Educação Infantil e currículo: reflexões a partir de diálogos com crianças

July 9, 2017 | Autor: Gabriela Tebet | Categoria: Educação Infantil, Currículo, Pesquisa com crianças
Share Embed


Descrição do Produto

EDUCAÇÃO INFANTIL E CURRÍCULO: REFLEXÕES A PARTIR DE DIÁLOGOS COM AS CRIANÇAS Gabriela G. de C. Tebet1 Flávia Cristina Oliveira Murbach de Barros2 Cícera M. Palmeira 3

Somente ao ouvir e escutar o que as crianças dizem e ao tomar atenção à forma como comunicam conosco é que se fará progresso nas pesquisas que se levam a cabo com crianças, mais do que, simplesmente, sobre as crianças. (CHRISTENSEN e JAMES, 2005, p. XIX).

Algumas palavras sobre Educação Infantil e Currículo

A escola de Educação Infantil é um dos espaços em que se iniciam os primeiros contatos das crianças com outras crianças e adultos não familiares, o que a legitima como desencadeadora de novas relações, sentimentos e conflitos. Nesse sentido, torna-se um lugar em potencial para o desenvolvimento físico e sociocultural dos pequenos. Mas, pesquisas4 revelam que as políticas educacionais ainda carregam a concepção de que a escola de educação infantil é um espaço voltado para o cuidar e o educar, resquícios do movimento higienista (dos séculos XIX e XX) combinada com a efervescência atual de tendências pedagógicas5. Observa-se, então, um currículo atual engessado, idealizado a partir do modelo escolarizante comumente adotado no ensino fundamental, que busca transmitir informações com conteúdos memorísticos e sem relação com o cotidiano e com as necessidades das 1

Doutora em Educação pela UFSCar, Professora de Educação Infantil da Rede Municipal de São Carlos e Gestora do Fórum Paulista de Educação Infantil. 2 Doutoranda em Educação pela UNESP de Marília, Professora universitária, Pesquisadora do Capes e Gestora do Fórum Paulista de Educação Infantil. 3 Mestranda em Educação pela UNESP de Araraquara e Professora de Educação Infantil da Rede Municipal de São Carlos. 4 Vide BARROS (2012). 5 Nesse sentido, o uso de sistema apostilado de Ensino na Educação Infantil é um exemplo ilustrativo. Vide BARROS (2008); NASCIMENTO (2011).

275

crianças, o que expõe sua oposição à concepção defendida pela pedagogia da infância, que concebe a criança como sujeito capaz, que pensa e que deve ter voz e vez. No contexto das práticas escolarizantes, as atividades essenciais para o desenvolvimento da criança pequena como o brincar, o contar histórias, a música, as atividades de expressão e as atividades artísticas são consideradas como atividades secundárias, sem significado maior. A grande preocupação atual em alfabetizar as crianças da educação infantil foi um dos fatores que favoreceu a diminuição de grande parte dessas atividades, consideradas sem valor para a aprendizagem e para as novas necessidades ditadas à escola de educação infantil contemporânea. Refletindo sobre essa lógica e reconhecendo o processo histórico da construção da educação infantil, construímos este texto a partir dos resultados de duas pesquisas realizadas durante os anos de 2007 e 2008, respectivamente nos municípios de São Carlos (com crianças de 1 a 2 anos) e Ourinhos (com crianças de 4 a 6 anos), esta última caracterizando-se como uma pesquisa de mestrado. Ambas as pesquisas se propuseram a investigar como as crianças pensam o espaço da educação infantil. Estes trabalhos consideram que as falas das crianças que frequentam a educação infantil trazem importantes contribuições para o debate acerca da questão curricular. Por considerar que as crianças se utilizam de diversas formas para se expressarem, tais pesquisas optaram por utilizar mais do que uma única metodologia, lançando mão de recursos como o desenho; as rodas de conversas registradas, com a participação das crianças, em folhas de cartolina; conversas gravadas e brincadeiras no parque, além da observação e registro em diário de campo. As duas pesquisas, ambas realizadas em escolas públicas, uma realizada na cidade de São Carlos (com crianças de 1 a 2 anos), e outra na cidade de Ourinhos (com crianças de 4 a 6 anos) mostram diferentes mediações de educadores, porém deixam claro que a prática pedagógica escolarizada incomoda as crianças menores e maiores, justificando a proposta desse trabalho em ouvir as crianças e repensar a pedagogia da escuta como instrumento essencial para a construção de um currículo que atenda às necessidades das crianças da educação infantil,

276

respeitando suas singularidades e possibilidades da construção e planejamento de propostas pedagógicas. Vamos então atentar a ouvi-las, e fazer desse processo de escuta algo reflexivo e transformador.

O diálogo com as crianças

No Brasil, um levantamento realizado por Eloísa Candal Rocha (1999) indicava que poucas eram as pesquisas que tinham as crianças como protagonistas, predominando pesquisas sobre crianças em detrimento de pesquisas com crianças. Este cenário, contudo, vem se alterando, e aos poucos as pesquisas com crianças vêm ganhando espaço na produção brasileira. De acordo com Alderson (2005), a realização de pesquisas com crianças e de pesquisas realizadas por crianças é uma forma de “respeito pelo grupo investigado e pelas suas próprias ideias e capacidades”. Para a autora, “reconhecer as crianças como sujeitos em vez de objetos de investigação acarreta aceitar que elas podem “falar” em seu próprio direito e relatar opiniões e experiências válidas”. (CHRISTENSEN e JAMES, 2005, p. 263). Esta perspectiva de pesquisa vem ganhando projeção em todo o mundo, seja devido ao direito de participação das crianças promulgado na Convenção da ONU sobre os Direitos das Crianças, seja devido aos avanços teóricos dos Estudos da Infância, mas ainda temos um longo caminho a percorrer no que se refere às pesquisas sobre as crianças, suas experiências e culturas. De acordo com Delgado (2003), no Brasil, o campo da Sociologia da Infância tem nos ensinado que as crianças são atores sociais porque interagem com as pessoas, com as instituições, reagem frente aos adultos e desenvolvem estratégias de luta para participar no mundo social. Mesmo assim, ainda necessitamos construir referenciais de análise que nos permitam conhecer esses atores sociais que nos colocam inúmeros desafios, seja na vida privada ou na vida pública. Por ora, e por ocasião da pesquisa em pauta, destacamos a potencialidade da abordagem do Mosaico, proposta por Clark e Moss (2011), que se assenta na composição de diversas metodologias para as pesquisas com crianças. As metodologias adotadas envolveram conversas em momentos e espaços distintos, e desenhos feitos pelas crianças e pelas professoras. Na 277

pesquisa realizada com as crianças de 1 a 2 anos, desenvolvemos atividades tanto no período da manhã, quanto no período da tarde, tanto no interior da sala de atividades utilizada cotidianamente pela turma quanto no parque, a fim de que as crianças não restringissem suas respostas sobre o que havia na creche em função daquilo que lhes fosse visível no momento da atividade. Além de questões sobre o que havia na creche, também perguntamos às crianças o que elas gostavam de fazer quando estavam nessa instituição.

Convém destacar que em uma determinada atividade - em que desenhávamos as coisas que as crianças diziam gostar de fazer na creche -, realizada no parque, as crianças do Maternal lá presentes se aproximaram e participaram da conversa, dando também suas opiniões. Oliveira (2001) também relata uma experiência semelhante, na qual durante um procedimento de pesquisa com uma criança específica, outras se aproximam e participam da conversa. Para a autora, “a entrada de outras crianças na conversa, bem como o conteúdo de suas falas, 278

conferem com as colocações de Ferreira (1998:35) de que 'os significados das figurações do desenho da criança são culturais e produto das suas experiências com os objetos reais mediadas pela palavra e pela interação com o 'outro'”. Por meio desta pesquisa pudemos observar que as crianças, de fato, produzem cultura e vivem sua relação com o mundo de um modo extremamente criativo, mesclando fantasia e realidade. Tais conclusões tornam-se ainda mais evidentes quando observamos alguns diálogos e registros feitos pelas professoras no decorrer das atividades propostas e transcritos a seguir. Em um determinado momento do projeto, fizemos uma roda de conversa no parque, da qual participaram também crianças do MI, além das crianças do BIIA, inicialmente envolvidas nessa pesquisa. Nesta ocasião perguntamos às crianças:

Professora: - O que vocês gostam de fazer na creche? R. (MI): - Brinquedo. I. (MI): - Eu também gosto de brinquedo. Professora: - De que brinquedo você gosta? I. (MI): - Do Batman. Do Homem-Aranha. PROFESSORA: - Mas tem Batman aqui na creche? E Homem-Aranha? I. (MI): - Na minha casa tem. PROFESSORA: - Mas e na creche, I... O que você gosta de fazer? O que você faz aqui na creche? I. (MI): - Faz lição. PROFESSORA: - É mesmo? E como é a lição? I. (MI): - De letrinha. PROFESSORA (agora voltada para outro grupo de crianças): - O que você gosta de fazer na creche? W. (BII): - S A L I N H A!!!!!! (Gritou rindo e pulando) PROFESSORA: - E você, K.? O que você gosta de fazer na creche? K. (MI): - Sei lá! L. (MI): Olhava pensativo, mas também não respondeu a questão. PROFESSORA (para G.): - Você gosta de vir na creche? G. (MI): - Gosto! (e sorriu) PROFESSORA: - O que você gosta na creche? G. (MI): - Do João. A. (MI): - A creche... Eu gosto! G. (MI): - Eu gosto da minha casa! E de chiclete. Eu gosto da creche também!

279

I. (MI): - Eu gosto de chiclete. PROFESSORA: - Mas tem chiclete na creche? I. (MI): - Minha mãe vai comprar. (...) Eu gosto de desenhar na creche. PROFESSORA - E você I.? (Virando-se para outra criança): O que você gosta na creche? I. (BII): Dolores (Referindo-se à sua professora do período da manhã). Professora: - L., o que você gosta de fazer na creche? L. (MI): - Dormir! ... E comer comida! As falas das crianças do MI indicam que elas não vêem a creche como um lugar ruim e indicam que elas gostam de lá, mas quando esta busca se aproximar do modelo escolar, antecipando o processo de escolarização das crianças pequenas (marcado, dentre outras coisas pela salinha, pela lição e pela expectativa de um modo específico de ser, de se comportar, etc.), as experiências vividas em outros espaços se tornam muito mais significativas do que aquelas vividas na instituição de educação infantil. Tal afirmação pode ser comprovada observando-se que quando perguntamos o que gostam de fazer na creche, as crianças mudam de assunto e respondem-nos de coisas que têm em suas casas, em outros espaços, ou simplesmente não respondem. Já a pesquisa realizada com crianças maiores (de 5 a 6 anos), utilizando-se das mesmas metodologias, principalmente a relação dialógica com as crianças, também mostra a relação da escola como não prazerosa quando se remete a modelos escolares. Há de se considerar que a rede municipal de educação infantil de Ourinhos adota um sistema apostilado de ensino para as crianças a partir de 2 anos numa perspectiva de educação infantil que não considera as contribuições da pedagogia da infância, ao contrário, pauta-se numa perspectiva mais tradicional de ensino.

P1: Crianças, vou dar revistas agora para vocês recortarem letras. Um dos alunos, que reclamava que queria ir ao parque, lamenta: CRIANÇA T..: - Ah, não... (abaixou a cabeça). As crianças queriam olhar as figuras das revistas, mas quando começaram a fazer isso, a professora disse: P1: - Não se prenda nas fotos, C. É pra achar as letras.

280

Segundo Barros (2009, p. 123), “essas atividades passam a ser priorizadas e as atividades essenciais e potencializadoras do desenvolvimento infantil - tais como: brincar, o contar histórias, além das atividades de expressão e artísticas, e outras atividades lúdicas - não são levadas em conta.” A atividade lúdica, no período pré-escolar, tem função primordial, visto que é o momento em que as crianças podem vivenciar e experienciar. Afirma Mukhina:

Na atividade lúdica, o pré-escolar assume um papel determinado e atua de acordo com esse papel. A criança está disposta a assumir o papel de uma fera selvagem ou de um cavalo, embora geralmente desempenhe o papel da mãe, da educadora, do motorista ou do aviador. No jogo a criança descobre pela primeira vez as relações entre adultos, seus direitos e deveres. (MUKHINA, 1996, p. 156).

A atividade lúdica é essencial para o processo de aprendizagem da criança, oportunizando construir relações com o universo cultural, o que provoca mudanças cognitivas e sociais. Temos que ouvir as crianças, e procurar atender suas necessidades para que alcancem maior nível de desenvolvimento. O exemplo a seguir mostra mais uma vez como algumas tarefas escolarizadas e engessadas as incomodam: [A aluna nova folheava a apostila, parecia não entender aquilo. Olhava as figuras, observava, até que ela achou uma aranha e me mostrou (a aranha que ela desenhava na parede da outra escola)]. PESQUISADORA: - O que você está achando da apostila? Não respondeu com palavras, mas com gestos negativos. CRIANÇA C.: - Eu não gostei da mão (mostrando a figura da apostila). PESQUISADORA: - Da mão? Da apostila? CRIANÇA C.: - É. PESQUISADORA: - Por quê? CRIANÇA C.: - Ah, não sei (mostrou suas mãos). PESQUISADORA: - Você acha que tinha que ser diferente? CRIANÇA C.: - É. (Mostrou como se ela tivesse desenhado a sua própria mão, comparando que aquela da apostila não era parecida com a sua).

281

Esse exemplo mostra a importância de saber ouvir a criança, sua expressão, seu gesto, e o quanto ela está mostrando ser crítica em relação ao material apresentado a ela, fazendo comentários autônomos e críticos. Outro diálogo com uma criança de 5 anos nos revela outros dados interessantes: CRIANÇA W.: - Você sabia que tenho nome de anjo? CRIANÇA W.: - É W... CRIANÇA W.: - E você sabia que a gente tinha uma outra professora que pulava as lições da apostila? (Falando da professora substituta). PESQUISADORA: - É...? CRIANÇA W.: - Ela pulava, porque ela falava que ficava cansada da apostila. PESQUISADORA: - O que ela fazia? CRIANÇA W.: - Dava o caderninho. CRIANÇA W.: - Sabia que eu sou o melhor aluno da sala. Eu gosto de estudar. PESQUISADORA: - E o que mais você gosta de fazer na escola? CRIANÇA W.: - Estudar. PESQUISADORA: - E brincar, você gosta? CRIANÇA W.: - Não, eu gosto de estudar. Outra criança, que estava ao lado, entra na conversa. CRIANÇA V.: - Eu gosto de estudar e de brincar. PESQUISADORA: - E quando vocês brincam aqui na escola? É todo dia? CRIANÇA V.: - Quase todos, mas acho que não é não. CRIANÇA W.: - Porque a gente precisa fazer a apostila. CRIANÇA V.: - E o caderno também. PESQUISADORA: - E vocês fazem a apostila todo dia? Balançam a cabeça, positivamente. PESQUISADORA: - E quando é o dia do brinquedo? Vocês fazem a apostila também? Balança a cabeça, positivamente. CRIANÇA W.: - A gente faz a apostila e depois brinca, vamos pro parque. PESQUISADORA: - E os brinquedos? Onde vocês brincam com eles? CRIANÇA W.: - Se o brinquedo for grande, a gente pode levar pro parque e se for pequeno, não. PESQUISADORA: - Por quê? CRIANÇA W: Porque o grande dá pra ver, e o pequeno a gente pode perder. O uso do material apostilado afeta essencialmente a própria forma como os professores passam a lidar com as crianças, engessando

282

suas potencialidades como mediadores, e deixando de ofertar às crianças vivências enriquecedoras ao seu desenvolvimento. Moruzzi e Tebet (2008: 61) afirmam que a escola da criança pequena deve buscar um modelo que não se caracteriza nem como a casa, nem como a escola, nem como a enfermaria, nem como a prisão. “A escola que preconizamos deve se aproximar de uma oficina, de uma usina de transformação, invenção cujos conteúdos centrais sejam ampliar as possibilidades da experiência da infância, tendo a brincadeira e o pensamento como elementos fundantes desse projeto”. Importante destacar que no caso da pesquisa realizada com as crianças menores, as professoras, mediadoras do processo educacional, possuem concepções de criança capaz, que tem voz e vez, respeitando suas singularidades, diferente da pesquisa com as crianças maiores, em que a educadora pesquisada restringe suas práticas a atividades escolarizadas e normatizadoras. O que chamou a atenção, ao longo da pesquisa realizada com as crianças de 1 a 2 anos, foi a importância dada pelas crianças às relações que elas estabelecem com os animais. Os passarinhos, assim como os peixes, foram elementos que apareceram inúmeras vezes nas falas das crianças. PROFESSORA: - O que tem na creche para a gente desenhar?

Criança W.: - O peixe! PROFESSORA (sem entender muito bem, pois na creche não existe nenhum aquário com peixes): - Tem peixe na nossa escola? A Criança W. se dirige para uma das paredes e aponta um cartaz com um desenho do fundo do mar e diz: - Aqui, apontando um peixe. A professora desenha o peixe na cartolina. PROFESSORA: - O que mais tem na nossa creche? Criança R. balbucia algo querendo participar da conversa, mas não foi compreendida. Criança M.: - Piu-piu. Criança W.: - Passarinho. Professora desenha um passarinho e pergunta: - O que mais tem na creche? Criança M.: - Peixe. Piu-piu. PROFESSORA: - Tem peixe e o que mais? Criança M.: - Passarinho (e corre apontar na parede, figuras de pássaros). Criança W.: - Vou fazer um passarinho (e rabisca na cartolina, um passarinho). PROFESSORA: - E lá fora? O que tem lá fora? 283

Criança W.: - Tem parquinho! PROFESSORA: - O que tem lá fora, D.? Conta para a gente! Criança M.: - Tem parque. PROFESSORA: - E que é que tem no parque? Vamos desenhar? Criança M.: - Não sei. PROFESSORA: - Não sabe? Tem... Criança W.: - Tem passarinho! Todos: - Êêêêêêêêêê!!!!!!! - Todos ficaram felizes e fizeram uma festa. PROFESSORA: - Vamos desenhar mais passarinhos, então. Criança W.: - Tia, eu vou desenhar um passarinho! Ele voa assim, ó: (e sai correndo pela sala com os braços abertos).

Cartaz confeccionado durante a atividade descrita.

Esse diálogo entre a professora e as crianças nos permite algumas reflexões. A primeira questão que nos chama a atenção diz respeito à 284

valorização dada pelas crianças aos cartazes colados pela sala. Para os pequenos, aquelas imagens não são meramente decorativas, elas compõem o ambiente e em diversos momentos mesclam-se à realidade. Por meio de belos cartazes, com animais, paisagens, etc., a creche pode oferecer às crianças diversas possibilidades: de criar, inventar, explorar, viver experiências diversas das que vivem em outros espaços, além de potencializar o espaço com a identidade dos pequenos. Moruzzi e Tebet (2008: 61) destacam que a inventividade nos obriga a uma mudança de foco e de orientação. Para as autoras, “a educação acontece a partir da criança e com ela.” Este parece ser o recado transmitido pelas crianças da creche em que trabalhamos: a escola de educação infantil é muito mais que um aglomerado de espaços organizados pelos adultos para atendê-las, é um espaço que é ressignificado e apropriado pelas crianças diariamente, de tantas formas quanto lhes pareçam pertinentes. O espaço da educação infantil é um lugar de brincar com os passarinhos, de ver peixes, aviões. Um lugar de encontrar as professoras e os amigos, de criar e inventar e viver a infância na sua plenitude.

Algumas Considerações

Buscamos com este trabalho compreender a visão que as crianças têm do espaço da educação infantil que frequentam, considerando sua lógica própria na interpretação da realidade. Entender a relação das crianças com o mundo, percebendo-as como sujeitos ativos no processo de construção de conhecimento acerca da instituição educacional em que estão inseridas, e dessa forma compreender que elas nos dão o suporte da construção de um currículo a ser construído juntamente com elas. Ambas as pesquisas mostraram a relevância de se ouvir as crianças em todas as suas linguagens, seja pela linguagem oral, pelos gestos ou pelas diversas expressões infantis, dando voz e vez a elas. Na primeira instituição, as crianças menores possuem educadoras que realizam mediações importantes, escutando suas necessidades e apontamentos. Na segunda pesquisa, encontramos uma educadora que não sabe ouvir as crianças, como também está envolvida pelo sistema engessado da escola de cumprir metas e tarefas, escolarizando, assim, as atividades. 285

Nesse sentido podemos encontrar um consenso entre os dois trabalhos: ambos mostram que as crianças da educação infantil revelam insatisfação diante de atividades escolarizadas. Esse já é um pequeno indício do que precisamos mudar em nossos currículos atuais, e repensar sobre a construção do currículo emergente, pautado numa pedagogia da infância e feito com as crianças. Para a realização de um trabalho significativo com as crianças pequenas (de 0 a 6 anos), é extremamente importante construir um currículo que não se faz „para‟ a criança, mas sim „com‟ a criança. Assim podemos reconhecer que essa proposta curricular que emerge com a pedagogia da infância é:

[...] uma abordagem na qual a importância do inesperado e do possível é reconhecida, um enfoque no qual os educadores sabem como “desperdiçar” o tempo ou, melhor ainda, sabem como dar às crianças todo o tempo que necessitam. É uma abordagem que protege a originalidade e a subjetividade sem criar o isolamento do indivíduo, e oferece às crianças a possibilidade de confrontarem situações especiais e problemas como membros de pequenos grupos de camaradas. (RINNALDI, 1999, p. 114).

Essa nova concepção de educação das crianças encaminha o trabalho pedagógico a partir da escuta da criança em todos os sentidos, ou seja, ir além dos ouvidos, compreender cada gesto, cada olhar, cada expressão, cada uma de suas diversas linguagens e, consequentemente, como ela realiza o processo de leitura do mundo. Nessa perspectiva, nosso trabalho se direcionou em dar voz e vez à criança, reconhecendo a relevância da pedagogia da escuta, ouvindo-a em todos os sentidos, compreendendo um pouco como a criança percebe a escola e suas relações. Quando ouvimos nossas crianças com todos os sentidos, em suas diversas formas de linguagens, passamos a elaborar um currículo com as próprias crianças, potencializando por meio da mediação do professor atividades significativas ao desenvolvimento das crianças em uma perspectiva humanizadora. A escuta “é um dos elementos estruturantes da comunicação humana e da educação, voltada para uma relação de reciprocidade.” (RINALDI, 1999, p. 1).

286

Pensar a Educação Infantil com as crianças pequenas é estabelecer uma relação em que crianças e professores constroem juntos suas experiências, e ambos aprendem. Todos têm conhecimentos a ser compartilhados, e todos têm o que dizer sobre a instituição em questão principalmente as crianças! Só nos cabe encontrar as formas de melhor dialogar e aprender com elas. Afinal, como diz Richard Bach: “Nós todos somos aprendizes, fazedores, professores”.

Referências Bibliográficas

ABRAMOWICZ, A. Especial sobre infância. In: Sociologia, Ciência & Vida, ano II, n. 17, 2008. ALDERSON, P. As Crianças como Pesquisadoras: Os efeitos dos direitos de participação sobre a metodologia de pesquisa. Educ. Soc., Campinas, v. 26, n. 91, p. 419-442, maio/ago., 2005. BARROS, F. C. O. M. de. Cadê o brincar? Da educação infantil para o ensino fundamental. São Paulo: Cultura Acadêmica, 2009. BARROS, F. C. O. M. de. Cadê o brincar? Da educação infantil para o ensino fundamental. 2008. 220f. Dissertação de Mestrado em Psicologia. Faculdade de Ciências e Letras de Assis, Universidade Estadual Paulista, Assis, 2008. _______. Qual o sentido da escola da Educação Infantil pelas crianças? Algumas questões norteadoras. I Congresso Internacional da Teoria-Histórico-Cultural. “Teoria Histórico-Cultural em foco: Perspectivas (Inter) Nacionais”. Universidade Estadual Paulista, Marília, 2012.

CHRISTENSEN, P.; JAMES, A. Pesquisando as crianças e a infância: culturas de comunicação. In: ____________. (Orgs.). Investigação com crianças: perspectivas e práticas. Escola Superior de Educação de Paula Frassinetti. Porto. 2005. CLARK, A.; MOSS, P. Listening to young children: the mosaic approach. 2. ed. Londres: NCB, 2011. DELGADO, A. Infâncias e crianças: O que nós adultos sabemos sobre elas? Disponível em: Acesso em: 20 de agosto de 2008.

287

DELGADO, A.; MÜLLER, F. Em busca de metodologias investigativas com as crianças e suas culturas. In: Cadernos de Pesquisa, v. 35, n. 125, maio/ago., 2005. EDWARDS, C.; GANDINI, L.; FORMAN, G. As cem linguagens da criança. Porto Alegre: ARTMED, 1999. JAMES, A; JENKS, C; PROUT, A. Theorizing Childhood. New York: Teachers College Press, 1998. JAMES, A.; PROUT, A. Constructing and Reconstructing Childhood: contemporary Issues in the Sociological Study of Childhood. London and New York: RoutledgeFalmer, 2007a (1. ed. 1997). MORUZZI, A.; TEBET, G. Construindo Infâncias. In: Sociologia, Ciência & Vida, ano II, n. 17, 2008. MUKHINA, V. Psicologia da idade pré-escolar. São Paulo: Martins Fontes, 1996. NASCIMENTO, M. L. B. P. Políticas públicas, pequena infância e agência: pode-se pensar numa convergência? XI Congresso Luso Afro Brasileiro de Ciências Sociais. Universidade Federal da Bahia, PAF I e II, 2011. OLIVEIRA, A. Com olhos de criança: O que elas falam, sentem e desenham sobre sua infância no interior da creche. Disponível em: . Acesso em: 23 de agosto de 2008. OLIVEIRA, F. Sociologia da Infância. In: Sociologia, Ciência & Vida, ano II, n. 17, 2008. RINALDI, C. A escuta visível. In: I Taccuini, n. 7, Maio de 1999. Tradução de Suely Amaral Mello para uso em sala de aula. TEBET, G. O que dizem crianças de 1 a 2 anos sobre a creche que frequentam? In: Anais do 17º COLE, Campinas, 2009. Disponível em: TONUCCI, F. Com olhos de criança. Porto Alegre: Artes Médicas, 1997.

Como citar este texto: TEBET, G; BARROS, F; PALMEIRA, C. Educação Infantil e currículo: reflexões a partir de diálogos com crianças in: SANTOS NETO, J. (org.) Um horizonte chamado educação: perspectivas e caminhos. São Carlos: Pedro & João editores, 2013.pp. 275 - 288.

288

289

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.