Educação musical e diversidade: uma experiência entre crianças guarani Mbya e crianças não indígenas

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V JEEM Junho de 2015

EDUCAÇÃO MUSICAL E DIVERSIDADE: UMA EXPERIÊNCIA ENTRE CRIANÇAS GUARANI MBYA E CRIANÇAS NÃO INDÍGENAS Daisy Fragoso, Universidade de São Paulo ([email protected])

Resumo: O presente texto apresenta uma discussão sobre cultura, música e diversidade aplicadas a práticas transculturais em educação musical a partir do trabalho de pesquisa desenvolvido entre um grupo coral infantil guarani, da aldeia Tenondé Porã (São Paulo – SP) e um grupo de coro infantil não indígena pertencente a um centro comunitário da zona sul da cidade de São Paulo. Assim, tomando como referência as experiências culturais e musicais vivenciadas pelo grupo não indígena entre as crianças Guarani, pretende-se aqui apresentar de que modo a inclusão de músicas de outros povos e culturas no repertório escolar ou coral pode desconstruir estereótipos e desestimular posturas preconceituosas e como esta prática remete à diversidade ao mesmo tempo em que nela se realiza. Palavras chave: diversidade; educação musical; cultura guarani; transculturalidade.

A relação entre música e diversidade, como será discutido ao longo deste texto, nos diferentes contextos de ensino e aprendizagem de música – formais e não formais – é uma via de mão dupla: tanto a música promove a diversidade quanto se alimenta dela, isto é, por meio das relações entre os indivíduos nestes espaços, a música coloca em contato elementos que remetem à diversidade ao mesmo tempo em que nela se elabora. No entanto, essa relação entre música e diversidade só é possível mediante a convocação de um terceiro componente, o qual é garantia para a efetivação deste movimento de promoção e provisão: a cultura. É a cultura quem instiga a diversidade, e é na cultura e pela cultura que a diversidade e a música se (re)fazem. Dentre as concepções de cultura, adotamos aqui duas delas. A primeira trata daquela traçada por Geertz em que cultura

[...] denota um padrão de significados transmitido historicamente, incorporado em símbolos, sistema de concepções herdadas expressas em formas simbólicas por meio das quais os homens comunicam, perpetuam e desenvolvem seu conhecimento e suas atividades em relação à vida (Geertz, op. cit, p. 66).

FRAGOSO, Daisy. Educação musical e diversidade - uma experiência entre crianças Guarani Mbya e crianças não indígenas. In: JORNADA DE ESTUDOS EM EDUCAÇÃO MUSICAL, 5., 2015. São Carlos. Anais.... São Carlos: UFSCar, 2015. p.48-58.

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Já a segunda definição vem da palavra guarani usada como equivalente de cultura, nhandereko¸ em que nhande significa “nosso/nossa” e reko é traduzido como “vida”, “conjunto de costumes”. Logo, nhandereko pode ser entendido como “nossa vida”, “nosso modo de viver” (MACEDO, 2012, p. 362). Partindo disso, tem-se que cultura, para os Guarani Mbya, significa “nosso modo de viver”, “nossa vida”, nhandereko. Do agrupamento dessas duas definições, pode-se concluir, portanto, que cultura é o conjunto de costumes, ou modo de vida, ou nhandereko herdados e compartilhados, e que a partir dos quais e nos quais se articulam outros nhandereko, reinventado-os (BOURDIEU, 2011, p. 20). Neste sentido, tanto a escola quanto outros espaços de ensino, reúnem diversos nhandereko cuja consequência é a própria diversidade à que a cultura, do modo como abordada acima, remete. Na educação musical, este raciocínio envolve ainda a própria música, como expressão, como manifestação dos diversos nhandereko e como produtor destes. Assim, se a música é capaz de revelar os valores básicos de determinada sociedade (MERRIAM, 1964, p.13) e se “o mundo da música é um mundo da experiência humana” (BLACKING, 1995, p. 51), é também meio de revelação da diversidade, porque as experiências e valores das diferentes sociedades e culturas são igualmente diversos, fazendo-nos retornar ao primeiro parágrafo deste texto. Em trabalho de mestrado8 desenvolvido entre os anos de 2013 e 2014, foi proposto, em linhas gerais, que dois grupos corais infantis pertencentes a culturas distintas compartilhassem experiências musicais e não musicais a fim de que fossem verificados 1) a maneira como esses novos arranjos sociais se dariam; e 2) se tais arranjos, de alguma forma, contribuiriam para a formação musical e social das crianças envolvidas. Um dos grupos era formado por cerca de 15 crianças guarani Mbya9 da aldeia Tenondé Porã, em Parelheiros, zona sul da cidade de São Paulo, lideradas pelo seu avô ou pai, o cacique e xeramoĩ10 Elias 8

Pesquisa de mestrado em Musicologia realizada entre 2013 e 2014, no Programa de Pós-Graduação em Música da Universidade de São Paulo, intitulado “Entre a opy e a sala de música: arranjos entre crianças guarani Mbya e crianças não indígenas”, sob orientação do Prof. Dr. Pedro Paulo Salles. No momento em que este artigo foi escrito, a dissertação não havia ainda sido apresentada. 9 Há, entre os Guarani que vivem no Brasil, uma divisão em Guarani Mbya, Guarani Ñandeva e Guarani Kaiowá e diferem entre si quanto à língua, quanto à religião, quanto à música etc. Neste trabalho, tratamos dos Guarani Mbya. Assim, quando houver referência aos Guarani, deve-se subentender “Guarani Mbya”. 10 Tradução literal: “meu avô”. Nome também pelo qual são chamados os xamãs (MACEDO, 2013, p. 190). No entanto, Elias Vera, cacique xeramoĩ da aldeia Tenondé Porã, traduz xeramoĩ como “pajé”. FRAGOSO, Daisy. Educação musical e diversidade - uma experiência entre crianças Guarani Mbya e crianças não indígenas. In: JORNADA DE ESTUDOS EM EDUCAÇÃO MUSICAL, 5., 2015. São Carlos. Anais.... São Carlos: UFSCar, 2015. p.48-58.

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Vera. Já o grupo seguinte pertencia a um centro comunitário também da zona sul da cidade de São Paulo, do qual faziam parte 17 crianças não indígenas, entre 5 e 11 anos. Durante o trabalho de pesquisa, estes dois grupos corais se reuniram algumas vezes na aldeia (e fora dela) ora para cantarem juntos, ora para brincarem juntos, de modo que sobre essa experiência compartilhada fosse possível fazer algumas reflexões acerca da inclusão de canções de outras culturas (neste caso a guarani) no repertório coral ou escolar, mediante observações feitas por mim e questões levantadas pelas próprias crianças participantes da pesquisa. Dentre essas reflexões, a que exponho aqui trata dos processos transculturais experimentados pelas crianças não indígenas e que apontam para uma prática de educação musical que valoriza a diversidade cultural e a reconhece como elemento formador significativo. Tomando, assim, como guia deste texto os processos transculturais aos quais as crianças guarani e não indígenas foram expostas, optamos, numa tentativa um tanto ousada, resumir o trabalho de pesquisa em questão com uma só palavra: movimento. Se o proposto às crianças foi o contato entre culturas, tal experiência exigiria delas movimento; movimento de uma cultura à outra, no sentido de que, para visitar outros nhandereko, seria preciso se descolocar até ele, ou seja, movimentar-se em sua direção. Cox e Assis-Peterson (2007, p. 35) traduzem o estado de fluxo entre uma cultura e outra como transculturalidade em que o “prefixo trans, dentre seus muitos sentidos, veicula aqueles de ‘movimento através de’, ‘movimento de ir e vir’, (...) ‘trânsito’, ‘circulação’, ‘troca’”. Portanto, transculturalidade, pode ser compreendida aqui como o movimento entre culturas, lembrando que o termo não significa a troca de uma cultura por outra, assim como não se refere às consequências desses contatos, mas aos processos de transformação que este movimento proporciona (KARTOMI, 2008, p. 367). A compreensão deste movimento é ponto chave para a compreensão de uma cultura dinâmica e que se (re)faz por conta deste fluxo. Neste sentido, não seria coerente desconsiderar o movimento entre culturas que possibilita a constante transformação de todas elas e que garante e alimenta a diversidade. Como emaranhado de linhas, as culturas se esbarram umas nas outras, transtecendo-as a si mesmas; e, se cada linha carrega consigo um repertório de símbolos herdados (GEERTZ, op. cit), inventados, compartilhados, cada

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uma delas não sai ilesa quando esbarra em outra e em muitas outras mais, alterando-se e se reelaborando. Nas aulas de música, o trabalho com canções de outros povos e culturas pode ser o elemento provocador de movimentos entre diversas culturas, dos quais o educador musical será o mediador e facilitador, colocando à mesa outras possibilidades sonoras, outras músicas, outras ideias de música (para fazer uso do termo utilizado por Brito [2007]) e interferindo no fluxo dessas ideias. Desse modo, a transculturalidade é reforçada pelo movimento de uma música a outra, e pode alterar as estruturas musicais individuais prévias, formando outras que só se formariam em razão deste contato, e, em consequência, desarranja as estruturas anteriores para que novas se estabeleçam. Das consequências desse contato gerador de movimentos para a formação das crianças, pode-se depreender a redução de posturas preconceituosas em relação ao diferente, ao Outro11 e à diversidade que este traz em sua bagagem na medida em que são expostas as diversas ideias de música e mesmo as diversas ideias de “outro” e de “eu”, rompendo, possível e consequentemente, com os estereótipos relacionados ao Outro, ou, pelo menos, questionando-os. Quanto aos estereótipos, Martuccelli (2010, p. 19) afirma que “toda sociedade fabrica estereótipos negativos das outras sociedades, ao mesmo tempo em que se autodesigna por um conjunto de imagens que valorizam a ela mesma” e completa dizendo que, na maior parte das vezes, “os preconceitos estabelecem, com efeito, uma divisão entre o endogrupo e o exogrupo rechaçado”. Deste raciocínio, pode-se depreender a relação entre a formação de estereótipos e o preconceito, em que o primeiro é forte instigador do segundo. São os estereótipos que dão forma traiçoeira às impressões elaboradas sobre determinado assunto, limitando-as em conceitos equivocados justamente por não haver referências que correspondam à realidade sobre a questão. No entanto, pareceu, durante o desenvolvimento da pesquisa, que são as crianças que possuem mais facilidade para transitar entre culturas, o que pode, em consequência disso, alterar suas impressões iniciais sobre determinada cultura e, neste caso, sobre determinada música. Enquanto a criança se movimenta entre as culturas, entre lá e cá, e, somente enquanto se movimenta, ela carrega 11

A palavra “outro” é escrita com letra maiúscula para fazer referência a um sujeito, indivíduo específico, personificando o outro. FRAGOSO, Daisy. Educação musical e diversidade - uma experiência entre crianças Guarani Mbya e crianças não indígenas. In: JORNADA DE ESTUDOS EM EDUCAÇÃO MUSICAL, 5., 2015. São Carlos. Anais.... São Carlos: UFSCar, 2015. p.48-58.

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um pouco de lá para cá e leva um pouco de cá para lá, transformando suas impressões, transformando-se a si mesma, transformando a sua cultura e a cultura de lá, sutil e inconscientemente:

– O que você achou da aldeia, Gabi? É como você imaginava? – pergunto. – Eu não sei, prô12, se é igual ao que eu imaginava. Depois que eu vejo, eu esqueço como eu imaginava antes de conhecer.

O mesmo acontece com as músicas das diferentes culturas: na medida em que as crianças são expostas a outras sonoridades, a outras possibilidades musicais, a outras ideias de música, suas impressões vão se rearranjando e cedendo lugar a outras menos estereotipadas, ou mais fiéis à realidade. Neste sentido, a inclusão de canções de outras culturas no repertório escolar ou coral pode promover um rearranjo das posições em princípio cristalizadas, já que confronta as músicas que são moldadas pelo ambiente e que fazem parte da memória musical e as músicas que as crianças não estão acostumadas a ouvir: Essa audição interfere no imaginário e no corpo; como que retira a música dos estados já codificados para outros mais livres. O confronto da ordem com a aparente desordem sonora, dispara reações ativas e criativas, na medida em que promove um rompimento de estrutura (SALLES, 1996, p. 54, grifo do autor).

Outro efeito causado pela exposição a novas/diferentes possibilidades sonoras é anunciado por Oliveira Pinto. Para ele [...] ouvir e aprender a ouvir a sonoridade dos outros significa entende-los melhor, da mesma forma que entender as sonoridades alheias vai fazer com que entendamos melhor o nosso meio ambiente sonoro também, reconhecendo e respeitando as alteridas (2001, p. 275).

Esta citação apresenta duas consequências da exposição a outras sonoridades: melhor compreensão do Outro por meio de sua música e melhor compreensão do próprio ambiente sonoro por meio do entendimento da sonoridade do Outro. No entanto, ao final, tais

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“Prô” é o termo usado pelas crianças não indígenas para se referir à “professora”.

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consequências em conjunto nos levam ao ponto que tem a ver com a formação integral da criança, isto é, conduze-nos ao foco maior da educação musical, se considerarmos a tônica dos trabalhos de Koellreutter quando este nos dizia “o humano como objetivo da educação musical” (BRITO, 2001): “reconhecer e respeitar as alteridas”, ou ainda reconhecer e respeitar a diferença, a diversidade. Porém, de acordo com o que foi observado durante a pesquisa em questão, a efetividade dos processos transculturais, do fluxo entre as culturas, isto é, a garantia de que impressões serão rearranjadas estimulando posturas mais tolerantes e respeitosas em relação à diversidade musical e cultural parece ter como um de seus pontos de apoio as experiências que provocam tais movimentos e a qualidade delas. Neste sentido, é sobre o educador que recai a responsabilidade de promover espaços em que as crianças experimentem e vivenciem outras culturas de modo significativo, garantindo a efetividade dos processos transculturais. Uma das propostas do trabalho com o coro não indígena consistiu em organizar encontros com as crianças guarani na aldeia e fora dela a fim de que se verificasse se estes movimentos aconteciam e, se aconteciam, em que medida influenciariam as crianças envolvidas. Vale ressaltar que, ainda que ambos os grupos de crianças estivessem envolvidos nos processos transculturais que permearam a pesquisa em questão, sofrendo transformações em função dos movimentos provocados, o foco, neste texto, são os deslocamentos feitos pelo grupo não indígena, guardando as reflexões e relatos sobre o coro indígena para outro momento13. Precedendo os trabalhos na aldeia com o coro não indígena, é pertinente dizer, foram realizadas algumas oficinas e trabalhos de sensibilização com as crianças não indígenas antecedentes à primeira visita. As crianças participaram de oficinas de cultura e língua guarani14, de arte indígena (para a confecção dos diários de campo15) e de instrumentos indígenas16; participaram de discussões e atividades relacionadas à

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É possível ter acesso a estas reflexões de maneira completa no trabalho de mestrado que deu origem a este texto, mencionada no início deste texto. 14 Oficina conduzida por Nicolas Salaberry. 15 Na pesquisa em questão, as crianças não indígenas atuaram como co-pesquisadores junto a mim. Assim, elas possuíam, cada uma, seu diário de campo onde anotavam o que haviam aprendido nas oficinas e na aldeia, as experiências vividas com as crianças guarani etc. 16 Oficina conduzida pelo Prof. Dr. Pedro Paulo Salles. FRAGOSO, Daisy. Educação musical e diversidade - uma experiência entre crianças Guarani Mbya e crianças não indígenas. In: JORNADA DE ESTUDOS EM EDUCAÇÃO MUSICAL, 5., 2015. São Carlos. Anais.... São Carlos: UFSCar, 2015. p.48-58.

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distribuição de terras às comunidades indígenas e à diversidade cultural, musical, linguística etc, indígena no Brasil; de atividades de apreciação e interpretação de canções guarani; enfim, as crianças foram envolvidas em alguns trabalhos que as sensibilizassem para os encontros com as crianças guarani. O primeiro dos encontros foi um dos mais marcantes17 para o grupo não indígena, pois foi neste dia que este coro e o coro guarani se conhecerem e se reuniram para cantarem juntos na opy18. A expectativa do pesquisador em relação a este momento consistia em justapor as primeiras impressões que as crianças não indígenas tinham e as que se rearranjariam a partir do encontro, comparando-as para que depois fossem apresentadas às crianças de modo que elas refletissem sobre o movimento de suas impressões. Questionadas anteriormente sobre como achavam que seria a música guarani, algumas crianças mencionaram, por exemplo, que poderia “ser desafinada”, “que [os Guarani] não cantavam, só usavam instrumentos” ou “que usavam instrumentos muito diferentes dos nossos”, “que não teria muitas vozes [muitas pessoas cantando]”. Depois que conheceram a música guarani e aqueles que faziam essa música, isto é, os próprios Guarani, surgiram comentários em seus diários de campo e nas discussões que fazíamos tais como “depois que acabamos [de descarregar as doações], nós fomos cantar com as afinadíssimas índias [grifo nosso]”, “eu achava que rabeca era algo diferente e não alguma coisa parecida com violino”, ou ainda “eu achei que quando a gente fosse cantar, eu ia ver todos aqueles instrumentos que vimos na oficina, mas lembrei que cada etnia é diferente”. Nestes exemplos, pode-se notar que, parafraseando as crianças, os Guarani passaram de “desafinados” para “afinadíssimos”; que sua música passou de instrumental para vocal; e que seus instrumentos passaram de desconhecidos para “muito parecidos com os nossos”. O último comentário ainda aponta para a associação que um dos alunos fez entre o que viu na aldeia e as oficinas de sensibilização, isto é, ele se lembrou das discussões que trataram da diversidade cultural entre as etnias indígenas (opondo-se à imagem de um índio genérico, de uma cultura só) e relacionou esta informação com o que vivenciara na aldeia, lembrando que os Guarani não usariam todos os instrumentos vistos na oficina, porque cada etnia tem seu próprio quadro instrumental. 17

A descrição completa deste encontro consta na dissertação de mestrado mencionada no início deste

texto. 18

Casa de reza.

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Além das impressões sobre música, havia ainda outras que diziam respeito ao universo não musical. Dentre muitos exemplos, são citados dois que mais se destacam. O primeiro deles trata da especulação feita pelas crianças não indígenas sobre uma possível nudez entre os Guarani. Este foi o assunto que mais as deixou ansiosas, mesmo porque, elas não tinham respostas conclusivas sobre isso durante os momentos de sensibilização; ao contrário, o que chegava a elas, propositalmente, eram algumas pistas para, com o que tinham às mãos, fossem rearranjando suas impressões (em geral, formadas a partir de estereótipos veiculados pela mídia, por livros didáticos etc). Tais indicações consistiam nos relatos feitos às crianças sobre as minhas visitas à aldeia, sobre as histórias que eu ouvia lá, sobre as conversas com as crianças Guarani, com o xeramoĩ... Até que, mesmo sem responder diretamente às suas perguntas sobre nudez, deixaram de me perguntar.

– Vocês, no começo das nossas conversas, achavam que os Guarani andavam nus e que vocês teriam que ficar nus quando fossem à aldeia. Quando chegou o dia de ir à aldeia, vocês ainda achavam isso? – Não, prô. A gente já sabia que eles usavam roupas. – E como é que vocês sabiam disso? – Não sei. A gente já tinha percebido. – Perceberam? Como perceberam? – Sei lá. Pelas coisas que você contava de lá [da aldeia]. – E as doações? Quando organizamos as doações, vocês não estranharam? Por que roupas para os Guarani? – Não [estranhamos]... A gente imaginou que eles estavam precisando de roupas. – Ué! Mas vocês não achavam que eles andavam sem roupa? – Ah, a gente achava. Mas também achava que eles vestiam roupas. – E quando foi que vocês deixaram de achar que eles andavam sem roupa? – Sei lá. A gente só parou de achar.

O exemplo seguinte é protagonizado por João. Foi pedido às crianças que escrevessem sobre suas expectativas em relação à primeira visita que faríamos à aldeia, e, dentre muitos questionamentos registrados (sobre roupa, alimentação, língua), o de João FRAGOSO, Daisy. Educação musical e diversidade - uma experiência entre crianças Guarani Mbya e crianças não indígenas. In: JORNADA DE ESTUDOS EM EDUCAÇÃO MUSICAL, 5., 2015. São Carlos. Anais.... São Carlos: UFSCar, 2015. p.48-58.

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chamava a atenção ao escrever sobre o medo que tinha ao chegar à aldeia. Para ele, a dúvida era se os Guarani receberiam bem o grupo visitante ou se “atirariam flechas na gente”. A primeira visita foi feita e depois dessa muitas outras. Inclusive, João pediu à mãe que passasse o dia de seu aniversário na aldeia. No ano seguinte, o grupo não indígena recebeu alguns alunos novos e lhes foi contado sobre as visitas aos Guarani. João, supondo que poderiam estar com o mesmo medo que ele sentiu quando soube dos encontros, tranquilizou-os: “Não se preocupem. Eles [os Guarani] não vão atirar flechas em vocês. Não é como todo mundo pensa”. Ao final da pesquisa, quando perguntado se gostaria de escrever algo para alguma criança guarani em especial, João declara: “Não conheci muito bem eles porque eu ficava tímido. Eu lembro do Giovani que me ajudou a subir uma montanha na trilha. Mas eu quero agradecer eles porque eles tiveram paciência com todo mundo. Porque quase sempre eles ficavam calmos”. “A gente só parou de achar” e “Não é como todo mundo pensa” são frases que podem indicam a maneira como as crianças não indígenas participantes desta pesquisa rearranjaram suas impressões e desconstruíram os estereótipos em relação à própria cultura guarani, por meio do contato com sua música. Isto acontece porque o trabalho com a música de determinada cultura implica, necessariamente, em um trabalho com a própria cultura. Não se pode – ou não se deveria – desassociar música de cultura, e se o aluno é exposto à música dos Guarani, por exemplo, ele será também exposto às crenças guarani, à maneira como se vestem, à língua, à forma como pensam, enfim, será exposto ao nhandereko guarani, aos Guarani; será exposto a uma música que aponta para a diversidade e que se articula com a diversidade trazida pelos que participam deste jogo. Assim, mostrou-nos estas crianças que o trabalho que envolve as diferentes culturas e suas músicas pode, pela educação musical, alcançar aquilo que Oliveira Pinto (2001) propôs e que tem a ver com a tão discursada formação integral da criança e com a sociedade que tanto se almeja, que é reconhecer e respeitar os diversos nhandereko, reconhecer e respeitar à diversidade.

FRAGOSO, Daisy. Educação musical e diversidade - uma experiência entre crianças Guarani Mbya e crianças não indígenas. In: JORNADA DE ESTUDOS EM EDUCAÇÃO MUSICAL, 5., 2015. São Carlos. Anais.... São Carlos: UFSCar, 2015. p.48-58.

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AGRADECIMENTOS

Ao Elias Vera, Iara e suas crianças; às crianças do Tico-tico Coral Infantil; ao Centro Comunitário Verde Oliva; à Carob House pela contribuição com esta pesquisa. Aguyjevete!

REFERÊNCIAS BLACKING, John. Music, culture & experience: selected papers of John Blacking. Chicago: University Press, 1995. BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. Introdução, organização e seleção: Segio Miceli; tradução Sergio Miceli... [et al.]. 7ª ed. São Paulo: Perspectiva, 2011. BRITO, Maria Teresa Alencar de. Koellreutter educador: o humano como objetivo da educação musical. São Paulo: Peirópolis, 2001. _________. Por uma educação musical do pensamento: novas estratégias de comunicação. Tese de doutorado. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. São Paulo, 2007. COX, Maria Inês Pagliarini; ASSIS-PETERSON, Ana Antonia de. Transculturalidade e transglossia: para compreender o fenômeno das fricções linguístico-culturais em sociedades contemporâneas sem nostalgia. In: CAVALCANTI, Marilda C; BORTONI-RICARDO, Maris (Org.). Transculturalidade, linguagem e educação. Campinas, SP: Mercado de Letras, 2007, p. 23-43. GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. 1. ed. Rio de Janeiro: LTC, 2013. KARTOMI, Margareth J. Procesos y resultados del contacto entre culturas musicales: una discusión de terminología y conceptos. In: CRUCES, Francisco y otros (ed.). Las culturas musicales: lecturas de etnomusicología. 2ª ed. Madrid: Trotta, 2008, p. 357-382. MACEDO, Valeria. De encontros nos corpos guarani. Ilha – Revista de Antropologia, UFSC, Santa Catarina, v. 15, n. 2, p. 181-210, jul./dez. 2013. _________. Tracking Guarani songs: between villages, cities and worlds. Vibrant, Brasília, v. 8, n. 1, p. 377-411, jan./jul. 2011. MARTUCCELLI, Danilo. ¿Existen indivíduos en el Sur?. Santiago de Chile: LOM Ediciones, 2010. MERRIAM, Alan Parkhurst. The anthropology of music. Evanston: Northwestern University Press, 1964. FRAGOSO, Daisy. Educação musical e diversidade - uma experiência entre crianças Guarani Mbya e crianças não indígenas. In: JORNADA DE ESTUDOS EM EDUCAÇÃO MUSICAL, 5., 2015. São Carlos. Anais.... São Carlos: UFSCar, 2015. p.48-58.

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OLIVEIRA PINTO, Tiago de. Som e música: questões de uma antropologia sonora. Revista de Antropologia, USP, São Paulo, n. 1, v. 44, p. 221-286, 2001. SALLES, Pedro Paulo. Gênese da notação musical na criança. Dissertação (Mestrado) – Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo: São Paulo, 1996.

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