Educação para a sensibilidade: poiesis e esperança em Cora Coralina

May 27, 2017 | Autor: Fabio Cardias | Categoria: Education, Educación, Pedagogía
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EDUCAÇÃO PARA A SENSIBILIDADE: poieses e esperança em Cora Coralina

Maria Lília Silva Diniz1; Fabio José Cardias Gomes2

1 Arte-educadora popular; Licenciada em Artes Cênicas; Especialista em
Gestão Cultural.
2 Doutor em Educação; Professor Adjunto no Magistério Superior.

1 Universidade de Brasília; Instituto Nordeste de Educação Superior e Pós-
Graduação/INESPO de Imperatriz (Maranhão); [email protected]/
2 Universidade de São Paulo; Docente na Universidade Federal do Maranhão –
Campus Imperatriz; [email protected]/

RESUMO
Este trabalho se dedicou a estudar possibilidades de uma proposta
pedagógica-metodológica simplificada com inserção de referências poético-
teatrais no processo de ensino-aprendizagem no ensino superior. Para tal
desabrochar, utilizamos o universo poético de Cora Coralina. Pesquisa
exploratória de cunho hermenêutico-fenomenológico, buscamos uma
contribuição-interpretação da obra poética coraliniana, relacionando a esta
jornada interpretativa nossa experiência de leitores da obra, do Teatro em
relação a ela, da pedagogia da esperança freiriana e noções da educação de
sensibilidade.
PALAVRAS-CHAVE: educação de sensibilidade, poética-teatral, Cora Coralina.


1. SEMEADURA
Eu sou aquela mulher a quem o tempo muito ensinou.
Ensinou a amar a vida e não desistir da luta, / recomeçar na derrota,
renunciar as palavras e pensamentos negativos.
(Cora Coralina)

Este trabalho se dedica a estudar possibilidades de uma proposta
pedagógica nascida do desejo, do pensentir. No encalce da poética e sem
perder de vista a cientificidade que nos possibilita outros diálogos,
buscamos nas metáforas "um além-sentido que impregna a imagem e explode a
sua semântica, transportando os significados em sentidos diferentes. Para
além de uma crítica de tipo literário, a mitohermenêutica" (FERREIRA-
SANTOS, 2001).
Os autores principais para este estudo são Cora Coralina (1965, 2001,
2004), Paulo Freire (1994,1997, 2001 e 2002), Ferreira-Santos (2001, 2008),
Augusto Boal (1990, 1991 e 2009) com os quais utopizamos uma proposição
pedagógica libertária contida nos já citados autores-ingredientes, que nos
guiaram na formulação de uma proposta reflexiva-propositiva-prática para
uma educação de sensibilidade e com sensibilidade para o Ensino Superior.
Também nos apoiamos em experiências pessoais no teatro com o
espetáculo "Cora Dentro de Mim", exercido desde o ano 2002 como um processo
de ensinagem e aprendizagem a partir da obra literária de Cora Coralina.
Bem como em estudos de autores como Willms & Gomes (2014, 2015) sobre a
educação de sensibilidades.
O presente trabalho divide-se em três partes. A primeira indica os
caminhos teóricos e os temperos poéticopedagógicos escolhidos para
responder inquietações que permeiam nosso Ser; a segunda parte aborda a
fonte nascente de tais inquietações, o motivo do espanto, o que nos leva a
querer aprofundar na escavação do entendimento por uma nova práxis
educacional, por fim, a terceira parte que trás, de modo exemplar e em
síntese, a descrição da proposta enunciada, experienciada, como uma das
muitas possibilidades de observação, reflexão e ressignificação de caducas
práticas pedagógicas.
Observando padrões de comportamentos e metodologias utilizadas por
alguns professores do ensino superior, inclusive quando alunos da
graduação, nos espanta a falta de sensibilidade presente naqueles que são
responsáveis pela formação de formadores. Desde então, algumas perguntas
formigam nosso Ser na tentativa de compreendermos a razão geradora para a
desesperança contida na prática desses sujeitos que, em algum momento,
deixaram de acreditar na Educação como prática para o exercício da
liberdade e do diálogo, com afeto e sensibilidade. Como (des)envolver uma
educação de sensibilidade por meio da linguagem poética no Ensino Superior?
Como criar poéticas-lúdicas para se ampliar o círculo imanente da educação
superior dirigida por um reinado da razão iluminista?
Para responder tais questionamentos apresentamos uma proposta
metodológica simplificada com inserção de referências poético-teatrais no
processo de ensino-aprendizagem no ensino superior, para o desabrochar de
possibilidades, utilizando a poesia como linha e fio condutor de abertura
das percepções sensíveis na relação docente-discente, experimentando
florescências a partir da exploração do universo poético de Cora Coralina,
buscando, com tal experimentação, identificar e aflorar reflexões acerca do
modelo de educação rígida, dirigida por séculos de ditadura da razão, no
intuito de, a partir da proposta metodológica, ensaiar saídas do universo
de insensibilidades para dar sentido a um fazer poéticoeducador, e mesmo
não sabendo "se a vida é curta ou longa demais pra nós, sei que nada do que
vivemos tem sentido, se não tocamos o coração das pessoas" (CORA CORALINA,
2004, p 37).
O presente trabalho foi mediado pela pesquisa exploratória de cunho
hermenêutico-fenomenológico, na qual buscamos oferecer uma contribuição-
interpretação em relação com uma antropologia filosófica (na busca
mitohermenêutica) da obra poética coraliniana, relacionando-a a esta
jornada interpretativa, inicial, experiência de leitores da obra, do Teatro
em relação a ela, a pedagogia da esperança freiriana e noções da educação
de sensibilidade. Para tanto utilizamos a obra completa de Cora Coralina,
especialmente os livros de poesias "Poemas dos Becos de Goiás e estórias
mais" (1983), Meu Livro de Cordel (1998) e "Vintém de Cobre - Meias
confissões de Aninha" (2001). Foi fundamental experiências teatrais com o
Método "Teatro do Oprimido", criado pelo brasileiro Augusto Boal, em
especial nos livros "Teatro do oprimido e outras poéticas políticas"
(1991), "Jogos para atores e não-atores" (2009) e "Arco-íris do Desejo"
(1990) que nos acenou e alimentou esperanças por meio do convite do
teatrólogo, que soa incessantemente a nos lembrar que temos a "obrigação de
inventar outro mundo porque sabemos que outro mundo é possível. Mas cabe a
nós construí-lo com nossas mãos entrando em cena, no palco e na vida"
(BOAL, 2009).
E, a partir desta reflexão propomos um modo, exemplar, de utilização
da poética coraliniana e seu potencial educacional no ensino superior, como
por exemplo, a experimentação de interpretação, leitura e teatralização, da
sua obra em sala de aula, tendo como suporte os jogos dramáticos, do Teatro
do Oprimido, que conduziram para a possibilidade de uma compreensão
sensível das personagens, suas tramas e dramas na obra de Cora Coralina,
analisando e dialogando a partir do conceito de "opressor e oprimido", de
Paulo Freire, na educação e de Augusto Boal, no teatro.
Foi feita leitura extensiva da obra poética de Coralina, pescou-se
seus sentidos pedagógicos, bem como das referências de compreensão
escolhidas. Revimos as possibilidades de interpretação, aprofundando
sentidos, sempre de acordo com a literatura e o referencial teórico.
Desabrochamos possibilidades de utilizar esta poética, da forma que a
compreendemos na atualidade, no contexto pedagógico, de ensinagem-
aprendizagem do nível superior. Utilizamos, por fim, temperos, quase
devaneios teóricos-poéticos-pedagógicos, para descrever possibilidades de
experimentação e práticas de vivências corporais em sala de aula, ou fora
dela.

2. FLORESCÊNCIA

Banco dos meninos. / Banco das meninas.
Tudo muito sério./ Não se brincava.
Muito respeito./ Leitura alta. / Soletrava-se. / Cobria-se o debuxo.
Dava-se a lição. / Tinha dia certo de argumento
com a palmatória pedagógica / em cena.
Cora Coralina(1983)


Adentrar pelo universo poético de Cora Coralina para falar sobre
possibilidades pedagógicas no ensino superior, que sejam capazes de
despertar sensibilidades para o cotidiano, é um desafio comparado à feitura
de um doce em panela de cobre, fervido no fogo à lenha, para ser servido
aos mais diversos paladares. Alguns irão gostar com mais, outros com menos
açúcar. Mas a boniteza da feitura e a tecitura amorosa de cada palavra
escolhida faz valer o risco. Adoçando e esperanceiando a alma de quem a lê,
a escritora doceira, que tem frases e fragmentos de versos poetizando os
murais e materiais pedagógicos de várias instituições de ensino dos vários
níveis, que apontam para processos educacionais recheados de mais amor,
cumplicidade, humildade e esperança, vivenciou no seu pouco tempo de
escola, situações que poderiam, de modo fatalista, ter nos roubado a
possibilidade de provar e nos deliciar com seus escritos, e registrou sem
mágoas, segundo a mesma, o modelo da velha escola:
Nem recreio, nem exames.
Nem notas, nem férias.
Sem cânticos, sem merenda...
Digo mal - sempre havia distribuídos
alguns bolos de palmatória...
Minha escola da Mestra Silvina. (CORA CORALINA, 1983. p
45)


Tendo também experimentado o peso da palmatória em nossas mãos
infantes, não pudemos "engolir o choro" e vimos, ao longo de nossa
existência, questionando o modelo que reprime, agride, silencia, planta e
implanta a filosofia do fracasso, do medo e da inviabilidade da prática
sensível em sala de aula.
Recordamo-nos de um fato que nos gerou constrangimento, espanto e
desânimo quando, na graduação em artes, apresentávamos um seminário sobre
Paulo Freire e utilizamos o teatro de bonecos como recurso didático. Ao
terminar a apresentação a turma aplaudiu o trabalho do grupo e o professor
lançou a perguntapedrada: - Que dia vocês vão apresentar o trabalho? Esse
para mim não valeu. O silêncio se fez e a constatação do distanciamento
entre a teoria e prática se estabeleceu. "Ajuntei todas as pedras / que
vieram sobre mim. / Levantei uma escada muito alta / e no alto subi. /
Teci um tapete floreado." (CORA CORALINA, 1998, p 41). Motivados ainda
pelo estado de espanto causado pela postura de uma professora que, ao
criticar uma colega afirmou: - Você é muito boba! Pois eu quando venho para
escola deixo meu coração em casa que é pra não me envolver com esses bandos
delinquentes. Espantados, assombrados e indignados com tais posturas é que
nos deixamos conduzir pela apaixonante boniteza coraliniana para revirar os
tachos dos processos pedagógicos que nos circundam porque:
Creio numa força imanente /
que vai ligando a família humana numa corrente luminosa/
de fraternidade universal.
Creio na solidariedade humana./
Creio na superação dos erros
e angústias do presente. (CORA CORALINA, 2004, p. 132)

E cremos ainda que:
Sem certas qualidades, ou virtudes como amorosidade,
respeito aos outros, tolerância, humildade, gosto pela
alegria, gosto pela vida, abertura ao novo,
disponibilidade à mudança, persistência na luta, recusa
aos fatalismos, identificação com a esperança, abertura à
justiça, não é possível a pedagógica-progressista, que não
se faz apenas com ciência e técnica (FREIRE, 1997, p. 5).

No atual modelo educacional, a palmatória foi substituída por práticas
não menos dolorosas. Algumas delas afetam diretamente a capacidade do
indivíduo de permanecer no ambiente escolar, ou, se permanece e chega ao
nível superior, não acredita que a universidade possa ser também ambiente
para trocas de conhecimentos recheados de alegria, com camadas poéticas
amorosas ou subversivas, pitadas doces e picantes de prazer, e que possa
ser servido a qualquer hora com suave cobertura de esperança, à qual nos
convida saborear o educAmor Paulo Freire (1997).
Boal (1991), teatrólogo brasileiro, dialogando intrinsecamente com
Freire (1997) que defende a ação-reflexão e a dialogicidade como única
forma de emancipação do sujeito, cria o método Teatro do Oprimido (TO), no
qual o diálogo é peça estruturante. É por meio do diálogo, segundo Boal,
que o empoderamento do oprimido acontece, passando ele a ter consciência do
seu direito à fala e o seu direito de ser um sujeito, pleno de direitos. No
método, Boal propõe a reflexão sobre a ação durante e na ficção teatral, o
que irá possibilitar a auto-ativação para uma mudança visceral na vida
real.
Caminho pari passu com ambos, pois acreditamos que, tanto a educação
quanto a arte podem ser, também, colocadas a serviço da emancipação humana.
Para tanto, torna-se necessário cavoucarmos as entranhas da poética do ato
de educar, extraindo e provando seu doce e seu amargor, sentindo sua força
e sua fragilidade, valorizando sua singularidade na pluralidade, utilizando
desse conhecimento adquirido para nossa autotransformação, podendo assim,
quiçá, inspirar e contribuir para a transformação dos sujeitos, nos espaços
que somos protagonistas ou simples coadjuvantes.
Sabemos de crianças, que ainda nos primeiros anos de escola, são
submetidas a testes "simulados". Sabemos ainda que a "indústria dos
cursinhos", a qual defino como "máquina de triturar gente", está abarrotada
de adolescentes e jovens que são pressionados para a entrada ao nível
superior (a que/a quem mesmo?), de preferência a algum curso que lhes
garanta uma "boa profissão", ligada essencialmente a estabilidade
financeira. Fato que garante o aumento do grande número de jovens com
ansiedade e depressão, alimentando o fluxo nos consultórios psiquiátricos
e, consequentemente, a indústria da desesperança tem seus níqueis
aumentados e mesa farta.
A universidade/faculdade torna-se espaço para vivenciar o quê?
Experiências de aprendizagem para o mercado de trabalho? Torna-se então o
mercado de trabalho repleto de seres medíocres, cujo prato amargo da
desesperança vai ser oferecido, com fartura, para quem? Quais ferramentas
metodológicas podem oferecer possibilidades de reflexão e prática e que
sejam capazes de despertar e alimentar o universo das sensibilidades na
educação superior? São algumas das inquietações que nos perseguem e que nos
instiga para a formulação de um ensaio de possibilidades poéticas
pedagógicas para o ensino superior, e que já vem sendo experienciado, nesta
cozinha de saborosos afazeres e saberes, enquanto educadora/atriz/poeta ao
longo de quase vinte anos, e que tem se mostrado capaz de retirar cinzas
(desesperança) de algumas brasas (pessoas), que imediatamente voltam a
aquecer (questionar) e se abrem para receber mais carvão (informações) para
continuar a feitura do doce (vida), doceciência.
Em mim a planta renasce e floresce, / sementeia e
sobrevive.
Sou a espiga e o grão fecundo que retorna à terra./
Minha pena é enxada do plantador, / é o arado que vai
sulcando.
Para a colheita das gerações. (CORA CORALINA, 2001, p
109)


Assim, logo abaixo iniciamos a discussão teórica, que tempera o estudo
nessa busca de saberes, para uma proposta pedagógica amorosa, pautada na
dialogicidade, no encontro e na reflexão-ação, por nos compreender também
artífice de uma proposição pedagógica libertária, por uma educação de
sensibilidade e com sensibilidade para o Ensino Superior.

2.1. FRUTIFICAÇÃO

Faz de tua vida mesquinha um poema.
E viverás no coração dos jovens
e na memória das gerações que hão de vir.
(Cora Coralina, 2001, p. 15)


Ao longo de nossa prática pedagógica percebemos a desesperança
arraigada nos textos e subtextos, falados ou silenciados, dos colegas ou
futuros professores, aliada à constatação de uma realidade de
desvalorização do professor, mercantilização da educação, práticas de
desumanização dos educandos e educadores, práticas pedagógicas de estímulo
ao individualismo e à competição.
Presenciando tais processos, de ensino aprendizagem, buscamos em Paulo
Freire a doce e esperançosa guarida teórica para o desenvolvimento de uma
proposta pedagógica, nesse sentido, o convite do educador Paulo Freire
(1993), em entrevista a Gadotti, que nos chama a estreitar os caminhos
entre o dizer e o fazer, continua urgente:
Eu sou esperançoso porque não posso deixar de ser
esperançoso como ser humano. Esse ser que é finito e que
se sabe finito, e porque é inacabado sabendo que é
inacabado, necessariamente é um ser que procura. Não
importa que a maioria esteja sem procurar. Estar sem
procurar é o resultado, é o imobilismo imposto pelas
circunstâncias em que não pudemos procurar. Mas não é a
natureza do ser (FREIRE, 1993, p.6).

E como Ser inacabado, deixemo-nos embalar e somos entrelaçados por
outras vozes que nos propõe uma educação de sensibilidade, como Ferreira-
Santos (2001), que leva em consideração a dimensão estética/poética do
educador, guiada e movida pelo prazer e pelo desejo, permeada pelo sonho e
pela alegria, sem deixar de lado as competências didáticas e pedagógicas,
com leveza e simplicidade, o que, sem dúvida, é um grande desafio.
Desafio que exige de nós educadores muito além do saber de
competências, do saber o seu papel de cor e com habilidades para a
interpretação convincente ao abrir das cortinas, e que nos aflora os
sentidos poéticos para seguirmos na trilha do devaneio teórico da poesia-
educação, tal qual a fábula do peixe que se deixa guiar pelo instinto até o
próximo degrau da jornada em seu processo evolutivo. Ao sair das locas
profundas, do oceano de si mesmo, o ser-peixe-buscador, se depara com o
difícil caminho que levou o homo sapiens à busca e às descobertas
significativas no campo da epistemologia, da antropologia, da sócio-
antropologia do cotidiano, na filosofia e na educação (Ferreira-Santos,
2001). Busca esta, segundo o autor, que revela que, antes, durante e depois
da Razão, existem outras possibilidades de florescências, que fazem
germinar e sustentam a vida e sua continuidade, os sonhos e a transmissão
do sonhar, forjam e alimentam a existência e a concretização da utopia,
como nos leva a levitar o autor pelas asas da poesia:
As mesmas flores que soterramos com nossas granadas e
fuzis, nos deram lírios de luz franciscana, de perfume e
frescor incomparáveis, nas obras da Cultura que herdamos e
que legamos para as futuras gerações. Acreditamos que
educar o olho para enxergar as flores e o céu, assim como
educar a mão para cultivá-los (céu, flores e amigos) seja
a divisa mais importante no mundo da Cultura, no seu
sentido mais agrário: rasgar o solo árido, revolver a
terra, plantar a semente, irrigar com um pouco de poesia e
partir para outros campos (FERREIRA-SANTOS, 2001, p. 2).


E é o mesmo sentido agrário, que Ferreira-Santos propõe,
teluricamente conectado, revirado, fecundado e adubado pelos versos da
escritora doceira Cora Coralina (2001) em toda a sua gleba literária e
arqueológica, que nos convida, pela alquimia das palavras do ser lírico com
a terra, ao recomeço do novo Ser, e que no poema "Aninha e Suas Pedras"
dedilha o verbo esperançar afinado com o sol maior do cântico da fênix.
Não te deixes destruir.../ Ajuntando novas pedras
e construindo novos poemas./
Recria tua vida, sempre, sempre.
Remove pedras e planta roseiras e faz doces.
Recomeça.
(CORA CORALINA, 2001, p. 15)

Garimpando versos na jazida do seu viver carregado de dores,
frustrações, negações e castigos sofridos no banco escolar, nos cômodos
antigos da Casa Velha da Ponte e no casamento, Cora é a própria fênix
renascida e nos convida, com doce otimismo e amor a recomeçar e recriar
dando novo significado e instaurando em nós mesmo a mudança necessária para
o novo tempo.
Evocando Augusto Boal (1990), que defende a necessidade da invenção de
uma ética da solidariedade, e que todos os espaços educacionais precisam
ser ocupados por ações interdisciplinares, tendo a arte e a estética como
instrumentos para a libertação e para instauração do novo tempo, penso ser
possível, a partir de nossas vivências práticas, utilizar o método do
Teatro do Oprimido e nos colocamos, aqui, no papel da figura do Coringa.
Dentro da cena teatral a personagem vai facilitando o processo da busca e
das descobertas por meio de perguntas, criando e facilitando possibilidades
de diálogo, sem impor seus conhecimentos, atuando com distanciamento e
criticidade.
Temos as mesmas inquietações manifestadas pela maioria dos colegas e
professores, o mesmo discurso pedagógico sobre a necessidade de mudança na
forma de ensinar, no formato da sala de aula, sobre a falta de recursos
didáticos, dificuldades de aprendizagem, pouca atenção e/ou dedicação dos
estudantes e, segue a lista de um modelo educacional que parece falido.
Entretanto, percebemos que posturas individuais que poderiam alterar, aos
poucos, minimizando a desesperança, são poucas ou aparecem menos. Aliado a
todo esse contexto, a ausência do prazer no ato de educar é marcante, e se
somos seres de intervenção e não de adaptação, se identificamos a
necessidade de mudança em nossa ação político-pedagógica, se "nossa vocação
ontológica é a de ser mais, se isso implica na dialetização entre a
denúncia do que é desumanizante e o anúncio da superação" (FREIRE, 2002, p.
31), torna-se necessário reacender a chama da motivação do
educador/trabalhador que carrega em si muito mais que pilhas de diários,
planejamentos, estruturas e sistemas. Reencontrar o sentido da póiesis no
ambiente de trabalho, ressignificando a origem da palavra trabalho como fez
a poetadoceira:
Minhas mãos doceiras... / Jamais ociosas.
Fecundas, imensas e ocupadas./ Mãos laboriosas.
Abertas sempre para dar, ajudar, / unir e abençoar.
Mãos de semeador afeitas / à sementeira do trabalho.
Minhas mãos raízes / procurando a terra.
.../ Semeando sempre. (CORA CORALINA, 2004, p 25)

E se natureza do ser é a procura, como nos diz Freire (1993), resta-
nos reinventar e reencantar a nós mesmos para gestar, parir e cuidar de uma
educação para a sensibilidade, com sensibilidade, possibilitando o encontro
da poética como o homem concreto, ressignificando sua humanização,
estimulando-o para a busca e apreensão do conceito e da vivência com
liberdade plena, sem, contudo, prescindir dos avanços tecnológicos e
científicos, utilizando-os inclusive, como instrumentos para a construção
conhecimento, do autoconhecimento e possibilidades de caminhos para
sensibilização dos seres, que podem transformar o ato de ensinar em
aprendizado contínuo, é o caminho que escolhemos para trilhar, fisgados
pelo anzol teórico do educador amoroso Paulo Freire, da rebeldia inventiva
de Augusto Boal e do sensível Marcos Ferreira Santos. Caminho enfeitado
pelas flores poéticas de Ana Lins dos Guimarães Peixoto Bretas, Cora
Coralina, a Aninha, a inzoneira, a detraqué, a menina feia da ponte, a
educadoceira poeta da velha Cidade de Goiás. É uma trilha repleta de frutos
que se doam para, com labor e amorosidade, se transformarem em doces
cristalizados ou em calda a serem degustados no processo de ensinagem-
aprendizagem que ora apresentamos.


2.2. DEGUSTAÇÃO

Na possibilidade do encontro entre CoraFreireBoalFerreira-Santos
seguimos a trilha de pensar e experimentar outras possibilidades para além
do pessimismo, que rima trabalho com poesia, educar com esperança e
aprender com alegria, servimos porções apetitosas de reflexões poéticas que
se alinham com o pensar de Gomes & Willms (2014) quando nos dizem que:
É próprio da literatura fazer o trânsito entre as
dimensões do tido como certo ou errado, questões humanas
universais e locais, este caráter inapreensível do que nos
acontece enquanto corpo num mundo atravessado por tensões,
nem todas facilmente discerníveis ou cabíveis dentro de
simplórios sins ou nãos, mas sempre abrindo-se para outros
e maiores mistérios (GOMES & WILLMS, 2014, p. 5).

Ao explorarmos o universo do que é tido como fracasso e derrota,
trazido por um grupo de professores, em intervenção feita em um centro
universitário da cidade de Imperatriz, trouxemos o fragmento poético de
Cora Coralina: "procuro superar todos os dias / Minha própria personalidade
/ renovada, / despedaçando dentro de mim / tudo que é velho e morto. /
Luta, a palavra vibrante / que levanta os fracos / e determina os fortes
(CORA CORALINA, 1983, p 73), experimentamos por meio da montagem de uma
cena dramática nascida das imagens geradas pelo texto costurado com uma
experiência real vivenciada em sala de aula. Como resultado do processo
vivenciado, teatralizado, poetizado e ressignificado a análise feita pelos
professores de que: "existem tantas formas diferentes e prazerosas de
ensinar e aprender que desconhecemos, e isso é espantoso", vem de encontro
ao que Freire (1981) defende:
...transparecer aos educandos a beleza de estarmos no
mundo e com o mundo, como seres históricos, intervindo no
mundo e conhecendo-o. Contudo, nosso conhecimento do mundo
tem historicidade. Ao ser produzido, o conhecimento novo
supera outro que antes foi novo e se fez velho, e se
"dispõe" a ser ultrapassado por outro amanhã. (FREIRE
1996, p. 28).

Experienciar por meio da escritavivência de Cora Coralina poéticas
pedagógicas, escrevivendo, no palco e na vida, uma proposta libertária de
uma educação para a sensibilidade, conduz-me para o desejo de partilhar os
saberes cambiados e os sabores até aqui experimentados. O que me faz
recordar o depoimento de uma professora, quando em contato com a referida
proposta: "Eu nunca imaginei que a poesia e o teatro juntos poderiam me
ajudar compreender coisas tão complexas de maneira tão simples, acho que
está faltando, da minha parte, mais entrega."
E dessa maneira:
A educação, qualquer que seja o nível em que se dê, se
fará tão mais verdadeira quanto mais estimule o
desenvolvimento desta necessidade radical dos seres
humanos, a de sua expressividade (...). Quando vai
percebendo a solidariedade que há entre a linguagem-
pensamento e realidade, cuja transformação, ao exigir
novas formas de compreensão, coloca também à necessidade
de novas formas de expressão (FREIRE, 1981, p. 20).


A proposta por nós apresentada, nos dois momentos acima citados,
consistiu na realização de exercícios corporais lúdicos para aquecimento,
seguido de jogos para gerar socialização grupal. Logo após, a turma foi
dividida em quatro grupos que por sua fez uma contação de histórias reais
vivenciadas por cada componente do grupo, nas quais pudessem ser
identificados opressor e oprimido (Boal 2009). Em seguida foram
distribuídos e lidos em voz alta poemas de Cora Coralina para que os grupos
escolhessem o que mais se identificasse com uma das histórias contadas e
escolhida pelo grupo. A partir disso, montadas as cenas e experimentadas
algumas possibilidades de saídas para os problemas elencados, utilizando os
poemas como fios condutores, no desafio de ensaiar uma nova realidade
possível.
Ressaltamos que para Boal (1991) o teatro pode ser feito em qualquer
espaço, inclusive no teatro. Qualquer pessoa pode fazer teatro, inclusive
os atores. Nessa perspectiva não estou propondo que a sala de aula vire
sempre um palco ou que os estudantes passem a ser atores e que os
professores sejam conhecedores de direção teatral, mas sobretudo, que seja
um espaço para mediação de conflitos pela dialogicidade amorosa, criativa e
inventiva, rumo à busca de novos condimentos nos quais possamos saborear a
educação como um processo de construção humana que persiste por toda a
vida (GOMES; WILLMS, 2014), e sem os quais nos impossibilitamos de manter o
fogo aceso para aquecer o prazer diário e a alegria exigida na prática
sensível de uma nova postura pedagógica.
Os itinerários de formação pressupõem que não há uma única maneira de
se formar, a escolar, mas múltiplos caminhos que se abrem à nossa escolha e
que propiciam uma autoformação, ou seja, a aquisição, mas também
construção, elaboração, criação de valores, pensamentos, sentimentos que
nos situam no mundo, em suas múltiplas manifestações, sejam estéticas,
sociais, éticas, psicológicas, etc. (FERREIRA-SANTOS e ALMEIDA, 2012, p.
142, apud GOMES e WILLMS, 2014).
E à medida que vamos compreendendo que a transformação começa, antes,
de dentro para fora poderemos nos lançar em busca de um re-encantamento com
o fazer pedagógico, em conexão amorosa conosco e na construção diária de
nossa re-humanização, numa explosão de subjetividade, prazer, desejo,
transcendência e transmutação da frigidez pedagógica que nos habita.

3. SERVIDOS?

Ando estado argila / maleável aos dedos do tempo /
moldável às mãos do amor / macerável aos pés do poema
...Ando estado feto / sendo feita (Lília Diniz)
Destampando panelas ancestrais de um entardecer
reflexivo/poético/utópico para o qual Ferreira-Santos (2008) nos aponta o
desafio de, antes, buscarmos "uma ação e um centramento interior", retiro a
lenha que manteve a fervura desse devaneio em alta combustão e proponho uma
pausa momentânea para ressaltar que, enquanto ser inacabado, buscamos
possibilidades de experimentações que poderão apontar respostas ou mais
perguntas, por compreender que posso expor nossas ignorâncias, me abrindo
para uma relação dialógica, à busca de explicações com inquietação e
curiosidade na compreensão do meu Ser pedagoga em feitura.
Enquanto herdeiros e bebedores de fontes tão preciosas, degustamos e
partilhamos da utopia do novo tempo, do ser humano em estado de
florescimento, em movimento constante, por acreditarmos que ela é possível,
e para nós tem se dado com a experimentação pautada na prática de uma
educação de sensibilidade, estruturada na valorização das diversas
ferramentas estéticas e pedagógicas oferecidas, como, por exemplo, a
literatura, o cinema, o teatro, as artes visuais e outras manifestações
artísticas, que estimulam e alimentam o prazer de existir e coexistir com a
dúvida, o medo e a desesperança sem perder a capacidade de enfrentá-las e
ressignificá-las.


5. REFERÊNCIAS

BOAL, Augusto. Teatro do oprimido e outras poéticas políticas. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 1991.
____________O arco-íris do desejo: método Boal de teatro e terapia. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 1990 .
____________Jogos para atores e não-atores. Rio de Janeiro: Civilização
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BRITTO, Maria Eugenia Curado, Marlene Velasco e Clovis Carvalho (orgs).
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