Educação para a Cidadania

July 25, 2017 | Autor: Manuel Monteiro | Categoria: Filosofía Política
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Educar para a cidadania do séc. xxi Manuel Monteiro Professor na Universidade Lusíada do Porto

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RESUMO A Educação para a Cidadania no séc. XXI enfrenta desafios, que decorrem das incertezas quanto ao papel das instituições políticas tradicionais para fazer face às emergentes e distintas realidades do mundo de hoje. Todavia, e não obstante serem imensos esses desafios, há uma questão que deve ser colocada: pode a Educação de Cidadãos substituir a Formação do Homem enquanto pessoa humana? É sobre estas matérias que nos propomos reflectir. Palavras - chave Homem; Cidadão; Cidadania; Formação; Educação. ABSTRACT The Education for Citizenship in the XXIst century faces several challenges due to the uncertainties on the role of the traditional political institutions to face the emergent and different realities of today’s world. Yet, there is a question which has to be asked: can the Education for Citizenship replace the Man’s Formation as a human being? It is about these issues that we wish to reflect. Key-words Man; Citizen; Citizenship; Formation; Education.

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Nota introdutória O texto que agora se apresenta foi elaborado a partir da comunicação1 que fizemos no passado dia 22 de Junho, na Universidade Lusíada de Famalicão, a convite do Senhor Vice - Chanceler das Universidades Lusíada, Prof. Doutor António José Moreira e da Magnífica Reitora da Universidade Lusíada de Famalicão, Senhora Professora Doutora Rosa Moreira, por ocasião da conferência ali realizada sob o tema “Educar para a Cidadania no Século XXI”. Esta conferência, organizada com o contributo do Núcleo de Estudantes da Faculdade de Ciências da Economia e da Empresa, foi presidida pelo Senhor Chanceler das Universidades Lusíada, Prof. Dr. António Martins da Cruz, e contou com a presença e intervenção do Senhor Dom Duarte, Duque de Bragança, que nos deu a honra de publicamente analisar e comentar a reflexão que expusemos. Dedicada a um tema sempre actual a referida conferência inseriu-se na acção que recorrentemente a Universidade Lusíada desenvolve, conciliando a transmissão de conhecimentos com a formação plena de que quantos a frequentam e procuram. Desde logo porque se a obtenção de um grau ou título académico é um passo importante para alcançar a legítima ambição de progresso individual e colectivo, o desafio de atingirmos uma sociedade humana, justa, solidária e plural, é um objectivo que a todos deve envolver. A razão é simples: um cidadão qualificado academicamente representa seguramente uma mais-valia para a comunidade em que se insere, mas um cidadão que alia a qualificação académica à plenitude da sua condição de pessoa humana, traduz uma garantia de que os meios não desconhecem nunca os fins e de que estes são o princípio e o fundamento da sua existência cívica. E é precisamente por isso que ao ensinamento daquilo que é, se acrescenta a busca daquilo que também deve ser, numa análise permanente da realidade, compreendida e interpretada à luz de uma dimensão axiológica e de uma perspectiva teleológica, que toda a educação, logo complementarmente todo o ensino, há-de incluir. Participar pois numa conferência dedicada à Educação para a Cidadania foi 1

Comunicação cuja estrutura global mantemos e aqui reproduzimos como mais um contributo de divulgação da iniciativa levada a cabo na Universidade Lusíada de Famalicão. As alterações introduzidas, para além da nota introdutória que não constava da exposição feita, decorrem da normal necessidade de adequação a um texto que agora se publica numa revista científica e traduzem complementos que julgamos úteis à reflexão então apresentada.

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para nós um estímulo e uma responsabilidade. Um estímulo, pela oportunidade de partilhar ideias e convicções e pelo facto de o podermos fazer num espaço que não julga os outros pelo que pensam, porque é seu apanágio incentivar todos a pensar e a divulgar o que foi ou está a ser pensado; uma responsabilidade, atendendo a que a comunicação a proferir teria de obedecer a uma linha que pudesse vir a privilegiar o diálogo construtivo, afastando-se da pura retórica a que a matéria em causa habitualmente está sujeita. Este sentido de responsabilidade era (é) para nós marcante e pelo seguinte motivo: ainda que aberta à sociedade e em constante interacção com ela, não se espera que da Universidade saiam slogans ou posições que buscam a notoriedade fácil e prontamente consumível. Esse não é claramente o seu papel e essa não é, no nosso entendimento, a função dos que nela e através dela intervêm seja pela investigação e pelos textos publicados, seja ainda por intermédio das comunicações feitas numa conferência ou numa sala de aula. Assim, com base nestes simples parâmetros, dirigimo-nos aos presentes procurando incentivar uma reflexão sobre o tema, algo distinta da que tradicionalmente lhe está associada. O que esteve para nós em causa não foi reconhecer ou evidenciar a natureza da educação para a cidadania, tal como ela é interpretada, apresentada e transmitida, nomeadamente ao nível dos conteúdos programáticos no ensino em geral e nomeadamente ainda ao nível de múltiplas acções de formação e sensibilização, que um pouco por todo o território se têm desenvolvido. Esse trabalho está feito, e vem sendo continuamente aprofundado, pelo labor de eminentes pedagogos, muitos dos quais sociólogos, que têm manifestado, em geral, uma profunda preocupação na defesa de uma cidadania activa e interveniente, no pressuposto de que ela é a base para a construção e solidificação de uma sociedade democrática. Essa sociedade, edificada a partir da vontade popular democraticamente expressa, pressupõe, ou deverá pressupor, uma cidadania de exercício assíduo que não se resume, nem esgota, nos actos eleitorais. Está-lhe subjacente a ideia, no que à forma de governo adoptada em Portugal respeita, de que a República, enquanto res de todo o povo, permite, espera, implica e nalguns casos até exige, que esse mesmo povo seja um elemento sempre presente e participante. Educar para a cidadania, esperando e desejando que os destinatários dessa educação sejam então membros activos e nunca passivos da sociedade, significará nesse âmbito explicar o conteúdo e alcance de determinados conceitos - como os de Estado de direito, de Estado de direito democrático, Soberania, Constituição, Cidadania, Cidadania europeia, Direitos e deveres fundamentais -, para que cada cidadão conheça: (i) o tipo de Estado e de sociedade em que vive; (ii) como pode agir nesse Estado e nessa sociedade; (iii) quais os direitos de que é titular, com particular destaque para os direitos de participação e de intervenção na vida colectiva, e a que deveres está adstrito; (iv) como pode relacionar-se, e de que forma, com os representantes do poder público em geral e do poder político representativo em particular;

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(v) que influência tem, ou pode vir a ter, a sua intervenção nas tomadas de decisão dos titulares do poder político, seja ele nacional, regional, local ou europeu; (vi) como está o Estado organizado e qual o âmbito de relações que desenvolve internacionalmente; (vii) a que associação ou associações de Estados pertence o seu país e quais as consequências directas que advêm dessa ou dessas associações para a sua vida particular. Estas noções, se preferirmos estes conhecimentos, potenciando e habilitando a capacidade de exercício da chamada cidadania democrática, reforçarão um outro entendimento do modelo de sociedade em que vivemos e, numa certa perspectiva, contribuirão para atenuar a ideia de que há uma sociedade política distinta de uma sociedade civil2. Ideia aliás nem sempre evidenciada pelos estudiosos e teóricos da Educação para a Cidadania e que nós consideramos ser de referenciar, na senda de Jacques Maritain3 e de Vittorio Possenti4, porque a Política, a polis, e não apenas a específica actividade político-partidária, será tarefa, se assim o entenderem e livremente quiserem, de todos os que habitam a Cidade e não somente de um grupo restrito. Se há uma sociedade política separada da sociedade civil, poderíamos questionar o objectivo de uma Educação vocacionada para impulsionar os cidadãos a intervirem e a participarem nas deliberações sobre a comunidade a que pertencem. Essa acção estaria reservada aos políticos, ou então cidadãos seriam apenas aqueles, na lógica hegeliana, que A ideia que distingue a sociedade civil da sociedade política tem sido objecto de múltiplas abordagens, sendo de realçar o facto das expressões reflectirem hoje, para muitos pensadores, uma identidade antagónica daquela que possuíam no passado. Como foi salientado por Bobbio, a noção de sociedade civil “…teve, no curso do pensamento político dos últimos séculos, vários significados sucessivos; o último, o mais corrente na linguagem política de hoje (…), é profundamente diferente do primeiro e, em certo sentido, é-lhe oposto”. Falar no passado de sociedade civil era falar de uma sociedade que se contrapunha a “…“sociedade natural” (…), sendo sinónimo de “sociedade política”…”. Cf. BOBBIO, Norberto, «Sociedade civil», in Norberto Bobbio, Nicola Matteuci, Gianfranco Pasquino, Dicionário de política, v. 2, 12.ª ed., Brasília, UnB, 2004, p. 1206. Neste contexto, e ainda seguindo o entendimento do mesmo autor, no presente, à excepção da terminologia anglo-saxónica, “… entende-se por Sociedade civil a esfera das relações entre indivíduos, entre grupos, entre classes sociais, que se desenvolvem à margem das relações de poder que caracterizam as relações estatais”, reservando-se para o Estado, para a sociedade política, a mediação das “…solicitações às quais o sistema político está chamado a responder…”. Idem, ibidem, p.1210. 3 Contrariando as teses mais em voga, Maritain, para quem o Corpo político, constituído pelos homens, se identifica com sociedade política e se distingue do Estado, considerou que a sociedade política “…exigida pela natureza e alcançada pela razão é a mais perfeita das sociedades temporais. É uma realidade concreta e totalmente humana e tende para o concreto e total (…) bem comum”. Cf. MARITAIN, Jacques, Man and the State, Washington, Catholic University of American Press, 1998, p. 10. 4 Na linha de Maritain também Possenti defende que a distinção a fazer é entre sociedade política e Estado e não entre sociedade política e sociedade civil. De acordo com o seu pensamento, “Dentre todas as manifestações políticas a forma mais alta e a realização mais plena é a sociedade política (ou corpo político): nascida da organização da vontade humana…”, sustentando que “O Estado não é o todo da sociedade política, não se identifica com ela; é uma parte dela, a mais elevada. O Estado pertence ao género sociedade, é uma sociedade, mas não é toda a sociedade política”. Cf. POSSENTI, Vittorio, A boa sociedade: sobre a reconstrução da filosofia política, Lisboa, IDL, 1986, pp. 59-60. 2

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identificam a composição da sociedade política, por contraposição aos burgueses que na sociedade civil se ocupariam dos seus assuntos particulares5. Desta feita, reconhecendo que a análise a que nos propusemos, precisamente por não acompanhar estritamente os cânones habituais quanto ao método de abordagem, pode suscitar reparos ou dúvidas (algo que constatámos nalgumas intervenções que se seguiram à nossa comunicação), partilhamos com os leitores o testemunho que então transmitimos. Um testemunho que projecta uma reflexão nunca terminada, porque do mesmo modo que a cidadania não se esgota na forma jurídico-política que lhe esteja adstrita ou nas intenções legislativas que a propósito dela se manifestam, também o seu alcance está, ou pode estar, sujeito a constantes mutações políticas. Mutações que contribuem para uma natureza sempre subjectiva dos conceitos (de cidadão e de cidadania), principalmente pela sua inseparável dependência de épocas, de regimes políticos, de maiorias parlamentares ou governamentais e até de pressões sociais ou culturais. Nestes termos se definir o que “cabe” no estatuto de um cidadão, ou dos cidadãos, é tarefa que ao longo dos tempos se mostrou inacabada, também indicar o que há-de ser a Educação para a Cidadania, ou uma Educação para a Cidadania, será missão nunca totalmente concluída. Missão aliás que só poderemos verdadeiramente encetar assumindo duas premissas principais: (i) a primeira passa por aceitar que qualquer Educação transporta um sistema de valores e que os valores não se resumem a catálogos préestabelecidos normativamente, que indicam ou visam indicar princípios de orientação ou comportamento; (ii) a segunda, tão ou mais importante que a primeira, pressupõe reconhecer que antes do cidadão existe o Homem, com direitos inerentes à sua própria condição e por isso mesmo anteriores à vontade política dominante. Esta pode ignorá-los, desrespeitá-los ou até dispor contra eles, mas nem por isso desaparecem ou se apagam. Estas premissas indicam-nos que a afirmação de valores, compreendendo a sua estreita ligação ao Homem, a todos os Homens, antecipa a dimensão política que as Constituições dos Estados lhes reservam e ultrapassa os direitos e deveres formalmente consagrados para quantos sejam por si reconhecidos como cidadãos. Estes possuem os benefícios e têm as obrigações legalmente estipuladas, mas aquele ou aqueles gozam de direitos e estão vinculados aos deveres correspondentes quer à sua personalidade, quer à sua natural pertença à comunidade humana. Ao reconhecer esses direitos e ao prescrever esses deveres, as Constituições em particular e as leis em geral mais não fazem do que adoptar princípios comuns a todos os seres humanos6 e que não se confundem com a Sobre o entendimento de Hegel a propósito da distinção entre sociedade civil e sociedade política, cf. a análise feita por MALTEZ, José Adelino, Princípios de ciência política: introdução à teoria política, Lisboa, ISCSP, 1996, p. 299. 6 Situação de resto evidenciada pela Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 10 de Dezembro de 1948 (publicada em português no Diário da República, 1ª série, de 9 de Março de 1978, pp. 488491), ao prescrever no seu Preâmbulo “…que o reconhecimento da dignidade inerente a todos os 5

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forma ou o modo como cada cidadão participa e intervém na condução da coisa pública nos seus respectivos países. Com estas considerações situamos a direcção das nossas palavras, elucidando que para nós Educar para a Cidadania não consubstancia um processo autónomo ou desligado da formação de todos os Homens. E não consubstancia um processo autónomo, porque o cidadão é antes do mais um Homem e continua a sê-lo mesmo que o estatuto de cidadania não lhe tenha sido conferido ou tendo-o sido somente estipule os direitos, as liberdades e as garantias, que uma certa e determinada maioria ou um certo e determinado poder auto-imposto lhe tenha querido atribuir. Não obstante a relevância dada, e que devemos continuar a dar, à Educação para a Cidadania, entendemos a sua função como complementar de uma noção mais vasta que contemple a formação de todos os homens e mulheres que dão corpo e alma à sociedade. É para essa formação, transmissora de valores comuns e perenes, que as atenções deverão ser prioritária e previamente voltadas, porque nenhuma cultura de participação e de intervenção pode lograr atingir bons objectivos, sem que aqueles que participam e intervêm saibam quais os fins últimos a que a sua acção se destina. Desejar que os cidadãos participem e intervenham será sem dúvida um desígnio de qualquer sociedade democrática, mas a liberdade e a responsabilidade que se devem esperar dessa participação e dessa intervenção terão de ser um acervo de cada indivíduo. Um acervo transmitido de geração em geração, respeitado e aceite pelos poderes públicos, imune às mudanças de governo, protegido diante as epidemias legislativas e regulamentadoras, superior a qualquer rol volátil e tantas vezes transitório de “direitos”. Porque ser cidadão é um meio para que o Homem se cumpra e exercer a cidadania é o caminho para que a comunidade humana verdadeiramente se concretize. 1. Que Educação e para que Cidadania? Entendeu a Universidade Lusíada, nas pessoas do Senhor Vice - Chanceler das Universidades Lusíada, Prof. Doutor António José Moreira e da Magnífica Reitora da Universidade Lusíada de Famalicão, Senhora Professora Doutora Rosa Moreira, conceder-nos a honra de perante tão distinta audiência reflectir sobre o tema “Educar para a Cidadania, no séc. XXI”. É o que faremos pedindo desde já a vossa benevolência e compreensão, para as palavras que se seguem. Elas traduzem a inquietude do cidadão nos tempos do presente, mas não deixam de mencionar as permanentes dúvidas que acompanham o investigador e o docente da Universidade Lusíada do Porto. Permitam-nos pois que ao falarmos de Educação para a Cidadania, comecemos por perguntar: que Educação e que Cidadania? O que significa educar e o que membros da família humana e dos seus direitos iguais e inalienáveis constitui o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo”, proclamando nesse sentido a necessidade dos povos, das nações, dos indivíduos e de todos os órgãos da sociedade se esforçarem “…pelo ensino e pela educação, por desenvolver o respeito desses direitos e liberdades e por promover, por medidas progressivas de ordem nacional e internacional o seu reconhecimento e a sua aplicação universais…”.

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significa ser cidadão? Quando falamos de Educação e de Cidadania referimonos a uma comunidade abstracta? Procuramos traduzir apenas o sentido de um guião legalmente estabelecido em função de um programa político? A quem se dirige essa Educação? A todas as pessoas, independentemente da sua idade ou condição económico-social? E a quem incumbe a tarefa em primeira instância? Às Famílias? Às Escolas? Ou Famílias e Escolas devem cumprir esse objectivo em comunhão permanente? As questões podem ser múltiplas e variadas e de forma habitual sobre elas se têm pronunciado pedagogos e dirigentes políticos, que parecem convergir na necessidade de incutirmos nos cidadãos em geral, e nos jovens em particular, a ideia de participação e de responsabilidade, na perspectiva de que uma sociedade democrática pressupõe e implica que todos digamos presente! Comunicam-se então e num sentido explicativo, quase de “alfabetização democrática”, os direitos e os deveres de que somos beneficiários e a que estamos sujeitos, elucidando-se que a sociedade nova – aquela em que nos dizem viver – é construída todos os dias em função do que todos nós, sem excepção, fizermos e quisermos. Pensamos que nenhum dos presentes negará concordância a estas considerações e com elas convergirá sem grande dificuldade. Podemos discutir o como fazer, o como actuar, o como educar, o como participar, mas raramente discutimos o PORQUÊ fazer, o PORQUÊ actuar, o PORQUÊ educar, o PORQUÊ participar7. Contrapor-se-á esclarecendo que nos conteúdos oficiais da Educação para a Cidadania o ideal democrático que lhe está subjacente, ultrapassando fronteiras terrestres, não se restringe ao esclarecimento sobre o direito a eleger e a ser eleito ou à participação política geralmente considerada. Ele já abraça questões relacionadas com a defesa e o respeito: (i) dos direitos humanos; (ii) da dignidade e dos direitos dos Povos (com particular incidência no direito à inclusão)8; (iii) das minorias; (iv) da igualdade de tratamento e de oportunidades para todas as pessoas (seja qual for o sexo, a origem, a condição económico-social); (v) do ambiente; (vi) do património cultural, e integra, como sucedâneo da defesa e do respeito das matérias assinaladas, Não desconhecemos que nos programas oficiais da Educação para a Cidadania, se identificam os pressupostos e os desafios que se colocam a quantos têm a incumbência de abordar esta matéria. E não desconhecemos, de igual modo, que nesses pressupostos e nesses desafios muitos entenderão poder encontrar respostas às questões que colocamos. Mas essas respostas visam seguir um parâmetro educativo pré-estabelecido, inserido e contextualizado na ideia de cidadania democrática, se preferirmos de uma cidadania voltada para a defesa e prossecução do ideal democrático nacional e internacionalmente considerado. O objecto da reflexão a que nos propomos é distinto. Cf. a este propósito as orientações da Direcção Geral de Educação, in www.dgidc.min-edu.pt/educacaocidadania 8 Sobre o Direito dos Povos como um novo elemento integrante dos direitos humanos cf, COLNAGO, Lorena de Mello Rezende, «O Direito dos Povos na Terceira Dimensão dos Direitos Humanos: Tolerância e Respeito pela Inclusão Social», in Revista Fonte do Direito, www.fontedodireito.com.br, Ano I, nº 1, Mar./Abr., 2010, pp. 42-56. Cf. ainda RAWLS, John, A lei dos povos, Coimbra, Quarteto, 2000; HABERMAS, Jürgen, Inclusão do Outro, 2ª ed. São Paulo, Edições Loyola, 2004. 7

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entre outros, o combate à exclusão, a sensibilização para a existência de medidas legislativas e de políticas públicas que promovam a paridade dos sexos9 e, nalguns casos, a própria sustentação de novos catálogos de “direitos”10, como corolário da mencionada igualdade de tratamento e do princípio da não discriminação. Poderá então sustentar-se que face a tão vasto programa educativo e tão completo objectivo de formação cívica, as nossas dúvidas seriam infundadas. Um amplo conceito de cidadania e uma abrangente vertente educacional já preencheriam todos os “campos” sobre a Pessoa Humana e a sua dignidade, donde as perguntas do porquê fazer, do porquê actuar, do porquê educar e do porquê participar estariam plenamente respondidas. Cidadão e Homem seriam um só e a divisão outrora existente não teria hoje qualquer sentido. Nesta vertente de pensamento o cidadão é o homem concreto e este é o cidadão dos tempos actuais, surgindo a educação para a cidadania como um todo que se dirige a uma mesma realidade. Respeitando tal entendimento pensamos todavia que a questão justifica e merece que sigamos outra via. Uma via que continua a privilegiar a ideia segundo a qual o Homem está sempre antes do cidadão, pelo que este há-de ser, em primeiro lugar, o que for aquele e não o inverso. A educação para a cidadania, mesmo que abranja ou se aproxime da identidade própria do Homem e dos direitos que lhe são inatos, não deixa de traduzir a corrente ou correntes políticas dominantes. Bastará pensar em algumas situações hoje consideradas naturais nos direitos dos cidadãos dos países da União Europeia, e como tal inseridas nos tópicos da educação para a cidadania, mas que deles não faziam parte há algumas décadas atrás11; e bastará que nos interroguemos sobre o sentido da manutenção da pena de morte12, em Estados democráticos habitualmente referenciados como Questão habitualmente identificada com a existência de quotas mínimas de mulheres em lugares políticos e da administração pública. 10 Direitos que incluem a possibilidade de celebrar “casamento” entre pessoas do mesmo sexo, algo que entre nós passou a ser possível após a revisão constitucional de 2004, por alteração do nº 2, do art. 13º (Princípio da igualdade), da Lei Fundamental portuguesa, e que, de acordo com uma determinada corrente, deveriam ainda passar a incluir a possibilidade de adopção por “casais” homossexuais. 11 Refira-se a título de exemplo o direito de voto das mulheres na França, apenas instituído pelo Decreto-Lei de 21 de Abril de 1944. 12 Pena de morte que em Portugal começou por ser abolida para crimes políticos, pelo Acto Adicional à Carta Constitucional, de 5 de Julho de 1852 (art.º 16º), sendo a abolição posteriormente estendida aos crimes civis, pela Lei de 1 de Julho de 1867. Mais tarde, o Decreto com força de lei de 16 de Março de 1911, estipulou que essa abolição abrangeria também os crimes militares, vindo a Constituição de 21 de Agosto de 1911, a inserir nas suas normas a proibição geral da pena de morte (art. 3º, 22º), não obstante a lei de revisão nº 635, de 28 de Setembro de 1916, ter eliminado aquela disposição inserindo em sua substituição um novo art. 59º-A, estipulando no seu § único que a pena de morte poderia ser admitida em caso de guerra com país estrangeiro, “…em tanto quanto a aplicação dessa pena seja indispensável, e apenas no teatro da guerra”. Esta excepção manterse-ia na Constituição de 11 de Abril de 1933 (art. 8º, 11º). Cf. MIRANDA, Jorge, As Constituições Portuguesas de 1822 ao Texto Actual da Constituição, 5ª ed., Lisboa, Livraria Petrony, 2004, pp. 107, 149, 167 e 189. Sobre a Lei de 1 de Julho de 1867, cf. http:legislacaoregia.parlamento.pt/V/1/42/79/p.289. Já no regime político actual, duas referências são de fazer: a primeira para evidenciar o facto da pena de morte ter deixado de ser admitida, seja em que circunstância for, logo na versão inicial da Constituição de 2 de Abril de 1976 (art. 25º, nº 2 – actual art. 24º, nº 2); a segunda, em reforço desta disposição, para sublinhar que os constituintes, no que foram seguidos pelos revisores 9

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exemplo em matéria de direitos dos cidadãos e em educação cívica13. Daqui se infere como a perspectiva de uma Educação para a Cidadania centrada nos critérios da cidadania política e nas disposições que o positivismo jurídico lhe destina, se pode, na nossa opinião, manifestar redutora. É com base nesta precisa delimitação que nos propomos dar um simples contributo analítico quanto à temática em apreço. Para nós falar de Educação, ou de Educação para a Cidadania, exige que nos interroguemos sobre o Homem e sobre os fins a que ele destina a sua conduta. Mas para que tal suceda não basta que discutamos os meios, devemos antes ter a ousadia de discutir os Princípios. Se a Educação é uma projecção de comportamento para o futuro, temos de assumir que esse futuro será condicionado por aquilo que somos e por aquilo que fazemos no presente. Educar tendo só em vista o cumprimento de um programa, ainda que esse programa tenha sido sufragado por uma maioria, pode levar-nos a continuar numa caminhada apressada e sem consistência em direcção ao lugar que julgamos querer atingir, mas chegados ao fim da linha podemos talvez perceber que alcançámos o imenso vazio, das sociedades preenchidas - como bem assinalou Gilles Lipovetsky - pela apatia, pela indiferença e pelo isolamento. A apatia, a indiferença e o isolamento dos que apesar de viverem rodeados de muitos raramente se apercebem que estão realmente sós14. E é por isso que nos atrevemos a afirmar que Educar para a Cidadania não é nunca um fim é um meio; educar para a cidadania não é o princípio dos princípios, mas o caminho que devemos seguir para em nome de um Princípio alcançarmos um Fim. O que queremos dizer com tal afirmação? Simplesmente que antes de decidirmos o que é a Educação para a Cidadania, devemos perceber para que educamos e com que finalidade, porque só a partir dessa percepção estaremos em condições de fazer escolhas, de adquirir sentido crítico, de assumir na plenitude um lugar activo na sociedade. Primeiro está o Homem e a sua dimensão humana, só depois surgem os programas e os seus respectivos conteúdos. Dizer a um cidadão que vive em democracia, explicar-lhe o que ela significa, indicar-lhe o que nela e com ela pode fazer, sem previamente lhe falar de si próprio e do que deve, enquanto Homem, enquanto Pessoa Humana, desejar da comunidade em que se insere, contribuindo para que ela seja um espaço de permanente união no respeito pela diferença de cada um dos seus membros e acima de tudo no respeito pelos valores comuns que distinguem os Homens dos outros seres vivos, pode ser uma missão coroada de êxito no imediato, mas deficitária a longo prazo. E se, como dissemos, primeiro está o Homem e a sua dimensão humana impõe-se que perguntemos: que Homens desejamos e ambicionamos para a Comunidade em que vivemos e para a Comunidade do futuro? Que Homens esperamos constitucionais, não admitiram a possibilidade de extradição por crimes a que no direito do Estado requisitante corresponda pena de morte (art. 23º, nº 3 – actual art. 33º, nº 6). Cf. MONTEIRO, Manuel, Constituição da República Portuguesa – Memória de um Percurso, Lisboa, Universidade Lusíada Editora, 2010, pp. 58, 73-74-75. 13 Situação verificada em mais de trinta dos Estados federados nos EUA. 14 Sobre esta reflexão cf. LIPOVETSKY, Gilles, A Era do Vazio, Lisboa, Relógio D`Água, 1989.

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ter e vir a ser no século XXI, um século que começou preenchido por dúvidas, por incertezas, por uma crescente onda de insegurança em relação a direitos e garantias que se julgavam conquistas permanentes e irreversíveis? Confrontados com a crescente instabilidade económica e o desemprego progressivo, com o drama do terrorismo internacional e do fanatismo religioso, com a emigração e a correspondente partilha de espaço com povos de culturas e hábitos diferentes, com o constante enfraquecimento dos Estados e a falta de resposta dos respectivos governos para, por si, resolverem os novos problemas e enfrentarem os novos desafios, como irão reagir os Homens em geral e os cidadãos de cada Estado nacional em particular? A resposta a este conjunto de questões está fundamentalmente, no nosso entender, na Educação, se preferirmos na Formação. Independentemente do clamor quase colectivo pela adopção de medidas políticas, económicas e financeiras, ao nível nacional ou supra-nacional, para resolver os dilemas da crise que no presente século atravessamos, a formação humana é, continua a ser, um dos antídotos mais eficazes para enfrentar problemas e ultrapassar situações que se consideram em muitas circunstâncias de difícil resolução. A formação de quem lidera e dirige e a formação de quem escolhe os que lideram e dirigem. Essa formação há-de estar orientada para a ideia de que o saber pensar é uma condição necessária ao saber agir, pelo que ensinar a pensar é tarefa prioritária ao ensinar a fazer. Pensar é descobrir, é aprender, é compreender, é ter dúvidas antes de encontrar as certezas, é não temer perguntar, escutar, reflectir, para conscientemente poder decidir, para livremente poder escolher. Não foi seguramente por acaso, que um dos maiores humanistas que a Europa conheceu teve a preocupação de definir com exactidão o que deveria o Príncipe aprender. Ele sabia que tão ou mais relevante que os conhecimentos sobre a Política, o Estado, o Governo, o Poder, a Estratégia, a arte de conduzir Povos, era a formação humana. E por isso mesmo escreveu aquela que para nós continua a ser neste domínio uma das mais relevantes e marcantes obras. Referimo-nos ao livro “Educação a um Príncipe Cristão”15 e ao seu autor Erasmus de Roterdão, para quem o SER antecede sempre o TER, pelo que aquele que possui a missão de governar e de dirigir a comunidade, deve pautar a sua conduta por princípios que o habilitem a considerar o seu semelhante como de si próprio se tratasse. Erasmus foi um dos grandes pensadores a identificar a Educação com a Cultura, não sendo assim de estranhar que tenha considerado essencial ao Príncipe a leitura dos “Provérbios e do Livro da Sabedoria”, de Salomão; dos “Evangelhos”; dos “Livros de Plutarco16 e de Séneca17”; da “Política”, de Aristóteles, do “De officis” (Dos Deveres), de Cícero e da “República”, de Platão. Segundo ele, a Educação teria de ser percepcionada como um pressuposto da Cf. ERASMUS, The Education of a Christian Prince, 10ª ed., Cambridge, Cambridge University Press, 2010. 16 De quem podemos indicar, como uma das suas mais importantes obras, o livro “Vidas Paralelas”, na qual o pensador grego nos apresenta uma biografia de ilustres homens da Grécia Antiga e de Roma. 17 Lúcio Anneo Séneca (4 a.C – 65 d. C), cuja obra “Sobre a Brevidade da Vida” é um importante testemunho sobre a matéria que analisamos. 15

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existência de valores, que não só nos ajudam a compreender o mundo em que estamos inseridos, como nos possibilitam perceber que a vida humana não é destituída de fundamentos e que nesses fundamentos a busca da harmonia entre os Homens é tarefa insubstituível. Falar de Educação seria nestes termos falar da transmissão de legados, de referências, que ao evidenciarem a Ética do comportamento e da atitude na governação da comunidade, não deixariam de assumir que o fim da acção pública deve ser sempre orientado para o respeito e para o bem dos Homens. E se para alcançar esse fim o Príncipe necessita de legislar importará que nunca esqueça, tal como Erasmus também ensinou, que “…não existirá nenhuma lei verdadeira a não ser que seja justa e conduza ao bem-estar comum”18. E é no seguimento destas ideias, que podemos procurar responder à pergunta sobre o que é educar: (i) Educar é transmitir valores, dar testemunhos de vida e de vivências, conferir a cada membro da comunidade o sentido da Justiça, para que ele possa saber que os seus direitos de participação na busca dessa Justiça não estão dependentes de leis tantas vezes transitórias, submersos perante a vontade errática daqueles que as fazem ou desfazem em função de modas, de conjunturas, de momentos, de sondagens ou de escolhas eleitorais. E se este ensinamento é válido para o Príncipe, se preferirmos para quem governa e dirige, é ainda mais válido para os Príncipes da Democracia, ou seja para aqueles que têm a majestade de decidir pelo seu voto quem os há-de conduzir e liderar; (ii) Educar não é apenas transmitir conhecimentos ou dar competências para a preparação de técnicos habilitados a fazerem um diagnóstico rápido e eficaz, conducente à reparação de qualquer problema; educar é formar, é ajudar a que esses mesmos técnicos, seja qual for a sua área de graduação ou de intervenção, não esqueçam que são Homens que vivem e convivem com outros Homens. Evocar Erasmus de Roterdão a propósito da “Educação para a Cidadania”, não é um simples exercício bibliográfico, mas um convite consciente a que não temamos revisitar o passado sempre que nele possamos encontrar bases sólidas para sabermos enfrentar o futuro. Bases aliás que já encontrávamos nos filósofos gregos que ao pensarem a Cidade, cedo explicavam que o que todos os homens conscientes devem procurar é o caminho do justo. A Justiça, ou a sua busca incessante, é a meta que de forma reiterada e persistente devemos continuamente querer alcançar. E se alcançá-la deve ser ambição comum a todos os Homens, nenhuma educação que pretenda formar cidadãos pode deixar de a incluir nos seus sumários. Quando falamos dos direitos humanos, da dignidade e dos direitos dos Povos, do direito à inclusão, do respeito pelas minorias, da igualdade de tratamento e de oportunidades para todas as pessoas, da defesa do ambiente e do património cultural, estamos a falar de Justiça. E como vivemos em regime democrático estamos a falar de Justiça e de Liberdade, na assumpção plena de que não há justiça sem liberdade, nem 18

Cf. ERASMUS, cit…, p. 79.

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liberdade sem justiça. Mas tal como o cidadão politicamente tipificado não se confunde com o Homem, também a Justiça não se pode confundir com a Lei19. Esta prescreve, define, regula e orienta conteúdos educativos que mudam, ou podem mudar, de acordo com as circunstâncias, as certezas e as incertezas do momento, aquela garante a imutabilidade e a perenidade de princípios que devem acompanhar o Homem ao longo dos tempos. Talvez não seja então indiferente que procuremos saber o que fomos e somos, tendo em vista descobrir o que queremos ser e para onde caminhamos perante as novas realidades. Fazê-lo não é mais do que assumirmos algo muito simples: o fim das coisas, recordamos, não pode nunca esquecer o Princípio e este não se confunde nem com a forma, nem com os meios a que ela recorre para a sua concretização. O principio é a essência a partir da qual se busca um fim, a forma e os meios mais não são do que os modelos encontrados para se alcançar esse fim. Um programa educativo será sempre – como já anteriormente assinalámos – um meio, a forma para se alcançar um objectivo a partir de um princípio, de um fundamento, da razão principal que nos leva a prosseguir numa dada direcção. Definir um modelo ou um “guião” para, ou sobre, a Educação para a Cidadania, não é tarefa independente, sequer autónoma, da ambição possuída quanto ao tipo de cidadãos e de Cidade que esperamos ter. Seria idêntica a comunidade conduzida pelas ideias sustentadas por Erasmus, ou por Frederico da Prússia no seu livro “O Anti-Maquiavel”20, se em seu lugar adoptássemos ou adoptarmos os conselhos de Nicolau Maquiavel21? Teriam a mesma atitude e comportamento os cidadãos das Cidades e dos Estados, se forem “educados” de acordo com um ou outro modelo? Objectar-se-á eventualmente ao que temos dito até aqui, defendendo-se que em sociedades democráticas os princípios estão claramente definidos e até devidamente enquadrados por textos constitucionais resultantes de um poder constituinte legítimo e legitimado. Longe estarão os tempos em que Erasmus e Maquiavel, cada um de acordo com a sua filosofia e com o seu modo próprio de ver os Homens nas suas relações sociais, transmitiram “ensinamentos” antagónicos. A Democracia, enquanto governo que emana do povo e por ele é periodicamente fiscalizado e sufragado, será garantia bastante para que os cidadãos, devidamente informados e instruídos quanto aos objectivos a alcançar, saibam o que fazer, como fazer e quando fazer. Nesta lógica, educar para a Cidadania não seria assim mais do que um normal processo inerente, quem sabe se inato, à própria existência dos regimes democráticos, os únicos regimes nos quais verdadeiramente podemos apontar a existência de cidadãos22. Sendo nestes regimes o povo livre, Confusão muitas das vezes feita quando se evoca o Estado de Direito e se resume o direito e a justiça à lei positiva. Cf. a este propósito a reflexão feita por DOMINGUES, José, MONTEIRO, Manuel, «Lucubrações em torno do Estado de Direito», in Revista Lusíada DIREITO, Série 2, nº 4, Lisboa, Universidade Lusíada Editora, 2011, pp. 189-235, bem como as posições de CRUZ, Eduardo Vera, Curso Livre de Ética e Filosofia do Direito, Lisboa, Principia, 2010. 20 Cf. Frederico da Prússia, O Anti-Maquiavel, Lisboa, Guimarães Editores, 2000. 21 Cf. MAQUIAVEL, Nicolau, O Príncipe, Lisboa, Guimarães Editores, 2007. 22 Perspectiva já evidenciada por Aristóteles quando considerou que “Determinada pessoa que é cidadã numa democracia não o é numa oligarquia”. Cf. ARISTÓTELES, Tratado da Política, Mem Martins, Europa-América, 1977, p. 32. 19

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governando-se a si próprio através de representantes eleitos, estando os direitos e os deveres de cada cidadão constitucionalmente identificados e possuindo a lei autoridade democrática, o que faltará fazer é agilizar procedimentos, levar informação a quem a não possui, ensinar afinal cada membro da comunidade a contribuir para a manutenção, quem sabe se revitalização, do próprio sistema instituído. Dir-se-á também nesta senda que se a lei é, directa ou indirectamente, feita pelo Povo e se a lei nos diz quem é Cidadão, quem pode ser Cidadão, o que significa ser Cidadão, nada mais importante haverá do que educar cada um de nós para um determinado modelo de cidadania que em nome da liberdade, tal qual a lei formalmente a define, nos permite falar, participar, intervir e deliberar. Compreendendo essa possível objecção ao nosso ponto de partida, bem como às premissas que têm conduzido o nosso raciocínio, parece-nos prudente continuar a seguir Erasmus e a dele recolher os alicerces para a nossa exposição. Educar para a Cidadania, seja o Príncipe que herda o trono, o Príncipe que é escolhido democraticamente para o “ocupar”, ou o Povo, que é ele próprio em cada um dos seus membros o Príncipe reinante, implica na nossa visão uma formação humanista, e uma formação que deverá ser prévia à informação sobre o catálogo de direitos e de deveres que cada um de nós dispõe. E nessa Formação haveremos de incluir a defesa da Família natural, da Honra, da Ética, do Bem, da Justiça. E quando o fizermos perceberemos finalmente algo que por vezes anda esquecido em muitos programas formativos e de esclarecimento cívico: uma comunidade, se quiseremos uma sociedade, onde estes valores estejam sempre presentes é uma comunidade ou uma sociedade que não esquece que a Lei deve estar sempre ao serviço do Direito e que este está ao serviço da Justiça. O que qualquer Educação para a Cidadania deve reflectir é que quando comunica os direitos que temos e os deveres que possuímos no seu exercício, isso significa que eles existem porque nós existimos e não porque uma vontade legal o determinou. E isto é válido ainda quer quando seguimos o que nos disse Benjamin Constant ao defender que mesmo no caso das Constituições, tal como as leis, não declararem os nossos direitos, nem por isso eles deixam de existir; quer quando perfilhamos a tese de Lopes Praça23, ao referir que os direitos individuais deverão estar discriminados, “… como ponto de firmeza que sustentará a dignidade humana contra as tentativas d`usurpadores que, aspirando à tyrannia, se escudam na obediência á lei para conseguir os seus propósitos criminosos”24, não obstante lembrar ser “… do fim individual que nos elevamos ao fim da humanidade…”25, porque “…é da natureza do homem que devemos partir para a mais perfeita fixação das suas relações jurídicas”26. Será pois bom recordar, que se a Educação para a Cidadania seguir esta direcção seremos efectivamente cidadãos, mas se a não seguirmos, se apenas nos escudarmos num eventual programa convencional previamente definido, não seremos mais do que súbditos, ainda que a lei formalmente nos diga que deixámos de o ser. Eminente homem do Direito e grande vulto do constitucionalismo português do séc. XIX. Cf. PRAÇA, José Joaquim Lopes, «Direito Constitucional Portuguez, v. I»», in Boletim da Faculdade de Direito, Universidade de Coimbra, STVDIA IURÍDICA, 25, Coimbra, Coimbra Editora, 1997, p. 23. 25 Idem, ibidem. 26 Idem, ibidem. 23 24

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2. A Cidade que desejamos ser Tendo presente o que dissemos torna-se imperioso que façamos uma breve incursão sobre o que queremos dizer quando nos afirmamos Cidadãos ou quando identificamos os demais como Cidadãos. O que é afinal um Cidadão? Disse-nos Aristóteles que Cidadão é aquele “…a quem foi concedido o direito de cidade… ”27, esclarecendo que “O que constitui propriamente o cidadão, (…), é o direito de sufrágio nas Assembleias e de participação no exercício do poder público na sua pátria”28, ou seja, ainda de acordo com o seu pensamento, “É «cidadão» aquele que, no país em que vive, é admitido na jurisdição e na deliberação”29. Estas afirmações, se bem pensarmos, não terão sofrido substanciais alterações, ao longo dos séculos. O que ressaltará como ponto evidente de distinção é o rol daqueles a quem o estatuto de cidadania plena é atribuído, salvaguardadas as circunstâncias das épocas, dos tempos, dos regimes e dos sistemas políticos. Bastará a este respeito recordar o que entre nós, no séc. XIX, se passou com a distinção entre cidadão activo e cidadão não activo, matéria a que, entre outros, muito se dedicou Bernardo Amaral, para traduzir no primeiro caso os que tinham direitos políticos e no segundo os que apenas possuíam direitos civis30. Se é verdade que a qualidade ou o estatuto de cidadania tinha alcance bem diferente daquele que foi percepcionado por Aristóteles, na Grécia Antiga, não é menos verdade que, mesmo nas épocas mais próximas dos tempos presentes, quer o direito de cidadania, quer os direitos que nesse direito estavam incluídos, conheceu e conheceram múltiplas vicissitudes e contornos. Parece-nos óbvio que o termo se apresenta com um conteúdo marcantemente político, a que não é alheio o facto do seu enquadramento e alcance ser definido e preenchido pela vontade do poder dominante. Isso contribuiu para que no plano jurídico se encontrasse a fundamentação adequada, justificativa afinal do entendimento que o poder dirigente lhe pretendia conferir. Vejamos alguns exemplos sumários disso mesmo: (i) Marcello Caetano falava de cidadãos como os “…membros do Povo que forma o elemento humano do Estado…”31, identificando dessa forma cidadãos com os nacionais de um determinado Estado, no que tem sido seguido até hoje por ilustres constitucionalistas e homens do direito em geral. (ii) Outros autores fazem a distinção entre cidadania e nacionalidade, preferindo aliás a primeira das designações à segunda para se referirem Cf. ARISTÓTELES, … cit, p. 35. Idem, p. 33. 29 Idem, p. 34. 30 Cf. a este propósito AMARAL, Bernardo de Albuquerque e, Direito eleitoral portuguez, Coimbra, F, França Amado-Editor, 1903, p. 15. Interessante é também a evolução registada em França sobre a distinção entre cidadãos activos e cidadãos passivos, de acordo com a Constituição francesa de 1791, posterior eliminação do critério distintivo, deliberada pela Assembleia legislativa francesa, de 10 de Agosto de 1792, seguida de reposição da distinção anterior, cf. DUGUIT, Léon, Manuel de Droit Constitutionnel-Théorie générale de l`´Etat, 4ª ed., Paris, E. de Boccard, Éditeur, 1923, pp 332- 335. 31 Cf. CAETANO, Marcello, Manual de Ciência Política e Direito Constitucional, t. 1, Coimbra, Almedina, 1996, p. 125 27 28

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aos membros de uma comunidade concreta (reservando-se esta última para a identificação de pessoas colectivas, naves e aeronaves). É o caso de Gomes Canotilho e de Vital Moreira, ao referirem que a cidadania traduz o “…estatuto de inclusão de uma pessoa individual, definido e caracterizado em termos políticos, jurídicos e sociais no contexto de um Estado”32, e também de Jorge Miranda que afirma a cidadania como a “…qualidade de membro de uma comunidade política33, significando “… ainda, mais vincadamente, a participação em Estado democrático”34. Não sendo de negar que os conceitos de «cidadão» e de «cidadania» sofreram alterações ao longo dos tempos, nomeadamente em Portugal entre o séc. XIX e o séc. XXI, a verdade é que falar de cidadania, com mais ou menos ligação à condição de nacional de uma comunidade politicamente organizada – de um Estado -, é falar de uma posição política resultante da decisão de quem governa, de quem detém o poder para determinar alterações à Constituição, para legislar ou até celebrar convenções internacionais tendo em vista estabelecer as condições de atribuição da cidadania a estrangeiros. Uma posição afinal, que decide a quem o estatuto é conferido, como é conferido e pode ser exercido35, e uma posição que igualmente decide como ele deve ser preenchido. É assim: (iii) na nossa Constituição desde 197636, como o foi nas Constituições que lhe antecederam37; (vi) com as Constituições de todos os Estados, democráticos ou não democráticos; (v) ao nível da União Europeia, que a partir do Tratado de Maastricht passou a referenciar no art. 8º, do seu Título II, a existência de uma cidadania europeia, ao estipular que “É cidadão da União qualquer pessoa que Cf. CANOTILHO, J.J. Gomes, MOREIRA, Vital, Constituição da República Portuguesa anotada, v. I, Coimbra, Coimbra Editora, 2007, p. 223. 33 Cf. MIRANDA, Jorge, MEDEIROS, Rui, Constituição Portuguesa anotada, t. I, 2ª ed., Coimbra, Coimbra Editora, 2010, 122. 34 Idem, p. 123. 35 Recordemos a este respeito o facto dos cidadãos portugueses residentes no estrangeiro, ao contrário dos cidadãos portugueses residentes em território nacional, não poderem – até à revisão constitucional de 1997 – exercer o direito de voto nas eleições presidenciais. Tal situação para além de significar que existiam portugueses com os seus direitos de cidadania amputados no plano eleitoral, ajuda a demonstrar como podem ser relativos e subjectivos os conceitos, e respectiva extensão, de cidadão e de cidadania. 36 Que no seu art. 4º (Cidadania portuguesa), indica serem cidadãos portugueses os que por lei ou convenção internacional sejam considerados, ou seja aqueles a quem politicamente interessa definir como tal. Cf. MONTEIRO, Manuel, Constituição da República…cit, p. 33. Relevantes são ainda neste sentido, e em complemento do que afirmamos, as últimas alterações à Lei da Nacionalidade introduzidas pela Lei Orgânica nº 2/2006, de 17 de Abril. Cf. Diário da República – I Série A, nº 75, de 17 de Abril de 2006, bem como o debate parlamentar que a este respeito se realizou in Diário da Assembleia da República, I Série, nº 54, de 14 de Outubro de 2005, pp. 2456-2480. 37 Situação que pode ser constatada nos arts. 21º e 22º, da Constituição de 1822; no art. 7º, da Carta Constitucional de 1826; no art. 6º, da Constituição de 1838; no art. 3º, da Constituição de 1911; no art. 7º da Constituição de 1933. Cf. MIRANDA, Jorge, As Constituições Portuguesas…cit, pp. 32-33, 80, 120, 147-150 e 189. 32

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tenha a nacionalidade de um Estado-Membro”38; (vi) ainda ao nível da União Europeia, com o Tratado de Amesterdão, que sucedeu ao Tratado de Maastricht, a esclarecer no seu art. 17º, do Título II, que “A cidadania da União é complementar da cidadania nacional e não a substitui”39; (vii) ainda e uma vez mais no plano europeu, com o Tratado de Lisboa no art. 20º, nº 1, do Tratado Sobre o Funcionamento da União Europeia, ao dispor que “A cidadania da União acresce à cidadania nacional…”40, mantendo também a alusão ao facto de não a substituir. É pois de realçar, ainda e outra vez, a circunstância de que a Educação para o Cidadão, não substitui (e pode não preencher todos os seus desígnios) a Educação para o Homem concreto, seja qual for o revestimento do seu estatuto político. E nesse sentido, seguindo o raciocínio exposto, revela-se útil à nossa compreensão que confiramos destaque à Declaração Universal dos Direitos do Homem quando refere no Preâmbulo o “…reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana…”41, quando afirma no seu artigo 1º que “Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos”42, e quando esclarece no seu artigo 2º que “Todos os seres humanos podem invocar os direitos e as liberdades proclamados na presente Declaração…”43. Que significado podemos daqui retirar? (i) Em primeiro lugar, que o Homem está antes do Cidadão; (ii) Em segundo lugar, que o estatuto de cidadania decorre da condição humana, não é a condição humana que decorre do estatuto de cidadania. Compreender-se-á agora, assim o esperamos, o que temos vindo a dizer no decurso da nossa exposição. Ser cidadão de um Estado nacional, de um Estado federal ou de uma comunidade inter – Estadual regional, apenas traduz aquilo que o poder ou poderes políticos quiseram num exacto momento, numa exacta situação, daí resultando que a Educação para a Cidadania se desligada da essência daquele que a recebe, pouco significado possua. É nessa essência que Cf. Tratado da União Europeia, Lisboa, Arco-Iris, 1992, p. 25. Sobre a evolução ao nível dos Tratados Europeus, da matéria relativa à cidadania desde a Cimeira de Paris, em 1974, até ao Tratado de Maastricht, cf. PIRES, Francisco Lucas, Os Novos Direitos dos Portugueses: Explicação e súmula dos nossos direitos de cidadania europeia, Lisboa, Difusão Cultural, 1994, e em particular as pp. 35-56. 39 Cf. MONTEIRO, Manuel, FERREIRA, Jorge, Tratado de Amesterdão – Edição comparada, comentada e anotada, Lisboa, Edições Cosmos, 1998, p. 37. 40 Cf. PORTO, Manuel Lopes, ANASTÁCIO, Gonçalo, (coords.), Tratado de Lisboa – Anotado e Comentado, Coimbra, Almedina, 2012, p. 257. De referir ainda que no seu artigo 20º, o Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia, mantém, como é assinalado por Moura Ramos, “…em grande medida o que havia sido consagrado a este propósito quer no Tratado de Maastricht quer nas alterações subsequentes (de Amesterdão e Nice)”. Cf. RAMOS, Rui Manuel Moura, «Anotação aos artigos 18º - 23º do TFUE», in PORTO, Manuel Lopes, ANASTÁCIO, Gonçalo, (coords.), Tratado de Lisboa – Anotado e Comentado, Coimbra, Almedina, 2012, p. 260. 41 Cf. MIRANDA, Jorge, org., Direitos do Homem, Lisboa, Petrony, 1979, p. 13. 42 Ibidem, p. 15. 43 Ibidem. 38

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encontramos razões para distinguir o que é substancial do que é complementar e é também através dela que percebemos ser a dimensão humana superior a regimes ou a decisões políticas maioritárias, porque os direitos de cada ser humano não se desligam ou ligam consoante as tendências políticas, mesmo quando estas resultam da escolha eleitoral44. Aceitar esta posição tem riscos e é um imenso desafio no século em que nos encontramos. Tem riscos para quem domina, porque pode colocar em causa um conjunto de verdades feitas, erguidas em dogmas absolutos e inquestionáveis, mas é um imenso desafio para a afirmação dos Homens e das Mulheres enquanto membros plenos das respectivas comunidades. Não se depreenda contudo de quanto fica dito, menor sentido de relevância dado por nós à temática da Cidadania em particular45 e da Educação para a Cidadania em geral, como aliás afirmámos na nota introdutória. O sentido de responsabilidade, de solidariedade, de preocupação e empenho na resolução conjunta e colectiva dos problemas sociais, o interesse pela vida pública, o incremento da democracia participativa, o exercício contínuo dos direitos e deveres cívicos inerentes à democracia representativa, sendo questões recorrentes na Educação para a Cidadania assumem papel de destaque na sociedade actual. E maior é o seu destaque e importância, quando somos confrontados com os impasses sobre a nova ordem internacional que tarda em afirmar-se, denotando uma falta de rumo nas lideranças dos antigos Estados nacionais. Com imensas interrogações no presente e não menos dúvidas quanto ao futuro, a velha cidadania nacional parece abrir caminho para a cada vez mais reivindicada cidadania mundial46, como elemento de identidade de um novo mundo que alguns acreditam ser necessário construir. Um novo mundo que não se fecha na mundialização económica e financeira, que se abre no plano político e institucional aos próprios cidadãos e que em seu nome encontra soluções e respostas, à escala global, para os problemas das pessoas e dos povos. Soluções e respostas que implicando a necessidade de uma regulação política supranacional, reivindicariam uma consciencialização, participação e intervenção dos cidadãos num plano bem diferente daquele em que habitualmente se envolvem e uma identificação da cidadania em moldes inovadores. Fala-se já Donde se depreende não serem as maiorias, mesmo que constitucionais, no plano dos valores e dos princípios, a poderem definir ou redefinir, estipular ou alterar, o que sejam os direitos inatos a cada pessoa. Ao poder político apenas caberá reconhecê-los e conferir-lhes, como bem salientou Lopes Praça, a firmeza necessária para que não possam ser violentados. O respeito pela dignidade humana, que umas vezes se manifesta através do estatuto político de cada cidadão e outras dele se encontra arredado, deve ser sempre o princípio e o fim de qualquer acção que vise a formação dos homens. (Sobre o conflito que se pode manifestar entre o respeito da dignidade humana e as decisões maioritárias, cf. OTERO, Paulo, Lições de Introdução ao Estudo do Direito, v. I, t. 1, Lisboa, Pedro Ferreira Editor, 1998, pp. 82-83). 45 Temática a que muitos pensadores se têm dedicado em Portugal, com intervenções e publicações de referência. Cf. nesse sentido, e a título exemplificativo, AAVV, Estado & Cidadania: O que impede boas Políticas?, Lisboa, Esfera do Caos, 2007. 46 Relembrando a frase atribuída a Sócrates, na citação que dele foi feita por Plutarco, “Não sou ateniense, nem grego, mas sim um cidadão do mundo”. Cf. também sobre «cidadania mundial», o interessante trabalho de AVRITZER, Leonardo, «Em Busca de um Padrão de Cidadania Mundial», in Lua Nova – Revista de Cultura e Política, nº 55-56, São Paulo, CEDEC- Centro de Estudos de Cultura Contemporânea, 2002, pp. 29-55. 44

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inclusive na “…emergência de uma teoria da cidadania na globalização”47e da “cidadania pós-nacional”48, a que poderia corresponder “…uma cidadania legal transnacional…”49, pressuposto de criação de “…uma base legal em um mundo no qual apenas a circulação de mercadorias tem base legal…”50 e uma “…cidadania social transnacional, capaz de assegurar no plano internacional direitos sociais e especialmente condições mínimas de trabalho para que as mercadorias possam circular internacionalmente”51. Se por um lado se tentará responder à globalização/ mundialização económica, com uma globalização/mundialização de e das pessoas, de e dos cidadãos, é manifesto por outro que tais inquietações/preocupações denotam também a constatação de que o conceito de cidadania nacional está em crise. Uma crise que acompanhando a crise dos Estados nacionais soberanos, demonstra que há hoje novas questões, novos horizontes, que se colocam aos cidadãos e que muitos estimam já não poderem ser enfrentados no plano meramente nacional e regional. Espaços como o da própria União Europeia seriam insuficientes para, por si só, definir metas e objectivos a médio e a longo prazo capazes de dar cabal resposta às realidades emergentes. Ainda nestes termos o apelo a uma Educação para a Cidadania concebida e conceptualizada nos moldes tradicionais, correria o risco de se mostrar totalmente desadequada, desenquadrada e ultrapassada, devendo em seu lugar surgir uma Educação para a Cidadania mundial que contemplasse e integrasse os conteúdos locais, nacionais e inter- Estaduais regionais. Percebe-se assim quer o impacto e alcance do tema que a Universidade Lusíada de Famalicão entendeu levar a debate, quer o infindável conjunto de matérias cuja reflexão e discussão ele potencia. E não foi seguramente por acaso que o título da conferência foi Educar para a Cidadania no séc. XXI, porque efectivamente a Educação para a Cidadania neste século não pode apenas ser contextualizada no seu habitat costumeiro. Temos pela frente, para o bem e para o mal, algo para que enquanto cidadãos não estávamos preparados. Ao choque das civilizações anunciado por Samuel Huntington, sucede o choque das imprevisões num mundo que em nome das pessoas e supostamente a seu favor, permitiu que avançássemos numa direcção para a qual objectivamente não tínhamos nem previsão, nem preparação. Maioritariamente acantonados nos seus territórios nacionais, esperando ou até exigindo dos governos dos seus Estados o que eles já não têm força para dar, os cidadãos não se aperceberam de que o poder lhes foi gradualmente saindo das mãos e é hoje, em múltiplos aspectos, um elemento de retórica formal, inscrito em Constituições cuja posição cimeira nos ordenamentos jurídicos internos já teve melhores dias. A nova Educação para a Cidadania, a que se espera no séc. XXI, não pode pois deixar de reflectir os dados da nova equação, uma equação que implica, ou pode implicar, uma reaprendizagem da nossa forma Idem, p. 53 Idem. 49 Idem, p. 52. De salientar no entanto que o autor fala da «cidadania legal transnacional», como forma “…capaz de dar direitos civis perante os tribunais às pessoas que estão provisoriamente ou permanentemente sem cidadania”. 50 Idem. 51 Idem. 47 48

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de estar na sociedade. Tudo estará em mudança e as mudanças, como sempre sucedeu, podem levar-nos ao local de partida (o que para muitos revelaria um retrocesso), ou conduzir-nos a lugares desconhecidos. Difícil será continuar no meio da tormenta. E eis, em síntese, o que nos motivou a abordar esta temática de forma diferente da habitual e o que nos incentivou a não confundir a educação para o cidadão, com a formação do Homem enquanto pessoa humana. Acompanha-nos a ideia, continua a acompanhar-nos, de que o mais óbvio é por vezes o menos perceptível. O cidadão do séc. XXI já não é, e seguramente não será, o cidadão da segunda metade e mesmo da parte final do séc. XX. A sua Educação, ou o que entendermos indicar como Educação, terá quase obrigatoriamente de obedecer a outros ditames, mas a formação do Homem, seja qual for o seu novo destino, deverá manter actuais os valores e os princípios que fazem de si algo de ímpar e incomparável. Esta nossa posição reforça-se ao relembrarmos o que foi escrito por Konrad Lorenz, quando oportunamente nos disse: “A competição do homem com o homem opõese directamente, (…), à «força eternamente activa, salutarmente criadora», para destruir com brutalidade diabólica quase todos os valores que inventou…”52. E maior é esse reforço, continuando a acompanhar este autor nas suas seguintes palavras: “A precipitação angustiante e a angústia precipitada contribuem para roubar ao homem as suas propriedades essenciais. Uma delas é a reflexão”53, pela simples razão de que “Um ser, que deixa de reflectir, está em perigo de perder todas estas faculdades e funções especificamente humanas”54. Talvez por isso, ou seguramente por isso, o tempo de hoje, em nome dos tempos do amanhã, nos aconselhem a pensar, a reflectir, para depois decidir. A pensar e reflectir em nome do Homem, conscientes de que Homens bons fazem bons Cidadãos e conscientes de igual modo, que a procura de sociedades justas é o fim para que todos devemos caminhar. E que para fazermos essa caminhada, como bem escreveu João Carlos Espada, havemos de assumir que “Não estamos sozinhos no mundo, nem o mundo começou aqui”55. Assumindo esta ideia podemos afirmar a relatividade do que tantas vezes se nos apresenta como absoluto e universal e ficaremos por certo em condições de fazer um juízo crítico do que nos trouxe até aqui! E nesse juízo podemos também incluir uma pergunta que cremos legítima: é a cidadania que emana da Democracia ou é a democracia que emana da Cidadania?56. A pergunta Cf. LORENZ, Konrad, Os oito pecados mortais da civilização, Lisboa, Litoral Edições, 1992, p. 32. Idem, p. 34. 54 Idem, ibidem. 55 Cf. ESPADA, João Carlos, Ensaios sobre a Liberdade, 1ª ed., Lisboa, Principia, 2002, p. 32. 56 Numa reflexão plena de actualidade, a propósito dos conceitos de Cidadania e Democracia no contexto das novas formas de organização política decorrentes da erosão do Estado nacional soberano, refere Pedro Ferro: “…para que a democracia funcione tem de haver uma ordem política à qual as pessoas sintam que devem a sua lealdade política fundamental (…). E isso só acontece se existir uma lealdade pré-política, se houver já uma primeira pessoa no plural, um “nós” prévio…”, concluindo que “…a democracia emana da cidadania: o sentido de uma casa comum, de uma pátria – lugar da comunidade trans-geracional que nele reside – que gera e condiciona a fidelidade política e a legitimidade política”. Cf. FERRO, Pedro Rosa, Democracia Liberal – A política, o Justo e o Bem, Coimbra, Almedina, 2012, pp. 126-127. 52 53

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que surgirá a alguns olhos mais desprevenidos como uma heresia intelectual, não desconhece o papel relevante das Constituições democráticas quer na definição do estatuto de cidadania, quer na prescrição dos direitos que aos cidadãos devam ser atribuídos. Mas esse facto não despromove um outro também real e indesmentível: se as democracias promovem, incentivam e estimulam, a contínua e permanente Educação para a Cidadania é por reconhecerem, ainda que nem sempre o assumam, que a circunstância de implantarmos, e possuirmos, um regime democrático, não pressupõe a transformação automática de quantos nele convivem em Cidadãos. O Estado constitucional democrático confere a forma, mas a forma não confere por si a substância. E a substância, ou seja os valores e os princípios que dão conteúdo e consistência à acção dos cidadãos, terá de ser encontrada nos Homens, porque sendo eles a razão de ser das democracias, só eles têm a faculdade de as orientar e de para elas indicar que caminho a cidadania deve prosseguir. Caminho afinal que nos conduza não apenas à cidade que ambicionamos ter, mas à Cidade que desejamos ser.

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