Educação Infantil: mostra a tua cara

July 14, 2017 | Autor: Mônica Samia | Categoria: Educação Infantil
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ENSAIO EDUCAÇAO INFANTIL: MOSTRA A TUA CARA! Mônica M. Samia1 Privilegiada é a criança que tem espaço para ser criança. Privilegiada é a criança que é ouvida e acolhida por adultos sensíveis. Privilegiado é o adulto que tem espaço no seu coração para ouvir e aprender com as crianças. Adriana Friedmann

A história da Educação Infantil no Brasil pode ser compreendida a partir da análise de dois momentos bem distintos, que “justificam” a sua existência e, consequentemente, norteiam concepções e práticas vigentes ao longo do tempo. O primeiro momento, que corresponde ao surgimento do atendimento à criança pequena, refere-se à criação das creches, de cunho assistencialista. Inúmeros trabalhos foram publicados nesse sentido e este não será o ponto de partida desse ensaio2. Deste movimento histórico, decorrem concepções ligadas ao cuidado e à proteção, sendo a creche um serviço assistencial de apoio às mães trabalhadoras. Com o advento da teoria da “privação cultural”, cunhada nas décadas de 1970 e 1980, as creches se consolidariam em espaços para atender crianças de famílias com condições sociais precárias, prestando um serviço de caráter compensatório. A ideia de déficit foi o ponto de partida para o início de um trabalho que se convencionou chamar de “educativo”, no sentido de haver propostas que visassem o desenvolvimento das crianças que, na época, era realizado a partir de atividades de desenvolvimento cognitivo e preparação para a alfabetização, tendo como referência as possíveis limitações da criança, ou seja, pautado em uma representação da criança como um ser com limitações deficiências (OLIVEIRA, 2011). Com os avanços nos movimentos de trabalhadores, as creches ligadas a entidades particulares se proliferaram e, a partir delas, iniciaram-se os debates sobre a necessidade de oferecer um serviço ligado ao desenvolvimento cognitivo, emocional e social das crianças, aproximando-se de uma visão de educação formal. Culminando esse processo, a própria Constituição de 1988 reflete o movimento de repensar as funções sociais da creche. Ela reconhece a creche como uma instituição educativa, “um direito da criança, uma opção da família e um dever do estado”. Tal concepção se opõe à visão tradicional da creche como uma dádiva, como um favor prestado à criança, no caso à criança pobre e com funções apenas 1

A autora é coordenadora da Linha de Formação de Educadores e Tecnologias Educacionais da Avante – Educação e Mobilização Social e doutoranda em Educação na Universidade Feder da Bahia. 2 Como fonte de referência cito o livro: Creches, crianças, faz de conta e cia, em que as autoras retomam o histórico das creches no Brasil. Capítulo 2 – p. 23 a 33.

assistencialistas de substituição da família. A creche passa a ser um direito de toda a criança, independente de sua origem socioeconômica e instituição responsável, junto com a família, pela promoção do desenvolvimento das crianças, ampliando suas experiências e conhecimentos. (OLIVEIRA, 2011, p.29)

Este movimento marca o segundo momento a qual nos referimos e traz mudanças profundas, com o advento da Educação Infantil como direito da criança e espaço de aprendizagem. Com isso, do ponto de vista governamental, o atendimento de crianças de 0 a 6 anos - na época - migra da Assistência para a Educação. Em 1986, a Lei de Diretrizes e Bases – LDB corrobora essa tendência ao incluir esse segmento como primeira etapa da Educação Básica. A partir de então, todas as políticas educacionais e os documentos norteadores aderem a essa definição, culminando com a recente publicação das Diretrizes Curriculares Nacionais/2009, que em seu artigo 5º define: A Educação Infantil, primeira etapa da Educação Básica, é oferecida em creches e pré-escolas, as quais se caracterizam como espaços institucionais não domésticos que constituem estabelecimentos educacionais públicos ou privados que educam e cuidam de crianças de 0 a 5 anos de idade no período diurno, em jornada integral ou parcial, regulados e supervisionados por órgão competente do sistema de ensino e submetidos a controle social.

Mais recentemente, a obrigatoriedade do atendimento das crianças de 4 e 5 anos, definida pela Emenda Constitucional 59, de novembro de 2009, vem aproximar ainda mais a Educação Infantil da educação formal e do Ensino Fundamental. É neste campo que este ensaio deseja centrar suas colaborações, trazendo provocações e reflexões acerca dos ganhos advindos desse processo histórico e dos riscos e consequências já presentes a partir desse processo de aproximação, ou porque não dizer, de não desvinculação com o Ensino Fundamental ou com a educação formal. Aqui não se pretende esgotar a questão, ao contrário, apenas trazer um recorte, um olhar possível para a imensa variedade de fatores que incidem sobre a forma como a Educação Infantil se concretiza nos espaços da educação pública do país. Compreender quais foram os avanços, quais são os paradoxos e que reflexões ainda precisam ser feitas é essencial neste contexto, em que se questiona a identidade da Educação Infantil e se reconhece a necessidade de um avanço neste sentido. Em primeiro lugar é preciso deixar claro quais são os ganhos, pois eles refletem uma posição de reconhecimento da importância desse processo no fortalecimento desse segmento. Foi a partir desse “lugar” na educação que a Educação Infantil conquistou, por exemplo, financiamento próprio (com o FUNDEB/2007), embora se reconheça que ainda são muitas as conquistas necessárias nesse campo, tendo em vista a insuficiência dos aportes financeiros.

Também houve inúmeros avanços em termos de concepção. A começar pela concepção de criança como sujeito de direitos, que é o “carro-chefe” de toda a mudança legal. Atualmente, todos os documentos tem essa referência como ponto de partida, o que significa dizer que a Educação Infantil deve ser concebida como um espaço para a criança no presente, que tem direito à infância e ao que é próprio dela, não como um espaço de preparação para o futuro, e isso inclui o futuro escolar. Outro ganho da inclusão da Educação Infantil na Educação Básica refere-se à formação dos profissionais que atuam nesse segmento, em especial o professor. Segundo dados do INEP (2003; 2010) em 2002, apenas 22,5% dos professores que atuavam neste segmento tinham cursado o ensino superior completo; em 2011, o percentual subiu para 56,9%. Esses dados revelam que há um grande caminho a percorrer, mas também apontam para o reconhecimento da necessidade de um novo patamar de habilitação e este é um passo essencial já dado, que impacta na qualidade da educação oferecida. Houve ainda indiscutíveis avanços do ponto de vista dos documentos legais e de orientações para a qualidade do atendimento. Desde 2006 a produção é crescente e pode-se dizer que serve de referência inclusive para outros países. Alguns desses documentos são: Referenciais Curriculares para a Educação Infantil (1998), Política Nacional de Educação Infantil (2006), Parâmetros Nacionais de Qualidade da Educação Infantil (2006), Parâmetros Básicos de Infraestrutura para instituições de Educação Infantil (2006), Critérios para um atendimento em creche que respeite os direitos fundamentais das crianças (2009) e os Indicadores de Qualidade na Educação Infantil (2009), Diretrizes Curriculares Nacionais - revisada (2009). Ou seja, não se trata aqui de questionar o lugar ocupado pela Educação Infantil na Educação. Trata-se de refletir e indagar sobre como esse lugar pode e deve ser ocupado, mantendo-se as especificidades que lhe são próprias. Explico: considero relevante compreender porque a identidade da Educação Infantil ainda é tão fragilizada e porque muitas práticas estão alicerçadas em modelos oriundos do Ensino Fundamental. A realidade aponta que a migração da assistência para a educação, em um contexto em que a formação de profissionais e as condições materiais e estruturais era muito frágil, dificultou a construção de um segmento com características próprias, com fazeres e linguagem adequadas e coerentes com os aportes legais e teóricos, e com a própria concepção de criança que se configura na contemporaneidade, ou seja, com as especificidades necessárias ao atendimento das crianças de até 5 anos de idade. Nota-se um aprofundamento dessa crise, que é ainda maior no que tange ao atendimento às crianças de até 2 anos, pois nessa faixa etária há uma especificidade ainda maior a ser considerada, por se tratar de uma atuação junto a bebês. Portanto, muito tem se falado sobre as razões pelas quais ainda há na Educação Infantil, tantos vestígios de caráter assistencialista. Este texto vem trazer uma abordagem complementar, pautando uma reflexão sobre as marcas do Ensino Fundamental presentes na Educação Infantil e problematizando as consequências

desta situação, especialmente para a vida das crianças. Como a própria palavra diz, esse ensaio provoca a possibilidade de ir além, convoca a pensar sobre os possíveis caminhos para que a Educação Infantil encontre marcas identitárias próprias. Mas essa é apenas uma escrita exploratória, que aponta alguns elementos de reflexão. Mas por hora é preciso compartilhar as evidências que concretizam essa problemática. Essas evidências são fruto de várias experiências profissionais como especialista e pesquisadora da área, que proporcionam vasta leitura e participação em seminários e palestras, bem como o contato com pesquisadores e com movimentos de diversas naturezas, vinculados à causa da primeira infância, como o Movimento Interfóruns de Educação Infantil no Brasil – MIEIB e a Rede Nacional da Primeira Infância – RNPI. Mas a maior fonte de análise está ligada à minha Itinerância como formadora em projetos sociais na área3 e em projetos de formação ligados ao Ministério da Educação (Proinfantil), a redes públicas e em universidades como a Universidade Federal da Bahia - UFBA e a Universidade Estadual da Bahia – UNEB. Destaco, para esse trabalho, dois depoimentos pessoais, de situações observadas nessa trajetória e já compartilhados no projeto de seleção para o doutorado nessa universidade, além de narrativas e trechos de registros de professores que, a meu ver, também evidenciam essa fragilidade identitária e revelam forte aproximação da Educação Infantil com o modelo do Ensino Fundamental. Primeiramente meus depoimentos: DEPOIMENTO 1: Coordeno um projeto de formação continuada4 para profissionais da Educação Infantil em 5 municípios5 da região Nordeste com população entre 200 mil e 1 milhão de habitantes - sendo estes capitais ou regiões metropolitanas -. Atende cerca de 150 coordenadores ou técnicos, mais de 1.000 professores e quase 18 mil crianças. O primeiro eixo abordado na formação iniciada em setembro/2010, foi o "Brincar" que consta como atividade estruturante em todos os documentos norteadores do país. As Diretrizes Curriculares Nacionais para Educação Infantil - DCNEI, no seu Art. 9º delibera: As práticas pedagógicas que compõem a proposta curricular da Educação Infantil devem ter como eixos norteadores as interações e a brincadeira (grifo nosso) garantindo experiências que: I - promovam o conhecimento de si e do mundo por meio da ampliação de experiências sensoriais, expressivas, corporais que possibilitem movimentação ampla, expressão da individualidade e respeito pelos ritmos e desejos da criança.

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Coordeno o projeto Paralapracá, de formação continuada de profissionais de Educação Infantil, em 5 municípios do Nordeste, envolvendo mais de 1000 professores e 18 mil crianças. 4

O PARALAPRACÁ é um projeto do PROGRAMA EDUCAÇÃO INFANTIL do INSTITUTO C&A, que tem como finalidade contribuir para a melhoria da qualidade do atendimento às crianças que frequentam instituições de Educação Infantil, através de duas linhas de ação complementares e articuladas: (1) a formação continuada de educadores e (2) o acesso a materiais de qualidade, tanto para as crianças quanto para os educadores. 5

Feira de Santana (BA) , Jaboatão dos Guararapes (PE), Teresina (PI), Campina Grande (PB), Caucaia (CE).

O monitoramento do projeto evidencia que, a despeito destas orientações - presentes neste e nos demais documentos -, as práticas destas redes e de muitos destes professores está orientada por outros referenciais, na maioria dos casos muito distantes do que consta nestes marcos legais e nas orientações curriculares. As crianças tem pouco tempo disponível para brincar, e parte desse tempo refere-se ao “recreio”, prática relacionada ao modelo do Ensino Fundamental. O registro da assessora de Caucaia/CE na ocasião da formação com o eixo do Brincar é indicadora dessa realidade, que é similar nos outros 4 municípios: Esse eixo abriu todas as portas que ainda estavam entreabertas para as questões lúdicas na escola. Sinto que na verdade, ele deixou os professores mais conhecedores desses saberes, mas também mais à vontade para utilizarem as brincadeiras e promoveram o entendimento que a criança tem esse direito garantido por lei na escola. As coordenadoras ficaram mais seguras ao responderem aos pais sobre as ações de brincar na escola, muitas relatam fatos ocorridos depois da entrada do eixo Brincar. “Agora quando os pais perguntam pelas tarefas eu digo com mais tranquilidade que elas acontecerão na escola e que as crianças podem e devem brincar. Muitas vezes passo o vídeo nas reuniões, até eles entenderem!” Por essa fala, que não foi só dessa coordenadora, mas de muitas outras, percebemos que elas ficaram mais seguras para fazerem as propostas do Brincar no projeto; antes sentiam medo de dizer que estavam “brincando” com as crianças! O processo formativo com este eixo as deixou mais conhecedoras dos direitos das crianças.

DEPOIMENTO 2: Uma pesquisa empírica que realizo em todas as instituições de Educação Infantil que visito em Salvador e em outras regiões do Nordeste e até mesmo do Brasil, consiste no seguinte: - Ao chegar nas salas, sempre pergunto às crianças o que elas estão fazendo. Na grande maioria dos casos a reposta oscila entre "tarefa" ou "dever". Mesmo quando estão fazendo um desenho livre, ilustrando uma história, jogando ou fazendo uma produção artística. Isto só não acontece quando estão brincando. - Por outro lado, ao conversar com os professores e analisar seus discursos, uma das palavras mais ouvidas é "trabalho". Ao perguntar o que estão fazendo, na maioria das vezes respondem: "Estou trabalhando com música" (e não: estou cantando); "estou trabalhando com histórias" (e não: estou contando histórias); "Estou trabalhando com arte" (e não: estamos pintando). O volume de vezes em que as palavras "trabalho" e "tarefa" aparecem nas instituições é assustador e revelam uma certa abordagem e "modus operandi" muito próximos aos processos de escolarização que são característicos do Ensino Fundamental.

Esta constatação empírica tem se fortalecido ao longo do tempo, à medida que tenho outras experiências. Recentemente, ao ler uma série de registros de prática isso se evidenciou mais uma vez, revelando a força da palavra “trabalho” para designar as práticas pedagógicas, o que revela a posição que o professor ainda ocupa, suas concepções e o sentido que muitas vezes as crianças e os professores dão ao que se fazem, revelando fortes marcas de escolarização. Como para este trabalho não houve pedido prévio para uso dos registros das professoras, estes estão provisoriamente sem identificação:

“Partindo daí veio o interesse de trabalhar com os alunos o livro que tem o título: Maria vai com as outras que retrata a história de uma ovelha que não tinha determinação em sua vida e só fazia o que as outras ovelhas faziam!” “Nossas crianças gostam de trabalhar com tintas, pinceis, massa de modelar... por isso, o eixo Artes foi e (continua) especial. Lasar Segall foi o artista que escolhemos para trabalhar por ser um grande contribuinte das artes plásticas no Brasil (...) Os trabalhos produzidos corroboraram nossa hipótese de que sob condições materiais e ambientais adequadas, nossas crianças produzem trabalhos artísticos.” “Tendo como finalidade um ambiente harmonioso, aconchegante e utilitário, organizamos nossa sala de aula com espaços destinados ao trabalho com a leitura, o brincar, o educar e o cuidar. Selecionamos um espaço para os brinquedos e as fantasias, todos dispostos à altura das crianças para que elas tenham acesso. Outro destinado à leitura (com tapete e livros numa prateleira de leituras infantis), a conversa e também a atividades audiovisuais. Um espaço maior ficou destinado às cadeiras e mesas, visto que esses instrumentos são utilizados pelas crianças na hora da refeição. As crianças exploram a sala e os espaços a elas destinados, mostrando independência e suas preferências, participam das aulas e das rodas de conversa, assistem vídeos dirigidos aos temas das aulas, assim como para o lazer. O ambiente ficou adequado ao trabalho infantil e mesmo tendo na instituição uma sala de leitura, o espaço da sala é mais acessível ao dia a dia das crianças. Os pais perceberam a mudança da sala e elogiaram.”

Além dos registros, as narrativas orais dos professores também são muito reveladoras de suas concepções e de como estes aproximam e naturalizam a linguagem e o modo de fazer do Ensino Fundamental, trazendo-os para a Educação Infantil: “Meninos, nossa aula hoje é sobre...” “Crianças, vamos voltar para a sala de aula.” “Gostaram da atividade?” “Hoje vamos trabalhar com a música...” “Precisamos realizar um projeto interdisciplinar...” “Os pais pressionam muito para que haja dever de casa.”

No depoimento abaixo, a professora revela um esforço de dar “novos ares” à atividade que realiza, mas demonstra claramente a não compreensão de conceitos e princípios básicos de uma abordagem social, coerente com as orientações curriculares da Educação Infantil: “Os alunos da turma do infantil V realizaram uma atividade de linguagem com o tema: as vogais. Na ocasião foi solicitado que os mesmos rasgassem pedacinhos de revistas e fizessem bolinhas para colocar nas vogais feitas em papel sulfite. A atividade teve como objetivos principais: o desenvolvimento da coordenação motora ampla e o estímulo da criatividade e ainda a interação com o grupo e a professora.”

Assim, do ponto de vista da linguagem, “sala de aula”, “dever”, “trabalho”, e até “livro didático”, são apenas algumas das muitas palavras utilizadas de forma

recorrente no ambiente da Educação Infantil, e são sinais claros de um segmento que ainda carece de uma identidade própria. Em relação à da prática pedagógica, o que se observa são muitas evidências desse processo de escolarização. Algumas delas são: a forma de planejar a rotina a partir de “aulas”; a estruturação da rotina com pouco tempo dedicado ao brincar, especialmente ao brincar livre; a ênfase à aprendizagem da leitura e escrita em detrimento de outras linguagens importantes ao desenvolvimento, como a das artes em geral; a compreensão da dissociabilidade do educar e do cuidar, marcadas inclusive pela divisão de atribuições do professor e dos “auxiliares de classe”; a organização dos espaços que muitas vezes privilegiam as atividades de suporte de papel; etc. Infelizmente, até mesmo nos berçários algumas dessas marcas podem ser observadas. Chamo atenção para um movimento recente, mas que cresce vertiginosamente no país, relativo à compra de livros didáticos para a Educação Infantil, investimento muitas vezes prioritário nas redes de ensino, em detrimento da compra de brinquedos ou de outros recursos desta natureza. Como consequência dessa abordagem, vemos crianças “aprisionadas” em um sistema que nega o corpo, as suas necessidades mais básicas, seu direito de manifestar desejos e ritmos próprios, como o do sono, pois há tempo definido para tudo; crianças submetidas a uma rotina de até 8 horas sob o comando dos adultos que organizam aulas ou tarefas para cada momento. Que planejam tarefas a serem realizadas e só veem sentido no brincar se houver uma intencionalidade pedagógica. Por outro lado, nas instituições em que a identidade da Educação Infantil está mais “afinada” com o que versam os teóricos contemporâneos da infância e os documentos norteadores, a criança é o “centro do planejamento pedagógico”, o que significa dizer que são escutadas, respeitadas em suas individualidades e a lógica do planejamento está afinada com as peculiaridades da faixa etária. Portanto, não há sentido em planejar aulas em que todas as crianças fazem a mesma coisa ao mesmo tempo, sob o comando de um adulto. A escola é um espaço de intencionalidades, mas essas respeitam o modo próprio de ser das crianças em cada uma das suas fases de vida, o que significa compreender que na creche – até 3 anos – há também uma distinção ou uma especificidade que se difere da pré-escola – 4 e 5 anos -, pelas características de cada etapa de desenvolvimento. Na busca de compreender porque há tantas marcas do modus operandi do Ensino Fundamental na Educação Infantil, destaco aqui o problema da falta de formação específica dos professores. Na minha experiência, embora reconheça que são várias as questões aí implicadas, como: as condições estruturais e físicas; as orientações das políticas municipais; as expectativas dos pais e o próprio “fracasso” dos processos de escolarização, especialmente o de alfabetização, que tencionam e “jogam” para a Educação Infantil a responsabilidade pelo seu início; o fator acima citado a meu ver, é o que mais incide e agrava a situação.

Não há no Brasil, ainda instaurada, uma tradição de formação de “educadores da infância”. Os cursos de Pedagogia têm uma abordagem, em geral, generalista, que, quiçá, trata de forma superficial um ou outro aspecto relativo à educação das crianças de 4 e 5 anos, e muito raramente traz algum aporte sobre a práxis relativa às crianças de até 2 anos. Além disso, nas políticas municipais e na representação dos próprios professores; como há pouco reconhecimento social em relação à Educação Infantil, em especial para professores de creche, muitos optam pelo Ensino Fundamental, ou suas motivações para esse segmento são de caráter pessoal, como revela uma professora ao assumir: “buscava um trabalho que me desse menos stress.” É comum ainda, que nas redes, os professores ditos como menos qualificados, incluindo estagiários, assumam esse segmento. Por essas e outras razões, a busca por essa identidade, que não representa a homogeneidade de práticas, mas um atendimento do que é próprio para a infância, precisa ser problematizada, refletida e consolidada. Aqui, mais uma vez, não se trata de defender um modo único de fazer a Educação Infantil, mas múltiplos modos que tenham como critério a coerência entre o que os adultos pensam que é uma educação de qualidade para crianças e o que de fato é. No âmbito da disciplina “Educação, sociedade e práxis pedagógica”, optei por trazer essa problemática, pois acredito que está diretamente relacionada às questões que formulamos ao longo do semestre, sobre como a concepção de escola está vinculada aos movimentos da sociedade, sobre quais são as representações de escola que temos e sobre nossas concepções de práxis pedagógica. O compromisso de pensar a escola pela ótica da criança me conduziu à escolha da temática deste ensaio. Este é um compromisso de alma, e é no encontro de almas que caminham em causas semelhantes que encerro esse texto, Quando defendo um lugar para a voz das crianças e outro para a compreensão dessas mensagens por parte dos adultos, quero enfatizar a urgência de determos, por alguns momentos, a tempestade, o trovão que o mundo externo massificado vem troando para paralisar a essência profunda de cada um de nós; a urgência de retomar contato com nosso ser mais profundo, com nossas imagens interiores, ao nos vincularmos às imagens expressivas das crianças à nossa frente; a urgência de ouvi-las e ouvirmo-nos para ressignificar, recriar, transformar os nossos cotidianos de forma mais significativa e digna. (FRIEDMANN, 2011, p.31)

REFERÊNCIAS: BRASIL, Ministério da Educação. Secretaria de Educação Básica. Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil. Brasília: MEC, SEB, 2010.

FRIEDMANN, Adriana. Paisagens infantis: uma incursão pelas naturezas, linguagens e culturas das crianças. Pontifícia Universidade Católica. Tese de Doutorado em Ciências Sociais. São Paulo: 2011. MACHADO, M. Lúcia de A. (org.) Encontros de desencontros com a Educação Infantil. São Paulo, Cortez, 2008. OLIVEIRA, Zilma de M.R. et al. Creches, crianças, faz de conta e cia. Petrópolis: Vozes, 2011.

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