Educação moral em Walter Benjamin e Donald Winnicott

May 26, 2017 | Autor: Carlos Cesar Barros | Categoria: Human Rights, Recognition, Walter Benjamin, Moral Education, Donald W. Winnicott
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EDUCAÇÃO MORAL EM WALTER BENJAMIN E DONALD WINNICOTT Carlos César Barros – UEFS

O presente artigo desenvolve uma intuição que se apresentou ao autor na preparação de um projeto de pesquisa. A busca por diferentes textos que orbitavam em torno de uma temática central confrontou dois títulos semelhantes em pensadores, a princípio, de universos diferentes. Em 1913, Walter Benjamin (1892-1940), então jovem estudante alemão, por volta dos 21 anos de idade, escreveu O Ensino de Moral. Donald Winnicott (1896-1971), psicanalista inglês renomado, publicou o texto Moral e Educação cinquenta anos depois, em 1963, quando tinha em torno de 67 anos. O que aproxima e o que distancia esses dois textos escritos em épocas diferentes, tanto na história quanto na etapa de vida de cada autor, em culturas diferentes e por autores raramente citados juntos? Teria alguma utilidade esse confronto teórico ou ele resulta apenas em um prazeroso experimento mental para quem a ele se dedica? Começamos afirmando haver uma considerável proximidade entre as ideias dos dois autores e, apesar de bases culturais tão diferentes, podemos ver nas distâncias mais complementaridade que lonjura. Veremos como eles apresentam a antinomia ou o dilema da educação moral, sua proximidade com o tema da religiosidade, sua incompatibilidade com uma sistematização didática e, por fim, como oportunizar experiências práticas e estéticas seria um possível caminho para o quase impossível ensino de moral. Mais que desfrutar da leitura e dos desdobramentos desta no brincar com ideias e conceitos, analogias e semelhanças, escrever este texto é uma forma de começar a construir uma realidade com as afinidades, aqui eletivas, entre os autores. Ainda como elaboração conceitual transicional, tais semelhanças se pretendem um ponto de origem para desdobramentos teóricos e empíricos mais complexos no que vislumbramos como imagem por vir de uma psicologia atenta às possibilidades de um campo educacional comprometido com o reconhecimento dos direitos humanos e a construção de uma realidade eletiva, vinculada a uma racionalidade efetiva, que revele os arcanos do inteiramente outro (Matos, 1989).

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Dilema da educação moral Quantas vezes nos perguntamos sobre os caminhos éticos de nossos tempos? Quantas notícias terríveis nos chegam todos os dias? Quantas cenas lamentamos presenciar! Nossas esperanças na existência de seres humanos melhores definham nas pequenas decepções do dia a dia, na impossibilidade de acreditar que governantes, religiosos e educadores ainda possam transformar algo de significativo, isso quando não são os próprios que exemplificam o oposto do que dizem ou deveriam defender. Como melhorar a vida prática ou as relações éticas entre as pessoas? Que caminhos seriam possíveis para uma educação que queira cumprir os princípios com os quais se comprometeu: educar para a paz, para o respeito à diversidade, para reconhecer os direitos de todas as pessoas? Em uma de nossas tentativas para sistematizar algumas respostas a essas perguntas, deparamo-nos com temas psicológicos explícitos nos itinerários propostos pela Declaração Universal ou mesmo por reflexões educacionais que abordam as contradições e violências contemporâneas: A educação e o ensino […] são meios imprescindíveis para se chegar a um fim almejado internacionalmente: o respeito a direitos e liberdade de todos. […] O que teria a Psicologia a ver com a educação para os direitos humanos? Buscaremos demonstrar que ela é imprescindível, até mesmo 'inerente', diga-se de passagem. (Barros, 2013, p. 21).

Um estudo sobre documentos que abordam a educação para os direitos humanos e a educação para todos aponta para temas psicológicos como: desenvolvimento de uma personalidade moral, de valores, sentimentos e atitudes humanitários; construção de uma identificação com o outro e consigo mesmo como uma pessoa digna de respeito; proporcionar boas relações interpessoais e grupais por meio de instituições e comunidades acolhedoras que respeitem as diferenças, os direitos de todos e transformem a sociedade. Mas também nos deparamos com as contradições do direito (Agamben, 2004) e da humanização quando estudamos o desrespeito e a desumanização que atingiram dimensões catastróficas no século XX e em nossos dias, construindo um cenário que torna imperativa uma “educação contra a barbárie” (Adorno, 2000). Nesta, busca-se evitar a repetição irrefletida da violência social, possibilitando uma elaboração do passado, processo para o qual a Psicologia poderia muito contribuir estreitando

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relações com a educação moral. Ao debruçarem-se sobre questões semelhantes, nossos autores, Benjamin e Winnicott, chegaram à conclusão de que, por mais desejável que seja uma educação moral, ela é praticamente irrealizável. É justamente nesse quiasma entre nossas reflexões e as deles que encontramos um “por onde começar”... Benjamin afirma que “a finalidade da educação ética é a formação da vontade ética” (Benjamin, 1913b/2002, p. 13). O problema que então se coloca diz respeito à inacessibilidade de tal vontade, transcendente nos termos de Immanuel Kant (2008), pois não temos como saber empiricamente se atingimos ou não a vontade ética de alguém. Ou seja, o ponto fundamental da educação moral, a base forte por meio da qual se poderia alavancar uma ciência da educação ética, é impalpável para o educador ou para a ciência da educação: “se o ensino de moral tem realmente como meta a formação ética do estudante, então ele se encontra perante uma tarefa irrealizável” (Benjamin, 1913b/ 2002, p. 15). Ao buscar uma ancoragem filosófica em Kant, Benjamin destaca que para uma ação alcançar o bem moral não basta estar em conformidade com uma lei ética, mas acontecer por causa dessa lei. Ou seja, fazer o bem deve ser a única motivação ou interesse. De nada adiantaria fazer algo que parece bom se houver alguma motivação que não seja apenas fazer o bem. Recorre, ainda, a Fichte e Confúcio para destacar a eticidade como uma forma da vontade que precede e se mantém vazia em relação aos conteúdos morais. Se partimos dessa premissa de eticidade como fundamento da moral, chegamos com Benjamin à conclusão de que o trabalho com conteúdos éticos organizados a posteriori, com a finalidade de desenvolver a vontade ética enquanto forma (a priori), não é uma tarefa possível. Winnicott (1983), por sua vez, enfatiza o fato de que a educação moral só faria sentido quando a criança já desenvolvera a capacidade de ter um senso moral. Caso contrário, seria inútil buscar ensinar ideais pela razão ou pela força. Ele exemplifica com o caso do "reitor Keate que disse a uma criança: ‘Você acreditará no Espírito Santo às 5 horas desta tarde ou a espancarei até que o faça’”. (Winnicott, 1963/1983, p. 89). Segundo a argumentação winnicottiana, a educação moral só é possível quando não mais necessária, pois o senso moral já foi constituído na criança. A base teórica de Winnicott para a constituição do senso moral é bem diversa daquela de Benjamin para pensar sobre a vontade ética. Se este defende que não há nada

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de psicológico na intenção ética, Winnicott afirmará a necessidade de existência de fenômenos psicológicos como o sentimento de culpa e a capacidade para estabelecer ideais na base do senso moral. Em oposição à metafísica kantiana se coloca a psicanálise. Entretanto, o argumento de que os conteúdos éticos caem num vazio moral caso não esteja ainda formada a vontade ou senso moral, mantém-se ainda como um denominador comum. A educação moral, portanto, conduz a uma antinomia ou dilema: precisamos nos formar como seres humanos éticos, transferir valores construídos ou por construir para nossas crianças, mas isso não é possível se já não se formou uma vontade ou um senso moral. De onde, então, viria essa base ética? As abordagens que Benjamin e Winnicott fazem do papel da religião na formação humana podem nos ajudar a compreender uma base comum à gênese da moralidade apesar de, ou graças a, diferenças significativas entre os autores.

Educação moral e religião As dificuldades teóricas em lidar com a educação para o bem, ou seja, para a vontade ou senso moral, aproximaram nossos autores do tema da religião. Em verdade, o texto de Benjamin se propõe, desde o princípio, a abordar a possibilidade de diálogo entre educação moral e o problema da educação religiosa. Tema que o interessava muito naquela época. Winnicott também discute educação moral fazendo uma aproximação com a teologia e com a função da educação religiosa. Veremos, nesta seção, como Benjamin aborda a questão da vontade, intangível para a pedagogia, como um tema vinculado à eticidade da comunidade religiosa. Por sua vez, Winnicott aproxima o senso moral da possibilidade de “crença em”, uma expressão intencionalmente incompleta que designa mais uma ação que seu conteúdo, um pré-requisito psicológico para a religiosidade. Não é difícil perceber a analogia entre a “vontade” transcendente benjaminiana e o “acreditar em” winnicottiano. Contudo, basear a formação moral nesse além da sistematização ética nos levará a novas contradições. A formação da vontade, no modelo que Benjamin nos apresenta, é um processo de aceitação da eticidade pela comunidade. O que seria tal eticidade? Podemos recorrer a uma fonte que explica a diferença entre os usos dos termos Moralität (moralidade) e Sittlichkeit (eticidade) em alemão. Segundo Inwood (1997), “moralidade” diz respeito à

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moral individual, enquanto “eticidade” se refere à moralidade coletiva. A moralidade já implica a autoconsciência característica do homem da era moderna, enquanto a eticidade se associa à ética da antiguidade grega, ao cotidiano da comunidade e seus hábitos e rituais. Ainda esclarecedor é o seguinte trecho sobre a escolha do termo “costume” (Sitte) por Hegel: ele escolhe o termo “costume” [Sitte] com cuidado, a fim de deixar claro que nem as leis prescritas pelo Estado nem as convicções morais dos sujeitos isolados, mas os comportamentos praticados intersubjetiva e também efetivamente são capazes de fornecer uma base sólida para o exercício daquela liberdade ampliada. (Honneth, 2003, p. 41)

Sem entrarmos nas instigantes questões que o hegelianismo poderia trazer ao tema da eticidade, para não sairmos de nosso caminho argumentativo, interessa-nos apreender que o termo carrega consigo a noção de lei que não é nem estatal, nem do indivíduo isolado, mas decorrente das relações entre as pessoas. Não seria estranho ao pensamento de Benjamin se invocássemos, tal como a Antígona de Sófocles, as leis dos deuses que foram dadas ao povo e não caberiam no Estado tirânico de Creonte. Esta noção clássica ilumina o sentido do termo “eticidade” clareando o seguinte argumento de Benjamin: o modelo da “plasmação” do ético é aquele da educação religiosa na comunidade, porque esta converte a norma em uma ordem empírica legal: Enquanto hoje em dia multiplicam-se por toda parte as vozes que consideram eticidade e religião como esferas fundamentalmente independentes, a nós parece que apenas na religião, e tão somente na religião, a vontade pura encontra seu conteúdo. O cotidiano de uma comunidade ética é plasmado de maneira religiosa. (Benjamin, 1913b/2002, p. 15).

Entendemos com isso que a vontade ética se forma no cotidiano, no convívio e nos rituais diários, de forma tácita, não como uma educação racional. Eticidade, tal como a religiosidade para Benjamin, emana do estar a sós com Deus. Ou melhor, é algo que não pode ter mediação, trata-se de uma relação direta com o amorfo: “o mais elevado no homem é o amorfo e deve-se evitar plasmá-lo senão mediante uma ação nobre” (Göethe citado por Benjamin, 1913b/2002, p. 15). A dificuldade que se coloca para o filósofo da educação moral consiste em que, como fato religioso, a eticidade opõe-se à análise minuciosa. Tal oposição esclarece, mas ao mesmo tempo reforça, a antinomia da educação moral.

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Winnicott aborda o senso moral como uma possibilidade de compreensão da construção intersubjetiva da moralidade. A discussão terminológica alemã não aparece em seu texto, mas podemos perceber que ele não tem a mesma preocupação comunitária com a formação da eticidade que tem Benjamin. Consideramos aqui que ele fala prioritariamente sobre a “moralidade”, já que aborda o processo interno e a formação de um superego pessoal (Winnicott, 1963/1983, p. 89). Seria possível, no entanto, afirmar que Winnicott se preocupa com o que seria a eticidade benjaminiana, mesmo que não em primeiro plano, caso possamos compreender que ela esteja contida no conjunto do valioso e complexo conceito de “ambiente” em Winnicott (Araújo, 2006). Nesse cenário, pode-se compreender melhor o “senso moral” winnicottiano em diálogo com as noções benjaminianas. O que Winnicott afirma ser um pré-requisito da religiosidade, da ideia de Deus, é a capacidade de “crença em”: Eu me apego a esta frase feia, incompleta, crença em. Para completar o que foi começado, alguém deve fazer a criança acreditar naquilo que nós, nesta família e nesta porção da sociedade, e atualmente, acreditamos. Mas este processo de completar é de importância secundária, porque se não se chegou à “crença em” então o ensino de moral ou religião é mera pedagogia keatiana e é geralmente visto como censurável ou ridículo”. (Winnicott, 1963/1983, p. 89).

O psicanalista ainda critica a religião por falar sempre do mal original e nunca da bondade. A educação religiosa corre o risco de, ao rotular algo como mau ou demoníaco, esvaziar as possibilidades da criatividade individual por conta de censuras ou medos internalizados: “praticar psicanálise por trinta anos me fez sentir que é a ideia ligada à organização da educação moral que esvazia o indivíduo de sua criatividade individual”. (Winnicott, 1963/1983, p. 90). Com suas diferenças ao abordar as possibilidades da construção da eticidade, nossos autores apresentaram uma abordagem possível daquela vontade ou senso moral que estão na base do ser ético. Nas relações cotidianas que podem preencher o senso moral infantil, construído a partir do sentimento de segurança e de crença em, é que se adquirem os valores éticos. Talvez daqui surjam indicações de soluções para alguns dos paradoxos da educação moral, mas certamente os autores concordam com a incompatibilidade entre educação moral e formalismo didático. Não podemos, portanto, esboçar possibilidades antes de passar por esse importante obstáculo!

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Educação moral versus sistematização didática O didatismo é o principal inimigo da educação moral. Nisso certamente convergem Benjamin e Winnicott. O primeiro afirma que “impõe-se a conclusão: uma vez que o processo de educação ética contradiz, por princípio, toda racionalização e esquematização, então ele não pode ter nenhuma afinidade com o ensino didático”. (Benjamin, 1913b/2002, p. 14). O segundo, como vimos, rejeita como censurável ou ridículo tentar forçar ideias morais em quem ainda não desenvolveu seu próprio senso moral. Veremos nesta seção como, para além da falta de afinidade com a educação didática, a educação moral ainda carrega consigo os perigos de embotar os sentidos éticos ou, ainda, de estabelecer uma relação falsa da pessoa com seu si-mesmo, fenômeno que Winnicott chamou de “falso self”. Afirmações de tamanha magnitude são imprescindíveis e nunca devem ser deixadas de lado quando estivermos, mais adiante, pensando nas potencialidades da educação moral. Um primeiro argumento de Benjamin, ao criticar o didatismo, se aproxima da pedagogia keatiana mencionada por Winnicott. Buscar substituir a motivação da vontade ética por exemplos racionalistas desconsidera amplamente a já enfatizada necessidade da eticidade como pré-requisito da moralidade. Também o filósofo apresenta uma situação artificial do ensino da ética quando se pretende incutir o amor ao próximo em uma criança ao descrever-lhe, durante o café da manhã, o trabalho das muitas pessoas graças às quais é possível agora saborear os alimentos. Pode ser um tanto triste que a criança receba tais percepções da vida apenas numa aula de moral. Mas essa exposição só impressionará uma criança que já conheça a simpatia e o amor ao próximo. E ela só vivenciará estes sentimentos na comunidade, nunca em uma aula de moral. (Benjamin, 1913b/2002, p. 16).

O trecho citado destaca que nem o mandamento cristão, nem a crítica da alienação do trabalho contida no feitiço da mercadoria, alimentícia nesse caso, são temas concernentes à racionalidade instrumental. A empatia moral não vem da matéria didática, de argumentos puramente racionais. Estes podem ultrapassar excessivamente a sensibilidade moral, exercendo uma sobrecarga racionalista que acaba por embotá-la. Esse embotamento da sensibilidade moral representa um papel vilanesco importante no jogo social, uma função adaptativa em relação à ideologia dominante: o ensino de moral, com seu didatismo e psicologismo só pode se aproximar das concepções morais dominantes, nunca da atitude ética. (Benjamin, 1913b/2002). Tal como fizemos com os

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deuses de Antígona, invocamos Marx, que não estava nem no texto de Benjamin, nem nos escritos dessa fase do autor. No entanto, sua aversão explícita às concepções morais dominantes anunciam a afinidade que o aproximará do dialético pouco tempo depois. O mais importante, para além das metáforas, é compreender a diferenciação entre atitudes e razão argumentativa, entre um posicionamento mais profundo e transcendental da personalidade ética – tal como no uso kantiano do termo “personalidade” (Adorno, 1995; Kant, 2008) – e ideias ou representações. Da noção kantiana de personalidade que se aproxima das preocupações sociais de Benjamin, chegamos a uma abordagem correspondente no campo psicológico. Winnicott apresenta uma visão consoante quando afirma que os adultos confundem, com excessiva facilidade, obediência com crescimento. O elemento crítico da observação winnicottiana pode ser amplificado se interpretarmos as concepções de desenvolvimento infantil que acompanham a educação formal como representantes dos valores morais dominantes. Ao entender obediência como crescimento, embotam-se os sentidos morais e a personalidade. As crianças problemáticas são aquelas que não obedecem, que não agem em conformidade com a moral dominante. A consequência psicológica desta relação educativa é a dificuldade da criança em lidar com seus próprios sentimentos e ideias, formando o que Winnicott chamou de falso self por ocultar o verdadeiro ser da criança: pode-se evitar os processos de maturação usando-se uma série de identificações como atalho, de modo que o que se revela clinicamente é falso, um self ator, a cópia de alguém, talvez; o que poderia ser chamado de self verdadeiro ou essencial permanece oculto e privado da experiência de viver (Winnicott, 1963/2003, p. 96).

Os conceitos de bom e de mau encontram suas origens muito antes das palavras que serão seus significantes. Também em Winnicott as atitudes são anteriores às ideias racionais. Aprendem-se tais significados de uma linguagem sutil, nas aprovações e desaprovações dos cuidadores. Muito mais se ganharia do amor que da educação formal: Nesses assuntos a resposta é sempre que há mais para se ganhar do amor do que da educação. Amor aqui significa a totalidade do cuidado com o lactente ou criança, que favorece o processo maturativo. Isto inclui ódio. Educação significa sanções e a implantação dos valores sociais ou dos pais à parte do crescimento e amadurecimento próprios da criança. Educação em termos do ensino de aritmética tem de aguardar por aquele grau de integração pessoal da criança que torna o conceito de um significativo, e também a ideia contida no pronome da primeira

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pessoa do singular. A criança que conhece o sentimento de EU SOU, e que pode carregá-lo, sabe sobre um e então, logo a seguir, quer que lhe ensinem adição, subtração e multiplicação. Da mesma maneira, a educação moral se segue naturalmente à chegada da moralidade na criança pelos processos de desenvolvimento natural que é favorecido pelo cuidado adequado. (Winnicott, 1963/2013, p. 94, grifos do autor).

Acompanhando as questões que foram levantadas até aqui, desde o dilema da educação moral, sua relação com a educação religiosa e seu caráter oposto à sistematização didática, chegamos ao centro do labirinto. Da impossibilidade de educação moral, ainda que desejável, vimos que ela pode não apenas servir à manutenção da moral dominante, como também embotar a sensibilidade ética criando obstáculos à experiência de viver de um self verdadeiro ou essencial. Parece-nos, no entanto, que em toda a negatividade vinculada à educação moral, nossos autores nos conduziram a esse labirinto com pelo menos dois fios que possam nos ajudar a sair dele: o amor e a eticidade comunitária ou, pelo menos, experiências práticas e estéticas. Ainda pensando sobre os ecos da última citação de Winnicott, sobre se ganhar mais do amor que da educação: seria possível uma educação amorosa? Antes de tentar coroar Ariadne em seu casamento com Dioniso, voltemos à condição de Teseu no labirinto e aos fios que nos foram concedidos.

Experiências práticas e estéticas Certos da impossibilidade de uma formalização didática da educação moral, os autores se arriscaram a falar sobre experiências morais. Para Benjamin, a empatia moral só pode vir da atividade prática. É preciso lembrar que no vocabulário kantiano ao qual ele recorre, “prática” se refere a ações humanas de forma geral, mas também às ações morais (Caygil, 2000). Se assim é, torna-se possível pensar em como atividades da comunidade podem proporcionar experiências éticas. Lembremos ainda que ele disserta sobre o conceito de “experiência” justamente no mesmo ano em que escreve o texto sobre educação moral no qual nos apoiamos até aqui. Agora com Winnicott, podemos compreender que não se trata de tentarmos nos isentar da vida moral da criança. A pouca esperança de realizar progressos morais por meio da didática não significa uma fuga da responsabilidade pela educação moral das novas gerações, mas justamente uma participação humanizadora, respeitando o potencial de amadurecimento e a criatividade.

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Ambos, Benjamin e Winnicott, encontram-se conosco na encruzilhada para a educação estética. Uma leitura cuidadosa dos parágrafos finais do artigo mostra que Benjamin não abre mão de uma educação moral, ainda que carregada de perigos, mas sim de uma ciência exata da educação ética. A capacidade de empatia moral, repetimos, só pode vir da atividade prática: trata-se, portanto, não apenas de um palavrório racionalista sobre ética, mas de experiências morais. Ao falar sobre experiência, ainda em 1913, Benjamin divide o conceito em “experiência do filisteu” e “experiência do espírito”. Parodiando Winnicott, poderíamos dizer que filisteu é o adulto que usa a máscara da experiência – seria tal máscara um falso self? – “inexpressiva, impenetrável, sempre a mesma” (Benjamin, 1913a/2002, p. 21). O adulto vê a criatividade juvenil como um êxtase ilusório e se coloca como o soberano dotado de experiência, que vê na obediência e no “eternamente-ontem” o bom desenvolvimento para a vida adulta. Mas os jovens vivem a experiência dos valores, dos espíritos livres e dionisíacos de Nietzsche, da potencialidade do erro como alento para a busca da verdade espinosana, em síntese, da generosidade benjaminiana. Se a educação moral é desejável, ela deve enfrentar os perigos de seu caminho, não se recolher nas certezas seguras, sem criatividade e temerárias do erro que formam a máscara adulta. Para Benjamin, o perigo está no esnobismo, na associação simplista de bem e mal com valores como o sensualismo e o espiritualismo. Sua sugestão para uma aula de moral é o Dorian Gray de Oscar Wilde. Com todos os seus problemas, pelo menos, o ensino de moral combate o isolamento intelectual da educação racionalista e pode ser útil numa fase transitória a uma nova modalidade de ensino (Benjamin, 1913b/2002). Em seu texto, Winnicott destaca a capacidade da criança para ser educada moralmente, ou com as palavras dele: “capacidade de ter senso moral, por experimentar um sentimento de culpa e por estabelecer um ideal” (Winnicott, 1963/1983, p. 88). Propõe, portanto, uma alternativa ao ensino de moral: proporcionar ao lactente e à criança aquelas condições que possibilitem a coisas como confiança e 'crença em', e ideias de certo e errado, se desenvolverem da elaboração dos processos internos da criança. Isso poderia ser chamado de evolução de um superego pessoal. (Winnicott, 1963/1983, p. 89).

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Não faria sentido, para ele, a tentativa de uma fuga dos adultos para a formação original das crianças, evitando que elas tomem contato com determinados conteúdos da cultura como contos de fadas ou histórias de bruxas. A comunicação sutil, desenvolvida entre cuidador e bebê, antecede as comunicações verbais. A educação moral não é substituta para o amor, para aquele cuidado que abrange tanto um ambiente suficientemente bom quanto a oportunidade de a criança se desenvolver como uma pessoa integrada. Os códigos morais, que tanto nos interessam, fazem parte do ambiente tal como brinquedos e objetos. São eles também uma parte do mundo – descoberto e construído pela criança – que se doa sutilmente por expressões de aceitação ou por ameaças de privação do amor. “O código moral adulto se torna necessário porque humaniza o que na criança é desumano” (Winnicott, 1963/1983, p. 95). Também é de suma importância a presença sobrevivente e acolhedora dos cuidadores destruídos nas fantasias infantis, que não se ausentam deixando na criança uma ansiedade vazia. No cuidado da pessoa atacada mas perseverante em seu amor, a criança pode transformar a ansiedade gerada por sua agressividade em culpa e, a partir da posição depressiva, desenvolver o desejo de reparação (Winnicott, 1963/1983, p. 96). O conceito de “reparação”, elaborado inicialmente por Melanie Klein, é essencial para compreendermos a posição de Winnicott (1958/1983). Sentir-se culpado por destruir o objeto amado, mesmo que na fantasia, é uma atitude que gera no bebê a necessidade de restituir ou reparar, que compõe noções rudimentares de bem, de mal e dão impulso à criatividade (Winnicott, 1958/1983). A construção da realidade por meio da transicionalidade, que se espalha desde a realidade psíquica interna para o mundo externo e todo o campo cultural, está presente no brincar, na arte, na religião (Winnicott, 1975) e no mundo ocupacional (Bohoslavsky, 1993). Tendo a criança alcançado a posição depressiva e a transicionalidade, prover oportunidades de reparação e de produtividade criativa é mais útil que a educação moral. Nesse provimento de oportunidades, Winnicott também propõe uma educação estética: Na época em que a criança está crescendo para o estado adulto, o destaque não é mais para o código moral que lhe transmitimos; ela passou para coisas mais positivas, o conjunto de conquistas culturais da humanidade. E então, ao invés de educação moral, propiciamos à criança a oportunidade de ser criativa que a prática das artes e da arte da vida oferece a todos aqueles que não copiam e não se submetem, mas desenvolvem genuinamente uma forma de auto-expressão. (Winnicott, 1963/1983, p. 98).

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Vemos, assim, que nossos autores se preocupam em superar os dilemas da educação moral ou, pelo menos, em não paralisar diante deles, apostando na possibilidade de proporcionar cuidado, relações práticas e estéticas inspiradoras. Ainda que limitada, a educação moral pode ir além da insossa e repressora educação convencional. Ensinar valores e criatividade, no entanto, não significa ensinar aos estudantes como construir máscaras que escondam seus espíritos livres. Trata-se de proporcionar experiências e sentimentos de não submissão, trata-se de tomar contato com a literatura, com as artes e com a arte da vida. Educação moral funciona muito melhor se não se tratar exatamente de uma educação moral strictu sensu, mas de uma educação estética e das atitudes. Se nossa promessa de resposta às perguntas iniciais deste texto nos remetem a Prometeu, símbolo da resistência ao sofrimento imerecido e da força de vontade que resiste à opressão (Bulfinch, 2013), antes que nossas palavras se percam com os ventos do esquecimento, tal como as folhas de Sibila, arrisquemos e rabisquemos algumas considerações que sejam tão concludentes quanto sisíficas, não no sentido de improdutivas e sim de matéria a ser retrabalhada constantemente, que inspire criatividade na concordância ou na discordância...

Considerações finais Vamos encerrando as reflexões, respondendo às perguntas iniciais, confessando abertamente o prazer na leitura de nossos autores, no trabalho da escrita e uma ponta de esperança de que ao leitor tenha ressoado algo desse sentimento. Também gostaríamos que nossa impressão de que o texto pôde ser útil para esboçar caminhos na pesquisa sobre educação moral já tenha sido compartilhada no que até aqui foi exposto. Se não, ainda nos restam algumas palavras para sintetizar de forma mais clara o que entendemos ser um caminho, a partir de Benjamin e Winnicott, para uma possível relação entre psicologia e educação moral, que esteja no mesmo espírito do que chamamos de uma educação para os direitos humanos. Uma importante hipótese teórica com a qual trabalhamos, mas que merece maior aprofundamento, é a de que o conceito de “eticidade” pode encontrar um campo fértil num diálogo com o desenvolvimento afetivo e moral expresso no conceito de “senso moral” de Winnicott. Tal ideia não é nova, ela já foi apresentada por Jessica Benjamin

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(1988) e faz parte da teoria do reconhecimento de Axel Honneth (2003), ambos relacionando ideias de Hegel com as de Winnicott. O que consideramos uma nova possibilidade é aproximar tais produções de um Walter Benjamin mais maduro e de reflexões e pesquisas sobre o desenvolvimento moral e a educação estética. Tal fundamentação teórica poderia nos indicar que, mesmo com todas as contradições da educação moral, não adiantaria muito uma educação negativa no sentido de tentar não contaminar as crianças com nossos erros morais. Winnicott defende a necessidade do exemplo para a aquisição da cultura. Exemplo este que não consiste em tentar parecer melhor do que se é, mas sim em ser sincero, aceitável e decente. Também em aceitar a criança como ela é e como se desenvolve. As belas palavras de Winnicott serão mais úteis que as nossas: Este princípio que influi na transmissão de valores morais igualmente se aplica à transmissão do acervo todo da cultura e civilização. Dê-se à criança um Mozart, Haydn e Scarlatti desde o início para se ouvir e se conseguirá um bom gosto precoce, algo para ser exibido em festinhas. Porém a criança tem de iniciar provavelmente com os ruídos conseguidos ao soprar um papel higiênico sobre um pente, para então progredir ao bater latas e soprar uma velha corneta; a distância entre berrar e ruídos comuns de Voi che Sapete é imensa, e a apreciação do sublime tem de ser uma conquista pessoal, e não algo implantado. (Winnicott, 1963/1983, p. 95).

Benjamin defende um ensino de moral que não esteja apegado aos valores antigos, mas sim à crítica dos valores contemporâneos. Recomendava ele a leitura de Dorian Gray, famoso romance de Oscar Wilde, em cujo prefácio se encontra a seguinte afirmação: a vida moral do homem forma parte do argumento e do material do artista. Mas a moralidade da arte consiste no uso perfeito de um instrumento imperfeito. Nenhum artista pretende provar o que quer que seja. A própria verdade não pode ser provada. (Wilde, 1998, p. 7).

E arremata esta afirmação, que muito provavelmente inspirou Benjamin a pensar uma educação artística como mais desejável que uma educação moral formal, afirmando: “artista algum tem preferências éticas. Uma preferência moral, em um artista, é imperdoável maneirismo de estilo” (Wilde, 1998, p. 7). O ensino de moral possível, portanto, é um humilde provimento de oportunidades de experiências culturais, estéticas e práticas que respeitem a criatividade dos educandos e resistam à moral dominante. Para Benjamin, a educação moral tem um papel transitório no combate ao isolamento intelectual da formação escolar, na apreensão da

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história do espírito objetivo e na constituição da transição para um novo ensino de História, no qual o presente encontre a sua inserção histórico-cultural. O jovem Benjamin já prenunciava uma apreensão da história que pudesse fundar “um conceito de presente como um 'agora' no qual se infiltraram estilhaços do messiânico” (Benjamin, 1940/1994, p. 232), que ele descreveu tantos anos depois. Tal preocupação com o espírito objetivo pode ser um bom complemento aos estudos e pesquisas em torno do desenvolvimento subjetivo, voltado, por exemplo, para a posição depressiva, o sentimento de culpa, os objetos transicionais e a integração do self. Talvez tal preocupação com o espírito objetivo do presente tenha nos guiado a Benjamin e Winnicott por nos ajudarem a desconfiar do filisteísmo e tentar construir algo com um dos estilhaços do passado: a invenção dos espíritos livres e da grande liberação. Para homens de espécie mais alta e seleta serão os deveres: a reverência que é própria da juventude, a reserva e delicadeza frente ao que é digno e venerado desde muito, a gratidão pelo solo do qual vieram, pela mão que os guiou, pelo santuário onde aprenderam a adorar […] os obrigarão da maneira mais duradoura. A grande liberação, para aqueles atados dessa forma, vem súbita como um tremor de terra: a jovem alma é sacudida, arrebatada, arrancada de um golpe – ela própria não entende o que se passa. Um ímpeto ou impulso a governa e domina; uma vontade, em anseio se agita, de ir adiante, aonde for, a todo custo; uma veemente e perigosa curiosidade por um mundo indescoberto flameja e lhe inflama os sentidos. (Nietzsche, 2005, p. 9).

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