a possibilidade de orientar as práticas educativo-esportivas a partir da compreensão dos modos valorativos que a permeiam, ou seja, seus valores agregados, seus reflexos e impactos nos campos de ação motrícia, de sentido e significação. Entendemos que os processos valorativos influenciam a energia volitiva1 da ação motrícia e a intencionalidade do praticante, alterando os modos relacionais inter-humanos. As interpretações apresentadas objetivam subsidiar um projeto educativo-esportivo que se justifique como ação formativa crítica, criativa, fraterna, solidária, transformadora e socialmente condizente com a emancipação humana. Apontamos a possibilidade (re)organizativa do campo valorativo das práticas esportivas, numa aproximação com o fundamento lúdico-motrício da natureza ontológica do ato de jogar. Adotamos a ciência da motricidade humana como epistemologia orientadora do processo metodológico fenomenológico-hermenêutico.

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Energia do desejo de mover-se.

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O ser-em-movimento como ponto de partida para um projeto de esporte-educação Por que o ser humano pratica esportes? Qual a ligação da prática esportiva com a formação humana? Para responder a essas questões vamos ultrapassar as espessuras valorativas tradicionais e os saberes ideológicos das instituições de fomento para encontrar a natureza do ser que pratica esporte, ou seja, o ser-em-movimento. O ser-em-movimento é o humano que se move de forma autoconsciente, numa corporeidade em ato, cuja energia volitiva e intencionalidade voltam-se para o mundo circundante, na ação de abertura e permanente construção de possibilidades na condição do ser-no-mundo, na vivência de múltiplas linguagens nas quais circulam múltiplos sentidos (SANTOS, 2014, p. 106). O ser-em-movimento está situado na complexidade que envolve a natureza de suas manifestações e, para elucidar melhor esse fenômeno, adotamos um processo interpretativo a partir dos campos sistêmicos da motricidade 2 do qual queremos destacar o potencial do campo valorativo. A prática esportiva é uma entre tantas outras possibilidades de ser-em-movimento. Sua essência, na relação humana com o mundo circundante, é o jogo. O jogo, por sua vez, tem aspectos muito peculiares do ponto de vista antropológico, ontológico e ôntico. Ele surge como condição humana de maneira mais radical do que qualquer prática esportiva culturalmente construída. O jogo pertence essencialmente à condição ôntica e ontológica da existência humana, em parte por sua aparente conexão com a realidade e em parte por sua condição subjetiva. É, portanto, um fenômeno existencial fundamental (FINK, 1966). Os esportes, nessa linha de compreensão, são jogos estruturados e sistematizados por instituições específicas segundo seus valores, sentidos e ideologias. Essa delimitação é significativamente importante para pensar um projeto de esporte-educação, pois não se pode desconsiderar a relação ôntico/ontológica ser-em-movimento-jogo que antecede a relação ser-em-movimento-esporte. Considerar a essência ontológica do jogo é um caminho para compreender o encantamento que o ser humano tem ao existir na temporalidade desse fenômeno. Aprofundando nossa compreensão sobre jogo e motricidade, destacaremos a autenticidade humana nas práticas esportivas.

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Os campos sistêmicos da motricidade representam unidades sistemicamente estruturadas que orientam um processo interpretativo para os fenômenos da motricidade humana. São eles o campo de ação, o campo do sentido, o campo relacional, o campo valorativo e o campo histórico-cultural-político. Maiores detalhes sobre o conceito dos campos sistêmico pode ser encontrado no artigo “Hermenêutica da motricidade humana” (SANTOS, 2014).

Motricidade humana: linguagem e imaginação no esporte A motricidade humana, segundo Manuel Sérgio (s.d.b., p. 62), é o fenômeno da intencionalidade em ato visando à transcendência. Essa condição é uma importante distinção entre o movimento do corpo analisado pelas ciências naturais e o ser-em-movimento na motricidade humana. O domínio externo da ação motrícia não é isoladamente a referência reveladora da essência do ser em ato intencional. Assim, as práticas esportivas não devem ser analisadas somente pelo que promovem nas ações motrícias visualmente constatadas e mensuradas com instrumentos diversos. É fundamental que as vivências práticas encontrem correspondência compreensiva com os sentidos/significados e seus valores, produtos da intersubjetividade humana. Encontrar outros campos além da ação é ultrapassar a natureza biológica do movimento, evidentemente sem desconsiderá-la. Exemplo disso é o fato de o humano habitar a linguagem e, para desenvolver seu potencial imaginativo e semiótico, valer-se das atividades lúdicas. Esse é um modo de interpretar o sentido para os humanos jogarem, a realização de sua existência na linguagem. Considerar o jogo como realização da existência humana na linguagem possibilita aos projetos educativos lúdico-esportivo-motrícios encontrar outros modos de autenticação da experiência formadora de mundos. Ao adotar essa referência podemos explorar e revelar outros sentidos para a ação motrícia e somá-los aos tradicionalmente propostos, como o desenvolvimento motor, as transformações metabólicas, o combate ao sedentarismo infantil ou a busca de rendimento comparado entre seus praticantes. Acreditamos que a tarefa humana transcendente reveste-se de narrativas muito mais valiosas do que as que estão sendo validadas pelas estruturas educativo-esportivas institucionalizadas. Transcender os condicionantes biológicos para expandir o potencial humano de existência na linguagem, por sua práxis, resulta nas construções de outras narrativas. A consciência humana sobre o si mesmo é fundamento ontológico da natureza do ser-em-movimento e estar em constante processo de construção significa existir em estado transcendente. É na condição de transcendência humana que o jogo e a ludicidade se enquadram e onde habita o poder da imaginação. A imaginação cria e circunscreve o esporte que, se pretende educar, deve levar em conta essa condição, especialmente porque a delimitação do âmbito valorativo é produto da subjetividade humana (SCHELER, 2012, p. 153). Assim, o esporte não é a essência da relação do ser-em-movimento-mundo, é um entre tantos outros modos de viver a corporeidade em 26

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ato produto da imaginação criadora e transcendente. Questioná-lo sobre seus contributos formadores e seus modelos valorativos é um processo natural para quem considera o estado intercambiante dos fenômenos humanos resultante de outros mundos possíveis imaginados. Como o ser-em-movimento é capaz de criar distintos modos de viver a corporeidade em atos esportivos, também são ilimitados os valores e sentidos que se pode imaginar para eles. Por que, então, os projetos educativo-esportivos fecham-se nos modos valorativos construídos pelas instituições federativas para referenciar seus pressupostos? O problema é que os praticantes de esporte, especialmente as crianças e os jovens, a partir de trabalhos que se denominam formativos, estão sendo influenciados e classificados pelos processos valorativos das práticas esportivas institucionalizadas sem uma reflexão aprofundada. Mas não queremos desmerecer o poder educativo do esporte. As práticas esportivas são necessárias à vida humana. Podem e devem ser entendidas como modo de existência do ser-em-movimento por onde circulam as possibilidades de construção de si mesmo, situando os sentidos e significados para desenvolver o melhor do humano no ato intencional. O esporte, como ação humana, será potencialmente educativo se permitir a abertura para que muitos mundos possam dialogar, onde distintas corporeidades em ato, por seus potenciais criativos para a transcendência, não se reduzam a processos validativos que comparem resultados numéricos das narrativas motrícias próprios de processos classificatórios. A contribuição educativa do esporte está intimamente relacionada com nossa predisposição em interpretar seus processos valorativos.

O esporte-educação e o campo valorativo dinâmico O esporte é um fenômeno humano cujos valores e sentidos alteram-se historicamente ganhando outros contornos; assim, não é um fenômeno estático. Está sujeito às transformações que a humanidade vivencia, assim como em muitos outros temas. Suas mudanças mais significativas, no entanto, não estão localizadas no campo de ação, ou seja, na prática em si, nos modos de “saber fazer”, nas ações motrícias especificamente. As mais significativas transformações localizam-se no campo do sentido e no campo valorativo, o que, com considerável consistência, influencia a intencionalidade operante de seus praticantes, ou seja, o próprio campo de ação. Como afirma Ruyer (1969, p. 22) “lo que se hace llega fácilmente a ser sinónimo de lo que es valioso”. Assim, mesmo considerando que as práticas corporais esportivas sofram modificações técnicas e táticas, as mais impactantes alterações históricas pertencem Revista de Educação do Cogeime – Ano 24 – n. 47 – julho/dezembro 2015

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à sua dimensão simbólica e linguística, interpretadas pelos campos de sentido/significado e valorativo. As ações motrícias do campo da ação são formas cujos valores e sentidos estão a caminho de encarnar-se por intermédio da educação. Como, então, interpretar o campo valorativo na motricidade humana? No caso do esporte podemos interpretar esse campo considerando a atribuição de valores que descrevem a natureza do reconhecimento recíproco ante as práticas humanas, aqui delimitadas como motrícias, como: 1) processos de avaliação e distribuição de prêmios em eventos que fomentem as práticas observadas no campo de ação; 2) valores atribuídos, conceitos, notas; 3) torcidas; 4) divulgação de mídia; 5) destaques e elogios (SANTOS, 2014, p. 114). Ou seja, não se trata somente de abordar os valores morais sem desconsiderá-los. Como campo, o processo valorativo cria um entorno que “modela”, segundo seu ordenamento, as ações motrícias. O sentido e o valor são uma espécie de “alma” das formas motrícias. Isso porque “a motricidade atravessa a existência – e a co-existência – como valor” (SERGIO, s.d.a, p. 103). Por que isso é tão relevante para o estudo das práticas esportivas com finalidade educativa? Exatamente porque essa referência hermenêutica amplia nossa compreensão sobre o esporte como evento humano, já que pouco se pergunta sobre os sentidos e os valores que integram as práticas esportivas institucionalizadas. Não há como deixar de compreender quais sentidos e valores pertencem ao campo de ação esportiva se pretendermos situá-lo como projeto educativo, de formação humana fraterna, justa, solidária, não excludente, não discriminatória e preocupada com o desenvolvimento dos modos existenciais da grande maioria de seus praticantes. “É necessário compreender essa realidade em seu contexto de significações e aí propor uma ressignificação de valores, e não uma reprodução do sistema” (MOREIRA; CARBINATTO; SIMÕES, 2009, p. 99). Portanto, a complexidade compreendida nas práticas esportivas exige que adotemos orientações hermenêuticas capazes de elucidar o campo valorativo.

Campo valorativo: emancipação humana ou produção do “fracasso desportivo”? A quem interessa valorar as práticas desportivas com eventos de fomento de natureza classificatória? Deverá o esporte, por sua atual estrutura valorativa de resultados de desempenho, referenciar as práticas educativas que se declaram formadoras e potencializadoras da humanização sem questionamento e compreensão da essência de seus sentidos? São condizentes ou contraditórios os processos valorativos utilizados pelas instituições federativas e as instituições educativas se 28

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adotarmos a práxis transformadora3 como epistemologia de desenvolvimento humano? Que energia volitiva impulsiona a intencionalidade operante dos praticantes esportivos? Adentrar na dimensão prática do ato pedagógico esportivo sem um ato reflexivo que o acompanhe pode desvirtuar as ações educativas da esfera essencialmente humana do ser-em-movimento, já que a prática por si só não é capaz de refletir seus sentidos e valores de modo consciente (CARVALHO, 1998, p. 11). Para desenvolver um projeto educativo em que o habitar humano seja mais fraterno e solidário, temos que ir ao encontro das profundas relações entre a ação, o sentido e o valor das práticas esportivas. É fundamental considerar todas elas como conteúdo de ensino e não apenas colocar os alunos em prática à mercê de valores e sentidos hegemônicos construídos pelos poderes simbólicos dominantes. Esse modelo tende a produzir o “fracasso desportivo” por conta do processo classificatório do sistema esportivo vigente. Toda estrutura educativa precisa iluminar suas referências axiológicas. Deve também considerar as distintas possibilidades corporais, seus espectros próprios de desenvolvimento e as narrativas motrícias ontologicamente propícias à dialogicidade e ao convívio cotidiano colaborativo. Isso porque “o valor ético é uma decisão pessoal de libertação, é um processo de emancipação em que o ser humano visa alcançar a plena realização das suas virtualidades” (SERGIO, 1991, p. 80). Vale destacar, por outro lado, que o conjunto de valores classificatórios, que revelam uns poucos praticantes e obscurecem a grande maioria da escala de reconhecimento, não é estabelecido pelas instituições educativo-esportivas de forma originária. Esses processos valorativos vinculados atendem a um estatuto social mais amplo, ditado pelos paradigmas dominantes apoiados no racionalismo, no positivismo, no empirismo e em outras correntes epistemológicas de fundo (neo)liberal. Nesse sentido, outros valores só poderão circunscrever as práticas corporais educativo-esportivas se forem referenciadas por outros paradigmas. É nesse momento que entendemos ser fundamental a aproximação epistemológica com a Ciência da Motricidade Humana (CMH). Por falar em narrativa, vale perguntar: por que a experiência motrícia do esporte, fenômeno fluídico e evanescente na temporalidade, precisa ser reduzida a um punhado de valores numéricos comparados e classificados em níveis de desempenho? Um jogo deverá sempre ser 3

A práxis transformadora vai além de um simples conceito de prática e aproxima-se do conceito de poiesis, em que a produção está ligada aos processos de criação, de imaginação, de intuição poética e não simplesmente o ato de fazer. ACMH tem claro compromisso com a práxis transformadora, já que surgiu, como ciência, de forma crítica e comprometida. Pereira (2006, p. 183) afirma que a complexidade da motricidade humana pode ser traduzida na relação ação-reflexão-conhecimento-práxis. Assim, com segue a autora, a práxis só se efetiva na dialética da teoria e prática, do agir crítico e consciente.

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valorado pelo número de gols marcados? A corrida só tem valor se a velocidade for cronometrada? Só o ippon é razão valorativa da prática de judô? Serão essas as únicas maneiras de valorarmos as experiências corpo-motrícias das crianças e jovens praticantes de esporte? Serão esses os modelos valorativos mais bem condizentes com a compreensão de que somos seres com distintas corporeidades? Serão esses os modelos valorativos destinados a viabilizar a construção de um projeto educativo potencializador do desenvolvimento humano não excludente? O campo de sentido e o campo valorativo adotados pelas instituições esportivas de fomento, em geral, reproduzem o modelo dominante da antropologia do mais apto e orientam as atividades formativas das crianças e dos jovens em projetos educativos, onde o sucesso do praticante se sujeita as orientações classificatórias. Ele pode até revelar talentos esportivos, mas condena a maioria dos praticantes ao “fracasso esportivo”. Entendemos que o caminho para a construção da práxis transformadora capaz de formar seres-em-movimento mais conscientes e confiantes em seu potencial corpo-motrício, a ponto de não se tornarem corpos-objeto e, sim, corpos-sujeito, é o desenvolvimento de um projeto educativo que considere as práticas esportivas orientadas por outros processos valorativos, outros modos relacionais inter-humanos e outros sentidos/significados simbólicos. Então, quais seriam esses outros modos de valorar as práticas corporais esportivas? Para Trigo e Montoya (2015, p. 122) o esporte deve ser entendido como uma dimensão da motricidade humana que pretende o desenvolvimento das praxias lúdico-agonístico-corpóreo-culturais institucionalizadas e regradas de uma comunidade que se transforma em ato político promotor de diálogos entre os povos da terra. Precisamos preparar os praticantes e professores para atender a esse “chamamento” qualitativo. Acreditamos que os modelos valorativos esportivos podem ser promotores da dialogicidade, da alteridade e da celebração da fraternidade nas interações humanas se forem repensados a partir na natureza do ser-em-movimento que dê validade à diversidade da vida por excelência. A educação esportiva comprometida com a plenitude e dignidade humana (SERGIO, 1976, p. 157) deve potencializar esses valores. Para avançar em direção ao humanismo, um projeto educativo-esportivo deve superar o referencial predominante do quantitativo tecnológico para reconhecer o valor qualitativo humano, categorizar a ação motrícia para além do útil e produtivo para encontrar o bom e o belo (SERGIO, 1977, p. 89). A educação deve ser capaz de ensinar a apreciar os fenômenos da motricidade humana (SANTOS, 2015) e não apenas comparar e classificar performances. Daí resulta um sentido para o esforço empreendido da educação humanizante.

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O campo valorativo do esporte institucionalizado e a construção do si mesmo Se considerarmos a natureza narrativa e semântica, dimensão onde se constrói o sentido das práticas esportivas, a essência do agir no campo valorativo, a competição irrefletida pode criar um poder simbólico cujo fundamento referende a morte simbólica 4 (GASTALDO; BRAGA, 2011, p. 887), fator de impacto para muitos praticantes de esportes que não atendem às exigências de desempenho esperado. A morte simbólica, produto do modo valorativo estruturado pela prática esportiva institucionalizada, traduz a narrativa corpo-motrícia evanescente da disputa, cuja materialização do fenômeno humano do jogo traduz-se em sistema de dados mensuráveis a serem comparados num campo de valor preestabelecido. A materialização da competição-classificação constrói sentidos aos praticantes de acordo com as exigências impostas pelos processos valorativos do rendimento esportivo. Os modos relacionais onde se desenvolvem as práticas de disputa valoradas por processos de desempenho comparado formam referências para um “si mesmo” cuja identidade estrutura-se na superação do outro como valor preponderante (RUBIO, 2008, 41). Depois exigimos de nossas crianças e jovens que considerem o outro e tomem atitudes mais solidárias e fraternas. Julgam-se os procedentes morais do indivíduo que se desvia dessa conduta sem levar em conta o processo excludente do campo valorativo proporcionado. Devemos construir outros mundos valorativos para as práticas esportivas e permitir que os modos relacionais fraternos se solidifiquem como condição natural da própria prática, e não como um esforço individual para atender às tentações de um estado de moralidade no “bom convívio”, mesmo que sua condição seja a de derrotado e desacreditado pelo processo valorativo excludente. Além disso, o próprio processo valorativo defende a “natureza educativa da derrota”, atribuindo ao ser-em-movimento sua incapacidade de atender aos inquestionáveis atributos valorosos do esporte. O esporte pode ser humanizante se permitir a construção do si mesmo vivido em processos dialógicos mais solidários, fraternos, justos e democráticos para a maioria de seus praticantes. Ou será que toda prática esportiva, especialmente as declaradas educativas, deve enquadrar-se na relação clube-competição-resultado ou lucro-prática-bem-estar de poucos (CARVALHO, 1998, p. 21)?

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Esse conceito refere-se ao conteúdo simbólico da derrota sofrida em confronto esportivo representada em níveis distintos de acordo com a modalidade. Manuel Sergio (2003, p. 59) aponta a aproximação das noções de guerra e morte com a gênese do esporte.

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Um projeto educativo-esportivo deve constituir-se em práticas e processos valorativos que tornem seus adeptos protagonistas da construção de sentidos e valores menos excludentes em que as disputas competitivas sejam diálogos corporais e encontros de celebração e festa. Creio que a estrutura valorativa das práticas esportivas com finalidade educacional deva constituir-se como celebração da vida e não referendar a morte simbólica. “A corporeidade no desporto pode buscar viver a vida em abundância” (MOREIRA et al., 2008, p. 143), onde os processos de aferição de desempenho possam celebrar o potencial humano transcendente na construção de mundos dialogantes (SERGIO, 2003, p. 87). Como aponta Feitosa (2014, p. 37) estamos vivendo uma transformação em que parte da humanidade constrói seus processos de valor assentada no paradigma mecanicista, quantitativo e competitivo e outros seres vivenciando e considerando o paradigma da complexidade, da visão sistêmica, dos processos fluídicos, das referências qualitativas criando soluções sustentáveis assentadas na forma cooperativa de viver seu potencial transcendente.

Subsídios para a construção do valor e do sentido da prática educativo-esportiva Com a preocupação constante de construir um projeto educativo-desportivo condizente com o desenvolvimento do potencial humano crítico, criativo, fraterno, solidário, transformador, defendemos a tese de que não basta atuarmos nas atividades práticas do esporte. Devemos interagir com mais intensidade nos processos valorativos, semióticos e relacionais que habitam entrelaçadamente a ação motrícia. Toda prática esportiva tem seus fundamentos técnico-táticos, resultados da construção cultural humana, cujos signos e sentidos pertencem a uma narrativa própria de cada prática; assim, alterá-los poderá descaracterizar sua estrutura. É importante considerar que os gestos esportivos não são apenas movimentos técnicos visando à eficiência; são narrativas reveladoras do modo de ser-em-movimento (SERGIO, 1977, p. 93). No entanto, as adaptações, muitas vezes necessárias para ajustar a prática, podem não alterar os sentidos, os valores e os modos relacionais e pouco contribuirão para uma práxis transformadora. Se, por outro lado, atuarmos de forma consciente nos aspectos semióticos e validativos das experiências corpo-motrícias esportivas, é possível influenciar os componentes da energia volitiva dos praticantes, fundamento da intencionalidade operante e produtora de outro modo de estruturar o campo de ação e, consecutivamente, outros modos relacionais. Para isso necessitamos de outros referenciais epistemológicos. O esporte com propósitos educativos “tem de beber, no humanismo contemporâneo, a seiva de novos métodos; tem de repensar, à luz do 32

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humanismo contemporâneo, a sua forma tradicional de estar-no-mundo” (SERGIO, 2003, p. 65). A CMH tem fundamentos epistemológicos para subsidiar a organização de projetos de educação-esporte voltados ao desenvolvimento humano pleno. A CMH, por sua metodologia integrativa, permite atuar no campo do “invisível”, na dimensão semiótica da ação motrícia e no entrelaçamento ação-validação-sentido, já que não se ocupa da dimensão física da motricidade tão somente, sem evidentemente desconsiderá-la. Isso implica levar em conta a ligação da motricidade com a linguagem. Mas, estão os professores familiarizados com esse modo de pensar a prática educacional esportiva? Estão conscientes de que a ação motrícia vivenciada nas práticas esportivas contém muito mais do que é possível delimitar pela visão e pela mensuração de resultados? Estão, pela práxis educativa, transformando ou reproduzindo as mesmas estruturas valorativas das instituições esportivas que detêm a propriedade de fomento das práticas e suas regulamentações? É necessário encontrar o movimento dentro do movimento para melhor situar um projeto educativo-desportivo com autonomia e consciente de sua função formadora de mundos. Isso porque, mais que uma prática, o esporte deve permitir e possibilitar a construção de um tipo de pertencimento cujo valor esteja estruturado na construção do sentido pleno de existir.

Projetivo educativo-desportivo lúdico-motrício5: um retorno a essência Como alternativa para as questões apontadas, os eventos de fomento das práticas desportivas, vinculadas aos projetos educativos, podem estruturar um espaço-tempo do saber fazer reflexivo fundado no prazer de fazer juntos. Conviver e partilhar a emoção geradora de modos relacionais baseados no respeito mútuo, na colaboração e na coinspiração. Situar as práticas motrícias no respeito a si mesmo e no múltiplo respeito mútuo como fundamento do valor a ser atribuído ao esporte. Todos esses elementos serão destacados se os processos valorativos convergirem para as práticas lúdico-motrícias para fazer valer o “primado do homo ludicus sobre o homo mechanicus, do homem criador sobre o homem procriador (ou repetitivo), do homem pluridimensional sobre o homem unidimensional” (SERGIO, 1977, p. 50). A linguagem do discurso lúdico-motrício tem como essência o rompimento com o real e o estado cotidiano da linguagem originária. Além 5

Estado implicado da motricidade humana na condição onto-semântica, vivida numa temporalidade lúdica e dedicada à vivência e aprendizado de gestos específicos da cultura corporal. Condição que permite o surgimento e potencialização da imaginação criadora, interpretação e compreensão dinâmicas e da vivência corporal multilinguística.

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disso, tal “ruptura” permite um redescrever da realidade. O discurso lúdico-motrício, pelo caráter de estado de metáfora viva, dinâmica e multilinguística, alimenta a imaginação criadora. Ao perturbar a ordem existente no processo valorativo do esporte institucionalizado será capaz de gerar outra gama de sentidos e significados. A imaginação criadora participa ativamente na redescrição do campo valorativo cujos sentidos criados permitem-nos compreender a realidade esportiva a partir de outras referências. Assim, a imaginação valorativa possui a função de construção e reinterpretação do real e, por conta disso, produtora de sentidos que interferem na ação prática. Isto se dá exatamente pela utilização metafórica da linguagem presente na condição lúdico-motrícia, a metáfora da celebração da vida. O estado lúdico-motrício é o espaço-tempo das experimentações das múltiplas intencionalidades, em múltiplas linguagens e em múltiplos sentidos, onde a criança e o jovem, praticantes de esportes podem exercitar o si mesmo na relação com o ambiente e com o outro. A educação esportiva, como práxis corporal transformadora, deve voltar-se à natureza ontológica do ser-em-movimento, permitindo o desenvolvimento de processos lúdicos e criativos construtores do si mesmo, dos modos relacionais e dos espaços de vida onde interatuam os humanos, garantir “a liberdade criadora em busca duma válida expressão humana” (SERGIO, 2003, p. 26).

Considerações finais Diante da diversidade de problemáticas apresentadas, um possível caminho é enaltecer a ludicidade, considerar o jogo e esporte expressão do potencial humano por seu caráter demonstrativo, valorizar a autonomia, a reinvenção, a criatividade e a complexidade, olhando para aquele que joga e não só para o resultado do jogo. Devem habitar a práxis educacional-esportiva os seguintes valores: a predominância do estado lúdico motrício da experiência; a imaginação criadora em detrimento da imaginação reprodutora; as vivências dialógicas como modo de constituir-se na naturalidade das diferenças fundados no pensamento incluinte 6; as relações afetuosas, fraternas e cordiais; a organização situada na motivação e na vontade de participar e de pertencer às experiências de construir o si mesmo com o outro; os estados valorativos produtores de mais humanidade superando os modos classificatórios dualistas para caminhar na direção dos modos dialógicos de convivência; a exploração de múltiplas linguagens e dos 6

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“Pensamento próprio de uma sociedade pluralista, não opõe mas aprofunda e é universal, não é etnocêntrica, e justapõe, não elimina, e reexamina, não separa. Não julga os outros como réus, porque todos somos réus de uma causa que diz respeito à totalidade e não só a meia dúzia de indivíduos” (SERGIO, 2003, p. 228). Revista de Educação do Cogeime – Ano 24 – n. 47 – julho/dezembro 2015

múltiplos sentidos; a diversão, o riso, a alegria, o prazer de estar juntos; os processos valorativos das experiências motrícias como celebração coletiva do sucesso alcançado de formas distintas, por todos, cada qual no seu tempo, cada qual a seu modo, cada qual com sua possibilidade corporal específica. Todas estas fontes primorosas de aproximação dos esportes com outros campos valorativos imaginados são fundamentos que tendem a oportunizar vivências motrícias cujos sentidos convergem em modelos relacionais mais humanizantes.

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