Educação para Todos e o sonho de uma nova política penitenciária para o Brasil

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Brasília, novembro de 2009

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Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) Vincent Defourny Representante Paolo Fontani Coordenador de Educação Timothy Ireland Oficial de Projeto Organização dos Estados Ibero-americanos para Educação, a Ciência e a Cultura (OEI) Ivana Siqueira Diretora Regional Cláudia Baena Coordenadora de Desenvolvimento de Cooperação Técnica Agência Espanhola de Cooperação Internacional para o Desenvolvimento (AECID) Pedro Flores Diretor

Os autores são responsáveis pela escolha e apresentação dos fatos contidos neste livro, bem como pelas opiniões nele expressas, que não são necessariamente as da UNESCO, nem da OEI, nem comprometem as Organizações. As indicações de nomes e a apresentação do material ao longo deste livro não implicam a manifestação de qualquer opinião por parte da UNESCO ou da OEI a respeito da condição jurídica de qualquer país, território, cidade, região ou de suas autoridades, tampouco a delimitação de suas fronteiras ou limites.

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Ministério da Educação

Organización de Estados Iberoamericanos Para la Educación, la Ciencia y la Cultura

Ministério da Educação

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Ministério da Educação

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Ministério

©2009 Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) e Organização dos Estados Ibero-americanos para a Educação, a Ciência e a Cultura (OEI). Título original: Educación en cárceres en América Latina: derechos, libertad y ciudadanía. Brasilia: UNESCO, 2008.

Revisão: Valderes Gouveia e Roberto Silveira Diagramação: Rodrigo Domingues Capa e projeto gráfico: Edson Fogaça

Educação em prisões na América Latina: direito, liberdade e cidadania. – Brasilia : UNESCO, OEI, AECID, 2009. 188 p. Título original: Educación en cárceres en América Latina: derechos, libertad y ciudadanía BR/2008/PI/H/26 1. Educação dos Presos 2. Educação de Adultos 3. Prisão 4. Brasil I. UNESCO CDD 365.66

!!@5$'2$@ @,/&/@@/4(@  '@1"#!@>@$.'$2  @?@2$3:,+$@?@2$3+, "(,@ @ @    $7@ @ @

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Organización de Estados Iberoamericanos Para la Educación, la Ciencia y la Cultura

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4. PROJETO EDUCANDO PARA A LIBERDADE: A EDUCAÇÃO PRISIONAL EM FOCO

Wagner Bandeira Andriola1 - Coordenador-Geral Maria Zélia Maia Holanda2 - Coordenadora Adjunta Grace Troccoli Vitorino3 Rosélia Costa de Castro Machado4 Maria José Barbosa5 Madeline Gurgel Barreto Maia6 INTRODUÇÃO Este artigo apresenta elementos analítico-descritivos do processo avaliativo que traçou o diagnóstico das repercussões individuais para os presidiários que, atualmente, são alunos do 2º Ciclo do Projeto Educando para a Liberdade, 1 Psicólogo (Universidade Federal da Paraíba – UFPB); Especialista em Psicometria (Universidade de Brasília - UnB); Mestre em Psicologia Social e do Trabalho (UnB); Doutor em Filosofia e Ciências da Educação (Universidad Complutense de Madrid - Espanha); Professor Adjunto do Departamento de Fundamentos da Educação (Faculdade de Educação – Universidade Federal do Ceará - UFC); Coordenador de Avaliação Institucional (UFC); Coordenador da Comissão Própria de Avaliação (CPA/UFC); Membro da Diretoria da Associação Brasileira de Avaliação Educacional (ABAVE); Bolsista de Produtividade em Pesquisa do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). E-mail: [email protected] 2 Estatística (Universidade Federal do Ceará – UFC); Especialista em Estatística Aplicada (UFC). 3 Graduada em Letras (Português/Inglês - Universidade Estadual do Ceará - UECE); Mestra em Educação (Universidade Federal do Ceará - UFC); Doutora em Educação (UFC); Professora Titular da Universidade de Fortaleza (Centro de Ciências Humanas - UNIFOR). E-mail: [email protected] 4 Psicóloga (Universidade Federal do Ceará - UFC); Mestra em Educação (UFC); Doutora em Educação (UFC); Professora Visitante do Departamento de Fundamentos da Educação (Faculdade de Educação - UFC). E-mail: [email protected] 5 Licenciada em Estudos Sociais (Universidade Estadual Vale do Acaraú - UVA); Especialista em Planejamento Educacional (Universidade Federal do Ceará - UFC); Mestra em Educação (UFC); Doutoranda em Educação (UFC); Estatutária da Secretaria de Educação Básica e Professora da UVA; Representante Estadual do Fórum de Educação de Jovens e Adultos (EJA - Ceará). E-mail: [email protected] 6 Pedagoga (Universidade Estadual do Ceará - UECE); Especialista no Ensino de Matemática (UECE); Mestra em Educação (UECE); Doutoranda em Educação (Université du Québec à Chicoutimi - Canadá). E-mail: [email protected]

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em desenvolvimento nos Estados do Acre, Espírito Santo, Maranhão, Mato Grosso do Sul, Pará e Pernambuco. Nesse sentido, o diagnóstico objetiva traçar as linhas gerais para que possam ser apresentadas sugestões válidas rumo ao aprimoramento do referido projeto. MÉTODO EMPREGADO NO DIAGNÓSTICO: AS TRILHAS DA PESQUISA Face à natureza dessa investigação avaliativa, que aborda a mensuração de percepções, de opiniões, de conhecimentos e de comportamentos comuns e específicos entre distintas populações-alvo, com respeito a aspectos e fenômenos educacionais no âmbito prisional, utilizou-se como referência o método estatístico, também conhecido como método correlacional. Com o objetivo de iniciar a fase de coleta de dados, os membros da Equipe Técnica Central visitaram os seis estados partícipes do 2º Ciclo do Projeto Educando para a Liberdade, entre dezembro de 2007 e abril de 2008. As visitas foram realizadas de acordo com a disponibilidade dos técnicos locais das Secretarias de Educação e de Justiça (ou similares estaduais) e tinham como objetivos: t Bpresentar a proposta de avaliação do 2º Ciclo do Projeto Educando para a Liberdade; t TFMFDJPOBSFUSFJOBSBTFRVJQFTFTUBEVBJTSFTQPOTÈWFJTQFMBDPMFUBEPT dados (coordenadores estaduais e pesquisadores de campo)7; t BQSFTFOUBSPTSFTQFDUJWPT5FSNPTEF$PNQSPNJTTPBPTQFTRVJTBEPres de campo e ao coordenador estadual, exigindo as assinaturas, em caso de concordância; t BQSFTFOUBSF RVBOEPBTJUVBÎÍPBTTJNPFYJHJTTF BEBQUBSBMPHÓTUJDB para a execução das atividades de campo à realidade local; t BQSFTFOUBS UPEP P NBUFSJBM RVF TFSJB VUJMJ[BEP OBT BUJWJEBEFT EF campo (cartas de apresentação, diários de campo, questionários, lista de contatos, entre outros); t EFëOJSDSPOPHSBNBEFBUJWJEBEFT 7 Os candidatos a pesquisador de campo deveriam ser universitários sem qualquer vínculo com as atividades do Projeto Educando para a Liberdade. Igualmente, o coordenador estadual deveria ser profissional com formação superior (em alguns estados atuaram professores universitários) sem qualquer vínculo com as atividades do Projeto Educando para a Liberdade. Tais requisitos garantiriam, desse modo, o distanciamento que exige todo e qualquer procedimento visando à avaliação externa.

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t DPMFUBSEBEPTSFGFSFOUFTBPTQSPGFTTPSFT BPTUÏDOJDPTEBT4FDSFUBSJBT de Educação e de Justiça (ou similares) e, quando possível, junto aos gestores das Unidades Prisionais (UPs), por meio da aplicação dos respectivos questionários; t FTDPMIFSJOUFSMPDVUPSEBT4FDSFUBSJBT&TUBEVBJTQBSBFTUBCFMFDFSDBOBM de comunicação com a Equipe Técnica Central e com o Coordenador Estadual, com vistas no acompanhamento e à supervisão do processo de coleta de dados. Após essas ações, as equipes estaduais deveriam, então, contatar as UPs previamente escolhidas e agendar a ida dos pesquisadores de campo, com o intuito de aplicar os questionários nos alunos reclusos, nos agentes prisionais e nos gestores que não haviam ainda participado do estudo. Se, por motivos superiores, algo dificultava ou impedia o rápido acesso às UPs componentes da amostra inicial, caberia ao Coordenador de Campo registrar tais fatos no diário de campo, comunicar à equipe técnica central para que, desse modo, fosse possível adotar estratégias visando à resolução imediata do problema. Nos casos em que não houvesse fatores impeditivos de acesso às UPs, logo após a aplicação dos questionários pelos pesquisadores de campo, o(a) coordenador(a) estadual procedia à checagem dos questionários, de modo a garantir a qualidade das informações. Após essa atividade, todos os questionários eram, então, organizados pelo coordenador estadual e enviados à Equipe Técnica Central. Ao término de todas as atividades de campo, o coordenador estadual enviou o Relatório Final à Equipe Técnica Central, relatando sinteticamente as principais ocorrências verificadas durante o processo de coleta de dados. Os instrumentos para coleta de dados Foram elaborados cinco questionários estruturados, sendo um para cada população-alvo do estudo, a saber: gestores das UPs; agentes prisionais; técnicos estaduais; professores; alunos reclusos; escolas. Os instrumentos foram validados por uma especialista da área de educação prisional, sendo, posteriormente, pré-testados em amostras de gestores, de agentes prisionais, de técnicos estaduais, de professores e de alunos reclusos de UPs da região metropolitana de Fortaleza. Ao final do processo, os

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instrumentos sofreram adaptações pela equipe técnica central em conjunto com representantes da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade (Secad/MEC). RESULTADOS PRELIMINARES: ESTUDO AVALIATIVO DO EDUCANDO PARA A LIBERDADE Os contextos estaduais: palcos da pesquisa A análise dos contextos estaduais, palcos do estudo avaliativo, enfocou a descrição qualitativa da natureza e da intensidade das relações estabelecidas entre as Secretarias Estaduais de Educação e de Justiça (ou similar), por conta da necessidade imperiosa de cooperação entre ambas, pois as ações para a implementação do Projeto Educando para a Liberdade vinculam-se a essas Secretarias. Desse modo, com base nas observações dos membros da equipe técnica central, quando das visitas aos estados do estudo avaliativo, constatou-se que: t há ampla diversidade nos sistemas prisionais estaduais, com distinções visíveis quanto: (a) à estrutura física das instalações das escolas, (b) à lotação dos docentes, (c) à existência de gratificação para docentes e para os agentes prisionais e (d) à formação mínima para os docentes e os agentes prisionais; t IÈDFSUBEFTBSUJDVMBÎÍPFOUSFBT4FDSFUBSJBTEF&EVDBÎÍPFEF+VTUJÎB (ou similar), na quase totalidade dos estados visitados, sendo a relação entre ambas, em alguns casos, tensa, com disputas por espaço e por visibilidade político-institucionais; t IÈ EFNPEPHFSBM FNEFDPSSÐODJBEBPCTFSWBÎÍPBTTJOBMBEBBDJNB  a hegemonia de uma das Secretarias Estaduais (de Educação ou de Justiça) no que se refere à condução das atividades do Projeto Educando para a Liberdade; t IÈ EFTDPOIFDJNFOUP EP 1SPKFUP &EVDBOEP QBSB B -JCFSEBEF  com essa denominação, o que implica pouca aderência do termo ou rótulo que designa o conjunto de atividades componentes do projeto. Por outro lado, tal fato pode indicar relativa flexibilidade quanto à nomenclatura usada pelas Secretarias Estaduais para denominar as ações do Projeto Educando para a Liberdade.

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Resultados relativos aos técnicos estaduais No que se refere à escolaridade, 3,8% dos técnicos estaduais (N = 3) têm nível médio completo e outros 3,8% (N = 3) têm superior incompleto. Há 36,7% (N = 29) com nível superior completo e 55,7% (N = 44) com Pósgraduação. Desses últimos, há 97,6% (N = 40) que possuem Especialização e 2,4% (N = 1) Mestrado, conforme o Gráfico 1: Gráfico I. Grau de instrução dos técnicos 3,8% 3,8%

55,7%

36,7%

Médio Completo

Superior Incompleto

Superior Completo

Pós-Graduação

No que diz respeito à participação dos técnicos estaduais em eventos vinculados ao Projeto Educando para a Liberdade, verificou-se que pouco mais da metade (50,7% ou N = 40) participou de atividades dessa natureza, conforme indica o Gráfico 2. Gráfico 2. Participação dos técnicos estaduais em eventos do Projeto Educando para a Liberdade

49,3%

50,7%

Sim

Não

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Resultados relativos às escolas Verificou-se que, entre as 39 escolas visitadas, na maioria (76,9% ou N = 30) há fatores que dificultam o seu funcionamento regular, conforme os dados a seguir. Gráfico 3. Existência de fatores que dificultam o funcionamento normal da escola 23,1%

76,9%

Sim

Não

Entre os fatores que impedem o funcionamento normal das atividades escolares, destacam-se: t EJëDVMEBEFTOBDPOEVÎÍPEBTQFTTPBTQSFTBTËTTBMBTEFBVMB   ou N = 16); t GBMUBEFNBUFSJBMEJEÈUJDPQBSBBTBVMBT  PV/  t EFTSFTQFJUPËTSFHSBTJOUFSOBTEFTFHVSBOÎB  PVO  t BGBMUBEFSFDVSTPTQFEBHØHJDPTQBSBPTSFDMVTPT  PVO  Por outro lado, a maioria dos gestores das escolas (65,5% ou N = 19) notificou seus superiores acerca dos referidos fatores, conforme dados coletados. Resultados relativos aos gestores Conforme informações da Tabela 1, a maioria dos gestores de UPs (56,1% ou N = 32) afirmou conhecer o Projeto Educando para a Liberdade.

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Tabela 1. Conhecimento do Projeto Educando para a Liberdade Respostas

N

%

Sim

32

56,1

Não

25

43,9

Total

57

100

Fonte: Pesquisa direta

Houve, porém, 43,9% de gestores (N = 25) que afirmaram desconhecer o projeto. Indagados acerca da execução do Projeto Educando para a Liberdade no âmbito das respectivas UPs, a maioria dos gestores (56,2% ou N = 27) afirmou que tal se deu, efetivamente, conforme dados da Tabela 2, a seguir. Tabela 2. Execução do Projeto Educando para a Liberdade na Unidade Prisional do Gestor Respostas

N

%

% válido

Sim

27

47,4

56,2

Não

21

36,8

43,8

Total

48

84,2

100,0

Ausência de resposta

9

15,8

Total

57

100

Fonte: Pesquisa direta

No entanto, houve 43,8% de gestores (N = 21) que asseguraram que o projeto não fora executado no âmbito de sua UP. É interessante observar que essa proporção é muito parecida ao valor dos gestores que desconhecem o Projeto Educando para a Liberdade (43,9% ou N = 25), conforme os dados da Tabela 3. Por último, há que se destacar que nove gestores deixaram de responder à questão. Posteriormente, os gestores foram indagados a respeito da realização de alguma atividade formativa, com vistas ao exercício da função de diretor de Unidade Prisional (UP), conforme os dados da Tabela 3, abaixo.

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Tabela 3. Realização de curso de formação para gestor de Unidade Prisional N

%

% válido

Sim

13

22,8

23,2

Não

43

75,4

76,8

Total

56

98,2

100,0

Ausência de resposta

1

1,8

Total

57

100

Fonte: Pesquisa direta

Os gestores foram indagados sobre o planejamento de ações voltadas para o aprimoramento dos espaços físicos em que ocorrem as aulas, conforme dados da Tabela 4. Tabela 4. Planejamento de ações com vistas na melhoria dos espaços físicos destinados à realização das aulas Respostas

N

%

% válido

Sim

29

50,9

51,8

Não

27

47,4

48,2

Total

56

98,2

100,0

Ausência de resposta

1

1,8

Total

57

100

Fonte: Pesquisa direta

De acordo com a maioria dos gestores (51,8% ou N = 29) há, de fato, o planejamento de ações voltadas para a melhoria dos espaços físicos destinados às aulas. Porém, 48,2% (N = 27) não têm planejado ações de aprimoramento dos referidos espaços. Cumpre destacar que, entre os gestores escolares que planejaram ações de melhoramento dos espaços físicos (N = 29), houve 48,3% (N = 14) que afirmaram ser a construção ou a ampliação das salas de aula o principal foco das ações institucionais.

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Resultados relativos aos agentes prisionais Com respeito aos agentes prisionais, foi-lhes perguntado, inicialmente, acerca do tipo de contrato, conforme os dados da Tabela 5, a seguir: Tabela 5.Tipo de contrato do agente prisional N

%

% de casos válidos

Efetivo (concursado)

272

54,2

54,7

Temporário (terceirizado)

225

44,8

45,3

Total

497

99,0

100,0

5

1,0

---

502

100

Tipo de contrato

Ausência de resposta Total Fonte: Pesquisa direta

Segundo as informações, a maioria dos agentes prisionais (54,7% ou N = 272) possui contrato efetivo, enquanto a minoria (45,3% ou N = 225) tem contrato temporário. Cinco agentes prisionais não responderam à questão. Posteriormente, os agentes prisionais foram indagados sobre a participação em atividades de formação proporcionadas pelas Secretarias Estaduais (de Educação e de Justiça ou órgão similar), nos últimos 12 meses. Tabela 6. Participação em atividades de formação, nos últimos 12 meses Respostas

N

%

% válido

Sim

169

33,7

33,9

Não

329

65,5

66,1

Total

498

99,2

100,0

4

0,8

502

100

Ausência de resposta Total Fonte: Pesquisa direta

Conforme os dados, a maioria dos agentes prisionais (66,1% ou N =329) atestou a não participação em atividades de formação, realizadas nos últimos 12 meses. Assim mesmo, 33,9% (N = 169) participaram das referidas atividades formativas. Houve quatro respondentes que omitiram informações acerca do tema. 47

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Finalmente, os agentes prisionais foram indagados acerca do conhecimento que possuíam sobre o Projeto Educando para a Liberdade, conforme dados da Tabela 7. Tabela 7. Conhecimento dos agentes prisionais sobre o Projeto Educando para a Liberdade Respostas

N

%

% válido

Sim

156

31,1

31,3

Não

343

68,3

68,7

Total

499

99,4

100,0

3

0,6

502

100

Ausência de resposta Total Fonte: Pesquisa direta

De acordo com os dados, a maioria dos agentes prisionais (68,7% ou N = 343) afirmou desconhecer o Projeto Educando para a Liberdade. De modo contrário, quase um terço desses profissionais (31,3% ou N = 156) conheciam o projeto. Os agentes prisionais indicaram, ainda, qual o principal objetivo do Projeto Educando para Liberdade, que, conforme 19,2% dos respondentes (N = 96), visa ressocializar o aluno recluso. Resultados relativos aos professores Inicialmente, apresenta-se o Gráfico 4, que contém informações referentes ao grau de instrução dos professores que atuam na Educação Prisional. Gráfico 4. Grau de instrução dos professores Pós-graduação

28,8

Superior completo

48,3

Superior incompleto

19,1

Médio completo

9,3 0,5

Fundamental completo 0,0

5,0

10,0

15,0

20,0

25,0

30,0

35,0 40,0 45,0

De acordo com os dados, a maior parte dos professores (42,3% ou N = 82) possui nível superior, enquanto 28,8% (N = 56) possuem pós-gradua48

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ção. Entre esses últimos, há 46 que têm especialização (86,8%), seis possuem mestrado (11,3%) e um tem doutorado (1,9%). No entanto, há um professor (0,5%) com ensino fundamental completo; 9,3% (N = 18) têm o ensino médio completo e, finalmente, 19,1% (N = 37) cursaram o superior incompleto. Posteriormente, indagou-se aos professores sobre a adequação do tempo dedicado às atividades em sala de aula, como modo de garantir a aprendizagem dos alunos reclusos. A Tabela 8, a seguir, apresenta relevantes dados a respeito. Com base nos dados, pode-se assegurar que o tempo pedagógico destinado às atividades de sala de aula é Adequado para a maioria dos professores Tabela 8. Adequação do tempo dedicado às atividades de sala de aula Grau de adequação do tempo pedagógico

N

%

% de casos válidos

Adequado

109

55,9

56,8

Pouco adequado

68

34,9

35,4

Inadequado

15

7,7

7,8

Total

192

98,5

100,0

3

1,5

-

195

100

Ausência de resposta Total Fonte: Pesquisa direta

(56,8% ou N = 109). Entretanto, há outra parcela que crê na Pouca Adequação (35,4% ou N = 68) ou na Total Inadequação (7,8% ou N = 15) do tempo pedagógico de sala de aula. A Tabela 9, abaixo, contém informações acerca da existência de Projeto Político Pedagógico (PPP) no âmbito da escola. Tabela 9. Existência de Projeto Político Pedagógico na Escola Respostas

N

%

% de casos válidos

Sim

116

59,5

60,7

Não

75

38,4

39,3

Total

191

97,9

100,0

4

2,1

-

195

100

Ausência de resposta Total Fonte: Pesquisa direta

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Segundo os dados, a maioria dos professores (60,7% ou N = 116) atestou a existência de Projeto Político Pedagógico (PPP) no âmbito da escola. No entanto, 39,3% dos entrevistados (N = 75) afirmaram inexistir o Projeto Político Pedagógico (PPP) na escola em que atuam. Ademais, houve quatro professores (2,1% do total de respondentes) que não responderam à questão. Para complementar, perguntou-se aos professores sobre o uso do PPP como guia para o planejamento das aulas, no âmbito da escola, conforme tabela abaixo. Tabela 10. Uso do Projeto Político Pedagógico da escola como guia para o planejamento das aulas na Escola Respostas

N

%

Sim

109

94,8

Não

6

5,2

Total

115

100

Fonte: Pesquisa direta

Os dados acima indicam que a ampla maioria dos professores (94,8% ou N = 109) asseverou que o Projeto Político Pedagógico (PPP) é utilizado como guia para o planejamento das aulas no âmbito da escola. Tão somente 5,2% dos professores (N = 6) alegaram que o PPP não é, efetivamente, utilizado para o planejamento das aulas. Resultados relativos aos alunos reclusos Indagou-se aos alunos reclusos, inicialmente, acerca do grau de instrução, conforme os dados presentes na Tabela 11, abaixo. Tabela 11. Grau de instrução dos alunos reclusos N

%

% válido

% acumulado

Não alfabetizado

258

21,8

22,0

22,0

Alfabetizado

164

13,9

14,0

35,9

Fundamental incompleto

466

39,4

39,7

75,6

Fundamental completo

72

6,1

6,1

81,8

Médio incompleto

156

13,2

13,3

95,1

50

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Médio completo

45

3,8

3,8

98,9

Superior incompleto

11

0,9

0,9

99,8

Superior completo

2

0,2

0,2

100,0

1174

99,3

100,0

8

0,7

1182

100

Total Ausência de resposta Total Fonte: Pesquisa direta

Verifica-se que a maior parte dos alunos reclusos (N = 466 ou 39,7%) possui o ensino fundamental incompleto, enquanto há 22% (N = 258) que ainda não estão alfabetizados. Há, também, 13,3% (N = 156) com o ensino médio incompleto e 1,1% com nível superior (N = 13), sendo que dois desses alunos possuem diploma de nível superior. Os alunos reclusos foram indagados, ainda, acerca das atividades educacionais oferecidas no âmbito da UP, conforme os dados da Tabela 12. Tabela 12. Opinião acerca das atividades educacionais oferecidas N

%

% válido

Constituem um direito

941

79,6

82,4

Constituem uma concessão

201

17,0

17,6

Total

1142

96,6

100,0

40

3,4

1182

100

Ausência de resposta Total Fonte: Pesquisa direta

Constata-se que, para a ampla maioria dos alunos reclusos (82,4% ou N = 941), as atividades educacionais oferecidas constituem um direito. No entanto, 17,6% acreditam (N = 201), de modo equivocado, que se trata de uma concessão. Houve 40 alunos reclusos que não responderam à indagação. Procurou-se averiguar, entre os atuais alunos reclusos, se haviam frequentado a escola em outras UPs. Houve 208 respondentes (17,6% dos casos válidos) que atestaram haver sido alunos reclusos em escolas de outras UPs.

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Os alunos reclusos foram indagados, ainda, sobre os motivos que os levaram a frequentar as atividades educacionais, cujos dados estão na Tabela 13. Tabela 13. Motivos que levaram os alunos a frequentar a escola Motivos

Respostas

%

% casos

Aprender novos conhecimentos

1010

20,0

85,7

Obter a remissão de pena

831

16,4

70,5

Buscar qualificação profissional

818

16,2

69,4

Concluir os estudos

874

17,3

74,1

Buscar ocupação mental

823

16,3

69,8

Ter contato com os professores (interagir)

668

13,2

56,7

Outro

33

0,7

2,8

Total

5057

100,0

-----

Fonte: Pesquisa direta

Conforme informações dos alunos reclusos, a ampla maioria deles (85,7% ou N = 1.010) atestou que o principal motivo para frequentar a escola centra-se na busca por Aprender novos conhecimentos. Em seguida, foi apresentada por 74,1% dos alunos (N = 874) a justificativa de Concluir os estudos. Para Obter a remissão de pena foi o terceiro motivo alegado por 70,5% dos alunos reclusos (N = 831). Em seguida, perguntou-se aos aprendizes reclusos acerca da existência de fatores que dificultam a frequência regular às atividades escolares. De acordo com 47,7% dos respondentes (N = 564), tais fatores existem, entre os quais destacaram: t Falta de colaboração dos agentes prisionais, conforme expressaram 40,2% dos alunos (N = 227); t &YDFTTJWB QSFPDVQBÎÍP F TUSFTT  TFHVOEP B PQJOJÍP EF   EPT respondentes (N = 180); t 'BMUBEFNFSFOEB EFBDPSEPDPN EPTBMVOPT /  t $PJODJEÐODJB EPT IPSÈSJPT EBT BVMBT DPN PT USBCBMIPT JOUFSOPT  conforme relataram 21,3% dos aprendizes (N = 120). Indagou-se aos alunos sobre as mudanças proporcionadas pelas atividades educacionais, na percepção do próprio aprendiz. Para a ampla maioria 52

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(86,3% ou N = 990), as mudanças mais contundentes ocorreram no âmbito pessoal e nos hábitos de estudo, que se intensificaram. Como exemplos de mudanças qualitativas, as seguintes foram citadas pelos alunos reclusos: t 3FUPSOPEPJOUFSFTTFQFMPTFTUVEPT DPOGPSNF EPTBQSFOEJzes (N = 996). t .BJPS BVUPWBMPSJ[BÎÍP  DJUBEB QPS   EPT SFTQPOEFOUFT /  958). t .BJPSFTDIBODFTEFSFBCJMJUBÎÍPFEFSFTTPDJBMJ[BÎÍP NFODJPOBEB por 83,6% dos alunos reclusos (N = 956). Por fim, cabe ressaltar as mudanças qualitativas apresentadas pelos alunos reclusos de menor grau de escolarização. Por exemplo, três reclusos nessa situação asseveraram: Agora sei escrever o meu nome ou Aprendi a escrever o meu nome. Outro testemunho afirma: Pude rever e relembrar conhecimentos já adquiridos e obter novas informações que serão essenciais na vida profissional que pretendo construir. Para finalizar, um aluno recluso atestou: Estou aprendendo a cada dia que a educação é fundamental para tudo. À GUISA DE CONCLUSÃO Há uma primeira problemática detectada pela equipe técnica central que conduz o estudo avaliativo, e que diz respeito à relação estabelecida entre as Secretarias Estaduais de Educação e de Justiça (ou similar), no que se refere à execução das ações do Projeto Educando para a Liberdade. Ambas deverão buscar maior integração e articulação, com vistas a elevar a eficiência da gestão do referido projeto e da execução das ações a ele inerentes. Uma consequência dessa desejável articulação entre as secretarias estaduais, deverá se dar no incremento da participação dos técnicos estaduais em fases do Projeto Educando para a Liberdade e em eventos vinculados a ele. Quanto às UPs, haverá que se pensar em soluções para os problemas relacionados à condução das pessoas presas às salas de aula, bem como o desrespeito das regras internas de segurança. Trata-se, portanto, de ações envolvendo o componente administrativo (ou de gestão) e educativo (ou pedagógico), que podem necessitar da mediação das duas secretarias estaduais. No que tange às escolas, há que serem planejadas ações de natureza pedagógica, que permitam solucionar a falta de material didático para as aulas, bem como de recursos pedagógicos para os alunos reclusos e, por fim, o 53

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diminuto tempo pedagógico (tempo efetivo de sala de aula). Também a estrutura física das salas de aula é outro fator que impede a normalidade das ações educacionais. Para os agentes prisionais e, igualmente para os professores, devem ser solucionadas as dificuldades relacionadas à formação específica para a função, bem como à natureza dos contratos de trabalho. Finalmente, com respeito aos alunos, há que serem sanados os problemas internos, relacionados à falta de colaboração dos agentes prisionais, a coincidência entre os horários de aula e os trabalhos internos, a falta de merenda, a inadequação dos espaços físicos destinados às aulas, entre outros aspectos. Apesar de tudo, esperemos que as ações componentes do Projeto Educando para a Liberdade potencializem a ocorrência das mudanças internas nos seus usuários, para que, desse modo, a própria sociedade se transforme. Essa é a função primeira de toda e qualquer ação educacional: a busca do desenvolvimento integral do ser humano, por meio das mudanças internas. Nesse âmbito, é muito plausível citar as sábias palavras do jornalista, escritor e dramaturgo irlandês George Bernard Shaw: “Não há progresso sem mudança. E, quem não consegue mudar a si mesmo acaba por não mudar coisa alguma”. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ANDRIOLA, W. B. Evaluación: la vía para la calidad educativa. Ensaio: Avaliação e Políticas Públicas em Educação, Rio de Janeiro, v. 7, n. 25, p. 355368, 1999. _____. Avaliação dos Programas Estaduais de Qualificação Profissional (PEQ’s): uma revisão conceitual do modelo 3ER. Ensaio: Avaliação e Políticas Públicas em Educação, Rio de Janeiro, v. 9, n. 30, p. 43-56, 2001a. _____. Factores caracterizadores de centros educativos eficaces. Bordón: Revista de Pedagogía, Madrid, v. 53, n. 2, p. 175-183, 2001b. _____. Avaliação institucional na Universidade Federal do Ceará (UFC): organização de sistema de dados e indicadores da qualidade institucional. Avaliação: Revista da Rede de Avaliação Institucional da Educação Superior, Campinas, v. 9, n. 4, p. 33-54, 2004.

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BISQUERRA ALZINA, R. Metodología de la investigación educativa. Madrid: Editorial la Muralla, 2004. FARIA, R. M. Avaliação de programas sociais: evoluções e tendências. In: MELO RICO, E. (Org.). Avaliação de políticas sociais: uma questão em debate. São Paulo: Editora Cortez, 2006. p. 41-50. GIL, A. C. Métodos e técnicas da pesquisa social. São Paulo: Editora Atlas, 1999. KERLINGER, F.; LEE, H. B. Investigación del comportamiento: métodos de investigación en ciencias sociales. México: McGraw Hill, 2002. THERRIEN, J.; SOBRINHO, J. H. Avaliação institucional em universidades: considerações metodológicas. Educação em Debate, Fortaleza, v. 6/7, n. 2/1, p. 17-27, 1983-1984.

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5. II SEMINÁRIO NACIONAL CONSOLIDAÇÃO DAS DIRETRIZES PARA A EDUCAÇÃO NO SISTEMA PENITENCIÁRIO

TEXTO DE REFERÊNCIA Atualmente, quando se abordam temas relacionados a políticas públicas de execução penal, podemos perceber que a questão em torno da necessidade de ampliar o investimento em ações que tenham como objetivo central a reinserção social dos apenados, independentemente dos crimes cometidos, ganha destaque e se apresenta como um importante caminho a ser seguido pelos governos. Em qualquer parte do mundo ocidental, por exemplo, quando se fala em propostas de “programas de ressocialização”, fala-se em atividades laborativas de cunho profissionalizante, bem como atividades educacionais, culturais, religiosas e esportivas. Nesse sentido, em setembro de 2005, por intermédio de uma estratégia de articulação de ações interministeriais, firmou-se um Protocolo de Intenções entre os ministérios da Justiça e da Educação, com o propósito de conjugar esforços para a implementação de uma política nacional de educação para jovens e adultos em privação de liberdade, cujo projeto, Educando para Liberdade, na sua primeira fase, teve como desafio a sensibilização para a oferta da educação nas prisões. O seu objetivo central foi estimular a articulação entre os órgãos responsáveis pela educação e pela administração penitenciária, bem como preparar os diversos atores que atuam na execução direta da proposta a ser demandada, nesse caso, principalmente, agentes, gestores penitenciários e professores. Objetivando estruturar tal política, uma série de atividades foi desenvolvida ao longo do ano de 2006, destacando-se entre elas: (i) as resoluções do Programa Brasil Alfabetizado, que incluíram a população prisional entre o 57

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público de atendimento diferenciado das ações de alfabetização; (ii) a parceria com a UNESCO e o governo do Japão para a realização de cinco seminários regionais e do primeiro Seminário Nacional sobre Educação nas Prisões, que culminaram na elaboração de uma proposta de Diretrizes Nacionais para a Oferta de Educação no Sistema Penitenciário; (iii) a decisão dos dois ministérios de investir na construção de políticas estaduais de educação prisional, por meio de convênios com 12 estados e do repasse de recursos financeiros visando à melhoria das condições de atendimento em nível local. Em 2007, avançando sobre as questões ora evidenciadas, o Ministério da Justiça, por meio do seu Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania (Pronasci), apresentou uma série de ações e propostas destinada à prevenção, controle e repressão da criminalidade, atuando em suas raízes socioculturais, articulando ações de segurança pública com políticas sociais por meio da integração entre União, estados e municípios, atendidas as diretrizes do Sistema Único de Segurança Pública. O programa propõe o desenvolvimento de políticas para a melhoria do sistema prisional que contemplem a valorização dos profissionais e o apoio à implementação de projetos educativos e profissionalizantes para as pessoas com penas restritivas de liberdade e para os egressos do sistema penitenciário. Nessa direção, com a finalidade de avançar na consolidação de uma política nacional de educação de jovens e adultos do sistema penitenciário, evidenciou-se a necessidade de se expandir a interlocução com as unidades da Federação e fortalecer o diálogo com todos os atores envolvidos na efetivação do direito à educação dos jovens e adultos privados de liberdade, tais como ONGs, universidades, organismos internacionais etc. Assim, mantivemos a estratégia de 2006, com a realização dos três seminários regionais e do segundo Seminário Nacional. Contudo, essa opção não implicou a repetição dos mesmos eixos temáticos discutidos nos seminários no ano passado – gestão, formação de profissionais e aspectos pedagógicos. A experiência tem demonstrado que a efetividade das ações educativas em contexto prisional depende diretamente da reformulação da execução penal a partir de uma perspectiva de afirmação de direitos e de redução das vulnerabilidades das pessoas presas, conduzindo, quase que automaticamente, a uma ressignificação da gestão penitenciária. Portanto, a nova série de seminários regionais se constituiu no momento oportuno para discutir – com as unidades da Federação e com a sociedade

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civil que acumula certa expertise na área – o papel das políticas estaduais de educação prisional nessa busca pela transformação da realidade do sistema penitenciário brasileiro, por intermédio da construção de planos estaduais de educação nas prisões. A reflexão sobre a construção de planos estaduais de educação nas prisões também dialoga diretamente com os principais desafios identificados pelos ministérios da Justiça e da Educação, com base nas parcerias firmadas com 12 estados na construção de políticas locais de educação prisional e em virtude das dificuldades apontadas pelas demais unidades da Federação na implantação das Diretrizes Nacionais para a Oferta de Educação no Sistema Penitenciário. Tais dificuldades estão relacionadas às temáticas da articulação institucional, da formação de formadores, da certificação das atividades educativas e do desenvolvimento de um percurso social formativo que extrapole os limites da alfabetização e da Educação de Jovens e Adultos no formato presencial. Nesse contexto é que se insere o principal objetivo dos Planos Estaduais de Educação nas Prisões, qual seja, buscar soluções para enfrentar os desafios verificados. Identificando a necessidade imediata de se mergulhar nessas reflexões, investindo na ampliação do debate, agregando os diversos atores do campo social e garantindo a construção coletiva de uma proposta política que vislumbre os reais interesses da sociedade, os encaminhamentos dos Seminários regionais são agora apresentados para a discussão nesse II Seminário Nacional, cujas conclusões darão respaldo para que o Ministério da Educação e o Ministério da Justiça apresentem uma proposta de um Plano Nacional de Educação nas Prisões. Finalmente, com a perspectiva da organização, por parte da UNESCO, da Conferência Internacional de Educação em Prisões (CIEP), em Bruxelas, no segundo semestre de 2008, e a possibilidade de o Brasil receber o Encontro Latino-americano preparatório para a conferência, já em fevereiro do próximo ano, os seminários configuraram-se também como espaços privilegiados para estruturar a participação brasileira nesses dois eventos de relevância indiscutível. A conferência e o encontro deverão tratar de uma série de temas fundamentais para a efetivação do direito à educação em contextos prisionais: alfabetização, educação popular e educação e gênero, além de alinhar definitivamente a constituição e consolidação da Rede Latino-Americana de Educação nas Prisões, ora em andamento.

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Acreditando na importância desse projeto para a consolidação de uma prática política de construção coletiva, convidamos todos a refletirem sobre as propostas apresentadas nos seminários regionais (anexo) para que possamos definir e implementar uma política nacional de educação que atenda aos jovens e adultos em situação de privação de liberdade.

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6. A EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS EM SITUAÇÃO DE PRIVAÇÃO DE LIBERDADE: DESAFIOS E PERSPECTIVAS PARA A CONSOLIDAÇÃO DE UMA POLÍTICA NACIONAL Elionaldo F. Julião

O Brasil aprisiona a quarta maior população do mundo. Apenas os Estados Unidos, China e Rússia possuem massas prisionais maiores, cada um deles com mais de um milhão de pessoas presas. Nos 1.006 estabelecimentos penais do país, mantêm-se presas mais de 400 mil pessoas1. Por mais que se construam novas prisões, a população prisional no Brasil cresce assustadoramente. Nos últimos anos, algo entre 5% a 7% ao ano. A cada mês, o sistema prisional recebe mais de oito mil pessoas, enquanto liberta apenas cinco mil. Estima-se que, para acabar com a superlotação, seria preciso criar mais de 130 mil vagas2. Do total de pessoas presas existentes no país, 32% são provisórios e 68% condenados; 70% encontram-se nos sistemas penitenciários estaduais e 30% fora deles, em cadeias públicas e similares. Diante dessse quadro, estima-se que cerca de 30% da população prisional poderia estar cumprindo penas alternativas. A aplicação no Brasil não chega a 10% dos casos, enquanto na Europa, por exemplo, atinge 70%. Discute-se que cerca de 95% da população prisional do país não ofereçam perigo à sociedade, pois, segundo informações do Departamento Penitenciário Nacional (órgão do Ministério da Justiça), um terço não cometeu crimes violentos. A maioria foi presa por furto, roubo e venda de drogas. Os homicídios configu1 BRASIL. Ministério da Justiça. Depen. Diagnósticos e propostas. Brasília: MJ/Depen, 2006. 2 Devemos ressaltar que essa estimativa só se configura caso não sejam cumpridos os cerca de 300 mil mandatos de prisão pendentes na Justiça.

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ram a minoria dos casos, apenas 8,9%. Contraditoriamente, estima-se que a reincidência da população prisional no país esteja em torno de 50 a 80%. O perfil das pessoas presas, segundo estudos, reflete a parcela da sociedade que fica fora da vida econômica. Segundo dados do Ministério da Justiça, 2006, “Informações Penitenciárias”, 4,4% são mulheres3 e 95,6% são homens; 95% são pobres ou muito pobres; 65% são negros ou mulatos; 75% não complementaram o ensino fundamental, 12% são analfabetos e cerca de 60% têm entre 18 e 30 anos4 — idade economicamente ativa —, oriundos de grupos menos favorecidos da população ou de grupos usuários de drogas. Cada pessoa privada de liberdade custa para os cofres públicos do Estado, segundo estimativas, em média, cerca de R$ 750,00 por mês, ou seja, dois salários mínimos5, chegando em alguns estados a alcançar R$ 1.200,00. A Lei de Execuções Penais exige que todos os condenados desenvolvam algum tipo de trabalho, bem como que as pessoas presas tenham acesso ao ensino fundamental garantido. Mas apenas 26% participam de alguma atividade laborativa e 17,3% estudam (efetivamente participam de atividades educacionais de alfabetização, ensino fundamental, médio e supletivo). São esses dados tão significativos que sugerem a reavaliação da atual “cultura da prisão”. O Brasil, como membro do Conselho de Defesa Social e Econômica da ONU, pelo menos no campo programático, vem procurando seguir as determinações internacionais para tratamento de reclusos. Segundo alguns estudiosos do Direito Internacional, a Legislação Penal Brasileira é uma das mais avançadas do mundo. Com a “desfederalização” da sua Execução Penal, o sistema prisional brasileiro, a justiça e o seu sistema policial estão organizados em nível estadual de modo que cada governo distrital tem certo grau de autonomia na introdução de reformas sobre a manutenção de cadeias, financiamento, pessoal, questões disciplinares e investigação de possíveis abusos. A implementação de políticas públicas de execução penal no Brasil ficou a cargo de cada estado. Por isso, devido à diversidade cultural, social e econômica de cada cidade, 3 Justificadas muitas vezes por ser minoria no contexto nacional, as políticas de execução penal geralmente não contemplam as especificidades das mulheres privadas de liberdade. Segundo alguns pesquisadores, elas sofrem duplamente: pelo encarceramento, propriamente dito, e pela total invisibilidade dos governantes na implementação de políticas públicas de execução penal. 4

É importante evidenciar que essa faixa etária corresponde a apenas 22% da população brasileira.

5 Segundo dados do IBGE/2001, 24,1% de 75,4 milhões de brasileiros ocupados recebem até um salário mínimo por mês.

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a realidade penitenciária brasileira é muito heterogênea, variando de região para região, de estado para estado e, na maioria das vezes, de unidade prisional para unidade prisional. Atualmente, muito se discute a criação de formas alternativas de pena, como a construção de novos presídios, cada vez melhor aparelhados, dispostos a impedir qualquer circulação do delinquente no convívio social. Ainda se acredita no poder intimidativo da prisão. A justiça continua confiante de que a severidade da pena imposta tem eficácia preventiva. Sobre essa reflexão, a prisão, na medida em que representa o principal instrumento do sistema para procurar impedir as atuações criminosas, vem ocupando o centro dos debates. O sistema penitenciário assenta-se sobre esse tipo de punição como forma real e simbólica de interrupção do problema, propondo a “ressocialização” das pessoas presas, supondo que o “desrespeito” às normas esteja relacionado, por exemplo, à falta de ocupação profissional e de disciplinarização moral para o convívio social e para o trabalho. Nesse sentido, a pena é proposta não apenas como punição, mas como fator de “reeducação” do indivíduo. O PAPEL DA EXECUÇÃO PENAL NA SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA Conforme os dados apresentados acima, pode-se observar que o simples encarceramento tem mostrado ser insuficiente sem um adequado programa socioeducativo, para recuperar efetivamente um número significativo de apenados, acarretando, com isso, um progressivo aumento de ônus para a sociedade, além de vir degradando em níveis extremamente dolorosos a condição humana desses sujeitos. Poucos são os estudiosos da área de execução penal que vêm se dedicando à ampliação do debate sobre o papel do sistema penitenciário no contexto social. Destes, a maioria concorda que é de suma importância que o Estado, enquanto tutor desses indivíduos, assuma como política penitenciária programas educativos e laborativos de reinserção social, que tenham como objetivo principal a reintegração da pessoa presa à sociedade, por meio de atividades que valorizem o potencial produtivo dos sujeitos apenados, e pela reformulação da atual execução penal, respeitando a Lei de Execuções Penais (LEP), diferenciando, por exemplo, o tipo de infrator e sua infração, adequando a pena a cada caso específico. 63

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Particularmente, diante de alguns poucos estudos pulverizados pelo país, podemos evidenciar que, no que concerne à reinserção social, a educação, por exemplo, preponderantemente assume papel de destaque, pois, além dos benefícios da instrução escolar e elevação de escolaridade, a pessoa presa participa de um processo de modificação capaz de melhorar sua visão de mundo, contribuindo para a formação de senso crítico, melhorando o seu comportamento na vida prisional. O PAPEL DA EDUCAÇÃO NA LEGISLAÇÃO PENAL BRASILEIRA Em qualquer parte do mundo ocidental, quando se fala em propostas de “programas de ressocialização” para a política de execução penal, por exemplo, pensa-se em atividades laborativas e de cunho profissionalizante, bem como atividades educacionais, culturais, religiosas e esportivas. Nessa direção, educação e trabalho são duas importantes categorias que permeiam toda a discussão sobre programas de “reinserção social” no sistema penitenciário. Sempre foram vistos de formas diferentes. Uns valorizam o trabalho — a grande maioria —, como proposta de programa de “ressocialização”, outros valorizam a educação. Hoje, há um outro grupo que acredita que a educação e o trabalho devem estar articulados. A atual legislação penal brasileira prevê que a “assistência educacional” compreenderá a instrução escolar e a formação profissional da pessoa presa e do interno penitenciário. Institui como obrigatório o ensino de primeiro grau, integrando-se no sistema escolar da unidade federativa. Já o ensino profissionalizante deverá ser ministrado em nível de iniciação ou de aperfeiçoamento técnico. De acordo o art. 83 da Lei de Execução Penal brasileira, todo “estabelecimento penal, conforme a sua natureza, deverá contar em suas dependências com áreas e serviços destinados a dar assistência, educação, trabalho, recreação e prática esportiva”. Em atendimento às condições locais, institui que todas as Unidades deverão dotar-se de uma biblioteca provida de livros instrutivos, recreativos e didáticos e que, devido à abrangência e particularidade da questão, as atividades educacionais podem ser objeto de convênio com entidades públicas ou particulares, instalando escolas ou oferecendo cursos especializados.

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DIAGNÓSTICO DA EXPERIÊNCIA BRASILEIRA DE EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS PRIVADOS DE LIBERDADE O tema educação é interpretado na Lei de Execução Penal de forma distinta pelos vários estados. Enquanto uns vêm investindo na implementação de ações e políticas de incentivo à educação como prática na execução penal, outros pouco ou quase nada fazem nessa direção. Em alguns estados, por exemplo, até a prática da remição pelo ensino, embora não prevista na Lei de Execução Penal, já é adotada há tempos, com sucesso, à base de um dia de pena por dezoito horas de estudo. Discutem-se atualmente no Congresso Nacional projetos de lei que reformulam a atual Lei de Execuções Penais. Perpassando desde a discussão da “maioridade penal”, tipificação de crimes, inclusive crimes hediondos etc., há um projeto que prevê a implementação da remição de pena por meio do estudo na Lei de Execução Penal. Porém, enquanto isso não se efetiva legalmente, fica a cargo de cada operador da execução penal nos estados a interpretação do referido direito, visto que a legislação atual só a reconhece quando vinculada ao trabalho. Em linhas gerais, a questão da educação como “programa de reinserção social” na política pública de execução penal é um assunto ainda nebuloso. Reduzidas são as discussões que vêm sendo implementadas nessa direção. Poucos são os estados que vêm reconhecendo a sua importância no contexto político da prática penitenciária. Poucos são os estados da federação que instituíram uma prática de educação na prisão. Muitos possuem ações isoladas e não institucionalizadas. São geralmente projetos de curta duração, implementados por ONGs, com atendimento reduzido, muitas vezes sendo realizados de forma improvisada, sem continuidade administrativa. Muitos estados ainda não conseguem nem mesmo cumprir o que determina a Lei de Execução Penal, ou seja, o oferecimento do “ensino de primeiro grau” — atual ensino fundamental — para seus internos penitenciários. Infelizmente, ainda vivemos a triste realidade de que muitos entram e saem totalmente analfabetos da penitenciária.

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CONSIDERAÇÕES INICIAIS PARA A IMPLEMENTAÇÃO DE UMA PROPOSTA DE EDUCAÇÃO PARA O SISTEMA PENITENCIÁRIO É importante assinalar que a educação nos presídios vem ao encontro de duas finalidades tão privilegiadas pela sociedade: coibir a ociosidade, que, segundo alguns estudos, gera maior propensão à reincidência, e dar ao condenado a oportunidade de, em futura liberdade, dispor de uma opção para o exercício de alguma atividade profissional, para a qual seja exigido um mínimo de escolarização. Assim, a opção por tirar uma grande massa da população prisional que está na ociosidade, colocando-a em salas de aula, não constitui privilégio — como querem alguns —, mas proposta que atende os interesses da própria sociedade. Felizmente, inicia-se no país uma reavaliação do papel desempenhado pela educação como prática de “reinserção social” no programa político público de execução penal, em que se equipara o ensino ao trabalho, instituindo a remição da pena também pelo estudo, além de, principalmente, reconhecer a sua especificidade, seja ela quanto à realidade em pauta, como também do público-alvo em questão. Acreditamos que, somente por intermédio da institucionalização nacional de políticas de educação para o sistema penitenciário, principalmente privilegiando as ações educacionais como programas de reinserção social, será possível efetivamente mudar a atual “cultura da prisão”. Julgamos, para tanto, ser necessário: (i) garantir a criação de um espaço educacional em todas as Unidades Prisionais (UPs), sendo elas masculinas ou femininas, fechadas, provisórias, de regime semiaberto, aberto, casa de atendimento ao albergado e/ou egresso, possibilitando ao interno penitenciário os diversos benefícios sociais e psicológicos atribuídos a uma ação educacional bem orientada; (ii) que se garanta também o atendimento aos internos em regimes disciplinares diferenciados, aos portadores de necessidades especiais, aos imputáveis, bem como aos egressos em geral; (iii) que se eleja e garanta, como prioridade para execução das ações penais que consolidarão uma política de tratamento propriamente dito para o sistema penitenciário, uma série de projetos e programas integrados a equipes interdisciplinares, interministeriais e interdepartamentais que atuarão prontamente nas áreas de educação, serviço social, saúde, psicologia e de assistência jurídica, identificando as demandas, respeitando as necessidades e interesses; (iv) que se garanta o reconhecimento e a inclusão desse público em todos os programas educacionais, sociais e de saúde do Estado, viabilizando, quando possível, a participação de seus 66

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familiares; (v) garantir a educação continuada dos servidores técnicos, administrativos e professores que atuam com essa clientela, mantendo-os atualizados quanto às principais questões evidenciadas para atendimento desse público-alvo, bem como reconhecendo a sua particularidade como “agentes operadores da execução penal”; (vi) garantir o reconhecimento de todos os profissionais da área de educação que atuam no sistema penitenciário, independentemente da sua origem institucional, assim como os assistentes sociais, psicólogos e demais profissionais do sistema, como “agentes operadores da execução penal”, merecendo reconhecimento institucional, bem como assistência e benefícios; (vii) garantir espaço mínimo adequado e de segurança para atendimento a esse público, regularizando aporte de recursos destinados à implementação de projetos de cunho educacional e profissionalizante, conforme previsto em lei; (viii) entendemos, ainda, ser indispensável a elaboração de uma plano estratégico estadual de educação, que oriente e defina as diretrizes políticas e administrativas que nortearão as ações de educação para este público – jovens e adultos em situação de privação de liberdade –, apresentando procedimentos, processos, normas, instituindo práticas, definindo recursos e atribuições, instituindo verdadeiramente uma política de educação que atenda essa realidade populacional, com seus direitos, necessidades e deveres. Enfim, já ultrapassamos a etapa que discute o direito à educação dentro da penitenciária. Estamos agora no estágio em que analisamos as nossas práticas, procuramos instituir programas, consolidar propostas e políticas, que efetivamente avaliem os seus resultados. MARCO NACIONAL E INTERNACIONAL DA PROPOSTA DE CONSOLIDAÇÃO DA POLÍTICA DE EDUCAÇÃO PARA JOVENS E ADULTOS EM SITUAÇÃO DE PRIVAÇÃO DE LIBERDADE Desde setembro de 2005, quando foi firmado um Protocolo de Intenções entre os ministérios da Justiça e Educação com o objetivo de conjugar esforços para a implementação de uma política nacional de educação para jovens e adultos em privação de liberdade, uma série de atividades foi desenvolvida ao longo do ano de 2006 no sentido de estruturar tal política, destacando-se entre elas: (i) as resoluções do Programa Brasil Alfabetizado que incluíram a população prisional entre o público de atendimento diferenciado das ações de alfabetização; (ii) a parceria com a UNESCO e o governo do Japão para a realização de cinco seminários regionais e do primeiro Seminário Nacional 67

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sobre Educação nas Prisões, que culminaram na elaboração de uma proposta de Diretrizes Nacionais para a Oferta de Educação no Sistema Penitenciário; (iii) a decisão dos dois ministérios de investir na construção de políticas estaduais de educação prisional, por meio de convênios com 12 estados e do repasse de recursos financeiros visando à melhoria das condições de atendimento em nível local. Com a finalidade de avançar na consolidação de uma política nacional, objetivando a expansão da interlocução com as unidades da Federação e fortalecendo o diálogo com todos os atores envolvidos na efetivação do direito à educação para os jovens e adultos em situação de privação de liberdade, decidiu-se, para 2007, manter a estratégia de 2006, realizando três seminários regionais e o segundo Seminário Nacional. Os seus encaminhamentos e conclusões darão respaldo para que o Ministério da Educação e o Ministério da Justiça apresentem proposta de um Plano Estratégico de Educação nas Prisões para os próximos anos. Em 2007, avançando sobre as questões ora evidenciadas, o Ministério da Justiça, por meio do seu Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania (Pronasci), apresentou uma série de ações e propostas que se destinam à prevenção, controle e repressão da criminalidade, atuando em suas raízes socioculturais, articulando ações de segurança pública com políticas sociais por meio da integração entre União, estados e municípios, atendidas as diretrizes do Sistema Único de Segurança Pública. O Programa propõe o desenvolvimento de políticas para a melhoria do sistema prisional que contemplem a valorização dos profissionais e o apoio à implementação de projetos educativos e profissionalizantes para as pessoas com penas restritivas de liberdade e aos egressos do sistema penitenciário. Apontando alternativas para as metodologias utilizadas atualmente, vem tratando a segurança pública como uma política descentralizada e articulada com os estados e municípios, estimulando o reconhecimento dos programas de segurança como partes integrantes das políticas de inclusão social de habitação, educação, trabalho, lazer, assistência e geração de emprego e renda. No âmbito da União, as ações em diversos ministérios e secretarias nacionais estão sendo acionadas, tanto para subsidiar o desenvolvimento do programa quanto para ampliar e qualificar seu alcance. Tais articulações ocorrem em função da natureza comum da atividade e também da concepção compartilhada.

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Compreendendo que segurança pública não é realizada com políticas e ações administrativas pontuais e paliativas, que somente com propostas e medidas de longa duração, com continuidade administrativa, obteremos respostas consistentes, principalmente a médio e longo prazos, a União vem investindo demasiadamente em projetos e programas interdisciplinares, muitos deles articulados com ações sociais, contando com uma atuação interministerial, articulando-se programas de várias pastas do governo federal, otimizando os recursos, tecnologias e experiências já existentes. Em suma, tem procurado promover, por intermédio de uma articulação interministerial e interdepartamental, a consolidação de uma proposta política de “Segurança Cidadã”. As discussões sobre a educação de jovens e adultos em espaços de privação de liberdade vêm alcançando, nos últimos anos, contornos internacionais. No transcurso do desenvolvimento do Projeto EUROsociAL6 no ano de 2004, alguns países latino-americanos, membros fundadores do Consórcio Educacional, discutiram a possibilidade de introdução de outras temáticas que melhor pudessem responder a suas necessidades e expectativas. O Ministério da Educação no Brasil, por meio da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade (Secad), propôs que se introduzisse a temática da educação no contexto de encarceramento como uma das temáticas substantivas do Projeto EUROsociAL/Educação. Como desdobramento dessa proposta, em junho de 2006, teve lugar em Cartagena de Índias (Colômbia) o primeiro encontro de Redes EUROsociAL. Dentro desse marco, organizaram-se as sessões de trabalho próprias do setor EUROsociAL/Educação, composta por sessões plenárias e trabalhos temáticos, modulados ao redor dos cinco temas substantivos do projeto: justiça, educação, saúde, fiscalidade e emprego. Participaram dessa Temática de Educação nas Prisões os representantes dos ministérios na Argentina, Chile, Brasil, Nicarágua e Honduras. 6 EUROsociAL é um programa de cooperação técnica da União Europeia que objetiva contribuir para a promoção da coesão social na América Latina, por meio do fortalecimento de políticas públicas e da capacidade institucional para executá-las. Seu método principal de trabalho é o intercâmbio de experiências, conhecimentos e boas práticas entre administrações públicas europeias e latino-americanas em cinco setores prioritários: justiça, educação, saúde, fiscalidade e emprego. O programa parte do convencimento de que é possível contribuir para melhorar a eficácia e a eficiência das políticas públicas como mecanismos geradores de coesão social por meio da sensibilização dos líderes políticos e dos intercâmbios de experiências entre funcionários públicos europeus e latino-americanos com capacidade de tomar decisões. A finalidade principal dos intercâmbios de experiência é a introdução de orientações, métodos ou procedimentos inovadores de gestão que têm sido utilizados em outros países.

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Nesse encontro, as propostas de ações de intercâmbio foram acordadas de maneira consensual pelo conjunto dos participantes, com o objetivo de iniciar um processo reflexivo e estratégico de criação da Rede Latino-americana especializada no tema Educação nas Prisões. Depois de uma série de reuniões de trabalho, com a participação de representantes dos países latino-americanos que compõem a Rede EUROsociAL/ Educação, reunidos em Belo Horizonte, Brasil, no período de 20 a 24 de novembro de 2006, como parte das atividades no III Fórum Educacional Mercosul, foi organizado o Seminário EUROsociAL de Educação nas Prisões. No evento, compreendendo que a educação de jovens e adultos em situação de privação de liberdade é um direito básico e tema fundamental na construção de políticas educacionais, o Uruguai, Argentina, El Salvador, Colômbia, Costa Rica, Equador, Honduras, México, Peru, Paraguai e o Brasil, resolveram, na ocasião, instituir a Red Latinoamericana de Educacion en Contextos de Encierro (RedLECE). A implementação da Rede, entre outros objetivos, tem como proposta impulsionar políticas públicas integrais e integradas que favoreçam a atenção para a educação em espaços de privação de liberdade, concebida como um direito ao longo da vida; trocar experiências e informacões, fomentando pesquisas e cooperação técnica entre os países; bem como atuar como um interlocutor regional para o diálogo e a reflexão política com outras redes em nível internacional. Com a perspectiva da organização, por parte da UNESCO, da Primeira Conferência Mundial sobre Educação nas Prisões, que acontecerá em Bruxelas, no segundo semestre de 2008, e de o Brasil sediar o Encontro Latino-americano preparatório para a Conferência, já em março deste ano, os seminários realizados em 2007 também se configuraram como espaços privilegiados para estruturar a participação brasileira nesses dois eventos de relevância indiscutível. A Conferência e o Encontro deverão tratar de uma série de temas fundamentais para a efetivação do direito à educação em contextos prisionais. Além dos referidos eventos, o Brasil também será sede da VI Conferência Internacional de Educação de Adultos (CONFINTEA VI), a realizar-se em 2009. A CONFINTEA ocorre, em média, de 12 em 12 anos e discute, desde 1949, a importância de ações voltadas para a educação de adultos. Será a primeira vez que o encontro acontecerá em um país da América do 70

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Sul. A última Conferência aconteceu em 1997, em Hamburgo, na Alemanha. A Declaração de Hamburgo detalha um conjunto de recomendações que devem ser seguidas por agentes governamentais e não governamentais. Juntamente com a Declaração, foi estabelecida a Agenda para o Futuro, com estratégias de implementação e acompanhamento das ações e intenções acordadas durante a Conferência. Acredita-se, em virtude dos avanços conquistados pelo tema “educação de jovens e adultos em situação de privação de liberdade”, nos últimos anos, em contexto internacional, que a Conferência venha a ser um importante e estratégico espaço para a consolidação das discussões, principalmente referendando significativas recomendações. A educação de jovens e adultos no país, em linhas gerais, vem alcançando nos últimos anos enormes avanços no campo institucional e político. A educação em espaços diferenciados, principalmente de jovens e adultos em privação de liberdade, vem conseguindo, em um ritmo particular, porém intenso, obter algumas conquistas, deixando de ser um tema invisível, tornando-se ponto de pauta de governos, de eventos nacionais e internacionais. Enfim, tem conseguido visibilidade até há pouco tempo inimaginável. Cientes da importância dos últimos passos dados, principalmente pelo projeto Educando pela Liberdade para a consolidação de uma prática política de construção coletiva no país, convidamos todos a trocar experiências, participando das discussões, apresentando suas considerações e sugestões, enfim, contribuindo para que possamos efetivamente implementar uma política nacional de educação que atenda os jovens e adultos em situação de privação de liberdade.

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7. II SEMINÁRIO NACIONAL DE EDUCAÇÃO EM PRISÕES - 2007 Elionaldo F. Julião

RELATÓRIO O Ministério da Justiça, em parceria com o Ministério da Educação, secretarias estaduais de Educação, Justiça e/ou Administração Penitenciária e UNESCO, após a realização em julho de 2006 do I Seminário Nacional pela Educação nas Prisões, propuseram a organização de três Seminários Regionais e do II Seminário Nacional, que se realizaram nos meses de setembro, outubro e novembro de 2007, com o objetivo de debater o tema educação para jovens e adultos privados de liberdade. Com a finalidade de avançar na consolidação de uma política nacional, evidenciou-se a necessidade de se expandir a interlocução com as unidades da Federação e fortalecer o diálogo com todos os atores envolvidos na efetivação do direito à educação dos jovens e adultos privados de liberdade, tais como ONGs, universidades, organismos internacionais etc. Assim, a manutenção da estratégia de 2006, com a realização dos três seminários regionais e do II seminário nacional, pareceu-nos um caminho indispensável a ser trilhado. Contudo, essa opção não implicou a repetição dos mesmos eixos temáticos para o debate – gestão, formação de profissionais e aspectos pedagógicos. A experiência demonstrou que a efetividade das ações educativas em contexto prisional depende diretamente da reformulação da execução penal a partir de uma perspectiva de afirmação de direitos e de redução das vulnerabilidades das pessoas presas, conduzindo, quase que automaticamente, a uma ressignificação da gestão penitenciária. Nesse sentido, desde 2005, o Departamento Penitenciário Nacional (Depen) vem investindo em um programa de implementação de escolas penitenciárias em cada um dos estados do país e no Distrito Federal. Na concepção do Depen, para além 73

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de uma instituição de formação dos profissionais que atuam no sistema penitenciário, essas escolas são o espaço central para o debate, a qualificação e o aprimoramento da gestão penitenciária em nível estadual. Esses seminários, portanto, se constituíram no momento oportuno para discutir – com as unidades da Federação e com a sociedade civil que acumula certa expertise na área –, por meio da articulação com o trabalho das escolas penitenciárias e da proposta de construção de planos estratégicos estaduais de educação nas prisões, o papel das políticas estaduais de educação em espaços de privação de liberdade nessa busca pela transformação da realidade do Sistema Penitenciário. A proposta de refletir sobre a construção de planos estratégicos estaduais de educação nas prisões também dialoga diretamente com os principais desafios identificados pelos ministérios da Justiça e da Educação durante a referida parceria efetivada com 12 estados para a construção de políticas locais de educação nas prisões e com as maiores dificuldades encontradas pelas 27 unidades da Federação para a implantação das Diretrizes Nacionais para a Oferta de Educação no Sistema Penitenciário. Trata-se, entre outras, das temáticas da articulação institucional, de institucionalização de práticas e procedimentos, da formação de formadores, da certificação das atividades educativas e do desenvolvimento de um percurso social formativo que extrapole os limites da alfabetização e da educação de jovens e adultos presencial. Por outro lado, identificou-se também ser preciso aprofundar o debate acerca das relações entre a educação e o mundo do trabalho no interior dos estabelecimentos penais. Educação e trabalho conformam o binômio central em qualquer proposta de reintegração social das pessoas presas, porém, simultaneamente, competem entre si pelo tempo e a atenção dos presos e das presas, assim como pelos parcos recursos investidos pelo Estado na reintegração. Além disso, raramente educação e trabalho aparecem lado a lado em uma proposta consistente e devidamente estruturada de ação, figurando conjuntamente, em geral, somente em cursos bastante simplificados e rápidos de capacitação, que nem promovem a elevação da escolaridade e das competências profissionais do seu público, nem abrem verdadeiramente uma oportunidade de inserção mais digna na sociedade via mundo do trabalho. Dessa forma, identificou-se a necessidade de se colocar na pauta do dia a costura entre as ações educativas, profissionalizantes e de inserção no mundo do trabalho em uma proposta comum e coesa. Vale lembrar que algumas experiências promissoras com educação a distância, economia solidária e 74

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no âmbito do Programa de Integração da Educação Profissional Técnica de Nível Médio na Modalidade de Jovens e Adultos (PROEJA), entre outras, ampliam ainda mais as possibilidades de produção de sinergias entre os universos da educação e do trabalho e convidam definitivamente todos os gestores do sistema penitenciário para esse debate. Visando sensibilizar, orientar e dar subsídios básicos para a discussão, em linhas gerais, os Seminários tiveram como proposta suscitar a reflexão sobre a importância da educação nas prisões e a necessidade de se pensar sobre a implementação de um “plano estratégico estadual” que encaminhe as ações dos estados, bem como dê instrumentos para se enfrentar os principais problemas identificados nas diversas experiências brasileiras, como: fragmentação, descontinuidade, improviso, falta de institucionalização de práticas e de procedimentos etc. Seguindo a estratégia de mobilização inicial dos estados, para depois, sim, um encontro nacional, promoveram-se três seminários regionais, denominados Seminários de Articulação Regional, nas seguintes regiões: Recife – Pernambuco (04 e 05/09/2007), reunindo os estados do Nordeste; Rio Branco – Acre (24 e 25/09/2007), reunindo os do Norte e CentroOeste; e Curitiba – Paraná (09 e 10/10/2007), os do Sul e do Sudeste. Já o Seminário Nacional, realizado nos dias 30, 31/10 e 01/11/2007, em Brasília – Distrito Federal, reuniu representantes de todos os 27 estados da Federação. Em todos os seminários, inclusive no nacional, foram convidados para participar representantes das secretarias estaduais de Educação e das secretarias estaduais de Justiça, Direitos Humanos e Cidadania e/ou Administração Penitenciária, representantes da sociedade civil, ministério público, defensorias e juizados. Pela primeira vez também foi ensaiada, com sucesso, a participação presencial de internos penitenciários na discussão. A série de seminários regionais e o seminário nacional tiveram como objetivo reunir em um mesmo espaço os diversos agentes sociais com a finalidade de viabilizar e consolidar uma prática há muito deixada de lado em detrimento de ações e decisões particulares: a da construção coletiva de uma proposta política que vislumbre os reais interesses da sociedade. A organização e, principalmente, a programação dos seminários regionais, embora atendessem as particularidades de cada cidade sede, procuraram seguir uma matriz básica defendida pelos ministérios da Justiça e da Educação e pela UNESCO. Nelas prevalecia um momento inicial para apresentação do Projeto Educando para a Liberdade e da explicação pelos parceiros da 75

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proposta nacional que vem se consolidando nos últimos anos no âmbito das políticas de educação e execução penal. Seguia-se com a apresentação das experiências dos estados presentes com a educação em espaços de privação de liberdade, finalizando com a constituição de grupos de trabalho que, ao término do evento, apresentavam os resultados consolidados das discussões e estratégias sugeridas pelos grupos. Para sistematização das discussões, os grupos, independes, coordenados por um dinamizador, possuíam um roteiro básico com os mesmos itens para reflexão. Para essa fase da segunda etapa do projeto, foram escolhidos alguns tópicos, divididos em dois grandes eixos temáticos. Um, denominado aspectos Administrativos, pois nele foram organizados os tópicos considerados de ordem administrativa, tais como diagnósticos do perfil das pessoas presas, dos agentes, dos educadores e das condições de oferta de educação nas prisões; certificação; registros escolares; financiamento e desenvolvimento de tecnologias para formação de professores, desenvolvimento de metodologias e materiais pedagógicos. E o outro, de aspectos administrativos e políticos, pois nele, além da perspectiva administrativa, acresceu-se a necessidade de articulação com outros entes e pares. Dentro desse eixo, foram considerados na discussão, pensar em estratégias para: oferta de educação de jovens e adultos em todos os níveis (alfabetização, ensino fundamental e médio); oferta de educação formal, não formal e informal; continuidade; articulação com o sistema público de ensino; criação de espaços para práticas educativas; política de fomento à leitura; articulação com o mundo do trabalho; papel das escolas penitenciárias; atuação dos “agentes operadores da execução penal” e participação dos diversos órgãos da execução penal. No Seminário Nacional, seguindo a mesma dinâmica, depois de consolidadas em um único documento as propostas regionais, promoveu-se a discussão entre os presentes para a aprovação do documento final denominado Proposições dos seminários regionais (Anexo 1) e de elementos básicos para a elaboração do Plano Estratégico Estadual para educação nas prisões (Anexo 2). Na sua programação, foi possível ainda a organização de uma mesa denominada Articulação Internacional para Educação no Sistema Penitenciário com a presença de representantes do EUROsocial, falando sobre a Rede Latino-americana de Educação em espaços de privação de liberdade; a Organização dos Estados Ibero-americanos e da UNESCO sobre as políticas internacionais de educação e, principalmente, sobre as Conferências: (1) Mundial sobre Educação nas Prisões, que acontecerá em Bruxelas, no segundo semestre de 2008, e do Brasil sediar o Encontro Latino-americano 76

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preparatório para a referida Conferência, em março de 2008; e (2) da VI Conferência Internacional de Educação de Adultos (CONFINTEA VI), a realizar-se em 2009, também no Brasil. Os encaminhamentos e propostas dos seminários regionais foram levados a efeito para discussão no Seminário Nacional, cujas conclusões darão respaldo para que o Ministério da Educação e o Ministério da Justiça apresentem uma proposta de um Plano Estratégico de Educação nas Prisões para os próximos anos.

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ANEXO I II SEMINÁRIO NACIONAL DE EDUCAÇÃO EM PRISÕES – 2007 PROPOSIÇÕES DOS SEMINÁRIOS REGIONAIS (Documento Aprovado) MEC e MJ – fomento, apoio e indução da política de educação nas prisões em parceria com os estados Modalidade de Educação de Jovens e Adultos – obedecendo a todos os seus princípios e reconhecendo as especificidades do público jovem e adulto, principalmente quanto a sua situação de privação de liberdade. Estratégia: - Promover articulação nacional, principalmente entre Ministério da Justiça, Ministério da Educação e demais ministérios, Conselho Nacional de Educação, Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, CONSED, CONSEJ, organismos internacionais e instituições de ensino superior etc. - Definição de competências dos parceiros (Secretarias Estaduais de Educação e Secretarias Estaduais de Justiça e/ou Administração Penitenciária por meio de uma Portaria Interministerial – Ministério da Educação, Ministério da Justiça e Ministério do Trabalho). Parceria Interinstitucional – Secretaria Estadual de Educação, as Secretarias responsáveis pela administração penitenciária e órgãos de execução penal - Promover políticas integradas para ações de escolarização e profissionalização visando à inclusão social. - Promover políticas integradas para ações de reintegração social nas pastas dos governos federal, estadual e municipal, garantindo a continuidade (ex.: Sistema Único de Assistência Social). - Implementar uma política estadual de educação para o sistema penitenciário, garantindo a inclusão, a acessibilidade, o atendimento à diversidade (gênero, etnia, estrangeiros, credo, idade e outros), bem como as condições necessárias ao acesso e permanência de todos os internos à educação, independentemente do regime (fechado, semiaberto, aberto, regime disciplinar diferenciado e provisório).

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- Garantir a compreensão da educação em seu sentido amplo, não somente de escolarização, mas principalmente de formação, reconhecendo as especificidades das diversas unidades, regimes e do sistema. - Garantir a oferta em todos os níveis e modalidades de forma contextualizada, viabilizando a continuidade. - Regularização das escolas dentro das unidades, permitindo espaços alternativos e salas anexas, garantindo a oferta e os registros, inclusive a articulação com escolas do sistema. - Participação conjunta em todas as atividades de formação e distribuição de material, certificação, exames, avaliações, principalmente as que possam viabilizar e garantir a continuidade, após o cumprimento da pena. - Aprofundar articulações com os municípios, garantindo a continuidade dos estudos. Construção do Plano Estratégico Estadual de Educação nas Prisões - Construção coordenada pelas secretarias estaduais de Educação e as secretarias responsáveis pela administração penitenciária, de forma aberta e democrática, com a participação de todos os profissionais da execução penal, educadores, pesquisadores, sociedade civil, fundações, comunidade e, principalmente, os internos, OAB, Fórum de EJA, Conselho Estadual de Educação e Centros de defesa dos direitos humanos e órgãos responsáveis pela execução penal, Ministério Público, Defensoria, com acompanhamento dos ministérios de Educação e da Justiça. Parcerias com universidades e sociedade civil organizada - Sensibilizar e incentivar a participação das instituições de ensino superior (ensino, extensão e pesquisa) e Cefets, juntos com os atores envolvidos na educação prisional, visando à formação continuada e capacitação de pessoal; implementação, desenvolvimento de tecnologias, materiais pedagógicos e metodologias adequadas à realidade do sistema penitenciário, viabilizando, de fato, a reintegração social. - Fomento à pesquisa e acompanhamento das atividades por especialistas.

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Proposta pedagógica - Adequar o currículo da EJA à educação nas prisões considerando o tempo e o espaço dos sujeitos da EJA inseridos nesse contexto e que enfrente os desafios que a Lei de Execuções Penais propõe em termos da sua reintegração social. - Os documentos e materiais produzidos pelos ministérios da Educação e da Justiça e/ou Secretarias de Estado, que possam interessar aos educadores e educandos do sistema, sejam disponibilizados e socializados, visando ao estreitamento da relação entre os níveis da execução e de gestão da educação nas prisões. - Garantir que a formação para o mundo do trabalho seja um dos principais elementos articuladores da proposta pedagógica, principalmente que o planejamento articulado possibilite a integração da educação com as atividades laborativas. - Fomentar, na proposta pedagógica, os princípios da economia solidária e outras alternativas de geração de trabalho e renda para (re)inserção no mundo do trabalho. - Elaborar propostas pedagógicas diferenciadas que atendam as especificidades dos regimes penais, inclusive o Regime Disciplinar Diferenciado. Financiamento da Educação de Jovens e Adultos em situação de privação de liberdade - Que o financiamento da Educação de Jovens e Adultos em situação de privação de liberdade seja via Fundeb/matrícula na rede, Programa Brasil Alfabetizado e outros programas dos governos federal, estaduais e municipais. Espaços adequados para a oferta em todas as Unidades - Promover a construção, instalação, ampliação e reforma das salas de aula, bibliotecas e laboratórios, viabilizando ambientes favoráveis ao atendimento das demandas nas unidades prisionais destinadas aos presos provisórios e sentenciados. - Criar espaços e políticas de incentivo, articulando novas tecnologias de informação e comunicação para educação de jovens e adultos, atrelados à proposta pedagógica das unidades. - Condicionar o repasse de recursos do Ministério da Justiça para a cons80

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trução de novas unidades prisionais à previsão de espaços para atividades educacionais, laborativas, esportivas, culturais e de lazer, garantindo proporcionalidade quanto à população prisional. (item condicionado a estudo específico a ser realizado pelo Ministério da Justiça.) Formação e valorização dos profissionais - Promover a formação inicial e continuada para todos os profissionais que atuam no sistema penitenciário, principalmente de professores, contratados temporariamente e/ou efetivados. - Promover encontros de formação continuada e integrada para todos os profissionais que atuam no sistema prisional.

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ANEXO II II SEMINÁRIO NACIONAL DE EDUCAÇÃO EM PRISÕES PROPOSTA DE ELEMENTOS ESTRUTURANTES DO PLANO ESTRATÉGICO PARA EDUCAÇÃO NO SISTEMA PENITENCIÁRIO t "QSFTFOUBÎÍP t .JTTÍP WBMPSFTFWJTÍPEFGVUVSP t 'VOEBNFOUBÎÍPMFHBM t +VTUJëDBUJWB t 0CKFUJWPT HFSBMFFTQFDÓëDPT

t 1ÞCMJDPBMWP t "CSBOHÐODJB t .FUBT t .FUPEPMPHJB t 1SB[PT t 3FDVSTPTIVNBOPT JOTUJUVDJPOBJTFNBUFSJBJT t 'JOBODJBNFOUPDPNQFUÐODJBT GFEFSBM FTUBEVBMFNVOJDJQBM

t 1SPDFTTPEFBDPNQBOIBNFOUPFBWBMJBÎÍP t %JBHOØTUJDPT OBS. O referido plano deverá ser elaborado com base em diagnóstico prévio.

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8. A NOVA PENOLOGIA E PROCESSOS DE REENCARCERAMENTO NO MUNDO

Massimo Pavarini UM DÉFICIT TEÓRICO Em diferentes ocasiões, nos últimos tempos (PAVARINI, 2000a, p. 71-102; 2001, p. 113-141; 2002, p. 105-136), interessei-me pelo mesmo e aparentemente simples problema: por que, nas últimas duas décadas, a população prisional aumentou significativamente, com pouquíssimas exceções, em todo o mundo. Para quem se interessa profissionalmente pela penalidade nos fatos, não estar em condições de responder com segurança (ao menos subjetivamente) a essa pergunta cria um certo embaraço. O fato de que nenhum colega sério tenha dado ainda uma resposta – a não ser usando muitos “quem sabes” e usando abundantemente o condicional –, em parte, me consola. Ergo: ainda que não esteja em condições de oferecer um modelo explicativo cientificamente convincente ao problema, sinto-me, porém, seguro, quando afirmo que a pluralidade de modelos explicativos hoje em circulação revela um grave déficit teórico na penologia: uma comunidade científica que não está em condições de acordar, de forma majoritária, sobre a(as) razão(ões) das variações quantitativas – por certo de magnitude relevante – de um fenômeno social no tempo é seriamente suspeita de mover-se ainda em um nível de conhecimento pré-científico. Ao redor do mundo, podem ser encontradas ótimas pesquisas descritivas do fenômeno, em uma ótica comparativa, mas precisamente descritivas, não explicativas; existem, por outro lado, sofisticados trabalhos que oferecem modelos interpretativos convincentes de por que se assiste a variações da população prisional ao longo do tempo, em uma realidade político-geográfica determinada. Esses trabalhos invariavelmente fracassam ao tentar explicar o mesmo fenômeno em outras realidades. Inclusive, foram dadas explicações 83

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razoáveis sobre as variações quantitativas da população prisional no mundo. Por exemplo, por que motivo os Estados Unidos, o Japão, a Colômbia, a Índia e a Tanzânia apresentam taxas de encarceramento tão diferentes (compreendidas em uma escala de 1 a 40). As mesmas explicações não nos ajudam a entender por que a quantidade de pessoas presas registrou um forte aumento – onde e em época mais recente. Enfim, hipóteses interpretativas que haviam sido convincentes na explicação da evolução das taxas de encarceramento em outros momentos históricos (por exemplo, o “grande encarceramento” entre os séculos XVIII e XIX ou a diminuição da população prisional com a imposição das políticas do Welfare) parecem, atualmente, estar com problemas para explicar as razões que empurram para cima as estatísticas prisionais no mundo. DIFERENCIAIS EXPLICÁVEIS NAS TAXAS DE ENCARCERAMENTO NO MUNDO As estimativas oficiais calcularam que, no início do novo milênio, o número de pessoas no planeta Terra penalmente privadas de liberdade (com exclusão, portanto, das diferentes formas de detenção por razões políticas e/ ou bélicas) era pouco superior a oito milhões e setecentos mil. Estimativa deficiente a menor. Alguns estados não oferecem estatísticas atualizadas sobre o tema: para alguns, podemos nos basear somente em informações de mais de dez anos (por exemplo: a maior parte dos Estados do Caribe); para outros, é prudente suspeitar que as informações são politicamente amenizadas (por exemplo, a China, que oferece informação somente sobre os detentos condenados e não sobre aqueles privados de liberdade por razões processuais). Para outros, existe ainda uma completa escuridão, já que os governos não oferecem nenhum dado (por exemplo: a Iugoslávia, o Iraque, o Laos, o Afeganistão e muitos Estados africanos como a Líbia, a Nigéria, a Etiópia, a Somália e o Congo). Mas não é somente isto: a maior parte dos Estados oferece informações estatísticas somente no que concerne à população penal adulta, enquanto omite as taxas de internação em hospitais de custódia e tratamento penitenciário. Outros não levam em consideração algumas formas de prisão administrativa que, em outros contextos normativos, são, por outro lado, de natureza penal. Pensar em 10 ou 11 milhões de pessoas privadas de liberdade aproximado, mas temo a menor, à realidade. Esse dado – aparentemente escandaloso (basta considerar que os menores reduzidos à escravidão no mundo 84

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somam mais de 250 milhões e aqueles que morrem anualmente de fome, diferentes centenas de milhões) – tem um significado apreciável somente no nível da contabilidade estatística, uma vez que registra a quantidade de pessoas nas instituições prisionais normalmente no fim do ano ou em qualquer outro dia específico. Na média, os que passam anualmente de um estado de liberdade a um estabelecimento penitenciário são mais numerosos, geralmente o dobro. Pode-se arriscar, ainda que por aproximação, que a cada ano no mundo, mais de 20 milhões de pessoas vivem uma experiência de privação da liberdade. Alguns instrumentos úteis ajudam a analisar esta overview of world imprisonment (VAN ZYL SMIT, DUNKEL, 2001; CARRANZA, 2002): conjuntamente, oferecem uma impressionante massa de dados. Tentarei, nas páginas seguintes, selecionar somente alguns que, bem reduzidos, são úteis para traçar as primeiras coordenadas de um possível mapeamento do encarceramento mundial. Uma primeira forma de simplificar e comparar entre si países com populações diferentes é reportar a porcentagem de detentos por cada 100 mil habitantes. Se tomarmos como índice de referência o total mundial de detentos presentes diariamente, isto é, os mencionados 8,7 milhões, pode-se facilmente calcular que o índice mundial é de, aproximadamente, 140 detentos a cada 100 mil cidadãos no mundo, em 31 de dezembro de 2003. Realmente, como foi antecipado, temos motivos para imaginar que a população prisional supera, amplamente, os 10 milhões, pelo que podemos prudentemente corrigir a estimativa dos detentos diariamente no mundo para um índice ponderado de 160 por 100 mil habitantes. Tal índice, simples e por si só inexpressivo, pode ser útil para se traçar uma espécie de divisor de águas, possibilitando identificar os países que se posicionam abaixo e quais os que estão acima desse número (WALMSLEY, 2001, p. 775-795). Em primeiro lugar, tomemos nota de que mais de três quartos das nações do mundo registram um índice de encarceramento inferior àquele ponderado assinalado. Significativamente, toda a Europa central e meridional se localiza amplamente abaixo desse índice, com variações entre os Estados compreendidos entre os 93 (ver França) e os 141 (ver Inglaterra), e uma média conjunta em torno de 98 detentos por 100 mil habitantes. Inclusive, outras realidades de 85

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proporções igualmente vastas podem se vangloriar de uma população prisional relativamente pequena. Tome-se como exemplo a América do Sul e a Oceania, com uma média próxima a 115; a maior parte dos países da África central e ocidental junto com aqueles da Ásia meridional, com uma média conjunta de somente 60 (é preciso recordar que a Índia, com aproximadamente 1 bilhão de habitantes, registra um índice de somente 29 detentos por 100 mil e a China, com 1,4 bilhão de habitantes, declara um índice de 117). Vejamos agora quais são as realidades que se distanciam, por excesso, da média ponderada nas taxas de encarceramento. Em primeiro lugar, os Estados Unidos, com um índice de 701, ou seja, quatro vezes a média mundial; a pouca distância, a Rússia, com um índice de 606, seguida pela Bielo-Rússia e de algumas ex-repúblicas soviéticas orientais (como Cazaquistão e Quirguízia), que se localizam em torno de 500; seguem a África do Sul e, à distância, alguns pequenos países do Caribe que se aproximam dos 300, como também alguns países do norte da África e da Ásia central; finalmente, os países da Europa do leste, como a República Checa e a Romênia, que registram índices de encarceramento superiores a 200 detentos por 100 mil habitantes. Essa esquemática divisão do mundo com relação à média ponderada das taxas de encarceramento pareceria ser bastante pouco inteligível à primeira vista, no sentido de que é difícil intuir as explicações para um leque tão amplo de diferenças. Entretanto, tais dados estão em condições de expressar algo importante, mesmo que sejam insuficientes para sugerir uma explicação plenamente convincente. Em primeiro lugar, esses mapas, no negativo, dizem algumas coisas. Demonstram, por exemplo, que não está confirmada a hipótese que relaciona diretamente as taxas de encarceramento com algumas variáveis estruturais, como a densidade da população, a composição demográfica por idade, a riqueza das nações e o bem-estar econômico dos cidadãos. Tampouco as variáveis políticas parecem estar significativamente relacionadas com a taxa de repressão penal, como os níveis de democracia, os sistemas de governo e representação etc. Mais ainda, os sistemas normativos de referência não parecem ter relações significativas com as taxas de encarceramento. Por exemplo, Canadá e Austrália, com taxas que oscilam em torno dos 110 detentos por 100 mil habitantes, possuem uma tradição e um sistema de justiça criminal que em pouco diferem do americano, enquanto os níveis de repressão penal são quase sete vezes inferiores. O mesmo se pode argumentar em relação aos países lati86

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nos da América Central em comparação àqueles do sul: não obstante serem sistemas de justiça criminal bastante parecidos, os países centro-americanos apresentam taxas de encarceramento, em média, triplamente maiores do que aqueles sul-americanos. Por último, as taxas de criminalidade – aproximadamente sugeridas pelas de deliquência ou criminalidade aparente - não parecem ter relação significativa com as de encarceramento. Um exemplo instrutivo: a Colômbia, de longe o país com a taxa de homicídios voluntários mais elevada do mundo (as estatísticas oficiais colombianas registraram, em 2002, um total de 26.280 homicídios voluntários consumados, isto é, um índice por 100 mil residentes igual a 73, algo como 25 vezes a média europeia e dez vezes a registrada no mesmo ano nos Estados Unidos), tem uma taxa de encarceramento de apenas 126 detentos por 100 mil habitantes, algo assim como dez pontos percentuais menos que o tranquilo Portugal. Mas certamente o exemplo mais surpreendente é o que oferece os Estados Unidos com respeito, por exemplo, a outros países ocidentais como os europeus. Nos Estados Unidos, as taxas de delinquência são bastante similares às que são possíveis de serem observadas, por exemplo, na Inglaterra ou Alemanha, com a única exceção dos latrocínios com arma de fogo (ZIMRING; HAWRING, 1997). Apesar disso, a população prisional americana é sete vezes superior à europeia. Por outro lado, as taxas de delinquência nos Estados Unidos baixaram sensivelmente nos últimos dez anos, decênio no qual a população prisional quase dobrou. Podemos ainda reivindicar uma informação diferente, mas também útil: mais de um terço da população mundial privada de liberdade se concentra somente em duas áreas (mas originariamente em dois Estados), os Estados Unidos e as nações do velho império soviético – isto é, em um universo social de somente 500 milhões de habitantes. Se excluirmos as duas realidades geopolíticas que, somadas, representam somente 1,12% da população mundial, a taxa média de encarceramento do resto do mundo seria inferior a 100 detentos por 100 mil habitantes. Não é essa a ocasião para procurar explicar a excepcionalidade norteamericana e das ex-repúblicas soviéticas no que concerne às taxas de encarceramento, tão distantes da norma internacional. Posso somente recordar que, no que se refere aos Estados Unidos, já existe vastíssima literatura a respeito. Não se pode dizer o mesmo sobre a Rússia e alguns Estados ex-soviéticos, onde não é fácil, inclusive por razões linguísticas, consultar trabalhos cientí87

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ficos que tenham aprofundado o tópico em questão. Recentemente, seguindo as indicações oferecidas por alguns ensaios em língua inglesa (USS; PERGATAIA, 2001, p. 551-585), é razoável sustentar que tal excepcionalidade se relaciona com uma constante político-econômica e de reflexo cultural, que marca essas realidades desde os tempos czaristas: a apelação ao trabalho forçado e em massa como recurso econômico decisivo para o desenvolvimento econômico. A realidade dos gulag e dos campos de trabalho foi uma presença constante nos últimos três séculos. Ainda hoje, na Rússia, de uma população prisional pouco superior ao milhão, 700 mil condenados estão internados em colônias penais onde vigora o regime de trabalho forçado. Como antecipei, hoje estamos em condições de nos valer de muitas e ótimas pesquisas comparativas. Em resumo: o atlas do encarceramento no mundo é suficientemente detalhado. Isso, obviamente, não significa que estamos em condições de explicar sempre e completamente as razões das diferenças tão marcantes nas taxas de encarceramento do mundo. Tendo já dedicado em outra ocasião (PAVARINI, 2002, p. 105-136) amplo espaço à questão, posso aqui negar, com relativa segurança científica, que as variações das taxas de encarceramento no mundo estão relacionadas de maneira significativa com as taxas de criminalidade (obviamente aparente, ignorando a oculta) ou, inclusive, com a presença de legislações penais mais ou menos repressivas. Tampouco os modelos explicativos oferecidos pela chamada penologia revisionista, desenvolvidos sobre a originária intuição de Rusche y Kirchheimer (1939), mostraram-se capazes de superar este déficit interpretativo. Se em certos casos, na verdade somente em áreas geográficas e para momentos historicamente definidos, foi possível encontrar relações estatísticas significantes entre a evolução das condições econômicas das classes mais baixas, ou melhor, entre o ciclo socioeconômico e as taxas de encarceramento (JANKOVIC, 1977, p. 17-31), a hipótese explicativa não pode ser considerada prova científica, sendo que, nos momentos de crise econômica, frequentemente aumenta tanto a criminalidade quanto o rigor dos aparatos repressivos (MELOSSI, 1985, p. 169-97; CHIRICOS; DELONE, 1992, p. 421-446). Mesmo que possam ser provadas relações significativas entre essas variáveis, em algumas hipóteses históricas e em alguns países, elas não se mostraram válidas para outros momentos e outras realidades geográficas. 88

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Em síntese, no interior de cada sistema nacional e para períodos mais ou menos limitados, a pesquisa penológica esteve em condições de verificar o significado de algumas variáveis em relação à evolução das taxas de encarceramento. Assim, por exemplo, existem pesquisas sérias que demonstram como a expansão do consumo de algumas drogas determina variações na criminalidade e, em consequência, elevação das taxas de encarceramento (GOLDSTEIN et al., 1985); assim como existem verificações empíricas da evolução das taxas de homicídios no tempo e as variações na população prisional (MELOSSI, 1998, p. 415-435); ou então pesquisas bastante interessantes que encontram relações significativas entre a evolução das estatísticas prisionais e os níveis de discriminação racial (ARVANITES; ASHER, 1998, p. 207-222) ou de marginalização social (BECKETT, 2001, p. 43-59); e, inclusive, outras que relacionam as taxas de imigração com as de encarceramento (CALAVITA, 1998, p. 529-566) etc. Mas, de novo, o modelo explicativo adotado, que se mostra capaz de explicar uma determinada realidade específica, não parece estar em condições de provar outro tanto em um contexto histórico ou geográfico diferente. Assim, sempre para proceder com exemplos, se para a Itália parece provado, inclusive a longo prazo, que processos de emigração foram acompanhados de uma redução nas taxas de encarceramento, enquanto os fluxos de imigração tiveram um aumento das mesmas (MELOSSI, 2001a, p. 85-106), o que está acontecendo em muitos países do norte da África e em alguns da Europa do Leste – fortemente caracterizados por processos massificados de imigração – não confirma tal relação, sendo que também nessas realidades é possível assistir hoje a um significativo aumento da população prisional. O colega Melossi, em recente ensaio, sugere uma hipótese explicativa do tipo cultural para mostrar, por exemplo, a abismal diferença da repressão penal entre os Estados Unidos protestante e alguns países ocidentais católicos (MELOSSI, 2001b, p. 403-424). Certamente, a hipótese apresentada é sugestiva para entender a cultura diferente da responsabilização e do merecimento de castigos em contextos culturais tão diferentes. Também essa hipótese não explica por que a Holanda protestante foi durante tanto tempo um dos países com mais baixo índice de repressão penal; ou melhor, não explica como o Canadá – nos aspectos cultural e religioso tão similar aos Estados Unidos – exibe taxas de encarceramento sete vezes mais baixas. Ademais, não se entende como a católica Polônia apresenta hoje taxas de encarceramento mais do que o dobro acima das italianas. 89

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Uma diferença tão marcante nas taxas de encarceramento no mundo induz então à suspeita de que a prática da prisão como resposta à questão criminal seja o resultado de uma pluralidade muito ampla de fatores (bastante ampla para poder mostrar exaustivamente na pesquisa comparada de tipo quantitativo), cuja combinação termina imprimindo às diferentes realidades forte especificidade. Uma especificidade tão radical que nos permite sustentar que cada realidade nacional “determina” e, portanto, “necessita”, justamente apenas aquela população prisional, a própria. Por outro lado, está comprovado que todos os homens, apesar de serem constituídos do mesmo patrimônio genético, reagem de diferente modo à mesma doença; contudo, isso não leva a ciência médica a considerar que a compreensão diagnóstica e terapêutica da enfermidade seja cientificamente impossível. Com essa posição interpretativa, que definitivamente é menos simplista do que parece, não surpreende, portanto que, no mundo, se possa quantitativamente fazer um uso tão diferente da prisão. Uma diversidade que remete à história (cultural, política, econômica, social etc.) de cada país é uma diversidade que não pode ser explicada banalmente, confrontando duas ou três variáveis, entre as que podem ser de alguma forma medidas. Mas essa última posição crítica, pela qual, confesso, tive simpatia durante um certo tempo (foi aderindo a essa hipótese que abordei, também em nível de análise explicativa, a estatística prisional na Itália do século XX, no capítulo 6) leva, portanto, a aprofundar o tema da complexidade da questão criminal e prisional em nível local, como se apenas nesse nível fosse possível compreender o problema, entra em forte crise diante da incontestável verdade histórica de que, no curso da década de 1990, e a seguir, a população prisional aumentou, mas com intensidade diferente, em todas partes, isto é, em quase todas as dimensões locais do planeta. Se efetivamente, no mesmo período, o processo de reencarceramento é impulsionado em quase todas as partes, é possível pensar na presença determinante de causas exógenas nos diferentes contextos nacionais. Mas se é assim, os mesmos modelos explicativos que, com diferentes graus de plausibilidade científica, procuraram mostrar a evolução no tempo das taxas de encarceramento em nível local, correm o risco de precisarem ser revisitados.

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PROCESSOS INEXPLICÁVEIS DE REENCARCERAMENTO NO MUNDO Retornamos ao ponto de partida: a população prisional cresceu sensivelmente no mundo nas últimas décadas, não apenas no conjunto, isto é, como total, mas em quase todo canto. Nos países desenvolvidos, o aumento dos índices de encarceramento, somente na última década, foi em torno de 40% (WALMSLEY, 2001, p. 775-795); nas Américas, o fenômeno foi mais radical (nos seis países mais povoados, o crescimento foi superior a 60%) (CARRANZA, 2002); na Europa, mais contido, pois somente a metade dos países conheceram aumentos superiores a 40%. Mas, se levarmos em consideração os países em vias de desenvolvimento – como, por exemplo, a maior parte dos países africanos e asiáticos –, devemos registrar em média altas de mais de 100%. Essa tendência ao crescimento não parece em absoluto ter se extinguido ou reduzido. Se limitarmos nossa observação unicamente aos três últimos anos, devemos registrar como a tendência de aumento é mais elevada do que a registrada nos anos anteriores. No que concerne ao crescimento da população prisional em tempos mais recentes, foram dadas interpretações, mas sempre locais que, obviamente, não estão em condições de se aplicar a contextos diferentes. Se, de fato, para algumas realidades do mundo ocidental (Estados Unidos, Inglaterra), foram criadas hipóteses interpretativas suficientemente satisfatórias do processo de re-incarceration (MATTHEWS, 1987; BLUMSTEIN; BECK, 1999, p. 17-62; TORNEY, 1998, p. 419-436) – seguida no mundo inteiro do fin de siècle passé ao processo de decarceration que se produziu da segunda pós-guerra até a metade dos anos 70 (SCULL, 1977) e que teria, por suas dimensões, finalmente desafiado a consolidada teoria da relativa estabilidade no tempo da população prisional (BLUMSTEIN; COHEN, 1977, p. 198-207) –, não existem evidências de que possam valer também para as demais nações do mundo. Indicaremos, mesmo que sinteticamente, em termos críticos, as hipóteses interpretativas que foram propostas para novos processos de reencarceramento, com a advertência de que elas amadureceram não somente no interior da cultura criminológica ocidental, mas também com relação exclusiva à realidade de alguns países, principalmente os Estados Unidos e a Inglaterra.

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Fundamentalmente, as hipóteses apresentadas foram as seguintes: 1 - As taxas de encarceramento aumentaram porque aumentou a criminalidade a partir dos anos 1970 e 1980. O aumento da criminalidade – em particular, se não predominantemente, de massas e de natureza predatória – se relaciona de maneira mais ou menos direta com diferentes fenômenos, como a crise dos sistemas de Welfare, a elevação dos índices de desocupação, a ampliação dos sentimentos de privação relativa por parte dos grupos marginalizados [são as teses sustentadas na Inglaterra pelos autores que a partir de meados dos anos 80 foram reconhecidos como os líderes de um “novo realismo de esquerda” em criminologia: Lea, Young (1984), Kinsey, Lea, Young (1986), Young (1999)], a política de criminalização da droga (GOLDSTEIN et al., 1985) e a intensificação dos fluxos migratórios [no que concerne à Itália, com perspectivas divergentes, ver Barbagli (1998), Dal Lago (1999), Palidda (1994)]. Essa hipótese explicativa, bem entendido, tem pouco a ver com aquela examinada previamente pela qual a diferença comparativa entre as taxas de encarceramento nos diferentes contextos locais em parte era colocada com relação significativa à das taxas de ilegalidade criminalizada. A última hipótese é tão contestável como errônea, dado que não responde à mais simples verificação estatística, como mostrei anteriormente. Não ocorre o mesmo com aquela que pretende colocar relação significativa entre o aumento da criminalidade no tempo e o aumento das taxas de encarceramento. Com efeito, nas últimas duas décadas, na maior parte dos países, em particular naqueles mais desenvolvidos, a criminalidade aparente aumentou. Não obstante, essa hipótese explicativa abre o flanco a, ao menos, duas sérias críticas que dificultam sua validade: a) ao não conhecer cientificamente a criminalidade real, colocar relação entre os índices da criminalidade aparente e as taxas de encarceramento é metodologicamente errôneo porque o registro da ilegalidade manifesta, além de estar influenciado pela evolução da criminalidade real, depende de outras variáveis igualmente determinantes, como a propensão das vítimas e dos cidadãos a denunciar e o grau de eficiência das agências repressivas e investigativas, como as forças policiais e as agências judiciais. Tenha-se presente que as pesquisas vitimológicas e sobre policing e sentencing (nos poucos casos cien-

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tificamente fundados) dificilmente conseguem quantificar com a devida precisão as duas últimas variáveis. No mais, a tendência majoritária expressada na doutrina a favor de uma relativa constância no tempo não pode ser controlada por pesquisas que se desdobram no âmbito de duas décadas porque, lamentavelmente, há vinte anos não se realizavam tais pesquisas e, quando realizadas, empregavam metodologias logo superadas. Ergo: no estado da arte é cientificamente impossível verificar a hipótese. b) Se é certo que algumas formas de delinquência (isto é, de criminalidade conhecida), in primis a oportunista e predatória, incrementaram-se em alguns países nesse período, é também certo que elas aumentaram com uma descontinuidade significativa. Por exemplo, nos Estados Unidos, um forte aumento foi registrado entre os anos 1975 e 1992, enquanto a seguir houve uma importante redução (BARBAGLI, 2000); na Itália, um aumento significativo foi registrado entre os anos 1986 e 1998, após o qual, inclusive no nosso país, as estatísticas da delinquência mostraram uma tendência recessiva (FORUM ITALIANO PARA A SEGURANÇA URBANA, 2003). Não obstante isso, as taxas de encarceramento continuaram aumentando também nos anos sucessivos àquele em que se alcançou o “teto” da delinquência em ambos os países. 2 - A população prisional cresceu como consequência de legislações penais mais repressivas. Trata-se principalmente das políticas criminais implementadas pelos governos conservadores dos anos 80 e 90 nos Estados Unidos, na Inglaterra e, depois, sucessivamente imitados por muitos outros países, entre eles, a Itália. Mas não exclusivamente por governos conservadores: por exemplo, a política criminal do atual governo trabalhista inglês não se diferencia de nenhum modo das precedentes conservadoras (YOUNG, 2001). O mesmo pode-se dizer da “luta contra o crime” desenvolvida na América do Norte democrata e clintoniana a respeito da anterior republicana (AA.VV., 2001). Mais ainda: a política penal do atual governo italiano não se revela mais severa que a do governo precedente de centro-esquerda. Com efeito, todas essas políticas se contrapuseram e se contrapõem àquelas tradicionalmente favoráveis à cultura e às práticas especial-preventivas, mediante uma explícita adesão a ideologias neorretribucionistas e de incapacitação da pena,

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pelo que seria razoável suspeitar que contribuem significativamente para a intensificação da repressão penal e, portanto, também prisional – e tudo isso independentemente de significativas variações nos índices de delinquência. Também frente a essas hipóteses interpretativas podem-se opor sérias críticas: a) em primeiro lugar, em quase todas as partes, a etapa da legislação inspirada no princípio da “lei e ordem” se desenvolveu em um contexto de aumento da delinquência, pelo que é impossível conseguir quantificar separadamente a contribuição para o aumento das taxas de encarceramento produzida pelo aumento dos índices de criminalidade e do que produzem as legislações penais mais severas; b) é um dado muito conhecido para ter que dedicar mais do que uma fugaz referência, que os processos de criminalização primária, mais ou menos inspirados em critérios de rigor, não necessariamente se traduzem em processos de criminalização secundária e efetivamente rigorosos. A história italiana é ilustrativa a respeito e sobre esse ponto pude insistir em outra ocasião. 3 - A população prisional aumentou como consequência de maior rigor das agências envolvidas no processo de criminalização secundária. Para demonstrar tal hipótese interpretativa, diferentes pesquisas ressaltam aumento do rigor no momento da determinação da pena em relação às mesmas tipologias de delito e/ou de autores; ou bem mostram como, em muitos países, o aumento da população prisional não se deve a um aumento das penas de detenção impostas e depois executadas (que, inclusive, em geral, diminuem um pouco em todas as partes), mas, principalmente, ao significativo aumento do rigor das penas no sentido de que sempre, percentualmente, menos pessoas entram na prisão, mas lá permanecem por períodos de tempo mais prolongados (WILSON; VITO, 1988, p. 21-26; MCKENZIE, GOODSTEIN, 1985, p. 234-259; FAUGERON, 1991, p. 249-273; THOMAS, 1992, p. 232-241; FEEST, 1991, p. 131-145). As circunstâncias assinaladas são corretas mas, definitivamente, não conseguem explicar a dependência funcional do aumento da população prisional com relação somente ao maior rigor do processo de criminalização secundária. De fato, pode-se levantar contra esse modelo explicativo tudo quanto foi criticamente argumentado sobre o segundo modelo, isto é, a) frequen-

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temente, as fases de reencarceramento são acompanhadas, seja por um aumento da delinquência (repito: delinquência, não criminalidade), seja por uma legislação penal mais draconiana, seja, finalmente, por um maior rigor por parte das agências da criminalização secundária, razão pela qual, em definitivo, não é possível atribuir um valor à contribuição de cada um desses fatores ao fenômeno estudado; b) um aumento da delinquência, acompanhada por um aumento do rigor in the books, não explica (no sentido de que a circunstância da copresença não é uma explicação) uma elevação do rigor in the facts (PAVARINI, 1998a, p. 124-156). Por outro lado, a verificação empírica da correlação significativa entre duas ou mais variáveis não é nunca ou não é ainda, uma “explicação”. 4 - Diante desses modelos explicativos de tipo monocausal – para não mencionar aqueles sincréticos ou de pluricausalidade aditiva – se contrapõem aqueles que reenviam ao paradigma da construção social (SPECTOR; KITSURE, 1986). Recorramos, a título de exemplo, aos argumentos comuns à maior parte dos modelos explicativos que remetem a esse paradigma, para oferecer, somente em um segundo momento, indicações de algumas das opções causais específicas assinaladas nesse marco. Pode-se aceitar que, nos últimos vinte anos do século passado, difundiu-se progressivamente na sociedade civil um sentimento de insegurança social que terminou por traduzir-se em uma demanda de maior rigor à qual o sistema penal respondeu elevando o nível da repressão. Se a origem dessa onda de pânico social sobre a segurança (ROCHÉ, 1993) se individualiza – inclusive atribuindo pesos específicos diferentes –, seja o aumento da criminalidade predatória, sejam as causas que estão na base desse aumento (isto é, a crise das políticas assistenciais, o aumento da desocupação, os fluxos incontrolados da nova imigração etc.), concorda-se que o aumento das taxas de encarceramento pode ser compreendido como efeito de determinada construção social no interior da qual têm um papel fundamental tanto os meios de comunicação em massa quanto o sistema político tout court (GARAPON; SALAS, 1996). Qual é, nesse ponto, a origem que determina o novo “clima social”, que acaba por demandar maior repressão e, portanto, também maior encarceramento? Recentemente, para limitar-nos ao contexto italiano, Alessandro

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de Giorgi (2000; 2002) inteligentemente retoma e aprofunda as conhecidas teses sobre as exigências de governo da população “excedente”, que acarretam as escolhas econômicas neoliberais em um contexto de relações sociais marcadas pela globalização. A época atual estaria então marcada pela passagem retórica e das práticas do welfare àquelas mais realísticas e cruelmente definidas como prisonfare. O crescimento da multidão dos excluídos – tanto do mercado de trabalho garantido quanto do resguardo assistencial oferecido por um sempre mais pobre capital social – torna politicamente irreal o projeto de uma ordem social por meio da inclusão. É o momento do declínio miserável da ideologia da integração social e da emergência, e conseguinte triunfo, das políticas de controle social que se baseiam na crença nas práticas de neutralização seletiva dessa underdog class, plenamente coerente com a linguagem da guerra ao “inemigo interno”. Melossi (2002), por exemplo, e para permanecer sempre no debate italiano, segue essas teses até um certo ponto, sublinhando criticamente seu lado econômico: o novo modelo de desenvolvimento socioeconômico na produção de crescentes exércitos industriais de reserva não está naturalmente aberto somente à opção de uma exclusão ulterior por intermédio da política de uma nova grande detenção de isabelina memória. É o governo político hoje dominante dessa transformação o que impõe como ideologicamente preferível “excluir” que “incluir”, certamente não porque tenha poder para controlar socialmente todos os excedentes utilizando-se da repressão penal e prisional, mas porque a resposta dada pela criminalização da pobreza é simbólica e, portanto, pedagogicamente coerente com a conhecida necessidade de afirmação das novas virtudes neoliberais: uma sorte de novo puritanismo cultural (ERIKSON, 1966) que determinaria a produção contínua de “cruzadas morais” que se refletem nas políticas criminais, das que a drug war da segunda metade dos anos 70 marcaria tanto a epifania quanto o modelo paradigmático, no qual foram se inspirando todas as políticas que apelam à necessidade de elevar a moral dos costumes, inclusive por intermédio de uma forte recuperação da ideia de merecimento do castigo. Pode-se, também, argumentar com outro ponto, fazendo referência às “velhas” teorias dos excluídos da disciplina do trabalho como classes dangereuses. Sabemos que as sociedades parecem aproximar-se sempre de dois 96

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modos opostos de quem é percebido como perigoso: ou, desenvolvendo um enfoque canibalesco, procuram engolir quem é percebido de maneira hostil, com a esperança de assim neutralizar o perigo incluindo-o no corpo social; ou, radicalizando as práticas da verdadeira rejeição “antropoêmica”, vomitando todo aquele que é socialmente percebido como estranho. Certamente, nos dias de hoje, registramos um avanço da fronteira da exclusão, o que conduz a um crescimento das práticas sociais e institucionais inspiradas na intolerância. Poderia ser somente uma fase ditada, por exemplo, pelas dificuldades momentâneas de governar os novos conflitos ante um progressivo processo de externalização da disciplina social, obrigada sempre a renunciar às formas de controle endógenas em favor daquelas exógenas. Sempre como exemplo, podemos recordar a tese de Christie (1994), segundo a qual na origem dessa etapa de reencarceramento, ao menos, e sobretudo no que concerne aos Estados Unidos, distingue-se o progressivo e determinante peso político do setor, tanto público como privado, interessado no business penitenciário – setor econômico em forte expansão que, como o business militar, constitui, atualmente, um dos lobbies políticos mais influentes nas políticas nacionais e internacionais. O PONTO DE VISTA DOMINANTE SOBRE A PENALIDADE Prescindindo da hipótese explicativa que pode resultar mais convincente – segundo as opções ideológico-políticas ou científicas –, não há dúvida de que todas possuem um grau mais ou menos elevado de plausibilidade com relação, contudo, somente a algumas realidades nacionais, principalmente aos Estados Unidos, a alguns países europeus e a outros poucos, sempre ocidentais. Nesses locais, é efetivamente possível registrar, nos últimos vinte anos, tanto um aumento significativo de algumas formas de ilegalidade quanto uma mudança nas políticas criminais em um sentido mais repressivo e a presença de fenômenos mais ou menos difundidos de alarme social. Como assinalei em diferentes ocasiões, a coexistência de todos esses fenômenos não permite em, última instância, verificar em termos funcionais precisos se, e eventualmente como, cada uma dessas variáveis – aumento da criminalidade, maior rigor nas políticas criminais e difusão do alarme social – determina ou influencia o aumento das taxas de encarceramento. Por outro lado, as teses que remetem ao paradigma da construção social, que podem interessar-nos 97

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pelo fato de serem intelectualmente mais sofisticadas, insistem sobre a presença hegemônica de alguns fatores econômicos, políticos e culturais – da produção de populações excedentes à necessidade de impor uma nova ética, do papel dos lobbies do setor militar e do controle para a crise irreversível das formas de controle social endógeno – que estão certamente presentes e são determinantes, mas somente em algumas áreas geopolíticas e não em outras. Um olhar em âmbito mundial nos mostra como as taxas de encarceramento aumentaram, com diferente ênfase, um pouco por todos os lados, inclusive em contextos nacionais muito distantes – econômica, política e socialmente - do ocorrido nos países do Primeiro Mundo. De fato, com a única exceção dos Estados Unidos, o crescimento mundial das taxas de encarceramento marcou, sobretudo, os países em vias de desenvolvimento. Não duvido que políticos, juízes, policiais e criminologistas de cada nação do mundo poderiam responder à pergunta: “Por que as taxas de detenção em seu país aumentaram nestes últimos anos?”. Não digo que a resposta estaria em condições de me satisfazer, mas em todas as partes, alguma resposta me seria prontamente dada. Penso na minha experiência docente em algumas universidades da América do Sul e América Central. As respostas que recebi à minha pergunta da parte de colegas e profissionais foram sempre as mesmas, as mesmas que, na verdade, são dadas em todo o mundo, segundo a “visão do mundo” do interrogado: “A criminalidade aumentou”, “Os governos adotaram políticas mais repressivas”, “As pessoas têm cada vez mais medo da criminalidade”. E algum interlocutor mais culto, mas nem por isso mais perspicaz, às vezes deu outras, apelando para algumas teses apresentadas por algum brilhante criminologista do Primeiro Mundo; teses que claramente aparecem como metafísicas para explicar a realidade de seu próprio país. Não tenho razões para suspeitar que mintam. No entanto, chama a atenção que, sempre e em todos os lados, se tenham as mesmas respostas, pois é difícil aceitar que a criminalidade tenha aumentado em todos os lados, dado que existem elementos de fato – como as taxas de delinquência – que nos dizem que isso não se verificou em absoluto; ou porque, não em todas as partes, foram adotadas políticas criminais e penais mais repressivas (ver nesse sentido o movimento de reforma por um “direito penal mínimo” que marcou nas últimas décadas algumas democracias europeias como Espanha, Portugal e Alemanha); nem em todo o planeta as pessoas começaram a ter, de repente em uníssono, cada vez mais medo do delito. 98

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Repito: pessoalmente, encontro-me em sérias dificuldades para explicar o fenômeno. No nível ainda intuitivo, uma ideia (certamente ainda não um modelo explicativo) me parece relativamente plausível, isto é, subjetivamente mais convincente do que outras. Pensando bem, as práticas e as ideologias penais e de controle social na história moderna e contemporânea conheceram sempre um processo de difusão e expansão que, finalmente, conduz (no sentido de unir) ao ponto de vista dominante (que é tal porque se desenvolveu nos países hegemônicos) sobre a questão criminal. A mesma invenção prisional do século XVIII, nascida no contexto das primeiras economias capitalistas e vinculada profunda e estruturalmente a esse sistema econômico, se impôs em todo o mundo. Assim, ainda atualmente, assistimos, meio maravilhados, à edificação de prisões panópticas na Índia do século XIX ou em alguns Estados do Caribe, ou africanos, naquele tempo dominados por relações do tipo feudal. Portanto, a etapa da alternatividade da pena privativa de liberdade, fortemente dependente da imposição em alguns contextos nacionais ocidentais das políticas de Welfare, foi difundida por todas as partes, inclusive onde não houve, e nem sequer se conhecerá, um fantasma de estado social. Contudo, ocorreu-me frequentemente ter de dissertar sobre a probation para alguns operadores prisionais, ou com alguns políticos e penalistas do white collar crime, em países em vias de desenvolvimento nos quais as únicas modalidades efetivas de controle social eram ainda as práticas, evidentemente ilegais, da pena de morte pela polícia, o linchamento, ou a prática sistemática da corrupção. Os exemplos, tendo somente um pouco de paciência e memória, são numerosos. Vale lembrar, para aludir a fatos mais recentes, a difusão das políticas criminais de forte repressão da droga em contextos locais onde o consumo de algumas delas era, e sempre foi, um fato socialmente aceito; e, inclusive, na expansão de legislações voltadas para a repressão da pedofilia, também onde, histórica e culturalmente, as relações sexuais entre adultos e menores eram e são um costume difundido e não problemático. Quem sabe não é um exagero sustentar que, ao menos no curso dos anos 1950 do século passado, em significativa coincidência com a emergência dos Estados Unidos como capital econômica, política e culturalmente hegemônica no mundo não comunista, e com muito poucas exceções, as únicas políticas de controle social que se impuseram universalmente foram aquelas veiculadas por intermédio do processo de americanização da “periferia”.

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Percebo que estou dizendo algo banal, mas dessa espécie particular de banalidade que, quem sabe por ser percebida como tal, não se dê a devida atenção. Não está dito que uma ideia, por ser óbvia, não seja boa, ao menos nisso eu acredito. Como devem ser tratados os delinquentes não é algo que, na modernidade e na contemporaneidade, tenha jamais deixado indiferentes os contingentes nacionais. De fato, o princípio da não ingerência nas questões internas não conseguiu jamais colocar um freio na imposição cultural do ponto de vista dominante sobre a penalidade. De fato, o governo da questão criminal é uma das diferentes expressões do modo de se entender a ordem social; é mais, é por excelência, o componente mais acabado que uma cultura, em seu conjunto, expressa. Não deve surpreender, portanto, que a cultura historicamente hegemônica – no caso que aqui nos interessa, a ocidental dos países economicamente mais avançados – tenda naturalmente a impor-se e a tornar-se progressivamente o “ponto de vista” que conta universalmente. Certamente, o grau de coerência na importação progressiva desse “ponto de vista” em contextos culturais distantes e heterogêneos é bastante diferenciado: em alguns, é imediata; em outros, por outro lado, é confusa e comprometida com a sobrevivência de outros modos de entender e praticar a questão do governo da ordem social. Mas sempre, no final, esse ponto de vista dominante externo conquista um espaço de efetividade e visibilidade, ainda que seja junto a outros. Por que, em muitas realidades do mundo em que a liberdade das maiorias marginalizadas nunca teve um valor econômico, há pelo menos dois séculos, de fato se castiga também por meio da privação da liberdade? Por que se aceita, nessas realidades, a contradição de manter, ainda que em más condições, quem está preso, quando as classes sociais de onde esses detentos se originam morrem de fome, contradizendo assim a regra áurea da detenção penitenciária, isto é, a lei da less elegibility, que manda diferenciar a qualidade de vida entre pobres honestos e desonestos? E o que dizer da difusão das garantias processuais (certamente, nas palavras mais que nos fatos) em realidades sociais marcadas profundamente por relações sociais de servidão? Os modelos dominantes na política criminal, em suma, penetram por todos os lados, como o hábito de tomar Coca-Cola. Mas, certamente, junto a este, em muitas realidades, se continuará mastigando folhas de coca, bebendo vinho, degustando chá, fumando tabaco. Mas atenção: cada vez menos. Em suma: mais ou menos prisões no mundo (um mais ou menos, repito, apreciável mais simbólica do que materialmente) não parece ter muito a ver com a criminalidade, com a ampliação ou restrição do universo de excluídos 100

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do trabalho, com as variações nas representações sociais do perigo nas grandes periferias do mundo; ou melhor ainda, tem a ver também com tudo isso, mas no sentido de que, na presente contingência histórica, o aumento da criminalidade, a difusão da insegurança social, as práticas de exclusão impostas pelo mercado, os novos processos de mobilidade determinados pela globalização, a redução do Estado social etc., somente são os elementos pelos quais – in primis na “Capital” – se constrói, se impõe e, finalmente, numa dimensão universal, se difunde uma nova filosofia moral, um determinado “ponto de vista” sobre o bem e sobre o mal, sobre o lícito e o ilícito, sobre o merecimento da inclusão ou da exclusão. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AA.VV. Mass Imprisonment in the United States. Punishment and Society, v. 3, n. 1, número especial, 2001. ARVANITES T. M.; ASHER, M. A. State and country incarceration rates: the direct and indirect effects of race and inequality The American Journal of Economics and Sociology, n. 57, p. 207-22, 1998. BARBAGLI, M. Immigrazione e criminalità in Itália. Bologna: Il Mulino, 1998. _____. Perché è diminuita la criminalità negli Stati Uniti? Bologna: Il Mulino, 2000. BECKETT K.; WESTERN B. Governing Social Marginality: welfare incarceration and transformation of state policy. Punishment and Society, v. 3, p. 43-59, 2001. BLUMSTEIN A.; BECK, A. J. Population Growth in the U.S. Prisons, 19801996. In: TONRY; PETERSILIA (Eds.). Prisons. Chicago: Chicago University Press, 1999. p. 17-62. _____; COHEN, J. A Theory of the Stability of Punishment. Journal of Criminal Law and Criminology, n. 64, p. 198-207, 1977. CALAVITA, K. Immigration, Law, and Marginalization in the Global Economy: notes from Spain. Law and Society Review, n. 32, p. 529-66, 1998.

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9. A EDUCAÇÃO PÚBLICA EM PRISÕES NA AMÉRICA LATINA: GARANTIA DE UMA IGUALDADE SUBSTANTIVA

Francisco Scarfó1

Meu primeiro dia de aula: ...Meu primeiro dia na escola significou para mim, muito, apesar de estar privado da minha liberdade, me dei conta da importância da educação, poder escrever uma carta aos meus entes queridos ou ler uma carta e não ter que recorrer a outros para escrever ou ler para mim. Aprender a fazer contas, somas, subtrações e multiplicações. Coisas que me serão muito úteis no futuro e dessa maneira conseguir um emprego... Luís, 1º ciclo. EGBA 7012

1 Licenciado e Professor em Ciências da Educação. (Universidade Nacional de La Plata – UNLP, prov. De Bs. As. Argentina). Mestrando em Direitos Humanos do Instituto de Direitos Humanos da Faculdade de Cs. Jurídicas e Sociais da UNLP; Docente de Educação Geral Básica de Adultos, EGBA N° 721, U. P. N° 34, La Plata; Coordenador e docente do Seminário-oficina “Educação na privação de liberdade” nas suas VII edições na Argentina como na Bolívia e no México; Consultor convidado do Instituto Interamericano de Direitos Humanos, Costa Rica, e do Instituto Internacional de Direitos Humanos (IHRLI) da Universidade de De Paul em Chicago, IL, EUA; Consultor permanente da Associação Alemã de Educação de Adultos, Organização Não Governamental Alemã na Bolívia; Capacitador na República Argentina do RPI (Reforma Penal Internacional, Oficina Regional para América Latina e o Caribe); Presidente do GESEC (Grupo de Estudo Sobre Educação em Prisões) e Coordenador da Comissão Universitária Sobre Educação Pública em Prisões (Secretaria de Extensão Universitária- UNLP); Assessor em educação no âmbito penitenciário na Procuração Penitenciária da Nação. 2 REVISTA PORTAVOCES, Retomando la palabra, 2005.

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INTRODUÇÃO A educação nas prisões na América Latina apresenta uma complexidade profunda. Uma soma de ações dispersas e, às vezes, improvisadas, por parte do Estado, garante as políticas educativas oficiais. Para contextualizar a afirmação anterior, é importante caracterizar brevemente a situação penitenciária na região e, a partir daí, avaliar quais são as perspectivas e os desafios atuais e futuros que se propõe realizar a educação pública nas prisões. Nas últimas décadas, a tendência é implementar uma ação estatal baseada em uma política criminal destinada a solucionar os problemas sociais emergentes – conflito social –, tendo passado de Estado benfeitor a Estado punitivo3. Isso se evidencia no uso e ampliação do aparato repressivo, aumento das penas, construção sustentável de prisões, leis que reduzem as hipóteses de liberdade condicional ou progressão de regime, entre outras medidas. A partir dessa política criminal, emergem fatores-chave, a destacar: o primeiro é o uso unívoco e em excesso da prisão como resposta estatal diante do delito4. As consequências são a chamada prisão preventiva e a superpopulação penitenciária, que geram uma série de problemas como a falta de pessoal de segurança, de saúde, de educação, além da falta de espaço físico, entre outros. Em segundo lugar, o amontoamento nas prisões somado ao mal estado da estrutura física geram uma situação de violência constante, que se traduz na impossibilidade de dar um tratamento penitenciário de acordo com as necessidades de cada pessoa, na impossibilidade de cumprir com o que manda a lei e os tratados de direitos humanos, no aumento de doenças (tuberculoses e HIV), na implementação de um tratamento indigno (maus-tratos físicos e psicológicos), casos de torturas etc. O terceiro fator ligado à política criminal é a lentidão da justiça que se reflete na morosidade dos processos judiciais que tendem a manter privadas de liberdade as pessoas processadas por um tempo em desacordo com os princípios e instrumentos internacionais de direitos humanos – tempo que ultrapassa os cinco anos de processo sem sentença (prisão preventiva), gerando aglomerações de pessoas presas. No final, todos eles se transformam em inocentes submetidos à violência intramuros. 3 WACQUANT, 1999. 4 CARRANZA, 2004, p. 12.

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Um quarto fator é a desatenção à diversidade dos grupos sociais privados de liberdade, em situação de vulnerabilidade. Pessoas que passam a enfrentar situações discriminatórias e tratamento desigual, tanto por parte da sociedade como das ações e da gestão pública. Essa diversidade se constitui de grupos sociais privados de liberdade como mulheres, meninos(as), adolescentes, pessoas com incapacidade mental e física, dependentes de drogas, portadores(as) de vírus HIV, valetudinários(as), doentes e de diferentes etnias, migrantes, estrangeiros(as), pessoas com diferenciadas orientações sexuais, condenados(as), que encontram sob proteção de integridade física, segregados(as), condenados(as) à pena de morte por delitos ou ofensas sexuais, entre outros grupos sociais privados de liberdade. Não se pode esquecer que a situação descrita anteriormente é acentuada pelas exigências crescentes da sociedade por maior segurança e mais “mão firme” ou “tolerância zero” com cobertura dos meios de comunicação. Tudo isso motiva o surgimento e aprovação de leis que tendem ao endurecimento das penas, entre várias outras medidas nesse sentido. A isso, somam-se outros fatores que ocorrem dentro da penitenciária e que intervêm ao se fazer um balanço sobre a educação nas prisões na América Latina. Um deles, de maior peso, é o critério da “segurança sobre o tratamento”, que condiciona o acesso aos direitos, entre eles, ao da educação. Assinalam-se como exemplo as transferências excessivas de pessoas presas de uma unidade a outra com graves sequelas para o desenvolvimento educativo das pessoas presas. A falta de estrutura física, que limita o acesso físico e permanente ao direito à educação. Costuma-se dar aulas em lugares destinados a outros fins ou de usos compartilhados. Outra questão é não contar com o apoio da decisão política para que a educação nas prisões esteja a cargo da agência estatal educacional responsável pela execução desse direito; a necessidade de um Estado que garanta igualmente a educação pública tanto àqueles que estão fora como dentro da penitenciária5. Contudo, é preciso dizer que, nos últimos anos na América Latina, têm sido implementadas ações estatais com uma tendência favorável à reversão da situação. Tais medidas precisam ser aplicadas de maneira integral e articulada com outras ações estatais visando melhorar a situação nas prisões. 5 Mesmo que o encarceramento se considere um castigo justificado, não deve levar consigo uma privação adicional dos direitos, pois o único direito que se priva, o estar preso(a), é a liberdade de ir e vir. Diz-se então que as pessoas privadas de liberdade mantêm o usufruto de todos os direitos e garantias que impõem as leis fundamentais e as supranacionais (UNESCO, 1998).

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Observa-se um aumento da presença de escolas públicas de Educação de Jovens e Adultos ou centros educativos, na grande maioria das Unidades Prisionais (UPs); a ampliação do número de escolas de ensino médio; a diversificação e ampliação dos turnos/horários de oferta educacional; a ampliação de espaços físicos; a incorporação das aulas a cargo de docentes do nível educacional público oficial; o desenvolvimento de programas culturais complementares à educação formal. Outro aspecto a ser ressaltado é que a educação, na maioria dos países da nossa região, é administrada pelo Ministério da Educação, recomendação contida em toda a legislação internacional referente à execução da pena, em especial nas Regras Mínimas para o Tratamento dos Reclusos das Nações Unidas. O que envolve a educação pública nas prisões? Educação pública nas prisões como perspectiva: a complexidade do ato educativo e a especificidade que gera o contexto da prisão A educação pública nas prisões, como perspectiva, se entende como dever do Estado em respeitar, proteger, garantir, promover e facilitar o acesso e o aproveitamento com qualidade da Educação Básica e uma Educação em direitos humanos em função de serem componentes do direito à educação, apresentado nos distintos instrumentos internacionais de direitos humanos e na maioria das constituições e leis nacionais de educação6. Nesse marco, a concepção da educação como um direito humano é o primeiro passo para reconhecer as pessoas presas como indivíduos com direitos. Isso pressupõe que os(as) reclusos(as) devem gozar de todos os direitos e garantias que estabelecem as normas constitucionais e as supranacionais. Os direitos humanos são fundamentais para o desenvolvimento pessoal e social de todo ser humano. Isso faz com que a educação pública nas prisões deva ser entendida como o exercício de um direito humano que aponte, não ao tratamento penitenciário, mas ao desenvolvimento integral da pessoa, para melhorar sua qualidade de vida, formar-se profissionalmente, ter acesso à cultura e dela desfrutar. Em 6 Existe um reconhecimento do Direito à Educação como direito humano (a partir da normativa internacional da ONU e da OEA), estabelecido na maioria das Constituições Nacionais e nas Leis Nacionais de Educação dos Estados da região. Somado a isso, há o reconhecimento da educação das pessoas privadas de liberdade que têm um tratamento normativo específico: as Regras Mínimas para o Tratamento de Reclusos (1955) e os Princípios Básicos Relativos ao Tratamento de Reclusos (1990), ambos das Nações Unidas que, da mesma forma, são recolhidos nas Constituições Nacionais e nas Leis de Execução Penal. – Apontam-se essas indicaçõess normativas, sem deixar de dizer que existem mais dispositivos normativos, com maior ou menor relevância enquanto obrigações internacionais dos Estados, mas não é o caso neste trabalho aprofundar o tema.

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resumo, a possibilidade de realizar trajetórias educacionais que permitam construir um projeto de vida. Vale dizer que há um reconhecimento por parte da comunidade internacional da educação como um instrumento essencial para o desenvolvimento pessoal e a participação na sociedade, de forma a satisfazer as necessidades educacionais dos sujeitos da ação educativa e de ser uma garantia real dos direitos humanos das pessoas privadas de liberdade. Aqui vale lembrar que os objetivos da educação nas prisões são diferentes dos objetivos da pena. Considerar a educação como parte do tratamento penitenciário, faz pensar a educação como reinsersora, ressocializadora, reeducadora, reabilitadora, entre outras qualificações. É muito comum que, no âmbito penitenciário, se confunda o tratamento penitenciário com a educação, impregnando nesta um caráter terapêutico e compensatório de socialização (a partir da perspectiva do tratamento), que reduz o potencial transformador e o impacto auspicioso da educação como direito humano e, portanto, não expõe seu embasamento fundamental que é a dignidade das pessoas. A confusão, algumas vezes, é gerada pelas diferentes agências estatais que realizam a educação pública nas prisões e costumam submeter a educação a um tratamento de “ressocialização” ou de “reinserção”. Pensar que, somente por receber ou exercer a educação, a pessoa privada de liberdade estará em condições de “reinserir-se” ou “ressocializar-se”, é dar uma linearidade de causa-efeito à educação. Tal visão resulta na reprodução de estruturas cognitivas e hábitos sociais de “pessoas civilizadas” ou “bem comportadas” ou simplesmente “receptoras”, evitando o processo de se tornarem pessoas protagonistas, com voz própria, que desenvolvam um olhar crítico capaz de entender e transformar sua realidade: a passada, a presente e a futura. A educação é um direito que, ao ser exercido, reduz a situação de vulnerabilidade social, cultural e emocional da pessoa privada de liberdade. Conceber a educação como uma ação “terapêutica” ou “curativa”, envolve considerar a pessoa presa como um “doente” que se deve “curar”. É colocar a educação como dispositivo que, dependendo de como funcione, prevalecerá ou não dentro da ação de tratamento. Colocando-se de lado o fato de que a educação é um direito humano fundamental, se algum “re” lhe cabe, é a redução da vulnerabilidade social, psicológica e cultural. Diante dessa “linearidade de educação-reinserção”, aparece a ideia de educação como “prevenção do delito”. Esse olhar nega variáveis internas e externas que devem acontecer de maneira efetiva para que a pessoa que obtenha 111

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sua liberdade de ir e vir tenha a possibilidade de “reintegrar-se socialmente”7 (por exemplo, consiga trabalho digno e bem remunerado, seja respeitado e respeite a lei, tenha acesso à saúde, à moradia, à segurança social etc.) Correr o risco de conceber a educação como um dispositivo facilita seu exercício como um privilégio ou um bem de intercâmbio, desvanecendo concatenadamente a ideia de direito, de sujeito e, portanto, de dignidade, característica essencial que define a pessoa. Essa situação, por sua vez, provoca uma prática paternalista implícita por parte da gestão estatal. Em definitivo, a educação é um direito humano e não uma ação terapêutica ou uma variável a mais de um tratamento8. A educação é uma oportunidade social tanto para o presente como para o futuro, que permite à pessoa privada de liberdade desenvolver trajetórias educativas proveitosas, concretizando o direito humano ao projeto de vida9. Nesse âmbito, a carência de educação pode ser considerada como um mecanismo que perpetua as desigualdades. Também o direito à educação opera como um direito “chave”, porque “abre” o conhecimento a outros direitos e à maneira de exercê-los. Isto é, a educação facilita, em boa medida, o “defender-se da prisão”. Assim se depreende que o acesso à educação e seu aproveitamento têm que ser entendidos a partir do princípio de igualdade. A pessoa privada de liberdade deve receber a mesma educação que os que estão fora da prisão. Não cabe pensar em uma igualdade formal respeitada de maneira positiva sem importar o contexto educativo, mas como uma igualdade substantiva que lhe permita, uma vez em liberdade, continuar seus estudos, e contar com uma certificação oficial. Bem, não basta somente implementar a atuação de educadores e de programas educativos nas prisões. Ao falar da realização do direito à educação, devem ser assinaladas quatro características fundamentais10: t "DFTTJCJMJEBEFacessar o direito sem restrição alguma, identificando se os obstáculos são administrativos (transferência, procedimentos de acesso, documentação, certificação de estudos); jurídicos (o acesso a 7 Reintegração social em termos de Alessandro Baratta. (Ver BARATTA, 1990). 8 DAROQUI, 2005. 9 La educación aumenta el disfrute de todos los derechos y cuando se niega ese derecho priva a las poblaciones del disfrute de muchos derechos y libertades (TOMASEVSKI, 2003). 10 TOMASEVSKI, 2004.

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processados/as) e condenados/as); econômicos (recursos financeiros, provisão de materiais didáticos e tecnológicos; infraestrutura (prédios, segurança); recursos humanos (quantidade de docentes por aluno/a), curriculares, de permanência e egresso do sistema educativo, entre outros. t "DFTTJCJMJEBEFque haja diversidade e disponibilidade na oferta educacional com uma variedade de trajetórias educativas11. t "EBQUBCJMJEBEFque a educação seja compatível com a pessoa que a recebe e com o contexto que a rodeia. Isto é, se a educação formal e a oferta educacional na prisão se ajustam ao contexto das pessoas (adultos/as e jovens) privadas de liberdade12. t "DFJUBCJMJEBEFque os conteúdos e métodos de ensino nas escolas intramuros estejam de acordo com os princípios e instrumentos internacionais de direitos humanos13. Apesar de estar havendo auspiciosos avanços nas políticas e ações relacionadas à educação pública nas prisões, ainda merecem ser feitas algumas observações quanto às dificuldades apresentadas quotidianamente nas prisões: a) as questões de segurança. Costumam ser uma limitação à prática desse direito como ao de outros, quando são instrumentadas de maneira abusiva e sem justificativa legal. A situação pode influir numa redução no acesso maciço à educação e numa limitação que afeta grupos de pessoas presas em situação de alta vulnerabilidade como assinalado anteriormente; b) outra observação consiste em destacar que é fundamental que a agência estatal encarregada de oferecer educação pública a todos os habitantes, o faça de maneira tal que o estudante que se encontra na escola com sede na prisão tenha a mesma possibilidade de certificação e de credenciamento que o estudante que frequenta uma escola extramuros. Assim se evidencia uma situação palpável de igualdade de oportunidades para as pessoas alojadas na prisão. A ideia se baseia no princípio de que toda pessoa privada de liberdade, em algum momento, sairá em liberdade (a de ir e vir) e deve poder continuar seus estudos e não ter que voltar a reiniciá-los. 11 SCARFÓ, 2007. 12 Idem. 13 Ibid.

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Além de obter um certificado “igual ao da rua14”, reduz em alguma medida a estigmatização sofrida ao sair da prisão, como também o aprofundamento da vulnerabilidade social. Essa ideia leva a três considerações: 1) O Estado deve encarregar-se da garantia do direito à educação, implementando escolas e educação pública nas prisões de maneira equivalente ao que acontece na “rua”. Isso implica que as instituições educacionais desenvolvam sua gestão com toda a dimensão pedagógica, administrativa e comunitária, como ocorre fora da prisão, ajustando aquelas variáveis que são afetadas pela situação de falta de liberdade e os destinatários de sua ação: as pessoas privadas de liberdade. 2) A oportunidade de receber educação pública mostra que não existe a possibilidade de uma educação de segunda classe ou diferente da oficial. A pessoa presa, ao receber educação pública oficial, torna-se participante do sistema educacional e, portanto, participante incipiente de uma construção de laço social, da “cidadania”, da cultura. É importante assim que exista um currículo único básico15 ou plano de estudos adaptável que permita que as pessoas privadas de liberdade não sofram em sua trajetória educativa um grave desajuste, ocasionando atraso na sua certificação e na continuidade do caminho da formação e capacitação. Essas contínuas descontinuidades, ou seja, estar sempre começando, por exemplo, o ensino fundamental, geram frustração e um distanciamento do trajeto formativo. O Estado comete, então, uma grave violação ao omitir-se quanto à ação que favoreça o direito à educação. 3) Fomentar instituições de educação formal (escolas públicas ou centros educativos) e não somente a execução da educação sob a modalidade de programas temporários. Dessa maneira, evita-se a redução da educação nesses três níveis, componente fundamental do direito à educação16. Se tal acontecesse, ocasionaria: 14 Rua entendida como antônimo de prisão. 15 UNESCO, 1998. 16 O Instituto Interamericano de Direitos Humanos (IIDH, Costa Rica) entende que o direito à educação é “a possibilidade real de todas as pessoas – independentemente de seu sexo, origem nacional ou étnico e condições econômicas, sociais e culturais – de receber educação sistemática, ampla e de boa qualidade.” Costa Rica, 2002.

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a) limitação da qualidade do direito à educação devido às quatro caracterizações de realização; b) redução da possibilidade de continuidade e impacto, no médio e longo prazo, do sistema educativo nas prisões e, em especial, nos(as) alunos(as); c) atingimento da ideia de igualdade de direito (acesso à educação pública) por parte das pessoas privadas de liberdade, já que as escolas ou centros educativos, ao passar a uma modalidade de programas temporários, estes ficam sujeitos, quanto ao seu desenvolvimento, a fatores e circunstâncias de vigência ou não de seu critério de criação, quando fora da prisão se mantém o sistema público de acesso às escolas; d) o desenvolvimento da educação em prisões, sob a modalidade de programas, abre a porta a uma educação compensatória mais que uma educação formal, “sistemática, ampla e de boa qualidade”. A educação na prisão não tem que ser especial nem ser uma educação de segunda classe; e) falar do direito à educação é mais do que garantir um processo de alfabetização e aquisição de noções de cálculos. Pensar a educação somente como alfabetização é reduzir a potencialidade do direito. Da mesma forma, será necessário que se busquem mecanismos de levantamento desses interesses por intermédio de instrumentos (pesquisas) e entrevistas que recolham informação. A educação pública em prisões deve ser estabelecida sabendo-se que a função educativa e a função de segurança são mutuamente exclusivas. Que a educação nas prisões seja administrada a partir de um órgão educativo oficial, é uma questão substantiva e coerente com o direito à educação a partir da perspectiva dos direitos humanos, de acordo com as normas e recomendações de órgãos internacionais específicos dependentes das Nações Unidas, da OEA, do Conselho Europeu, entre outros. É um resseguro da vigência e do exercício do direito à educação, que envolve duas questões: a) que os agentes responsáveis pela execução do ato educativo nas prisões sejam profissionais docentes formados pela agência estatal educacional, provindo de fora do sistema penitenciário. A existência de

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docentes civis não vinculados à segurança leva a que se apresente uma autoridade pedagógica e não uma autoridade penitenciária no processo educativo. Somam-se a isso as considerações sobre o trabalho dos(as) docentes nas UPs, nas chamadas boas práticas penitenciárias emanadas das Regras Mínimas para o Tratamento do Reclusos, das Nações Unidas. Elas sustentam certa independência do pessoal profissional (docentes, médicos, trabalhadores sociais) com relação ao pessoal de segurança17; b) a ideia de que outra agência estatal trabalhe em conjunto com os Serviços Penitenciários instala a tão mencionada democratização das prisões, pois se criarão espaços públicos (denominados por alguns como liberados) na execução penal, fazendo com que a escola se apresente como uma instituição pública estatal que garanta uma educação oficial. Ao recuperarem a liberdade, as pessoas presas terão a possibilidade de prosseguir seus estudos fora da prisão. Pode-se dizer que são duas instituições públicas (a escola e a prisão) que trabalham sobre o mesmo tema: para uma, trata-se de um tema de tratamento criminal-penitenciário e, para a outra, é um tema de ação educativa, um tema sobre o adulto privado de liberdade e não um “irregular social” a ser “corrigido de seu desvio”. Quem é o sujeito da ação educativa? São jovens e adultos. A situação de vulnerabilidade, exclusão e pobreza Devemos considerar o indivíduo privado de sua liberdade como um sujeito de direito que, se cometeu um delito, nem por isto deixou de pertencer à sociedade, nem perdeu parte de suas capacidades. Pelo contrário, devemos compreender que se trata de uma pessoa dotada de vontade, possuidora de certas necessidades e potencialidades, e cujas demandas devem ser ouvidas e atendidas18

Com relação a quem é o sujeito da ação educativa nas prisões, estamos frente a um grupo social privado de liberdade, formado principalmente por desocupados e pobres19, pessoas jovens – progressivamente a média de idade 17 INTERNATIONAL PENAL REFORM, 2002. 18 SALINAS, 2006, p. 83. 19 Idem.

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é cada vez menor –, homens em 90% dos casos, privados de liberdade principalmente por delitos contra o patrimônio, por tráfico de drogas ilícitas e, em menor medida, por delitos contra as pessoas. A maioria provém de extratos sociais pobres, com nível de instrução baixo; escasso ou fraco acesso ao mercado de trabalho. Um conjunto de indivíduos privados de liberdade, formado por pessoas vulneráveis, entendendo-se por isso o grau de fragilidade a que estão expostos pela circunstância de terem sido desatendidos em suas necessidades básicas e de contenção. Todas essas situações aumentam o risco de conflitos com a lei penal. A trajetória de vida dos(as) alunos(as) que estão privados de liberdade é muito semelhante à de muitas pessoas que sofrem exclusão social e econômica. Uma exclusão que não implica estarem fora da sociedade, mas dos benefícios de uma sociedade democrática sustentada nos valores dos direitos humanos. A essa situação, deve somar-se o impacto da privação da liberdade ou encarceramento, que não apenas traz consequências físicas, mas também um alto impacto na subjetividade. Sobre a dimensão educativa Agora, cabe definir quem são os destinatários da ação educativa, o que se soma à reflexão sobre o porquê educar nas prisões. Isso nos permite alcançar a possibilidade de construir, reconstruir e desconstruir modos e perspectivas pedagógicas da educação nas prisões e melhorar, por certo, a qualidade do direito à educação das pessoas privadas da liberdade, a partir de políticas públicas. Uma primeira aproximação a respeito volta o olhar para o tema da ação educativa na educação de adultos: ...focalizar o tema da educação de adultos apenas por seu estado de necessidade pode, de um lado, limitar a possibilidade de conhecimento e a caracterização deste e, por outro, favorecer a invasão dos olhares dominantes. A partir de outro ponto de vista, poderia-se pensar a partir das dimensões que estruturam a subjetividade e como se veem afetadas pela privação da liberdade ou prisão, o que não se limita às necessidades. ...A apresentação sobre a educação de jovens e adultos na América Latina mostra a educação de adultos como educação de setores populares. A categoria educação de adultos é um eufemismo para referir-se à educação de jovens e adultos de setores populares. Tais setores, particularmente os jovens (ainda que também os adultos, mas não com tanta ênfase), são colocados pelas visões 117

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dominantes como a “população restante” (a classe perigosa). Essa condição os situa como “violentos” e “não pensantes” ou “acríticos”, já que são considerados como seres “irracionais”, que vivem “governados pelos seus instintos e necessidades”, carentes de autocontrole. Acatar a ideia procedente de repertórios dos setores populares, torna possível uma leitura a partir da “heterogeneidade social das pobrezas”. Isso significa que não pode ser explicada apenas com base na dimensão econômica, mas pela multiplicidade de trajetórias e pela diversidade de relações com múltiplos grupos e espaços de experiência de quem forma parte desse universo. Assim, é possível observar uma produção simbólica, formas de ver, de construir, reconstruir e de ressignificar o mundo. Qual é a configuração dos jovens e dos adultos de setores populares que participam do processo de escolarização na prisão ou se interessam por ele? Podem observar diferentes grupos? Existem diferenças na forma de vincular-se com a escola, nas suas necessidades e demandas e nas suas relações com o saber e as práticas escolares? 20

A caracterização da história educativa e a situação com respeito à formação educativa das pessoas privadas de liberdade apresentam, em palavras do sociólogo G. Kessler, uma escolaridade de baixa intensidade: uma escolaridade repleta de “desvinculações” (das atividades escolares), conflito (violência contra companheiros, contra a instituição), com repetências reiteradas, desconexão da realidade, entre outras características21. A isso somam-se as expulsões do sistema escolar por indisciplina ou abandono relacionados a motivos econômicos, uma formação elementar no profissional e variados níveis de alfabetização22. Os motivos da deserção escolar, 39% por trabalho, ao que se juntam 23% por motivos econômicos. Sem levar em conta os que não respondem a essa pergunta (13%), o grosso das deserções está vinculado a recursos econômicos escassos (72%). O dado mostra o processo de marginalidade e exclusão social a que está submetida uma ampla e crescente porcentagem da população, agindo como desagregador social naqueles setores que não têm seus direitos garantidos23. 20 SCARFÓ, 2007. 21 KESSLER, 2004. 22 Níveis de alfabetização, entende-se sob o ângulo de que as pessoas adultas sabem muito sobre a linguagem escrita antes de chegar à escola. Por outro lado, “não existe estritamente um estar alfabetizado; estamos continuamente aperfeiçoando nossas habilidades para ler e escrever, pois ler se aprende lendo e a escrever se aprende escrevendo” – entrevista a Rosa María Torres, setembro de 2007, Crefal, México. 23 SCARFÓ, 2007.

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A expressão oral e escrita apresenta características de natureza operativa que, somadas às condições emocionais, contextuais e históricas pessoais, geram uma retração do uso e melhoramento da palavra, uma perda do poder, uma perda da “voz” como algo próprio, como componente da identidade, como pronunciamento, como direito a dizer o que se sente, o que se pensa, o que se vê, o que se escuta. Quanto ao diálogo, destaca-se uma redução ou baixa na sua qualidade, como também da escuta, e o respeito ao dito pelo outro, na hora de se resolver conflitos e de se conseguir acordos. A argumentação não pode ser apreciada ou tem um manto de impulsividade ou agressão24. Não se pode perder de vista, na análise de quem é o tema da ação educativa, os efeitos da instituição total e a privação da liberdade. Nesses espaços, os tempos e as atividades na prisão desempenham um papel determinante. Sobre a dimensão social Como se demonstrou anteriormente, a grande maioria das pessoas privadas de liberdade se localiza em uma linha comum: situações estruturais de pobreza, de marginalidade, que levam muitos especialistas a afirmarem, a propósito da criminalidade, que “para a prisão vão os pobres”25. 24 Pode-se começar dizendo que existe um abandono da leitura, como instância de educação permanente e, portanto, uma diminuição das possibilidades do desenvolvimento pessoal dos reclusos. Há leituras só de revistas, jornais, Bíblias, mas ao não existirem espaços nem tempo, nem processos históricos pessoais de reflexão, resta apenas a informação que recebem. Vale dizer, há uma vinculação acrítica da maioria, com o produto desses meios gráficos. Por outro lado, existe um limitado acesso aos meios audiovisuais e praticamente nada em relação às novas tecnologías de informação e comunicação. Isso opera a favor de uma desconexão com a informação do mundo exterior, aumentando ainda mais a marginalização social, cultural e potencializando as características do encarceramento (até quase perder-se a noção de data). Também existe uma limitação no uso da palavra escrita, pois só é necessária para cartas, pedidos de audiência, leitura dos expedientes de sua causa penal. […]por configurarem um acesso limitado à informação e aos meios de comunicação, dificuldades sérias na comunicação interpessoal e um empobrecimento nas possibilidades de crítica e livre expressão dos pronunciamentos próprios e dos demais, afetando e conformando identidades e subjetividades operativas ao poder, à dominação, sem alcançar a potencialidade de uma identidade alternativa a essa luta pelo poder[...] ser (SCARFÓ, 2007). 25 [...] é necessário pensar que apenas um delito de colarinho branco, tem maior custo econômico e social que todos os delitos contra a propriedade, pelos quais estão presos dezenas de milhares de ladrões de galinhas [...] Mas à prisão chegam os delinquentes fracassados […] nos tempos do neoliberalismo, o Estado se sinonimiza com o controle social. Um controle social férreo, com leis severiísimas, com cumulação de penas, sem regime aberto, ignorando a imputabilidade penal das crianças e jovens. As leis estão destinadas a eles que povoam reformatórios, delegacias e prisões de adultos. Sempre os mesmos, os mesmos rostos e os mesmos delitos. O Estado, os políticos em mandato, em vez de defender a luta mais importante e necessária pelo pleno emprego, optam pelo férreo controle social dos que o perderam, ou seja, prender as pessoas que o próprio sistema gerou. Essa severidade absoluta, essa mão dura que se exerce de fato, esse Estado Penal, mesmo dentro de nossa incipiente democracia, fala do autoritarismo do Estado, para uma grande faixa humana de possíveis investimentos. No entanto, quem gerou essa violência: a policía ou os delinquentes [...]?, a administração penitenciária ou os pessoas presas [...]? Precisamente em prisões mexicanas, costuma-se ler uns versos atribuídos a um velho preso que expressam com eloquência: Neste lugar maldito, onde reina a tristeza, não se condena o delito, se condena a pobreza (NEUMAN, 2005).

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Se à violação progressiva e permanente dos direitos sociais e culturais é acrescida a desatenção do Estado, os grupos sociais ficam em situação altamente vulnerável, submetidos a uma dominação negativa que constrói para eles um futuro “antecipado” e “concluído”26 . [...] um elemento importante é o vinculado à origem social das pessoas privadas de liberdade: originam-se dos estratos sociais mais pobres, com históricos de desatenção em muitas de suas necessidades básicas, particularmente em matéria de saúde. Muitas vezes é a prisão a instituição que lhes oferece a primeira oportunidade de receber algum tipo de atenção médica. Como os bens, os males são distribuídos em nossa sociedade de modo desigual [...] 27

Se a educação e a escola não podem atuar devidamente, é óbvio que as habilidades e capacidades para o desenvolvimento social e pessoal, no processo de socialização, são quase nulas e potenciam o deterioramento dos vínculos familiares, o pouco valor da vida, a nula participação social e o desinteresse político, a evasão devido ao uso de drogas, o contágio do HIV. Tudo isso gera códigos sociais ou de classe que operam como reafirmadores da estigmatização ou identidade de grupo social vulnerável esquecido ou relegado pela sociedade e o Estado. Em uma caracterização28 mais precisa, descobrimos que os sujeitos da ação educativa compõem uma fotografia onde29: - observa-se a maior concentração de idades entre os 20-23 anos; - o lugar de procedência das pessoas presas coincide com o mapa da pobreza argentina. Da população que vai à escola da penitenciária, a maioria origina-se do Conurbano Bonaerense, quase 80%30; - a família: [...] a reclusão e a convivência forçada incentivam o isolamento pessoal e o individualismo. Em sentido similar, a segregação do 26 o grupo social privado de liberdade bem pode ser definido como composto de pessoas vulneráveis, entendendo o grau de fragilidade pela circunstância de terem sido desatendidas em suas necessidades básicas e de contenção, o que usualmente acrescenta o risco de entrar em conflito com a lei penal, resultando em encarceramentos. A vulnerabilidade aumenta a chance de uma efetiva criminalização secundária, reincidências e reiterações nos delitos, o que se conhece usualmente como “carreiras criminais”. (SALINAS, 2006, p. 82).. 27 SALINAS, 2006, p. 21. 28 SCARFÓ, 2007. 29 Tome-se como referência a situação da Argentina. 30 No nosso país – Argentina –, de acordo com os índices fornecidos pelo INDEC (2004), nos municípios do Conurbano Bonaerense (CB), a pobreza atinge 59,2%, e a indigência 27,9%.. Cita SCARFÓ, 2007.

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meio aberto produz uma forte ruptura com relação ao mundo exterior, conhecida como dessocialização. Assim se deterioram os vínculos e relações, por exemplo, em nível familiar, o que produz efeitos muito intensos no momento da soltura 31; - o trabalho: existe uma precariedade na situação laborativa que antecede o encarceramento. Considerando aqueles que trabalharam fazendo biscates (30%), que estavam desocupados (11%) ou nunca trabalharam (4%) e os beneficiários de um plano social (2%) – que somam 47% –, aparece a deterioração laborativa, e portanto econômica, de setores cada vez mais amplos da sociedade32; - a participação na Comunidade: dos dados processados, pode-se estabelecer que uma parte importante das pessoas presas que frequentam escola nunca participaram de organizações da comunidade, o que, somado a quem não responde às perguntas, eleva o índice para mais de 50%.33

Os efeitos e vínculos, com as dimensões anteriormente tratadas, permitem ver um esquema axiológico às vezes oposto ao do lado de fora34. Diz-se, então, que o esquema de valores que as pessoas privadas de liberdade possuem costuma ser “diferente” do que pode trazer qualquer educador(a), e isso conduz a um processo dialético entre a prática e a teoria, entre o que está bem e o que está mal, entre o dever ser e o que se é, entre o aqui e agora e o futuro. Esse enfrentamento de esquema de valores culturais contribui também para aquela especificidade da educação nas prisões. Sobre a dimensão psicológica O impacto na subjetividade do que foi apontado acima, somado ao encarceramento, tem consequências no plano psicológico das pessoas privadas de liberdade. 31 SALINAS, 2006, p. 22. 32 SCARFÓ, 2007. 33 Idem. 34 [...] Ao conjunto de transformações que a instituição penitenciária provoca denomina-se prisionização. Alguns de seus efeitos são dados pela internalização de condutas e a naturalização de certas práticas, como, por exemplo, a anormalização na linguagem, infantilização, violações a ofensores sexuais, hierarquias e formação de agrupamentos ou bandos, entre outras. Em muitas ocasiões os grupos sociais que se formam não têm outro objetivo a não ser gerar relações de dominação e, em outras, simplesmente reduzir os níveis de vulnerabilidade... Por sua vez, o contexto, as práticas institucionais, a mortificação da identidade e as cerimônias de despojo da individualidade necessariamente levam a criar mecanismos de adaptação que podem ir desde a cooperação ou colonização, até a rebelião e resistência, passando pela conversão, a retirada ou a retração pessoal [...] (SALINAS, 2006, p. 24).

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A baixa autoestima, a pouca motivação, a retração emocional, o isolamento, as atitudes e expectativas reduzidas no presente e marcadas pelo passado, geram nas pessoas presas um alto grau de vulnerabilidade psicológica que, somada à vulnerabilidade social e à cultural, torna-a uma personalidade que precisa de uma abordagem sofisticada e interdisciplinar, na hora de pensar e levar adiante processos formativos nesse âmbito. [...] O encarceramento provoca, por outro lado, consequências nos níveis psicológico e social. O contexto onde se executam as penas privativas de liberdade é gerador de ansiedade, temor, estresses, sensação de perigo, insegurança, insônia, síndromes de paranóia e de obsessão. Por outro lado, as adaptações e os mecanismos de defesa das pessoas presas, na prisão, produzem ocasionalmente forte desconfiança interpessoal, egocentrismo e agressividade. São usuais os quadros de depressão, os suicídios e as lesões autoinfringidas. Por outra parte, as restrições, os abusos e o mau-trato psicológico contribuem para uma degradação e bestialização das pessoas que muitas vezes deriva em ira e vocação de revanche, vingança e ressentimento... Outra consequência evidente refere-se às modificações de conduta sexual. Os níveis de tensão e de estresse aumentam as pulsões sexuais que, somadas aos níveis de amontoamento e à permanência contínua e ininterrupta com pessoas do mesmo sexo, contribui para a ocorrência de práticas homossexuais... Por outra parte, a percepção de perigo permanente e os níveis de violência produzem desconfiança recíproca, indiferença afetiva, instabilidade emocional, exagero diante de situações e, ao mesmo tempo, uma acentuada demanda afetiva [....] 35

Deve-se acrescentar, ainda, a angústia emocional que gera o fato de não saber o que ocorre com a sua causa (processo penal), a quantos anos (pena) pode ser condenado ou, pior ainda, ser processado (presumido inocente) sem sentença, a possibilidade de estar sujeito a transferências regularmente e estar longe da família… Podemos notar que 72% das pessoas presas são processadas, enquanto apenas 17% são condenadas... Caso a proporção de escasso número de sentenças se mantiver no total da população penitenciária – ideia não desacertada se 35 SALINAS, 2006, p. 22-23.

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levarmos em conta a lentidão do sistema judiciário –, deveríamos perguntar sobre a real função das prisões na “ressocialização” de quem comete delito. Desde que a maioria dos que lá se encontram não foram condenados judicialmente, as prisões estariam se convertendo, assim, em depósitos de pobres. […]Tal dado também nos permite marcar uma relação entre a utilização generalizada da prisão provisória por parte da justiça e a situação de superpopulação e amontoamento, e sua influência na deterioração das condições de privação da liberdade e dos direitos das pessoas privadas de liberdade.36

Para o desenvolvimento de processos de ensino e de aprendizagem, em especial no que respeita ao aspecto didático-pedagógico, a seleção de modos e estratégias didáticos não é uma questão menor, tendo em vista a caracterização psicológica, o que permitiria reconhecer aspectos da personalidade. Sobre as consequências do encarceramento já citadas, e seguindo a linha de Raúl Salinas (2006), encontramos: Em matéria de consequências físicas do encarceramento, são comuns as alterações sensoriais, como perdas na visão por atrofia e pela pobreza visual que existe na prisão, problemas de audição, provocados por ruído permanente, olfativos e alterações na imagem pessoal, inclusive chegando a perder a autopercepção como consequência da falta de intimidade (com as derivações que isso traz para a identidade). Nos sistemas fundados no isolamento, é usual que se produzam nas pessoas presas distorções na medição de distâncias. [...] A falta de espaço físico, iluminação e ventilação gera atrofias musculares, problemas dermatológicos, respiratórios e pediculose. É comum também a existência de sarna e fungos. Por outro lado, uma das principais questões vinculadas à saúde dos reclusos é a adição às drogas, tanto legais quanto ilegais. O tipo de alimentação também gera problemas digestivos e nutricionais. [...] No interior das prisões, a probabilidade estatística de se sair ferido, contrair uma doença infecciosa (Aids, hepatites, tuberculose), sofrer um ataque sexual ou mesmo morrer em consequência de brigas, distúrbios ou suicídio é consideravelemente 36 SCARFÓ, 2007.

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mais elevada do que no meio aberto. A tortura e suas sequelas também implicam problema para o sistema de saúde. 37

Certamente, o tema não está encerrado. É apenas uma breve abordagem sobre o jovem e o adulto privado de liberdade como sujeito da ação educativa. Provavelmente, é necessário avançar e aprofundar as considerações sobre suas demandas, necessidades e as relações com o saber e as práticas escolares que tiveram e têm os alunos(as) privado(as) de liberdade com relação à educação formal. DESAFIOS PARA A POLÍTICA EDUCATIVA PÚBLICA EM PRISÕES Com relação a sua instrumentação, desenvolvimento e alcance Em muitos países da América Latina, os sistemas costumam ser mistos no que tange à responsabilidade de levar adiante a educação nas prisões, gerando um contexto de execução complexo e, por vezes, de status quo, no que respeita ao desenvolvimento amplo e eficaz da educação. É comum encontrar centros educacionais formais (escolas de adultos) dependentes do sistema educacional formal (não penitenciários); centros educativos sob a responsabilidade dos serviços penitenciários ou com uma ação compartilhada entre “civis” e penitenciários e/ou docentes dependentes dos ministérios de Justiça; ações dispersas de alfabetização a cargo de pastorais penitenciárias, ONGs, voluntariado em geral (por vezes, as próprias pessoas presas se encarregam dos grupos de analfabetos). Como apontado no começo desta apresentação, o Estado deve garantir o direito à educação, com seu sistema educativo educacional. Como o faz fora da prisão, deve fazê-lo dentro dela. As ONGs fazem muito bem seu trabalho de complementar a formal, mas essa intervenção não substitui o dever do Estado. É preciso evitar que o Estado ignore a necessidade de se fortalecer a educação. A diferença reside em que o trabalho das ONGs é temporário, enquanto o dever do Estado é garantir uma educação permanente e de acesso ilimitado. O fato de que a educação à distância deva ser priorizada em relação à presencial tem pouco impacto na subjetividade das pessoas. Verifica-se com frequência a superposição de atividades e de programas dentro de uma prisão. Programas de alfabetização competindo com a educação básica. Costuma-se valorizar mais (ou surgir como única opção para a pessoa privada de liberdade) o trabalho na prisão do que o estudo: o 37 SALINAS, 2006, p. 21-22.

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trabalho na prisão tem mais “adeptos” que a educação. Esse cenário surge porque, com o trabalho, obtém-se uma série de benefícios, como o salário, que permite às pessoas sobreviverem, considerando o contexto geral de privação de liberdade e a situação econômico-social de nossos países. Uma maneira de evitar essa situação é fornecer os benefícios tanto para aqueles que trabalham quanto para os que estudam, questão que muitos países da região resolveram e formularam como “remição da pena”. Fora isso, não parecem existir estímulos concretos para que os privados de liberdade estudem. Com frequência, os programas não são do interesse das pessoas presas ou, o que é mais grave, como no caso das mulheres, têm características estigmatizantes, ao oferecer cursos de corte e costura, tipificando o papel tradicional da mulher na sociedade. Há grandes problemas no acesso, permanência e conclusão da educação formal na prisão. Costumam ocorrer problemas nos planos administrativo (transferência, procedimentos de acesso, documentação), jurídico (acesso aos processados/as e condenados/as), econômico (recursos financeiros, fornecimento de materiais didáticos e tecnológicos), infraestrutura (prédios, segurança), recursos humanos (número de docentes por aluno/a). Problemas sobre a permanência e a conclusão dos estudos, a certificação pós-prisão, a inexistência de um plano de bolsas de estudo para sustentar e continuar os estudos. Há, ainda, outros problemas como: 1) Não conhecer o orçamento estatal destinado para a educação em prisões. 2) Falta de recursos eficazes (método de solução) para cobrar a obrigação do Estado: para com o titular do direito à educação (a pessoa privada de liberdade), para a liberdade de cátedra e a liberdade sindical do pessoal docente. 3) Com frequência, a educação formal e a oferta educativa na prisão não se ajustam ao contexto das pessoas (adultos/as e jovens) privadas de liberdade e, por vezes, não se pode atender a diversidade em nível de conhecimento e em nível institucional dos grupos em situação de vulnerabilidade. 4) Em outras ocasiões, a educação formal não promove a interação com outros saberes e conhecimentos vinculados ao direito, à saúde, ao trabalho, ao meio ambiente saudável, à alimentação, ao acesso à justiça e aos direitos humanos em geral.

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5) Não há trabalho permanente de assistência técnico-pedagógica aos trabalhadores(as) da educação, marcada por falta de elaboração de documentos específicos de apoio. 6) Não há acompanhamento se os conteúdos e métodos de ensino nas escolas intramuros são condizentes com os direitos humanos, bem como não se costuma identificar, nos conteúdos mínimos dos planos de estudos de cada nível educativo, a base de direitos humanos. 7) Não há programa de formação docente em educação em direitos humanos vinculado ao contexto de privação de liberdade. 8) Há dificuldade para identificar quais e como são os mecanismos de designação do pessoal docente, de direção e de supervisão na educação formal nas prisões e como se elabora o “perfil” docente. 9) Na formação para o trabalho, encontram-se programas obsoletos ou cursos com enfoque laborativo que se confundem com trabalho-terapia, que tendem a funcionar como pena por não existir uma visão vinculante com o exterior da prisão (privilegiam cursos de talhar madeira, por exemplo, em detrimento de conhecimentos de informática). Sobre as universidades e a educação na prisão A educação pública superior universitária e não universitária apresenta um desenvolvimento quase nulo de oferta e de acesso nas prisões. Menos de 4% dos privados de liberdade alcançam este nível educativo38. Deve-se apontar que o objetivo da Universidade, por meio de convênios com as agências estatais responsáveis pela execução penal, é executar programas de educação superior e diversas atividades de docência, pesquisa, difusão da cultura e extensão universitária, tendo única responsabilidade e competência na definição dos aspectos acadêmicos39. 38 Por exemplo, no sistema penitenciário da província de Buenos Aires para 2008, estão estudando no nível secundário 4037 presos e apenas 522 no nível universitário. O sistema tem aproximadamente 30 mil presos. 39 “Se a universidade vai à prisão, supõe-se que existe um projeto inclusivo, mas isso vai na contramão do exterior (que é uma sociedade altamente excludente). A universidade irá garantir um direito ou irá reduzir o impacto do castigo? Bom, para tanto, é necessário presença”. (DAROQUI, s.d.). As jornadas foram organizadas pelo Grupo de Estudo sobre Educação em Prisões GESEC, a Área de Pesquisa e Extensão em Justiça e Questão Penal da Faculdade de Trabalho Social e a Comissão Universitária sobre Educação em Prisões da Universidade Nacional de La Plata.

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Atualmente, em geral, observam-se ações das universidades no plano da extensão universitária, com oficinas de informática, de comunicação social, de atenção jurídica. As atividades surgem de iniciativas isoladas de grupos de estudantes e de algumas cátedras, mas se diluem no tempo por não haver nas casas de altos estudos programa que junte e gerencie a educação universitária nas prisões. Essas ações isoladas diminuem o impacto à melhoria e abertura das prisões, que poderia e deveria levar adiante a universidade pública em qualquer lugar do mundo. Parece, com frequência, que a Universidade, como instituição educativa pública, junta-se à atitude de esquecimento que a sociedade impõe em relação às pessoas que se encontram privadas de liberdade. Do lado da docência, as profissões mais desenvolvidas são direito, sociologia, psicologia e ciências econômicas. Enfrentam-se sérias dificuldades ao dar as aulas, tanto por razões de segurança (algumas profissões requerem instrumentos) quanto pela falta de financiamento. Isso costuma ser resolvido com o emprego de um sistema não presencial ou a distância, o que limita a participação da Universidade no espaço da prisão, enquanto âmbito educativo. A universidade também se faz presente, com menor incidência, com seu lado pesquisa. Esse costuma resultar em algo distorcido e sem qualquer benefício ou retorno ao sistema penitenciário e seus participantes. Algumas universidades assumiram o tema e criaram observatórios de prisões. A experiência do CUD (Centro Universitário de Devoto, da Argentina) é a mais representativa do que deve ser um desenvolvimento progressivo e sustentável de um programa universitário, baseado em uma decisão política, com rasgos de autonomia, sendo este último uma forma de resistência ao sistema penitenciário. […] O CUD não está submetido ao controle da administração penitenciária. Não há guardas e está sob a responsabilidade única da universidade e dos presos-estudantes, como resultado de convênio assinado pelo Ministério da Justiça e Direitos Humanos, o Serviço Penitenciário Federal e a UBA... Para assegurar que o convênio seja respeitado e evitar a interferência de forças policiais, uma dezena de estudantes, eleitos por uma assembleia de presos-estudantes, ocupam os locais noite e dia. Encarregam-se da manutenção, da coordenação dos estudos e do desenvolvimento das atividades. Defensores de sua autonomia, têm um dormitório, uma cozinha e as chaves dos locais. Os

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responsáveis vigiam escrupulosamente o respeito das regras de segurança. Por outra lado, a associação dos estudantes da prisão encarrega-se dos pedidos de transferência de pessoas presas de outros estabelecimentos que desejem acessar o centro[...] 40

Na realidade, existe a necessidade de fortalecimento e ampliação da educação pública superior universitária e não universitária, que favoreça um crescimento da oferta de profissões, de matrícula e de um programa real por parte das universidades, de forma a manifestar que a prisão é um espaço social concreto da sua agenda pública. Sobre a educação e os direitos humanos Falar de educação e direitos humanos nas prisões obriga a combinar três conceitos: a educação, a prisão e os direitos humanos. Para sua abordagem, precisa-se de um olhar específico e complexo. Pensar a prisão como dispositivo de castigo, controle e disciplina social, como espaço onde são confiscadas as pessoas que transgrediram normas, não implica considerar essas pessoas como anormais ou irregulares sociais. Tal conceitualização, que ainda costuma estar vigente, torna os espaços de privação da liberdade propensos à violação dos direitos humanos. Situações de torturas, tormentos, maus-tratos, golpes, situações de discriminação, bem como a violação quase sistemática de outros direitos como o não acesso à justiça, à saúde, ao trabalho e à educação etc., é uma realidade vista em relatórios de organismos públicos e defensorias. Por sua vez, deve-se considerar a prisão como espaço e tempo absorvente da vida, que gera nas pessoas que a habitam um impacto nocivo, em especial nas pessoas privadas de liberdade, mas também nos agentes de segurança e até nos outros profissionais que atuam na execução penal – ainda que não estejam vinculados à administração penitenciária. Um componente fundamental do direito à educação é a Educação em Direitos Humanos (EDH). A EDH fortalece as pessoas – ao orientar o desenvolvimento pleno da personalidade – e fortalece o respeito aos direitos humanos e liberdades fundamentais, sendo mais um meio do que um fim 40 Ver informação da experiência em .

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em si41. É um conteúdo de influência na subjetividade das pessoas privadas de liberdade que gozam desse direito. A EDH é a possibilidade real de que todas as pessoas recebam uma educação sistemática, ampla e de boa qualidade que lhes permita: compreender seus direitos e suas responsabilidades; respeitar e proteger os direitos humanos de outras pessoas; pensar na inter-relação entre direitos humanos, estado de direito e sistema democrático de governo; e exercitar em sua interação diária os valores, atitudes e condutas condizentes com os direitos humanos. 42

A EDH para as pessoas presas que sofreram e padecem reiteradas violações dos direitos humanos, antes e durante o encarceramento, converte-se em um instrumento concreto de prevenção de violações desses direitos. Ao mesmo tempo, propõe construir uma convivência pacífica e democrática, cada dia mais respeitosa, da vida e das liberdades individuais, mais igualitária, justa e solidária para todos e cada um. Vista dessa maneira, a educação é um motor de transformações individuais e sociais. A EDH consiste no desenvolvimento de uma educação de valores materializados em normas, tais como a vida humana, a integridade pessoal, a liberdade, a igualdade entre as pessoas, a tolerância, a participação, a justiça, a solidariedade, o desenvolvimento humano; de atitudes, como respeito aos outros, o exercício do diálogo, a aceitação do diferente, o respeito ao acordado; e de habilidades, como ouvir os demais, expressar-se sem agredir, exercitar a crítica e a reflexão sobre a prática43. Assim, a EDH é um direito e uma perspectiva pedagógica indispensável e prioritária ao pensar a educação em prisões.

41 O artigo 13 (Direito à Educação) do Protocolo de San Salvador (OEA), aponta “…2. aos Estados-Partes neste Protocolo convêm em que a educação deverá orientar-se ao pleno desenvolvimento da personalidade humana e no sentido de sua dignidade e deverá fortalecer o respeito pelos direitos humanos, o pluralismo ideológico, as liberdades fundamentais, a justiça e a paz. Convêm, ainda, em que a educação deve capacitar todas as pessoas para participar efetivamente de uma sociedade democrática e pluralista, obter uma subsistência digna, favorecer a compreensão, a tolerância e a amizade entre todas as nações e todos os grupos raciais, étnicos ou religiosos e promover as atividades em favor da manutenção da paz (RODINO, 2003). 42 RODINO, 2003. 43 RODINO, 2002.

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OS DESAFIOS PARA UMA AÇÃO FUTURA PRÓXIMA SOBRE O APROVEITAMENTO DO DIREITO À EDUCAÇÃO NAS PRISÕES Sobre os desafios, é necessário para a educação nas prisões dar um salto qualitativo a fim de alcançar os níveis máximos possíveis nas atividades educativas e, assim, as prisões possam ir adaptando-se de forma a conseguir mais e melhores espaços, um tempo melhor empregado e mais pessoal profissionalizado (tanto o penitenciário quanto o não penitenciário). O desafio é alcançar uma educação de qualidade, concebida como um direito humano indispensável, que obrigue o Estado a oferecer padrões de qualidade iguais à educação fora da prisão. É indispensável fortalecer a educação formal, já que cabe a ela outorgar certificação e, portanto, melhorar as possibilidades e oportunidades presentes e futuras das pessoas presas, fazendo da igualdade declarativa ou formal uma igualdade substantiva. Para tanto, é necessário seguir atendendo e superando as necessidades mais comuns no aproveitamento do direito à educação das pessoas privadas de liberdade. Entre elas, destacam-se: - Seguir promovendo a pesquisa e o desenvolvimento acadêmico. - Proporcionar às pessoas presas informação e acesso aos diferentes níveis de educação e capacitação profissional, promovendo a realização de “trajetórias educativas”. - Construir um currículo único básico44 ou plano de estudos adaptável ou ajustável, de maneira a permitir que, diante de continuadas transferências de uma prisão a outra, as pessoas privadas de liberdade não sofram na sua trajetória educativa um grave desajuste que atrase tanto a certificação quanto a continuidade na formação e capacitação. O currículo, por sua vez, deverá contar com uma abordagem específica que leve em conta tanto o contexto de privação de liberdade, quanto um fortalecimento da educação em direitos humanos. - Rever a aplicação dos critérios de segurança “interna”, para articular uma convivência regrada entre os Serviços Penitenciários e a Escola ou centros educativos, que supere as situações tensas da convivência cotidiana. - Identificar e superar as questões econômicas, gerando um fornecimento sustentado de recursos financeiros, de materiais didáticos e tecnológicos. 44 UNESCO, 1998.

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- Atender a questão fundamental da infraestrutura, observando rigorosamente o estado geral dos prédios ou setores destinados à educação, seu desenho, utilização e manutenção45. - Desenvolver e implementar amplos programas educacionais nas prisões que satisfaçam as necessidades educativas e aspirações de aprendizado das pessoas privadas de liberdade, levando em consideração que falar de direito à educação é mais que garantir um processo de alfabetização e aquisição de noções de aritmética. - Prover os necessários cargos docentes desvinculados da administração penitenciária que atendam a demanda, sempre baseado nas leis que regem o sistema público de educação, em virtude da igualdade e democratização da educação. - Fomentar o desenvolvimento de escolas públicas ou centros educacionais nas prisões e não somente de programas temporários. - Organizar as ofertas educacionais, evitando a sua superposição, para não debilitar o sistema formal por meio da implementação de programas de alfabetização de caráter temporal46. - Atender a oferta de formação profissional ou para o trabalho, conseguindo que a oferta tenha uma real e substantiva articulação com as exigências do pós-cumprimento de pena e a comunidade extramuros. - Seguir dando passos no sentido do fortalecimento e ampliação da educação terciária universitária e não universitária, a partir dos convênios acertados. - Criar um espaço administrativo-pedagógico no organograma das agências estatais que reconheça a educação em prisões como uma modalidade de educação específica, para formar e capacitar docentes, realizar contribuições teóricas (didático-pedagógicas) e incentivar a pesquisa acadêmica para melhorar a qualidade do ensino nas escolas com sede em prisões. - Revalorizar o trabalho docente e seu papel, destacando que é necessário: 45 Os espaços da escola ou centros educacionais costumam ser compartilhados, outras vezes limitados em tamanho, o que dificulta o acesso diário de muitas pessoas presas e afeta a qualidade dos métodos de ensino. 46 Essa situação costuma desconcertar os alunos quando se exige optar por uma, quando na realidade são os programas de alfabetização os que reforçam a educação básica e, portanto, não são opções que se descartem, mas sistemas que se reforçam entre si. Lembra-se que a educação formal é o componente substantivo do direito à educação.

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1. uma capacitação docente específica e permanente, com possibilidades de bolsas de estudo e/ou subsídios à pesquisa docente sobre a educação nas prisões. Estabelecer sistema de formação de docentes em direitos humanos, que considere a realidade de privação de liberdade; 2. remuneração especial (bonificação) por trabalho em local fechado peculiar, pois, caso se remunere da mesma forma que numa escola normal, é muito provável que os cargos docentes fiquem vagos. Isso sem esquecer do desgaste emocional que ocasiona trabalhar em local de privação de liberdade (diferentes tipos de síndromes como burnout, estresse) e a inexistência de gabinetes de apoio pedagógico e de cooperadoras escolares (tudo o que se refere a material didático deve ser resolvido pelos docentes). - Trabalhar intersetorial e interinstitucionalmente, reconhecendo a importância vital do trabalho das diferentes agências estatais (ministérios da Educação, da Justiça, do Trabalho, da Saúde, penitenciárias, órgãos de direitos humanos), bem como a sociedade civil (ONGs) na educação nas prisões. CONCLUSÕES PARA CONTINUAR PENSANDO... Diante do exposto, é importante valorizar o impacto positivo da educação das pessoas privadas de liberdade, desde que se valorize a ação educativa. Que se busque reverter a situação de vulnerabilidade social, cultural e emocional das pessoas privadas de liberdade, que se manifesta na falta de voz, ou melhor, na perda do poder de palavra, da sua palavra. Definitivamente, recuperar a “palavra”, que não é mais do que exercer um direito humano. Que se dê a relevância necessária à Educação em Direitos Humanos no que se refere a conteúdos, atitudes, valores, habilidades e competências relacionados aos direitos humanos, o que permitirá gerar nos(as) alunos(as) privados de liberdade o reconhecimento de serem sujeitos de direito e, por sua vez, reconhecer que essa vulnerabilidade social pode ser reduzida, em parte, a partir dessa tomada de consciência. Por outro lado, não é uma questão menor refletir sobre a educação pública nas prisões sabendo que os Estados, nos últimos tempos, se direcionam para a procura e execução de políticas de segurança rígidas.

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Garantir o direito à educação com qualidade das pessoas privadas de liberdade é um esforço concreto em prol de uma política pública de segurança baseada no respeito à dignidade da pessoa, à justiça, à democracia e aos direitos humanos. Dar impulso à educação nas prisões é um requisito para o êxito da reintegração social das pessoas privadas de liberdade, bem como, ainda, é uma contribuição ao desenvolvimento real e sustentável da sociedade que a coloca em prática. A situação atual das prisões na América Latina engloba a ação educativa no dia a dia, dando condições pouco favoráveis, mas não impossíveis de superar, caso as decisões políticas, educativas e penais convirjam na perspectiva e na ação de que se fala de um direito humano e não de uma ação terapêutica ou de tratamento penitenciário. Como defende Katerine Tomasevski (2003), “é altamente improvável reparar o desequilíbrio existente nas oportunidades de vida e de participação na sociedade sem o prévio reconhecimento do direito à educação”. Em definitivo, a garantia do direito à educação pública nas prisões e uma EDH seguramente favorecerão a procura incansável por prisões mais humanas, mais democráticas, mais públicas, como também pela oportunidade de se dar voz àqueles que não a têm. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BARATTA, A. Ponencia. Por uno concepto crítico de “reintegración social” del condenado. In: SEMINÁRIO CRIMINOLOGÍA CRÍTICA Y SISTEMA PENAL, Lima, set. 1990. Anais... Lima: Comissão Andina Juristas, Comissão Episcopal de Ação Social, 1990. BUJAN, J.; FERRANDO, V. La cárcel una perspectiva crítica. Buenos Aires: Ed. AD-HOC, 1998. CARRANZA, E. Diario. Argentina, p. 12, 2004. COLEYE, A. La administración penitenciária en el contexto de los derechos humanos. Londres, Reino Unido: Edit. International Centre For Prisión Studies, 2002.

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10. EDUCAÇÃO PARA TODOS E O SONHO DE UMA NOVA POLÍTICA PENITENCIÁRIA PARA O BRASIL1

Fabio de Sá e Silva2 INTRODUÇÃO: SOBRE FEOLAS E GARRINCHAS Uma das mais famosas passagens do futebol brasileiro remonta à Copa de 1958, a primeira a ser conquistada por nossa seleção. Conta-se que, pouco antes de um jogo decisivo contra a ainda viva União Soviética, o técnico Vicente Feola dava algumas instruções aos jogadores. Ele então desenhou num quadro-negro o que pensava ser um esquema perfeito para que a seleção dominasse o jogo sem dar nenhuma chance aos soviéticos. Quando estava quase acabando de explicar o que esperava dos jogadores a fim de que aquele esquema fosse implementado, o rebelde ponta-direita Mané Garrincha levantou a mão e perguntou: Você já combinou tudo isso com o adversário? A história da literatura em políticas públicas é, de certo modo, semelhante a esse debate entre Feola e Garrincha. Há um grupo de autores que pensam a 1 O original deste artigo foi elaborado em inglês, apresentado como estudo de caso no curso Strategizing Public Policy da Northeastern University (Boston, EUA) e admitido para publicação na Revista Convergence, do International Council of Adult Education (Reino Unido), cujos editores gentilmente autorizaram a tradução para outros idiomas e a publicação nesta coletânea. Agradeço aos vários funcionários do governo brasileiro que me franquearam acesso a preciosas informações sobre a fase atual do projeto Educando para a Liberdade, bem como sobre o que insistimos em chamar de política penitenciária, embora deva aqui manter seus nomes anônimos por razões éticas. Também agradeço à minha esposa Michelle Morais de Sá e Silva, por dividir muitos sonhos comigo, incluindo os que discuto neste artigo. Por fim, agradeço à profa. Stephanie Pollack, da Northeastern University, pelos vários aprendizados de ordem teórica os quais, espero, tenham ajudado a tornar este artigo mais consistente. Obviamente, as falhas que persistem são de minha total responsabilidade. 2 Bacharel (Universidade de São Paulo, 2002) e Mestre (Universidade de Brasília, 2007) em Direito. Doutorando em Direito, Política e Sociedade (Northeastern University). Ex-dirigente no Departamento Penitenciário Nacional do Ministério da Justiça (2004-6), e Consultor da UNESCO no projeto Educando para a Liberdade (2006-7).

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elaboração de políticas públicas como um processo simples e direto, marcado pela identificação objetiva de metas e pela escolha das melhores maneiras de atingi-las. Esses são bem parecidos com Feola. Há, entretanto, um outro grupo de autores que desconfiam desse raciocínio linear. Mais próximos de um Garrincha, tendem a ver a elaboração de políticas públicas como uma experiência menos determinável, cujas peças e movimentos podem tomar mais que um arranjo. Da mesma forma, o significado de uma experiência de construção de política pública depende tanto das peças e movimentos para os quais se olha, quanto do ângulo sob o qual se olha para essas peças e movimentos. John Kingdon (1995), por exemplo, examinou os assim denominados processos de “definição de agenda” e “especificação de alternativas” e entrevistou gestores de elite nas áreas de saúde e transporte. Sua conclusão foi de que tais processos resultam da atuação de “empreendedores de política pública”, os quais se mostram capazes de juntar três ondas que correm de modo independente na sociedade: a onda dos “problemas”, da “política” e da “política pública”. Debora Stone (2002) levantou uma questão preliminar e discutiu como as disputas políticas que acontecem numa dada comunidade permeiam e condicionam os processos de construção de políticas públicas. Assim, ela teorizou sobre os recursos que grupos e organizações utilizam na “polis” de modo a avançar estrategicamente suas concepções sobre o bem comum. Neoinstitucionalistas podem buscar mapear os vários “domínios de elaboração de políticas públicas” (como Van Horn et. al., 2001) ou as relações problemáticas entre esses domínios (como Miller e Barnes, 2004). Essas leituras são como as (múltiplas) faces de Janus: todas estão corretas e nenhuma está correta. No decorrer deste artigo, eu adoto a segunda perspectiva entre as que mencionei acima. Pensando mais como um Garrincha, considero a elaboração de uma política pública como a expressão do ímpeto humano de reimaginar o futuro, construindo pontes com possibilidades não exploradas para a organização de nossa vida em comum. Com isso, sustento que escrever sobre política pública é (ou pode ser) capturar sonhos que têm sido sonhados por meio das instituições e para além delas. Curiosamente, foi por uma metáfora semelhante que Martin Luther King Jr. tematizou as lutas contra a desigualdade racial nos Estados Unidos. Muito além de uma “agenda de política pública”, ele disse ter “um sonho”. Ao mesmo tempo em que são “soluções de política pública”, a desegregação escolar e as ações afirmativas podem também ser vistas como maneiras possíveis de sonhar o sonho de Luther King Jr. por meio dos Departamentos de Educação e de Universidades. 140

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O presente artigo relata a vida de um projeto que buscou enfrentar as demandas por educação nas prisões brasileiras. Denominado Educando para a Liberdade, esse projeto foi originalmente desenvolvido por um consórcio que incluiu o Ministério da Educação, o Ministério da Justiça e o escritório da UNESCO em Brasília, com apoio financeiro do governo japonês. Meu argumento central será de que, ao levar a sério o “direito das pessoas presas a educação”, o projeto ajudou a definir uma ampla agenda de transformação para o sistema prisional brasileiro. Na seção final, discutirei como manter essa agenda viva, o que é possível esperar dela, e como a educação se encaixa nessas observações de futuro. Tirando proveito da metáfora que acabo de articular, usarei um estilo pouco usual para examinar o projeto e seus impactos. Nas próximas seções, tentarei determinar “em que cenário esse sonho emergiu”, “quem têm sido os sonhadores desse sonho”, “sobre o que tem sido o sonho”, e “como o sonho tem afetado o dia seguinte dos sonhadores”. Será que eles ainda têm alguma razão para prosseguir sonhando? O CENÁRIO DO SONHO Se eu pudesse substituir essas linhas como um link para as memórias de minha primeira visita a uma prisão, logo após me tornar um gestor do Departamento Penitenciário Nacional do Ministério da Justiça, essa é a escolha que faria para introduzir o leitor no cenário das prisões no Brasil. Eu já havia estado em prisões antes, mas como advogado particular tinha outra impressão sobre elas. Eu considerava as prisões como um lugar estranho para mim e para os meus clientes, e tentava a todo custo tirar ambos de lá. Naquele dia, porém, eu senti que não tinha essa escolha: de certa forma, eu agora também era parte daquela situação. E embora a situação que eu acabava de ver não era das piores entre as que veria (o presídio era pequeno, sem registros de rebeliões ou violência entre pessoas presas e agentes), ela era profundamente desencorajadora. As pessoas presas eram todos muito jovens, com nada a fazer em suas celas além de esperar o tempo passar. Tenho consciência de que, não importa quantas vezes eu reescreva o último parágrafo, aquela cena nunca ficará completamente clara ao leitor. Por isso, tentarei usar alguns números para conduzir uma aproximação do cenário prisional no Brasil. De acordo com dados de 2007, pode-se estimar com precisão que entre as cerca de 400 mil pessoas que atualmente se encontram nas prisões brasileiras, menos 20% estão envolvidas em atividades educacionais e menos de 25% estão envolvidas em atividades laborativas, 141

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embora essa população tenha índices muito baixos de acesso à educação e ao mundo do trabalho antes do encarceramento. Some-se a isso o fato de que o encarceramento fragiliza os laços familiares e comunitários; e quase não existem programas para auxiliar pessoas presas a enfrentar os desafios da reintegração social3. Um dos resultados possíveis, ou ao menos o resultado que estamos colhendo no Brasil, é de que os reincidentes respondem por uma média de 60% da crescente população prisional do país. Em outras palavras, o fato é que as prisões são uma das maiores fontes de violência instaladas no Brasil, não importando quantas grades e muros construamos ao seu redor. Em contraste com esses números, acredite-se ou não, o Brasil tem uma das legislações mais avançadas do mundo para o setor. Em 1984, o Congresso aprovou uma ampla reforma para o sistema prisional por meio da Lei de Execução Penal. De acordo com essa lei, cada presídio deve ter uma Comissão Técnica de Classificação (CTC), encarregada de levantar informações sobre as pessoas presas e sua história de vida. Com essas informações, a CTC deve desenhar programas individualizados de reabilitação. O pessoal encarregado de implementar os programas deve ser cuidadosamente selecionado e continuamente treinado. Conselhos de Comunidade e Conselhos Penitenciários Estaduais devem inspecionar as condições de vivência e trabalho nos presídios, de modo a realizar um certo controle social da administração, enquanto Patronatos devem auxiliar pessoas presas a encontrar oportunidades após a soltura. E, talvez o mais importante, esse quadro foi inteiramente articulado a partir da ideia de “direitos”. A lei expressamente reconhece em favor das pessoas presas o direito à assistência material, assistência à saúde, assistência educacional, assistência social, trabalho e renda4. O avanço da legislação brasileira é reconhecido até mesmo em nível internacional. Em 2005, fui solicitado a acompanhar um projeto que visava à melhoria da gestão penitenciária do Brasil e já tinha algum histórico de implementação no Estado de São Paulo. O governo federal pretendia tornar essa experiência disponível para outros estados, e eu estava a cargo de entender o seu funcionamento e conceber estratégias para a sua possível disseminação. O componente essencial do projeto era um manual produzido pelo Centro Internacional para Estudos sobre as Prisões (ICPS), localizado no Reino Unido 3 Em língua inglesa, essa expressão foi lançada por Jeremy Travis (2005) num livro que se tornou bastante influente nos Estados Unidos. 4 Com relação ao direito à educação, pode-se mencionar: a Constituição Brasileira (artigo 208), a Lei n.º 9.394/96 (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, artigo 37, § 1.º), o Parecer n.º 11/2000 da Câmara de Educação Básica, a Lei n.º 10.172/2001 (Plano Nacional de Educação), a Lei n.º 7.210/84 (Lei de Execução Penal), e a Resolução CNPCP n.º 14/94 (Regras Básicas para o Tratamento de Reclusos).

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e chefiado pelo respeitado professor Andrew Coyle. O manual continha orientações para a administração penitenciária, todas elas elaboradas de acordo com os tratados internacionais de direitos humanos. Ao longo do projeto, uma equipe estadual especialmente selecionada deveria apreender essas orientações e desenvolver planos estratégicos voltados para preencher lacunas que pudessem existir entre o manual e o sistema prisional de cuja gestão estavam encarregados5. Tão logo fui apresentado à equipe do projeto, um dos consultores britânicos indicados pelo ICPS me disse: “No fim das contas, será mais fácil trabalhar em seu país que em muitos nos quais temos trabalhado. Sua legislação doméstica incorpora todas as diretrizes internacionais para uma gestão penitenciária baseada nos direitos humanos. Não temos de perder tempo debatendo se um preso deve ou não ser tratado com dignidade”. De um ponto de vista da literatura em políticas públicas, um catálogo de direitos constitui, pelo menos, um bom ponto de partida. De um lado, direitos servem como uma poderosa fonte de mobilização política, ajudando cidadãos e movimentos sociais a nomear situações injustas e expor fraturas societais6. De outro lado, direitos trazem sempre uma esperança da implementação – em especial pelos Tribunais. Na política penitenciária brasileira, entretanto, há uma grande limitação no uso dos direitos, segundo essa descrição da teoria. De um modo geral, os Tribunais decidem casos envolvendo direitos de pessoas presas num ritmo bastante lento. O contencioso instaurado contra a Lei dos Crimes Hediondos dá um bom exemplo disso: em 1990, o Congresso aprovou legislação que negava alguns direitos às pessoas presas acusadas de cometer “crimes hediondos”. Diferentemente de presos normais, os que estivessem nessa situação não poderiam solicitar liberação antes do julgamento, com ou sem fiança, nem poderiam obter liberdade condicional. Logo após a aprovação da lei, advogados começaram a arguir a sua inconstitucionalidade sob o fundamento de afronta ao devido processo legal. Num primeiro momento, nem os Tribunais Estaduais nem o Supremo Tribunal Federal acolheram esse entendimento. Mas, cerca de dez anos depois, o Supremo Tribunal Federal finalmente aceitou a tese da inconstitucionalidade. A lei foi parcialmente revogada e até agora o Congresso luta para aprovar nova legislação, restabelecendo a pretensa distinção entre “crimes normais” e “crimes hediondos” ao nível da execução penal7. 5 Para maiores detalhes sobre esse projeto, ver http://www.kcl.ac.uk/depsta/rel/icps/brazil.html. 6 Para uma compreensão semelhante sobre os direitos e seu potencial político, ver Stone (2002). Ver também o clássico livro de Scheingold (2004). 7 Ver o HC 82.959-7/SP194. Disponível em: .

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E, mesmo quando os juízes dão efetividade a direitos das pessoas presas, isso tende a acontecer apenas na análise de casos individuais que evocam questões de “devido processo legal”. Em outras palavras, o fato é que não há qualquer tradição de interferência positiva do judiciário quando os casos envolvem direitos coletivos (como os direitos à educação, à saúde, ao trabalho etc.). A razão para isso tem sido de algum modo antecipada pela literatura em direito e políticas públicas: não há, no Brasil, uma teoria jurídica forte que sustente uma perspectiva mais ativista para a atuação dos juízes8. Embora advogados de direitos humanos e doutrinadores em direito constitucional sugiram que os tribunais podem proferir decisões que visem a dar efetividade a direitos econômicos, sociais e culturais, os juízes permanecem seguindo o caminho contrário, baseando-se em três argumentos principais: a) as normas de direitos econômicos, sociais e culturais são programáticas, e dependem da ação do Poder Executivo; b) determinar meios para efetivar direitos econômicos, sociais e culturais afronta a separação de poderes; e c) a jurisprudência deve se limitar ao âmbito do que é “possível”9. A consequência é que, em grande medida, a efetivação dos “direitos” no Brasil acaba dependendo do compromisso político dos gestores públicos, o que torna as coisas bem mais complicadas. Devido ao sistema federativo, cada estado tem o seu próprio sistema prisional, o qual pode estar sujeito à autoridade de uma Secretaria de Justiça, Segurança Pública ou Administração Penitenciária10. Em todo caso, essa autonomia é, na melhor das hipóteses, enganadora. Em primeiro lugar, a legislação que regulamenta a execução penal no Brasil é normalmente de competência federal. Os estados podem aprovar leis apenas em tópicos específicos que já tenham sido objeto de leis federais, mas não podem colocar nada de novo sobre a mesa. Em segundo lugar, graças à criação do Fundo Penitenciário Nacional (FUNPEN) em 1994, o governo federal detém o orçamento mais significativo para investimentos na melhoria das prisões. Não há dados disponíveis sobre o quanto os estados têm gasto em políticas penitenciárias desde que a nova lei foi aprovada, mas sabe-se que a metade das vagas existentes nas prisões brasileiras foram financiadas com verbas federais ao longo dos últimos 13 anos (Depen, 2007); e a construção de novas prisões é, de longe, a maior fonte de despesas de um sistema prisional em franco crescimento como o brasileiro. 8 Ver Rosenberg (1991). 9 Ver Oliveira (1999). 10 Mais recentemente, um sistema penitenciário federal foi estabelecido, mas seu uso é reservado a detentos que não podem ser mantidos sob custódia dos estados. Em geral, isso acontece com pessoas presas envolvidas com redes locais de crime organizado.

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Desse modo, o governo federal tem potencial para desempenhar um papel crucial na definição da política penitenciária: basta que desenvolva amplas soluções e induza mudanças ao nível dos estados. Foi o que ocorreu, por exemplo, com os padrões arquitetônicos de presídios. Desde 1994, o Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP) edita padrões de construções que objetivam garantir um mínimo de condições de vida digna para pessoas privadas de liberdade. Sem se comprometerem com esses padrões, os estados não podem solicitar verbas federais para a construção de novos presídios. No fim das contas, os estados acabaram se comprometendo. Mas se o governo federal não apresenta capacidade de desenvolver essas amplas soluções, os estados podem desenvolver as suas próprias ideias e tentar captar uma parte do orçamento disponível ao nível federal. Isso dá oportunidade para inovação ao nível estadual e, às vezes, até mesmo ao nível local. O tema controverso da maternidade nas prisões oferece um bom exemplo. Estudos sugerem que é saudável para o desenvolvimento das crianças a manutenção de contato com as mães que se encontram privadas de liberdade, mas é totalmente perverso para elas manter contato com o ambiente prisional (SANTA RITA, 2007). Para administrar essa contradição, alguns estados começaram a instalar brinquedotecas em suas prisões femininas, de preferência longe das celas. Nessas brinquedotecas, que apresentam custos baixíssimos de instalação e manutenção, as crianças podem conviver com suas mães e com outras crianças, desfrutando de oportunidades para brincadeiras e aprendizado. As brinquedotecas acabaram por se tornar uma boa prática em administração de presídios femininos, e o governo federal decidiu “vender” novas unidades aos estados por meio do recente Programa Nacional de Segurança com Cidadania (Pronasci), sobre o qual falarei adiante neste artigo11. Mas, apesar dessas múltiplas fontes de criatividade em políticas penitenciárias, as quais resultam do federalismo, a situação no Brasil está próxima do pior. Em 2002, um relatório do Tribunal de Contas da União (TCU, 2002) estimou que mais de 90% do orçamento federal para políticas penitenciárias era gasto exclusivamente na construção de novos presídios. Além disso, dizia o relatório, o reduzido montante gasto com todo o restante, incluindo programas de educação e trabalho, não vinha sendo utilizado para financiar políticas públicas consistentes, mas sim, iniciativas dispersas propostas pelos 11 Para mais informações sobre a difusão de brinquedotecas e o Pronasci, ver em: .

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estados. Em outras palavras, o relatório deixou claro que nenhum dos níveis de governo estava realmente buscando fazer investimentos estruturais no braço social da execução penal. Eis por que, se alguém fala de política penitenciária no Brasil, está falando basicamente de confinamento de pessoas. Por último, mas definitivamente não menos importante, há uma ambígua opinião pública mediando as decisões no setor. Nas décadas de 1970 e 1980, quando o país estava sob o jugo de uma ditadura militar, um semnúmero de organizações de direitos humanos foi constituído em torno da bandeira dos direitos das pessoas privadas de liberdade, muitas das quais – como o Gabinete de Apoio Jurídico a Organizações Populares (GAJOP em Pernambuco; o Instituto Acesso à Justiça) IAJ em Porto Alegre e a Pastoral Carcerária, para mencionar apenas alguns – permaneceram atuando nesse campo mesmo depois que a ditadura se esvaiu. Junto com algumas organizações internacionais como a Human Rights Watch (1999) e a Anistia Internacional (1999), elas têm sido responsáveis por tornar a opinião pública consciente das más condições dos presídios do país. Produções cinematográficas recentes como Carandiru e O Prisioneiro da Grade de Ferro também têm cumprido o mesmo papel. Todavia, os brasileiros têm estado profundamente assustados com a violência urbana ao longo dos últimos anos e muito dessas preocupações têm sido “transferidas” para uma atitude mais agressiva em relação aos criminosos. Para tornar as coisas ainda piores, os próprios presídios se tornaram uma fonte de violência. Grupos criminosos formados dentro dos presídios de São Paulo agora operam dentro e foram do sistema prisional e ficaram famosos nos últimos anos por conduzir ataques a prédios públicos como resposta ao endurecimento das medidas disciplinares adotadas pelo governo local. Rebeliões nos presídios de Rondônia e Rio de Janeiro acabaram com dúzias de presos mortos, um fato que envergonhou o país perante a Corte Interamericana de Direitos Humanos. Em suma, nunca há um bom momento para sonhar sobre política penitenciária. OS SONHADORES Como define Kingdon, “há uma diferença entre uma condição e um problema. Nós lidamos com condições todos os dias: tempo ruim, doenças inevitáveis e incuráveis, pestes, pobreza, fanatismos. Como disse um lobista: se você tem apenas quatro dedos em uma mão, isso não é um problema, isso é uma situação. Condições começam a ser definidas como problemas quando nós passamos a acreditar que devemos fazer alguma coisa a respeito delas. 146

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Problemas não são simplesmente as condições ou eventos externos em si, há sempre um elemento de percepção e de interpretação” (KINGDON, 1995, p. 109-110). Na metáfora do sonho, os sonhadores têm uma importância crucial. Eles são os que atribuem sentido ao ambiente, articulando uma narrativa que leva a um problema e a algumas alternativas para o enfrentamento desse problema12. A distinção entre os sonhadores e o cenário é, entretanto, imprecisa. O que aparece como peça de cenário num dado momento pode ganhar vida e juntar-se aos sonhadores, assim como quem aparece como um sonhador num dado momento pode abandonar o sonho e sonhar sobre outra coisa. Por fim, pode haver peças ou potenciais sonhadores no cenário que, embora não tenham sido notados, de uma hora para outra (e por uma variedade de razões) entram em cena. Por agora, aludirei aos primeiros sonhadores e suas circunstâncias gerais, a fim de conferir a este artigo maior potencial explanatório. As relações e alianças que envolveram segmentos mais amplos pertencem mais à dinâmica do projeto, tema a que me dedico na próxima seção. Em 2003/04, dois setores do governo brasileiro enfrentavam mudanças particularmente importantes para os propósitos deste artigo. No âmbito do Ministério da Justiça, o Departamento Penitenciário Nacional (Depen) passou por uma reforma estrutural que resultou na criação de duas novas unidades: uma Coordenação Geral de Reintegração Social e Apoio ao Egresso e uma Coordenação Geral de Ensino. Essas unidades tinham a tarefa de melhorar o sistema prisional mediante a elaboração de políticas públicas de cobertura nacional em benefício de pessoas presas e do pessoal penitenciário, respectivamente. Para dizer o mínimo, essa reforma organizacional teve a virtude de deslocar o centro de gravidade da política penitenciária para longe do mero confinamento de pessoas. Isso se tornou claro no mês de maio de 2004, quando o Depen produziu um relatório (até então) reservado, o qual circulou rapidamente pelos corredores do Ministério da Justiça13. Sob o título de Sistema Penitenciário Brasileiro: diagnósticos e propostas, o documento era profundamente inspirado pela literatura da criminologia crítica14. Enfatizava que o encarceramento não era a solução para a violência e a 12 Para as origens dessa ideia de ‘definição de problema’ como um processo discursivo, ver Stone (2002 e 1999). 13 Um jornal de grande circulação no Brasil teve acesso a esse relatório e disponibilizou os seus principais pontos para o conhecimento do público; e ao final o documento foi publicado em sua íntegra (Depen, 2005). Curiosamente, na versão atualmente disponível na internet , a Parte 1 foi suprimida. Esse era exatamente o trecho construído em suporte aos pressupostos da criminologia crítica. 14 Entre os principais autores influenciando os gestores do Depen à época estavam Baratta (1999), Sá (2003 e 2005) e Zaffaroni (1998).

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criminalidade e nem deveria servir simplesmente para isolar criminosos da sociedade. Pelo contrário, dizia o relatório, a prisão deveria desempenhar um papel secundário nas políticas de segurança pública e, quando mobilizada, deveria essencialmente contribuir para superar a história de conflitos existente entre criminosos e sociedade. Na maior parte, sustentava o documento, as pessoas presas têm uma história familiar e pessoal de exclusão e vulnerabilidade, a qual influencia a sua vinculação aos crimes e à violência. Uma política prisional consequente deveria ser capaz de enfrentar essa condição e “reintegrar” as partes em conflito. Dar efetividade a direitos das pessoas presas seria um bom primeiro passo em direção a esse objetivo. Outro setor do governo federal, passando por mudanças importantes, foi o Ministério da Educação, com a criação da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade (Secad). A Secad se tornou a unidade responsável por atingir populações com histórico de exclusão das políticas educacionais, caso típico de jovens e adultos – incluindo camponeses, minorias étnicas, e povos indígenas15 – que não tiveram acesso à educação na idade escolar. Trabalhar com esses grupos não envolvia apenas o desafio de alcançá-los, mas também de desenvolver uma pedagogia que respeitasse as suas demandas e expectativas. Esse era o motivo pelo qual o sistema prisional era tão atrativo para a gestão da Secad: entre os cerca de 400 mil indivíduos privados de liberdade no Brasil em 2007, cerca de 70 por cento não haviam completado o ensino fundamental e 10,5 por cento eram analfabetos, para não falar nas condições adversas que todos enfrentavam para o engajamento numa experiência de aprendizagem. A parceria entre o Depen e a Secad traria ainda um outro componente ao debate: a cooperação internacional. A Secad tinha um acordo com o escritório da UNESCO em Brasília, o qual incluía apoio financeiro do governo japonês. O acordo objetivava melhorar a oferta de Educação de Jovens e Adultos no Brasil, com investimentos programados para os estados do Ceará, Paraíba, Goiás e Rio Grande do Sul, os quais haviam demonstrado publicamente um compromisso com os objetivos da Década das Nações Unidas para a Alfabetização (2003-12). Os investimentos não eram tão elevados para fortalecer os programas regulares conduzidos pela Secad, mas poderiam ter impactos significativos se utilizados em projetos-piloto, como seria o caso do Educando para a Liberdade. Animada pelos entendimentos com o Depen, a Secad não teve dúvidas em destinar esses recursos para intervenções no 15 Ver mais informações sobre a Secad, disponível em: .

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sistema prisional, o que trouxe a UNESCO para o sonho. Com esse novo sonhador em cena, a racionalidade política do projeto ganharia significativa densidade. Uma coisa é dizer que pessoas presas têm direito à educação; outra é dizer que garantir o acesso de pessoas privadas de liberdade à educação é essencial para alcançar objetivos de uma agenda global16, a qual inclui termos impactantes como Educação Para Todos17, Década das Nações Unidas para a Alfabetização18 e Cultura de Paz19. As próximas seções darão maiores detalhes sobre como os sonhadores e suas respectivas condições interagiram para construir um “ponto de vista” para o tema de política pública, mas algumas das pistas desse “ponto de vista” podem desde logo ser notadas: primeiro, ele considera que as pessoas presas “têm um direito à educação”, tanto de uma perspectiva interna quanto de uma perspectiva internacional. Segundo, ele considera que garantir educação às pessoas privadas de liberdade envolve mais que simplesmente ampliar a oferta de um serviço: envolve contribuir para a restauração de sua autoestima, e a sua reintegração harmônica à sociedade. A psicologia recente tem usado o termo resiliência, extraído da física, para caracterizar a capacidade de um indivíduo para se recuperar psicologicamente e a habilidade de resistir a situações de violência e adversidade, reconstruindo os seus laços de afeto 16 Entre os pontos mais fortes desta agenda global estavam as deliberações da V Conferência Internacional de Educação de Adultos (CONFINTEA V), que determinava: “Prover à população prisional a informação e/ ou o acesso a diferentes níveis de educação e formação; Desenvolver e implementar programas holísticos de educação nas prisões, com a participação de pessoas presas, a fim de atender às suas necessidades e aspirações de aprendizagem; e Facilitar as atividades educacionais desenvolvidas nas prisões por organizações não governamentais, professores e outros educadores, deste modo garantindo à população prisional o acesso às instituições educacionais e encorajando iniciativas que vinculem cursos realizados dentro e fora das prisões”. Desde a CONFINTEA V, o Instituto da UNESCO para a Educação ao Longo da Vida (Hamburgo, Alemanha) tem dedicado especial atenção à educação em prisões, sobretudo pelo apoio a um Observatório Internacional de Educação em Prisões. Para maiores informações sobre o Instituto e as atividades do Observatório, disponível em: . 17 O preâmbulo da Declaração Mundial de Educação para Todos afirma com clareza que: “Todas as crianças, jovens e adultos têm o direito humano de se beneficiarem de uma educação que atenda a suas necessidades básicas de aprendizagem no melhor e mais completo sentido do termo, uma educação que inclua aprender a conhecer, aprender a fazer, aprender a viver junto e aprender a ser. Uma educação voltada a valorizar os talentos e o potencial de cada indivíduo e a desenvolver suas personalidades, de maneira que eles possam melhorar suas vidas e transformar suas sociedades”. Os objetivos terceiro e quarto do correspondente Marco de Ação de Dacar visam “Promover a Educação de Jovens e Adultos” e “Reduzir o Analfabetismo”. 18 A UNESCO é a agência líder para a Década no âmbito do Sistema das Nações Unidas, e o seu programa Iniciativa de Alfabetização para o Empoderamento (Literacy Initiative for Empowerment, LIFE) destaca exatamente a relação entre a alfabetização e o empoderamento de indivíduos e comunidades. 19 A promoção de uma cultura de paz foi estabelecida como meta da UNESCO no seu Congresso Internacional sobre a Paz nas Mentes dos Homens (Costa do Marfim, 1989) e posteriormente consolidada na Declaração e Programa de Ação para uma Cultura de Paz. Se entendida como parte de uma agenda de reintegração social, a educação em prisões cria condições para a redução da violência urbana e contribui para a promoção de uma cultura de paz.

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e as suas relações sociais e profissionais. A educação nas prisões, em última análise, deveria auxiliar as pessoas presas a se tornarem os protagonistas de sua própria história. Uma explicação do sonho propriamente dito demonstrará como os sonhadores cuidaram de desdobrar esse “ponto de vista” com soluções concretas de política pública. O SONHO O primeiro passo do sonho consistiu numa série de visitas diagnósticas ao já mencionados estados do Ceará, Paraíba, Goiás e Rio Grande do Sul. De modo geral, os relatórios de campo confirmavam as sensações que o Depen e a Secad já possuíam em relação a esse debate de política pública: a educação contrasta com tudo o que a prisão representa, e não será garantida sem que haja mudanças estruturais no sistema prisional. Especificamente, porém, o diagnóstico ajudou os sonhadores a identificar três níveis de problemas. Primeiro, havia problemas de ordem gerencial, incluindo a mobilização das autoridades da educação e da administração penitenciária ao nível dos estados. Faltava um canal de diálogo entre esses dois setores do Poder Executivo, de modo a garantir que ambos pudessem trabalhar coordenadamente para a oferta de educação às pessoas presas. Segundo, havia problemas de ordem operacional, incluindo as identidades e práticas dos profissionais encarregados da oferta. Os professores deveriam receber uma formação diferenciada, a fim de que compreendessem como lidar com os constrangimentos do ambiente prisional e as circunstâncias da vida dos detentos. Professores e agentes penitenciários deveriam aprender como conciliar as demandas sempre conflitivas por segurança e assistência na rotina prisional. E governos estaduais deveriam valorizar mais o pessoal penitenciário, o qual em geral possui uma péssima imagem na sociedade. Finalmente, havia o problema da “pedagogia correta”. A educação nas prisões deveria ajudar a promover a emancipação das pessoas nela envolvidas. Apesar das especificidades do sistema prisional, o projeto deveria tirar proveito das lições da Educação de Jovens e Adultos e da Educação Popular20, que têm se debatido contra os mesmos desafios. Os sonhadores sabiam, entretanto, que aqueles três níveis de problemas deveriam ser enfrentados tendo-se em mente a questão federativa. A decisão foi que o governo federal deveria agir como indutor na construção de uma estratégia de política pública, enquanto as respostas concretas deveriam ser 20 No âmbito internacional, os debates brasileiros sobre educação popular tornaram-se conhecidos pelos trabalhos de Paulo Freire, especialmente a sua Pedagogia do Oprimido.

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elaboradas a partir das bases (os estados). Por essa razão, a Secad, o Depen e a UNESCO convocaram um workshop em Brasília em outubro de 2005. O convite foi enviado aos atores governamentais que trabalhavam nos setores de Administração Penitenciária e de educação de jovens e adultos nos quatro estados mencionados, além de São Paulo e Rio de Janeiro, por causa do seu elevado número de populações prisionais. Como parte do workshop, os três níveis de problema anteriormente identificados como recolocados na forma de questões “geradoras” para os participantes. Para muitos dos estados convidados aquela era, de fato, a primeira vez que as equipes da Administração Penitenciária e da educação de jovens e adultos se sentavam ao redor da mesma mesa, confirmando o diagnóstico de desarticulação e reforçando a necessidade de abertura de um canal de diálogo. Um dos acordos firmados no workshop era que os participantes deveriam espalhar a mensagem do projeto e ampliar a consciência acerca dele entre outros atores relevantes nos seus estados de origem, com o objetivo de que em cada um deles acontecesse um seminário local. E assim ocorreu que, no final de 2005, o primeiro desses eventos foi realizado na cidade do Rio de Janeiro: o 1º Seminário de Articulação Nacional e Construção de Diretrizes para a Educação em Prisões. Os Seminários tinham a dupla função de recolher proposições para uma política pública de Educação em Prisões com dimensões nacionais; e de forjar pactos políticos entre os atores locais nos estados em que estavam ocorrendo. Eles também tinham o potencial de inspirar mobilização semelhante nos estados vizinhos, cujos órgãos de governo haviam sido igualmente convidados. A fim de estimular os pactos e a mobilização esperados, os Ministérios da Justiça e da Educação decidiram financiar projetos estaduais de Educação em Prisões, com a disponibilização de recursos para quatro eixos estratégicos de investimento: o apoio à coordenação da oferta, a formação dos profissionais efetivamente envolvidos com a oferta de Educação nas Prisões (de agentes penitenciários a professores), e a elaboração/impressão de materiais pedagógicos. Essa forma de apoio manteve as equipes estaduais animadas após o retorno do workshop de Brasília. Cinco dos seis estados que dele participaram (Ceará, Paraíba, Goiás, Rio Grande do Sul e Rio de Janeiro) mais o Tocantins submeteram seus projetos ao Ministério da Educação, como havia sido indicado. No total, foram desembolsados R$ 1,2 milhões (cerca de U$S 564,000) para esses seis projetos.

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Os seminários prosseguiram em 2006, ano em que mais seis desses eventos ocorreram nos estados de Goiás, Rio Grande do Sul, Paraíba e Ceará, agregando a presença de equipes do Tocantins, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Paraná, Santa Catarina, Pernambuco, Rio Grande do Norte, Piauí e Maranhão. Pouco a pouco, os seminários tornaram-se espaços de construção coletiva, nos quais as vozes de um público amplo e diversificado puderam se fazer ouvir. Além de dirigentes governamentais das áreas de educação e de políticas penitenciárias, professores, agentes penitenciários, pesquisadores e especialistas participaram dos seminários. Foi então que uma questão inesperada apareceu: onde estavam aqueles que supostamente seriam os mais interessados nos resultados desse processo – as pessoas presas? Essa imperdoável omissão deu origem a um dilema prático. O que poderia ser feito para ouvir as vozes dessas pessoas? Parecia impossível, ou ao menos muito difícil, trazêlos aos seminários. A alternativa foi utilizar um outro acordo de cooperação existente no âmbito federal, dessa vez entre o Departamento Penitenciário Nacional e o Centro de Teatro do Oprimido do Rio de Janeiro (CTO/Rio): o projeto Teatro do Oprimido nas Prisões. O Teatro do Oprimido é uma forma de criação e expressão artísticas que utiliza a técnica de Teatro-Fórum como estratégia para estabelecer diálogos sobre uma dada realidade e gerar compromissos políticos que levem a transformá-la21. Depois de participar em workshops de treinamento nessa metodologia, pessoas presas e agentes penitenciários envolvidos no projeto Teatro do Oprimido nas Prisões eram chamados a produzir pequenas peças que trouxessem à tona situações de opressão com as quais tinham de conviver no dia-a-dia22. Uma vez encenadas, as peças alcançavam uma plateia mais ampla e se convertiam num Fórum, com a presença de autoridades e de segmentos sociais. Aspectos desumanos do sistema eram abertamente revelados, conduzindo o público a enxergar determinados problemas e questionar suas atitudes em relação a tais problemas. Em muitos casos, a indiferença dava lugar à solidariedade. Como parte do projeto Educando para a Liberdade, cinco consultas a pessoas presas foram assim conduzidas, permitindo a emergência de algumas contribuições importantes. Entre elas, vale destacar dois exemplos. No primeiro, pessoas presas encenaram um roteiro no qual seus materiais escolares 21 O Teatro do Oprimido e a sua técnica de Teatro-Fórum são internacionalmente reconhecidos. Enquanto este artigo estava sendo escrito, tive a felicidade de saber que o seu criador Augusto Boal havia sido indicado para o Prêmio Nobel da Paz. Para informações gerais sobre esses tópicos, ver . 22 Disponível em: < http://www.ctorio.org.br/PRISOES.htm>.

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haviam sido inteiramente destruídos numa revista de celas e professores acabavam culpando-os por falta de cuidado com seus pertences. Durante o debate, os participantes fizeram sugestões simples para a administração do presídio que poderiam evitar fatos como aqueles, o que incluía a disponibilização de armários ou estantes na sala de aulas. Com essa melhoria estrutural, os presos não precisariam mais levar o material escolar para as celas, o que manteria o material “a salvo” durante as situações de revista. O problema nas entrelinhas era, obviamente, o choque cultural entre a segurança e a educação. Outro exemplo falava sobre a necessidade urgente de se instituir a remição da pena pelo estudo. Mulheres privadas de liberdade encenaram peças revelando altos níveis de desistência das aulas em razão da abertura de postos de trabalho na prisão. Como a lei garante expressamente a remição da pena pelo trabalho mas não pela educação, e nem todo juiz interpreta essas duas situações como equivalentes, as presas preferiam o primeiro à segunda. Curiosamente, os mesmos tópicos foram mencionados nos seminários de maneira muito abstrata: agora eles apareciam viva e espontaneamente no compasso da encenação das peças. O passo final desse processo foi o 1º Seminário Nacional pela Educação nas Prisões, realizado em junho de 2006, em Brasília. Atraindo participantes de todos os estados do país, fossem eles vinculados a órgãos governamentais ou não, o Seminário maximizou o alcance da consulta até os limites do possível. Além disso, incluiu atividades que enriqueceram o projeto tanto em seus aspectos conceituais (de se destacar, quanto a isso, a presença de Marc De Maeyer e Hugo Rangel, dois especialistas internacionais que trouxeram a experiência acumulada no Observatório Internacional de Educação em Prisões), quanto em seus aspectos políticos (houve um ato-debate em apoio à remição da pena pelo estudo, além de uma mesa redonda com outros setores do governo federal para discutir uma possível inter-relação entre a oferta de educação e a efetivação de outros direitos sociais, como o direito ao trabalho). No curso dos debates, os participantes do Seminário chegaram a um consenso sobre como os governos estaduais e o governo federal deveriam agir para enfrentar os três níveis de problemas acima mencionados. O consenso foi registrado no documento Seminário Nacional pela Educação em Prisões: Significados e Proposições, sistematizado pela UNESCO (2006). O documento também chamava outros atores a entrar no sonho, em especial o Conselho Nacional de Educação (CNE) e o Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP). 153

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Com o I Seminário Nacional, os sonhadores reunidos no projeto também consolidaram uma estratégia de política pública que envolveu: o diagnóstico dos problemas que impactavam a oferta de educação nas prisões; o desenvolvimento coletivo e participativo de diretrizes para uma oferta efetiva; e o financiamento de experiências que poderiam enfrentar aqueles problemas, além de iluminar os debates em andamento. Assim foi que, em 2007, o projeto praticamente repetiu o caminho trilhado em 2006. Nos meses de setembro e outubro, a Secad, o Depen e a UNESCO conduziram três seminários regionais: um no Nordeste, um no Norte/Centro-Oeste e um no Sul/Sudeste. O governo federal também assinou seis outros convênios com os Estados do Acre, Pará, Maranhão, Pernambuco, Espírito Santo e Mato Grosso do Sul, investindo 0,7 milhões de reais (cerca de 0.35 milhão de dólares) em projetos. E um II Seminário Nacional foi realizado, novamente em Brasília, em outubro de 200723. DE VOLTA À REALIDADE: O SONHO E SUA SITUAÇÃO PARADOXAL NO DIA SEGUINTE AO PROJETO EDUCANDO PARA A LIBERDADE Visando demonstrar como todas as experiências de elaboração de políticas públicas são repletas de paradoxos, Debora Stone (2002) começa o seu livro fazendo menção a uma série de casos famosos na história dos Estados Unidos. Depois de cada um deles, ela levanta questões que claramente não apresentam resposta definitiva. A mesma atitude pode ser adotada em relação ao Projeto Educando para a Liberdade. Seria ele um sonho ou um pesadelo? Assim como nos casos relatados por Stone, a resposta depende do ponto de vista de quem o analisa. Se o objetivo dos sonhadores era pura e simplesmente ampliar a oferta de educação nas prisões brasileiras, então o sonho tem sido relativamente doce. No âmbito federal, o Ministério da Educação e o Ministério da Justiça formalizaram um importante Protocolo de Intenções, em 27 de setembro de 2005. Na sequência, uma cláusula típica de ação afirmativa foi introduzida no Programa Brasil Alfabetizado, a qual atribuía remuneração especial para alfabetizadores trabalhando em prisões, além de expressar a necessidade de uma abordagem pedagógica distinta para a alfabetização de 23 Havia uma pequena diferença no escopo desse II Seminário Nacional, como explicarei adiante.

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pessoas presas24. Além disso, o Ministério da Educação tem estimulado que o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) seja aplicado em presídios do país. Prestando o exame e obtendo boas notas, pessoas presas que concluíram o Ensino Médio podem até mesmo ganhar acesso a uma Universidade por meio do Programa Universidade para Todos (ProUni). No ano de 2006, o Enem foi realizado em presídios de oito estados brasileiros, alcançando 141 unidades. E, acima de tudo, essa parceria entre os dois Ministérios estimulou a emergência de novas institucionalidades para a elaboração de políticas penitenciárias. Descendo ao nível dos estados, a experiência de política pública iniciada com o projeto tem alterado de modo considerável o padrão de investimentos públicos na educação em prisões. Tem havido mais investimentos, maior cobertura geográfica e melhores critérios de investimento. Antes do Projeto Educando para a Liberdade, o Depen financiava apenas um projeto com o objetivo de promover educação em prisões ao nível estadual. Esse projeto utilizava a metodologia das “Tele-Salas” e diversos problemas de implementação vinham sendo registrados, tais como elevados níveis de desistência, dificuldades para a formação de grupos de estudantes, frequentes demandas de manutenção de equipamentos etc. Depois da parceria com a Secad, 12 outros convênios foram assinados, todos eles visando à oferta de programas educacionais regularmente conduzidos pela rede pública estadual ou municipal25. Num nível mais simbólico, a educação em prisões tornou-se um ponto central na agenda da educação de jovens e adultos no Brasil. Em 2005, foi o tema de um painel no 7º Encontro Nacional de Educação de Jovens e Adultos (ENEJA). O mesmo ocorreu em 2006, num workshop realizado durante o Fórum Mundial da Educação em Nova Iguaçu, Rio de Janeiro. No mesmo ano, a revista da respeitada Rede de Apoio à Ação Alfabetizadora no Brasil (RAAAB) contemplou uma edição especial sobre esse tópico. 24 O Programa Brasil Alfabetizado foi lançado pelo governo federal em 2003 a fim de efetivar plenamente o direito à educação no País. Seu objetivo principal era garantir acesso à alfabetização (leitura, escrita, expressão oral e matemática) a jovens e adultos que não a tiveram, atuando por meio de parcerias com governos estaduais e municipais e, numa extensão menor, com ONGs, universidades públicas e o setor privado. Nessas parcerias, o governo federal financia o trabalho e a formação de alfabetizadores a um custo de U$S 100,00/mês. Em relação à remuneração especial que acabo de mencionar, tem-se que a Resolução FNDE n. 45/2007 dá a alfabetizadores que trabalham em prisões um total de U$S 15,00/mês a mais em relação aos alfabetizadores que trabalham em outros contextos. 25 Ver Depen (2004 e 2005) e Secad (2005 e 2006). Por todas essas realizações, o Tribunal de Contas da União considerou o projeto como uma das poucas boas práticas em política penitenciária no Brasil (Processo n.º 000.070/2006-4).

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Mas das primeiras reuniões dos sonhadores em 2005 até o II Seminário Nacional em 2007, parece que o objetivo tem sido maior que o simples alcançar de números. Eles querem promover mudanças estruturais na atual política penitenciária, para torná-la mais orientada à ideia de reintegração social. A educação nunca foi pensada de maneira isolada, mas como parte de uma estratégia mais ampla, a qual deveria facilitar o acesso de pessoas presas a oportunidades de trabalho, renda, esporte, cultura e de reconstrução de laços com a família e a comunidade. O sonho da educação nas prisões, portanto, é o sonho de uma nova política penitenciária para o país. Nesse caso, há um longo caminho a seguir ou, talvez, até mesmo um retrocesso. No âmbito federal, a agenda de reintegração social tem encolhido politicamente desde que o Depen foi engolfado pelas tarefas administrativas do sistema penitenciário federal. Com as duas primeiras prisões federais recentemente inauguradas em Catanduvas (Estado do Paraná) e Campo Grande (Estado do Mato Grosso do Sul), muito da energia política e administrativa do órgão tem sido destinada ao enfrentamento das demandas dessas unidades. Já que um sistema penitenciário federal poderia ajudar os estados a isolar pessoas presas que causam mais problemas às gestões locais, parece razoável que a sociedade brasileira nele deposite uma forte expectativa. Mas se colocar esse sistema penitenciário federal em funcionamento significa sacrificar qualquer outro objetivo de política pública, o resultado final é um quadro bastante perverso, no qual a maioria dos presídios funciona em condições absolutamente precárias, enquanto alguns poucos tentam administrar as consequências desse descaso. A falta de prioridade para a reintegração social está clara na nova estrutura do Depen. Como mencionei antes, quando o sonho teve início, em 2003-4, o Depen possuía duas unidades encarregadas de conceber e implementar políticas públicas com dimensões nacionais para a melhoria do sistema penitenciário – uma com foco no atendimento do pessoal penitenciário e outra com foco no atendimento da população prisional. Ao final de 2006, essas duas unidades foram fundidas. Isso poderia significar que o Departamento sabiamente decidiu enfrentar as duas questões em conjunto, mas no dia a dia da administração pública brasileira trata-se apenas de destinar menos recursos para o desempenho das mesmas tarefas. De fato, algumas oportunidades de política pública que emergiram em conexão com o projeto Educando para a Liberdad ou se perderam ou enfraqueceram no tempo. No campo das perdas, um exemplo notável envolve a economia solidária. Logo após o I Seminário Nacional, em 2006, teve início uma conversa entre 156

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o Depen e a Secretaria Nacional de Economia Solidária do Ministério do Trabalho e Emprego (SENAES-MTE). A proposta era integrar a oferta de educação nas prisões com a capacitação em economia solidária. O resultado desejado era que pessoas presas e familiares se habilitassem a desenvolver e gerenciar empreendimentos cooperativos, após a frequência a cursos especialmente elaborados. Até agora, porém, nenhuma iniciativa-piloto nessa forma promissora foi tentada. Quase o mesmo ocorreu com a questão do voto do preso. De acordo com a doutrina jurídica de maior consenso no Brasil, o direito do voto deve ser garantido a todos os presos provisórios, ou seja, aqueles que ainda não receberam a sentença final. Atualmente, isso se aplica a mais de 80 mil pessoas que, entretanto, têm sido privadas desse importante direito político. Nas eleições municipais de 2004, o Depen enviou uma nota aos estados solicitando que medidas fossem tomadas no sentido de realizar esse direito ou, se isso não fosse possível, que os presos provisórios fossem autorizados a justificar o não voto. Em 2005, o Depen foi convidado a participar do Seminário Internacional do Voto do Preso no 5º Fórum Social Mundial, e acabou por integrar-se a uma Campanha Nacional pelo Voto do Preso da qual já participavam várias organizações da sociedade civil. Como parte dessa campanha, o Depen recebeu a tarefa de promover uma pesquisa sobre a situação do voto nos estados. Com os dados da pesquisa, o Depen preparou um relatório que foi enviado ao CNPCP e vários outros órgãos. Entre os destinatários, estava o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), o qual determinou a formação de um grupo de trabalho para discutir o problema. Ao final, o TSE ordenou aos juízes eleitorais que instalassem urnas nos presídios “desde que isso fosse possível”. Mas ao longo de todo esse processo, o Depen sempre chamou a atenção para o componente pedagógico do voto do preso. Em vários documentos, o Departamento sustentou que o voto não significava apenas o depósito de um pedaço de papel numa urna ou o apertar de uma série de botões. Ao contrário, o voto requer a habilidade de compreender os problemas sociais e adotar um posicionamento em relação a eles. Um desdobramento intuitivo seria integrar as lutas “direito das pessoas presas ao voto” com o escopo mais amplo do Educando para a Liberdade, de modo que questões de cidadania pudessem ser trazidas ao centro dos programas educacionais a serem oferecidos nas prisões. Mais uma vez, nenhuma iniciativa neste sentido foi levada adiante.

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Todavia, há mais em jogo que apenas frustração. Algumas iniciativas recentes no âmbito federal estão claramente alinhadas ao sonho de uma nova política penitenciária. Como exemplo, vale mencionar dois casos que ocorreram em 2007. O primeiro foi um concurso literário para pessoas presas que a Secad e a UNESCO promoveram, em parceria com a ONG Alfabetização Solidária. Sob a sugestiva denominação de Escrevendo a Liberdade, o concurso teve quase 8.000 inscrições. A “Alfabetização Solidária” fez um trabalho inicial de triagem e submeteu os 30 melhores trabalhos a dois júris: um incluindo membros da Secad, do Depen e da Sociedade Civil; o outro, um júri popular na internet. O “júri popular” colocou as pessoas comuns em contato com a realidade prisional do modo como as pessoas presas participantes a retrataram. Uma possível publicação dos melhores trabalhos servirá como importante ferramenta pedagógica para atividades educacionais nos estados, tanto dentro quanto fora dos presídios. Os vencedores também encontraram no concurso uma fonte de renda e incentivo pessoal: cada um deles ganhou um prêmio em dinheiro de R$ 500,00 (US$ 250) e um certo número de livros. Com todas essas características, o concurso foi uma peça realmente distintiva no cenário da política penitenciária brasileira. O outro caso envolve a tentativa de mudança na legislação. De acordo com a atual versão da Lei de Execução Penal, é possível a remição da pena pelo trabalho à razão de três dias trabalhados por dia descontado da sentença. A extensão desse incentivo para o desconto de “dias-estudados” é controversa em tribunais estaduais: alguns juízes aceitam, enquanto outros não. A consequência já foi inteiramente demonstrada pelas mulheres privadas de liberdade que mencionei acima: há uma competição injusta entre o trabalho e a educação nas prisões do país, estando a última em grande desvantagem. Ao incluir o tópico nos seminários regionais e nacionais e ao convocar para o debate autoridades da justiça e a sociedade civil, o projeto Educando para a Liberdade ajudou a identificar a necessidade dessa mudança na legislação. Em 2007, a Casa Civil da Presidência da República submeteu ao Congresso Nacional um projeto de lei que visava introduzir explicitamente na lei a possibilidade de remição da pena pelo estudo. Escrito sob a influência dos debates do projeto, o texto traz o mecanismo inovador da Premiação pela Certificação. De acordo com esse mecanismo, se uma pessoa presa conclui a educação básica, o ensino médio ou superior durante o cumprimento da pena, ele (a) receberá um bônus de 1/3 das horas-estudo já acumuladas quando do cálculo final da pena a ser descontada. Com isso, o projeto de 158

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lei advoga em favor de um sistema que estimule os avanços e progressões de pessoas presas – o que, segundo se espera, tende a contribuir para a restauração de sua autoestima e, consequentemente, para a sua reintegração harmônica na sociedade. Naturalmente, os debates sobre essa proposição não serão fáceis. Por enquanto, o Deputado Mauro Benevides, encarregado de relatar o projeto na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados, emitiu um parecer parcialmente negativo, rejeitando a ideia da “Premiação pela Certificação”26. Nessas idas e vindas, o sonho de uma nova política penitenciária no Brasil após o projeto Educando para a Liberdade enfrenta uma situação paradoxal, como Debora Stone gostaria de dizer. Ao mesmo tempo em que trouxeram um novo “ponto de vista” para a elaboração de políticas penitenciárias, os sonhadores têm assistido a vários retrocessos. Mas esses retrocessos servem exatamente para demonstrar que é possível elaborar políticas penitenciárias a partir de um novo “ponto de vista”. É nesse sentido que, como mencionei no início deste artigo, o projeto ajudou a estabelecer uma agenda de transformação para as políticas penitenciárias. Se é possível manter a agenda viva ou não, isso é o que examino na próxima (e última) seção. E AGORA? Em 2007, houve uma mudança no comando do Ministério da Justiça e o novo Ministro, Tarso Genro, lançou o Pronasci. Em sua elegante formulação, o programa visa “articular políticas de segurança com ações sociais, enfatizando a prevenção aos crimes e focando nas causas da violência” 27. Para alcançar os objetivos, o programa focaliza os indivíduos entre 15-29 anos que estão em contato intenso com a violência ou já foram presos pelo cometimento de crimes. No âmbito da política penitenciária, o Pronasci promete financiar 41 mil novas vagas em presídios masculinos, com uma série de unidades construídas especialmente para jovens de 18-24 anos. O Ministério considera que “com essas unidades, será possível separar pessoas presas por idade e histórico criminal. Isso evitará o contato de jovens que cometeram pequenos crimes com criminosos de alta periculosidade ou líderes de facções criminosas. Todos os presídios serão equipados com unidades de saúde e educação (salas de aula, laboratórios de informática e 26 Ver informações disponíveis em: . 27 Ver informações disponíveis em: .

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biblioteca)” 28. O programa também inclui 5,4 mil novas vagas em presídios femininos a serem construídas até 2011. Esses presídios terão espaços especialmente reservados para mulheres grávidas, visitas íntimas, brinquedotecas e salas de aula. Não pode haver dúvida quanto à convergência entre esses princípios e programas do Pronasci e o sonho de uma nova política penitenciária no Brasil. Mas como argumenta um influente antropólogo que tem estudado em profundidade o tema da segurança pública no país, o Pronasci traz “motivos para otimismo e cautela” (SOARES, 2007). De fato, desde que o programa foi lançado, nenhuma iniciativa similar ao projeto Educando para a Liberdade tem ocorrido, e nem mesmo o projeto tem sido fortalecido. O resultado curioso é que, em nome de mudanças radicais, o Pronasci pode resultar numa notável continuidade na história da política penitenciária brasileira, focando na construção de presídios sem colocar em marcha nenhum outro investimento técnico, político ou financeiro para fazer com que os presídios operem sobre bases mais humanas. O desafio do Pronasci, portanto, é o desafio de ir além de mudanças cosméticas e do que Soares chama de “às vezes pura e evasiva retórica”29. Tudo isso me leva ao último ponto deste artigo. O que talvez tenha sido o aspecto mais importante na história do Educando para a Liberdade é a sua capacidade de mobilização, tanto em nível doméstico quanto em nível internacional. Em nível doméstico, os seminários criaram fabulosas redes de gestores públicos e ativistas da sociedade civil, os quais têm sustentado o sonho como tal. O II Seminário dá um belo exemplo disso. Enquanto a agenda da reintegração social estava encolhendo no Depen, os participantes tinham clareza de que “a efetividade das ações educativas em contexto prisional depende diretamente da reformulação da execução penal a partir de uma perspectiva de afirmação de direitos e de redução das vulnerabilidades das pessoas presas, conduzindo, quase que automaticamente, a uma ressignificação da gestão penitenciária” 30. Um dos caminhos possíveis para esse fim, dizia o documento final daquele evento, é a conexão entre a educação e o trabalho – o que não significa outra coisa que não a chamada de novos sonhadores para um antigo sonho31. 28 Ver informações disponíveis em: . 29 Também fiz uma advertência semelhante a esta, logo após o lançamento do Pronasci (SÁ E SILVA, 2007). 30 Ver o texto de referência II Seminário de Articulação Nacional e Consolidação de Diretrizes para a Educação no Sistema Penitenciário (2008). 31 De fato, o relatório final do seminário reivindicava a “articulação nacional” entre Ministérios [da Justiça, da Educação e do Trabalho e Emprego] e a “definição de competências [por meio de] portaria interministerial”.

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No âmbito internacional, o projeto estabeleceu duas grandes conexões. Uma delas é com a UNESCO, a qual está atualmente organizando a 1ª Conferência Internacional de Educação em Prisões (CIEP I), a ser realizada em Bruxelas no ano de 2009. Em março de 2008, o Brasil sediou um Encontro Regional em preparação para a Conferência e a experiência do projeto Educando para a Liberdade esteve novamente em evidência. A outra conexão é com Red Latinoamericana de Educación en Contextos de Encierro (RedLECE), financiada pela União Europeia e lançada por ocasião do 3º. Fórum Educacional do Mercosul em Belo Horizonte, em 200632. A RedLECE foi originalmente proposta pela Secad como um espaço para que os países da América Latina e da Europa intercambiassem experiências e pensamentos sobre educação em prisões. Acima de tudo, essa iniciativa também mantém o tópico sobre a mesa, demandando considerável atenção do governo federal. Se a atenção disponível será suficiente para movê-lo para o centro da agenda das políticas penitenciárias, essa é, por ora, uma questão em aberto. Mais uma vez, alguém pode perguntar: a construção dessas redes representa uma vitória ou uma derrota? Eu defenderia que representa uma vitória pelo que o processo nos ensina a respeito da elaboração de políticas públicas no Brasil. Ele nos ensina que, embora a realização de “direitos” dependa em grande medida do compromisso dos gestores públicos, os grupos e as organizações que buscam consolidar agendas de políticas públicas baseadas em “direitos” não precisam esperar até a posse da pessoa certa. Em vez disso, eles podem impor constrangimentos políticos, sociais e institucionais a quem quer que tenha sido empossado. É bem verdade que isso corresponde a uma tarefa complicada, a qual requer a habilidade de navegar entre diferentes espaços e utilizar diferentes estratégias. Mas no terreno movediço da política penitenciária, essa pode ser a única alternativa que nos resta.

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11. DESAFIOS E PERSPECTIVAS DA EDUCAÇÃO EM PRISÕES NA AMÉRICA LATINA1 Hugo Rangel

“Todos aprendemos de todos”. Alfonso Reyes CONTEXTO SOCIOPOLÍTICO É preciso destacar que o estudo da educação nas prisões, mais do que outra área educativa, deve considerar o contexto social e político no qual estão imersos os centros penitenciários. O contexto geral da globalização e o contexto regional oferecem elementos de análise para compreender a educação nos centros penitenciários. É indispensável observar não somente os aspectos econômicos mas, também, o complexo contexto político e social que se vive na América Latina, o qual incide tanto nas políticas e nas instituições educativas como nos sistemas penitenciários. A construção da democracia é sem dúvida fundamental em um continente com um passado autoritário relativamente recente onde inclusive férreas ditaduras se impuseram. Apesar destas terem desaparecido, dando lugar a processos eleitorais, as profundas desigualdades sociais prevalecem. Os problemas de desigualdade econômica e exclusão social acentuam a violência e prejudicam a coesão social dos países latino-americanos. As altas taxas de criminalidade registradas na maioria dos países da América Latina são uma expressão da violência que se vive na vida cotidiana. Desta maneira, o tecido social em diferentes capas sociais se fraturou, afetando particularmente às populações marginalizadas e vulneráveis. Por outro lado, os sistemas judiciários não respondem com eficiência à criminalidade imperante. Com efeito, a impunidade se torna então um 1 Texto baseado na pesquisa sobre a situação da educação nas prisões na América Latina: Mapa Regional sobre a educação em prisões, trabalho desenvolvido para a EUROsociAL-Educação, 2008.

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fenômeno central que reforça a espiral da violência. A administração da justiça na América Latina apresenta defeitos graves. Reformá-la e torná-la eficaz constitui um dos aspectos centrais do processo de democratização da região (PNUD, 2004). As lacunas e as falhas das administrações judiciárias e dos procedimentos penais têm como resultado, por um lado, a desconfiança da população com relação às instituições públicas e, em geral, mais grave ainda, ao conjunto da democracia.2 Um resultado direto desta falha é a existência, na maioria dos países da América Latina, de um número demasiadamente alto de presos à espera de julgamento e de uma condenação que sancione o delito cometido. Em muitos países, este tipo de detentos representa mais da metade da população penitenciária3. O abuso da prisão preventiva por parte das autoridades competentes é uma das principais causas do aumento da população penitenciária. Este fenômeno acontece na maioria dos países da região que contam com um grande número de detidos preventivamente. Neste sentido, é evidente que não somente trata-se da lentidão dos procedimentos administrativos mas, também, de falhas estruturais ou do sistema das instituições de justiça. Com efeito, podemos observar uma tendência progressiva no crescente encarceramento nos países latino-americanos, onde os privados de liberdade aumentaram de maneira significativa dos anos 1990 até hoje. A maioria dos países duplicou sua população penitenciária desde então. A continuar esta tendência, é evidente que em pouco mais de uma década a população penitenciária duplicaria nestes países. Isto teria consequências fortemente negativas, para não dizer devastadoras, nos países que já padecem de superlotação e amontoamento. Esta situação dificultaria em grande medida a atenção aos detentos, em particular seria complicado oferecer-lhes a educação adequada à que têm direito. É obvio, além disso, que representaria duplicar uma distribuição de recursos tanto monetários como humanos. Levando em consideração o mencionado é de grande importância atacar este problema e reverter esta tendência. Já que, apesar de existirem programas para atenuar esse crescimento, as tendências estruturais prosseguem sua marcha crescente. Este crescimento incontrolável e desproporcional da população penitenciária agrava o amontoamento e a crise dos centros penitenciários. Pode-se 2 Ver, por exemplo, as pesquisas de Latinobarómetro sobre a democracia, PNUD, 2004. 3 Por exemplo, as porcentagens de população avaliada (que não recebeu julgamento): Uruguai 63%, Equador 56%, República Dominicana 51,5%, Argentina 57%, Peru 68,4% e Bolívia 75%.

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mencionar por exemplo os numerosos assassinatos de detentos em Honduras4 e na Venezuela5, entre outros países. Este clima de violência que registra frequentes motins, questiona as instituições e limita as ações de reabilitação e as educativas em particular. NECESSIDADE DE UMA PERSPECTIVA TEÓRICA Diante desta problemática de violência social e crise dos centros penitenciários, é preciso adotar uma perspectiva teórica coerente. Necessita-se de um direito criminal de acordo com a realidade convulsionada da região. Precisa-se de uma reflexão teórica e bases filosóficas firmes que aguentem a dinâmica dos centros penitenciários e dos sistemas de justiça. Precisa-se da análise do marco global da evolução democrática no continente. Como ponto de partida, é oportuno comentar que esta linha de pesquisa evidencia uma posição política. É preciso desenvolver uma ciência comprometida e independente6. Neste sentido, Freire dizia que o ato educativo envolve uma responsabilidade social e política do homem7. É necessário construir uma dimensão ética que dê apoio à luta pela dignidade e pelos direitos humanos nas prisões. Na América Latina é fundamental esta dimensão ética diante do fenômeno da exclusão, segundo expressaram importantes filósofos latino-americanos como Miranda e Dussel 8. Além de um compromisso institucional ou acadêmico, é necessário um compromisso moral com os seres humanos que estão nas prisões. Nelson Mandela fazia referência a esta ética da dignidade como essência humana ao falar de sua vida na prisão.9 Esta base ética e a responsabilidade social e política do ato educativo está viva na América Latina e sua pertinência é evidente nas prisões. Esta posição teórica crítica deve questionar as interpretações simplistas de Foucault que concebe a educação no âmbito penitenciário como uma 4 Em Honduras, entre 2000 e 2006, 438 homicídios foram cometidos nos estabelecimentos penais. Direção Geral de Investigação Criminal (DGIC), Honduras, 2007. 5 378 pessoas presas foram assassinadas em 2006, segundo o Observatório Nacional de Prisões, Venezuela, 2007. 6 WALSH, M. P. Apelo a la razón: teoría de la ciencia y critica del positivismo. [S.l.]: Premia Editora, 1983. 7 FREIRE, P. A Educação como prática da liberdade. 42.ed.México: Siglo XXI, 1994. 8 DUSSEL, E. Ética de la liberación en la edad de la globalización y de la exclusión. México: Editorial TrottaUAM.I-UNAM, 1998. 9 Por exemplo, afirmo: “Any man that tries to rob me of my dignity will lose”. MANDELA, N. Long Walk To Freedom. London: Little Brown & Co.,1995.

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“pedagogização” e “dispositivo de normalização”, isto é, como uma mera variação de dominação10. É mais conveniente perguntar-se sobre a missão de uma política de educação de adultos. Esta política responde ao interesse de dinamizar a cultura dos setores populares para consolidar a coesão social.11 Em uma América Latina assombrada pela criminalidade e a insegurança, a coesão social é mais importante do que nunca. Sob esta ótica, identificaram-se alguns elementos e se fizeram algumas constatações sobre a educação nas prisões na América Latina: Legislação A maioria dos países latino-americanos adotaram legislações que garantem o direito à educação. Contudo, na América Latina esta é mais “programática” do que normativa, a problemática aguda descrita demanda (em certos casos urgentemente) concretizar as disposições da lei. Os avanços legislativos foram criticados como “antítese total da praxis carcerária”12e deste modo pode-se reforçar a desconfiança dos cidadãos com relação às leis e instituições. Contudo, é necessário valorizar a legislação como um instrumento social indispensável para lutar e alcançar o direito à educação dos presos. Pretender que haja uma correspondência perfeita entre a lei e a realidade é certamente irrealista. Contudo é factível e desejável contribuir com o objetivo de reunir as condições para que as disposições legislativas sustentem um caráter normativo. Alguns docentes e profissionais expressaram a existência de um distanciamento entre o jurídico e os procedimentos e que os docentes requerem maior informação dos aspectos jurídicos13. A remição da pena avança em vários países Um aspecto positivo das legislações latino-americanas reside no fato que vários países adotaram leis que estipulam a remição da pena para detentos que estudam e/ou trabalham. Por exemplo México, Uruguai, Venezuela, Peru, Guatemala, Colômbia, Panamá e Bolívia contam com leis que garantem a 10 FOUCAULT, M. Surveiller et punir. Paris: Gallimard, 1975. p. 354- 358. 11 LATAPI, P. Una aproximación teórica para el análisis de las políticas de educación de adultos. México: CREFAL, 1987. p. 40. 12 RODRÍGUEZ MORALES, A. J. Los mitos en la Ley de Régimen Penitenciario venezolana. Caracas: Universidad Monteávila, 2003. 13 SEMINÁRIO NACIONAL SOBRE EDUCAÇÃO EM CONTEXTO DE PRIVAÇÃO DE LIBERDADE, San Salvador, El Salvador, 16 nov. 2007. Notas del relatório. San Salvador: Oficina Legislação e Educação, 2007.

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remição da pena para aqueles detentos que participam nas atividades educativas. Nestes países se executa uma remição direta. Em outros como Costa Rica, os critérios para outorgá-la se baseiam no trabalho penitenciário. Ainda que a lei conceba claramente a educação sob a rubrica do trabalho.14 Outros países da região priorizam o critério da conduta, como Equador, República Dominicana e Chile15. Em alguns países, apesar de não contarem com este instrumento legal, os juízes levam em conta muitas vezes a participação dos presos nas atividades educativas como critério para diminuir uma pena. Isto é, nestes países se pratica uma remição indireta da pena, por exemplo Brasil, Argentina e El Salvador, ainda que exista no Brasil uma demanda social e de profissionais do meio para que se consiga uma legislação que garanta a remição. As instituições começam a coordenar-se A comunicação entre ministérios e autoridades da área é em geral inadequada ou insuficiente. Em alguns países os ministérios responsáveis pela administração das prisões têm comunicação insuficiente ou deficiente com os ministérios da educação, o que as vezes afeta o desenvolvimento de programas educativos. Contudo, paulatinamente desenvolvem-se importantes avanços em matéria de concertação interministerial. É evidente, como se observou na região, que esta comunicação é essencial para um desenvolvimento ótimo das atividades educativas e para que estas tenham um impacto palpável nos procedimentos administrativos, no tratamento dos detentos e nos programas educativos oferecidos. Contudo, vale mencionar que a coordenação não se reduz ao âmbito institucional, ela é indispensável para desenvolver uma cooperação entre profissionais que trabalham nos centros penitenciários. Devido à complexidade deste contexto carcerário, o tratamento dos detentos requer uma atenção próxima e especializada que precisa de um trabalho multidisciplinar no qual os docentes estão comprometidos e são atores centrais.

14 O Art. 39 do Regulamento Técnico do Sistema Penitenciário inclui o estudo: “Modalidades. Se entenderá por trabalho, o que realizem os privados e as privadas de liberdade, dentro ou fora do Centro, nas seguintes modalidades: a.Formação profissional ou técnica. b. Estudo e formação acadêmica”. 15 A Lei nº 19.856 de “diminuição de pena” (Ministério da Justiça de Chile, 2003) se baseia, principalmente, na conduta da pessoa presa.

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Os atores Como consequência do contexto social descrito, existe cada vez um número maior de presos cuja condenação ou o motivo de sua prisão está relacionado com a venda ou o tráfico de drogas. Por outro lado existe um número importante de presos por delitos cometidos com violência. Este perfil de violência deve ser levado em conta para planejar e desenvolver as atividades educativas e abordar a mencionada conduta violenta. A participação dos privados de liberdade nas ações educativas é fundamental. Seu papel não pode evidentemente reduzir-se a meros receptores passivos de informação. É importante neste sentido a promoção, formação e reconhecimento de detentos como monitores ou docentes. No Brasil e na Argentina, assim como a maioria dos países da região, os detentos participam como monitores de alfabetização. Com relação à prática docente, existem em geral, poucos incentivos para trabalhar em prisões apesar do caráter de periculosidade e das dificuldades do ambiente carcerário. As reclamações dos docentes sobre a falta de apoio institucional e a precariedade das condições de trabalho são contínuas16. Desta forma percebe-se que é necessária uma formação especial para desenvolver um trabalho em um âmbito penitenciário. Com relação aos carcereiros, é sabido que a capacitação dos agentes penitenciários é, neste sentido, de grande importância. Não somente para a segurança mas, também, para prevenir e evitar os abusos e violações dos direitos humanos que foram denunciados frequentemente pelas agências internacionais e algumas ONGs da região. Felizmente existem cada vez mais escolas penitenciárias em vários países como Brasil, Costa Rica, Peru e Colômbia. Por outro lado, com respeito às associações civis, identificamos que algumas vezes existe desconfiança ou desinteresse das instituições oficiais e da sociedade em geral com relação aos organismos independentes17. Mesmo que alguns países da região contem com leis que destacam e fomentam a participação destes organismos nas prisões, como é o caso da Nicarágua e da Bolívia. Contudo, em geral seu trabalho não está integrado aos programas em curso. Por isto é necessário coordenar e aproveitar as diferentes iniciativas de grupos independentes. As associações civis podem colaborar, 16 Por exemplo, essas demandas foram apresentadas em San Salvador, no SEMINÁRIO NACIONAL SOBRE EDUCAÇÃO EM CONTEXTO DE PRIVAÇÃO DE LIBERDADE, San Salvador, El Salvador, 16 nov. 2007. Notas del relatório. San Salvador: Oficina Legislação e Educação, 2007. 17 Opiniões expressadas nos grupos de trabalho do Encontro Regional Latino-americano sobre a educação em prisões confirmam essa percepção. Brasilia, 27-28 de março 2008.

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sob o marco legal vigente e a supervisão institucional, com a finalidade de oferecer uma atenção adequada aos detidos e participar nas atividades educativas necessárias. Quanto às associações religiosas, nos últimos anos algumas denominações religiosas tiveram um crescimento importante na América Latina e a sua presença nas prisões cresceu igualmente. Sua presença é de grande importância em vários países. Venezuela18 Guatemala19, Nicarágua 20, Panamá 21 e El Salvador concedem o direito aos detentos para exercer seu culto religioso. É conveniente preservar esta liberdade e ao mesmo tempo oferecer uma educação laica que enfatize a tolerância religiosa. Isto corresponde a uma concepção de educação para a cidadania em seu sentido amplo. Contudo é necessário estabelecer normas para a intervenção de tais grupos religiosos e evitar que alguns sejam favorecidos pelas autoridades das prisões. Os destinatários Uma parte importante dos detentos no continente são jovens e a maioria deles tem baixa escolaridade. Além disso é crescente o consumo de drogas entre eles. Por isso os programas contra a dependência são de uma importância crescente já que observou-se que a simples permanência na prisão aumenta as possibilidades de consumo de drogas. Quanto às mulheres, elas são marginalizadas nos centros penitenciários por diversas razões, sobretudo nas prisões mistas, pouco adaptadas para as suas condições. Os programas educativos são limitados e muitas vezes reduzidos a cursos tradicionais. Um aspecto importante é a presença de crianças que vivem no interior das prisões. Além das condições difíceis, a sua permanência não é regulamentada em vários países. Muitas vezes as prisões não estão adaptadas para atender crianças, assim muitas vezes elas não recebem os programas educativos ou a atenção que requerem. Contudo, vários programas foram desenvolvidos recentemente para tratar este problema e promover a permanência de laços familiares. As minorias étnicas, como populações marginalizadas estão com frequência sobrerepresentados nos centros penitenciários, particularmente os 18 Art. 54 da lei de Régime penitenciário, Caracas, 2000. 19 Art. 24 da lei do Sistema Penitenciário, Guatemala, 5 de outubro de 2006. 20 Art. 73 da DO RÉGIME PENITENCIÁRIO E EXECUÇÃO DA PENA da Nicarágua estabelece o direito à assistência espiritual. 21 Art. 61 da Lei nº 55 que Organiza o Sistema Penitenciário, Panamá, 2003.

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afrodescendentes22 e as mulheres indígenas23. Apesar de existirem algumas iniciativas institucionais, os programas dedicados aos povos indígenas e às comunidades afrodescendentes são insuficientes nos centros penitenciários da América Latina. Neste sentido são necessários programas educativos que atendam suas necessidades e estratégias globais para tratar a diversidade. A oferta educativa Devido ao fato de que em geral os detentos têm um baixo nível de escolaridade, sua necessidade de ter acesso à uma educação formal básica é evidente. Alguns países como Honduras concentram a maioria de seus programas na alfabetização por ser esta uma necessidade prioritária 24. Na maioria dos países da região, a maior parte de sua oferta educativa é concentrada em programas de primário e secundário. Assim é de grande importância oferecer uma atenção especial a estes programas, do ponto de vista metodológico, curricular e operacional. Contudo os exames padronizados, comuns em vários sistemas de educação de adultos da América Latina, dificultam a avaliação congruente com o meio penitenciário e o desempenho do participante. Além disso, como foi assinalado, com frequência durante a pesquisa, os conteúdos dos cursos não são adequados para o contexto das prisões. Assinala-se ainda que a padronização dos conteúdos representa uma limitante para o desenvolvimento das atividades educativas. A legislação de alguns países determina que os detentos deve receber uma educação com os mesmos conteúdos que os adultos que estudam no exterior. Isto foi interpretado, às vezes, de forma literal. Identificaram-se contudo algumas experiências nas quais se desenvolviam materiais e conteúdos “ex professo” para os detentos. O que envolve uma reflexão sobre a criação do currículo no sentido proposto por Freire, isto é, uma reflexão teórica e, ao mesmo tempo, partindo das condições concretas do adulto25. Com respeito à educação média e superior, devido ao baixo nível de escolaridade dos detentos, a porcentagem destes que cursa a universidade é reduzido. Muitos centros penitenciários oferecem principalmente a formação básica, o 22 No Brasil e na Colômbia existem populações reclusas significativas afrodescendentes. 23 Por exemplo, as mulheres indígenas no México que são presas por acusação de tráfico de drogas. 24 Em Honduras, 46% da população são analfabetos absolutos e 65%, analfabetos, Questionário de estudo internacional sobre a educação em prisões. Honduras. 2007. 25 PAULO, F. A educação como prática da liberdade. 42. ed. México: Siglo XXI, 1994.

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acesso à educação média e superior é restrito ou mais difícil. Vários países introduziram programas de educação à distância mas existe um debate sobre a eficácia desta estratégia. Por outro lado, cabe mencionar que a contribuição das universidades nas atividades educativas na prisão tem grande potencial, não somente para oferecer cursos mas, também, para o desenvolvimento de projetos nos centros penitenciários. Felizmente foram identificadas numerosas participações das universidades nos programas de educação nas prisões. A educação não formal Os problemas agudos de saúde correspondem na maioria das vezes às situações precárias que vivem os centros penitenciários como parte da crise que enfrentam. Existem programas de saúde na maioria dos países, contudo são insuficientes diante da superlotação e das pobres condições de higiene que afetam o estado de saúde dos detentos. Neste sentido é essencial adotar programas preventivos de saúde nos quais a educação para a saúde é um instrumento indispensável. A participação dos detentos é certamente de grande importância para a formação de monitores e promotores de saúde para consolidar uma medicina preventiva de caráter comunitário. Quanto à educação artística, os países da região reportam algumas atividades artísticas e cursos que mostram grande vitalidade. Os concursos literários e os oficinas artísticas têm grande visibilidade. Contudo alguns países informam sobre oficinas artísticas escassas e atividades culturais que se limitam a celebrações e festivais tradicionais. Não se percebe nesses países uma política definida da parte das autoridades para promover este tipo de atividades. Sem idealizá-la, a educação não formal abre brechas e caminhos para os presos que simplesmente não encontraram outros. Neste sentido é fundamental construir uma política educativa com o objetivo de liberar a criatividade encontrada, em diferentes níveis, em todo ser humano26.Através de um processo artístico os detentos refletem sobre sua condição. Isto mostra claramente o potencial da educação não formal que se desenvolve no continente. Porque ela responde às expectativas dos detentos. Ela dá um espaço para a subjetividade e desenvolvimento da individualidade. Este aspecto é essencial para a vida dos presos, como assinalou Mandela 27. 26 BÉLANGER, P. ; FEDERIGHI, P. Analyse transnationale des politiques d’éducation et de formation des adultes. Paris: Hartman,UNESCO, 2001. 27 MANDELA, N. Long Walk To Freedom. London: Little Brown & Co.,1995.

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O mesmo acontece com a educação física e desportiva. Vários países informam que seus detentos praticam regularmente atividades desportivas. Informam que organizam com êxito torneios intramuros e entre os centros penitenciários. Contudo não existe com frequência uma educação física sistemática e contínua, que é justamente o que é necessário para manter uma ótima saúde. A educação laboral Na América Latina acontece um fenômeno de grande importância que em grande medida determina as iniciativas de educação laboral. Uma das atividades mais desenvolvidas pelos centros penitenciários nos últimos anos são os trabalhos e contratos com empresas privadas. Com frequência, as oficinas adotam este esquema de trabalho. No lugar de educação, o que se observa é um trabalho com mão de obra barata. A dimensão educativa fica esquecida. Além do benefício pessoal que o trabalho possa gerar, o detento deve aprender para preparar sua libertação. Inclusive algumas legislações de países latinoamericanos assinalam este aspecto. Contudo, a lógica do trabalho destinado às empresas persiste. Cabe mencionar que, o trabalho obrigatório infringe o Convênio C29 da OIT, que obriga a suprimir o trabalho obrigatório e tratando-se do trabalho nas prisões, determina que os detentos não sejam colocados à disposição de companhias privadas28. Isto é, a prática mencionada pode violar este convênio além de deixar de lado a missão educativa. Infraestrutura e recursos Com relação à infraestrutura e os recursos, é previsível que profissionais, associações e inclusive autoridades de centros penitenciários denunciem a carência e a insuficiência de recursos materiais e humanos para executar as atividades educativas. É denominador comum nos países da região avisos sobre a falta de infraestrutura e espaços adequados. As carências não são somente físicas, os materiais didáticos também faltam. Poucos países geraram materiais didáticos desenhados para detentos, sua problemática e condições particulares. Com relação às bibliotecas, apesar de que muitos países contam com uma legislação que obriga os governos a oferecer estes espaços, muitas vezes elas não existem ou as existentes têm material escasso e pouco apropriado. Além disso, apesar da existência oficial de minibibliotecas, em geral não se organizou um lugar comunitário, um autêntico espaço educativo para os detentos. 28 Art. 1 do Convênio C29 Organização Internacional do Trabalho, Convênio relativo ao trabalho forçado ou obrigatório, que entrou em vigor em Genebra em 01-05-1932.

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NOTAS FINAIS Como conclusão, mencionamos algumas notas com o objetivo de comentar a problemática que foi exposta sumariamente. Mais que enumerar os obstáculos e recomendações seria mais pertinente neste espaço sublinhar considerações gerais sobre o trabalho da educação nas prisões. Deve-se reconhecer que existem numerosos programas e iniciativas governamentais na matéria, contudo deve ser mencionado que foi constatado em vários países uma irregularidade ou disparidade de serviços e programas. Entre uma província, ou região, e outra a oferta educativa ou os recursos são dispares. Esta situação lembra a necessidade de estabelecer políticas nacionais. Apesar de não ser possível advogar por uma homogeneidade em regiões com características diferentes, é importante generalizar a oferta à acessibilidade sobretudo em regiões de maior marginalização social e econômica. Uma forma concreta de capitalizar a vontade política que vários governos da região mostraram consiste em designar maiores recursos e maior financiamento aos programas educativos. Vale mencionar que, ainda que em alguns países tenha havido um aumento no orçamento para os centros penitenciários contudo em geral não foram designados recursos suficientes executar os programas educativos. Com efeito, os profissionais mencionam, muitas vezes, carências diversas. Além disso vale mencionar que a tarefa dos profissionais é duplamente complexa, por um lado trabalha para superar a escassez de recursos e o trabalho difícil em centros superpovoados. Além disso, deve-se lutar para dar legitimidade à prisão como instituição de justiça. Vale lembrar que as prisões são instituições inseridas nos sistemas de justiça em construção. As condições particulares do trabalho em prisões é multidisciplinar e a natureza da educação tornam necessária uma reflexão sobre a tarefa educativa nas prisões29. Esta reflexão deve ser feita em vários níveis: avaliação, continuidade e sobretudo o questionamento de cada uma das áreas, tarefas e atores do processo educativo. Desta forma é pertinente refletir sobre a coordenação das instituições e os profissionais envolvidos. Esta reflexão critica, nos dizia Freire, é indispensável para um processo de transformação de uma realidade específica. Sabemos que a realidade dos centros penais é difícil e as vezes pouco aberta à mudanças mas não se pode 29 SEMINÁRIO NACIONAL SOBRE EDUCAÇÃO EM CONTEXTO DE PRIVAÇÃO DE LIBERDADE, San Salvador, El Salvador, 16 nov. 2007. Notas del relatório. San Salvador: Oficina Legislação e Educação, 2007. Evento que constituiu uma prova indiscutível de tal reflexão.

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esquivar uma reflexão crítica e precisamente transcender de algum modo tal realidade. Como ultrapassar burocracias, inércias e resistências à mudança? Identificamos uma vontade política geral para melhorar as prisões. Esta vontade não é suficiente mas é necessária para empreender a mudança. Por isto é necessário assumir, explorar a capacidade transformadora da educação. A burocracia é um intermediário inevitável para a elaboração de uma política de educação de adultos. Existem tensões evidentes entre os agentes de decisão e seus órgãos de apoio 30. Tem que ser superadas. Este é um aspecto básico já que se os objetivos do Estado não se sentem apoiados pela burocracia, estes podem fracassar. Transetorialidade: no âmbito das prisões convergem os aspectos da democratização em curso da América Latina. As iniciativas podem ajudar a combater a discriminação cultural, a exclusão social e prevenir a violência e a corrupção; pode contribuir para uma maior coesão social e para o fortalecimento dos valores democráticos, ampliando as opções das pessoas para viver com dignidade, valorizar a diversidade e respeitar os direitos humanos.31 Em suma, precisa-se de uma educação para a cidadania, que não seja alheia à educação que se construa nas escolas públicas do continente. Todavia, esta educação é de maior pertinência nas prisões pelas condições e o contexto expostos. É por esta razão que as atividades educativas devem formar parte de estratégias integrais que ataquem os diferentes tipos de violência nos centros penitenciários. Já que em geral não existem estratégias para atacar a violência nas prisões da região apesar de sua situação critica. Por exemplo, é importante canalizar as reclamações dos detentos; já a formulação de uma resposta rápida é de grande relevância para a preservação da paz dos centros penitenciários. Desta forma, necessita-se de programas que trabalhem com a comunidade e com as prisões. A importância dos programas para os libertados reside precisamente em estabelecer pontes para vincular os detentos com suas comunidades. Contudo outra grande lacuna que foi identificada foi a escassez ou ausência de iniciativas que deem seguimento aos libertados. Desta maneira as ações de educação em prisões são indissociáveis das estratégias nacionais de desenvolvimento e de redução da pobreza, de forma 30 LATAPI, P. Una aproximación teórica para el análisis de las políticas de educación de adultos, México: CREFAL, 1987. 31 UNESCO. Educação de qualidade para todos: um assunto de direitos humanos. Brasília: UNESCO-OREALC, 2007. Disponível em: . Documento de Discussão sobre políticas educativas no marco da II Reunião Intergovernamental do Projeto Regional de Educação para América Latina e o Caribe (EPT/PRELAC). Março, 2007.

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que a superação do analfabetismo não fique separada do conjunto de políticas públicas32. Isto é, deve haver uma coerência e uma comunicação entre os programas dirigidos às comunidades marginalizadas, os programas de educação de adultos e aqueles desenvolvidos nas prisões. Infelizmente, muitas vezes, as políticas de educação de adultos não contam com o apoio financeiro que necessitam já que é um setor educativo com pouco apoio político33. Ainda que alguns países tenham promovido os programas de educação de adultos para diferentes populações marginalizadas, como as populações penitenciárias34. Cooperação: neste contexto, as perspectivas de cooperação de educação entre os países do continente são enormes e necessárias. Os projetos de êxito e as problemáticas da educação em prisões experimentados por alguns países podem enriquecer as práticas de outros. A coesão social envolve de certo modo a coesão continental. A cooperação regional é relativamente recente se se considera que os regimes autoritários da região foram isolacionistas. As ditaduras careciam de uma visão internacional. Contudo podemos encontrar antecedentes de cooperação no trabalho de certos intelectuais da região. Entre os intelectuais que a desenvolveram se pode mencionar Alfonso Reyes35. Eles teceram laços de amizade, cooperação e reflexão do que somos como latino-americanos. Este espírito de cooperação na América Latina deve preservar-se vivo.

32 Ibero-América: território livre de analfabetismo. Plano Ibero-americano de Alfabetização e Educação Básica de Jovens e Adultos 2007-2015. Montevideu, 2006. 33 Essa reclamação foi apresentada reiteradamente na reunião intermediária da Conferência Internacional de Educação de Adultos, em Bangkok, 2003. 34 Por exemplo, Honduras aplica o Programa Educatodos com uma metodologia interativa. 35 Alfonso Reyes, escritor mexicano e embaixador do México na Argentina e Brasil nos anos 1920 e 1930. Poderia-se dizer que esse espírito remonta a Rubén Dario e continua até Octavio Paz, entre outros muitos escritores latino-americanos.

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12. SÍNTESE DO I ENCONTRO REGIONAL DA AMÉRICA LATINA DE EDUCAÇÃO EM PRISÕES 27 E 28 DE MARÇO DE 2008, BRASÍLIA, BRASIL

ANTECEDENTES Ao longo dos últimos anos, a comunidade latino-americana tem estado intensamente mobilizada na perspectiva de garantir o direito à educação em contextos de privação de liberdade. Essa mobilização tem tido repercussão no contexto internacional e tem catalisado as energias de outras organizações para a construção de uma cooperação que impulsione a concepção e a implementação de políticas públicas capazes de enfrentar esse desafio. Atualmente, muitos dos governos da região encontram-se articulados no âmbito da Red Latinoamericana de Educación en Contextos de Encierro (RedLECE), criada em novembro de 2006 dentro do marco do projeto EUROsociAL, financiado pela Comissão Europeia. Outra conexão importante dos países do bloco tem sido com a UNESCO, para quem a questão é particularmente expressiva dos desafios colocados sob o mote da “Educação para Todos”. O I Encontro Regional da América Latina de Educação em Prisões foi realizado a partir dessa ampla convergência de interesses e missões organizacionais. Por um lado, representou uma oportunidade para o fortalecimento e a troca das experiências conduzidas nos vários países da região, fossem ou não parte da RedLECE. Por outro lado, também consistiu numa etapa preparatória para os outros encontros internacionais que abordarão o tema direta ou indiretamente – mais especificamente a I Conferência Internacional de Educação em Prisões (CIEP), que acontecerá em outubro de 2008, com o apoio da Comunidade Francesa Valonia Bruxelas e sob a coordenação do Instituto da UNESCO para a Aprendizagem ao Longo da Vida (UIL) e a Conferência Latino-Americana preparatória à VI Conferência Internacional de Educação de Adultos (CONFINTEA VI), que acontecerá em 2009 no Brasil. 179

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O ENCONTRO O Encontro ocorreu nos dias 27 e 28 de março de 2008 em Brasília, capital brasileira, e reuniu representantes de governos, da sociedade civil, de universidades e organizações internacionais com atuação na região e no tema. Seus organizadores foram a Representação da UNESCO no Brasil, os Ministérios da Educação e da Justiça do Brasil e a Organização dos Estados Ibero-americanos (OEI). Os principais objetivos do Encontro eram: 1- Discutir o panorama geral da educação em prisões na região, não apenas sob uma perspectiva de sistematização e difusão de informações, mas também de reflexão sobre os sentidos e os desafios da ampliação da oferta de Educação em Prisões, com qualidade. 2- Ampliar e fortalecer a interlocução regional sobre o tema, aproximando atores governamentais e não governamentais, com destaque para outras agências das Nações Unidas com potencial para desempenhar um papel relevante no enfrentamento dos desafios então identificados1. 3- Difundir informações sobre a I CIEP, como forma de instruir e estimular os países latino-americanos a que dela participem e se engajem. e 4- Elaborar as recomendações da região para a I CIEP e a VI CONFINTEA. A programação alternou, entre sessões informativas, painéis, apresentações de relatórios e discussões em grupo. O organizador da I CIEP e especialista da UNESCO, Marc De Maeyer, apresentou o projeto da Conferência e expressou as suas expectativas em relação às atividades preparatórias, como era o caso do Encontro. Um painel com a participação do economista Ricardo Henriques e do pesquisador Francisco Scarfó ajudou a situar os desafios para as políticas públicas de Educação em Prisões na América Latina, ao distinguir entre os 1 Entre os países da região, estiveram oficialmente representados: Argentina, Brasil, Colômbia, Costa Rica, Equador, El Salvador, Honduras, México, Panamá, Paraguai, Peru e Uruguai. Entre os organismos internacionais, além da OEI e da UNESCO, participaram: o Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC) e o Instituto Latino-Americano de Prevenção ao Delito e Tratamento do Delinquente (ILANUD). Entre universidades e centros de pesquisa, registrou-se a presença de profissionais vinculados a: Universidad Complutense de Madrid, Universidad de Quebec/Canadá, Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)/Brasil, Universidade de São Paulo (USP)/Brasil, Max Planck Institute/Alemanha, Grupo de Estudios sobre Educación en Cárceles (GESEC)/Argentina e Centro Internacional de Estudos Pedagógicos (CIEP)/França. Entre organizações da sociedade civil, estiveram presentes: Ação Educativa/Brasil, Alfabetização Solidária (AlfaSol)/Brasil, Instituto Acesso à Justiça (IAJ)/Brasil, Instituto Paulo Freire (IPF)/Brasil e Ordem dos Advogados do Brasil (OAB).

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mecanismos materiais e simbólicos que alimentam as desigualdades sociais na região. O debate foi ainda enriquecido com a apresentação de um “mapa da realidade regional de educação em prisões na América Latina”, elaborado pelo pesquisador Hugo Rangel. Entidades responsáveis pelo levantamento e a consolidação de informações que darão suporte à I CIEP em tópicos específicos, expuseram e debateram as conclusões parciais de seus respectivos estudos sobre o preso-educador, alfabetização, direito ao voto, mulheres e bibliotecas. Agências das Nações Unidas apresentaram suas experiências e perspectivas de contribuição para a Educação em Prisões. Finalmente, grupos de trabalho foram formados para a discussão coletiva e a construção de consensos sobre as questões estratégicas para a região em relação a essa agenda, tendo como base os insumos a que seus integrantes tiveram acesso durante o Encontro e as percepções forjadas a partir do próprio papel que cada um deles desempenha em seus países e organizações. O resultado das discussões de cada grupo foi consolidado por uma equipe relatora e o produto final foi analisado pela plenária e aprovado sob a forma de “recomendações para a Conferência Internacional de Educação em Prisões CIEP 2008, a VI CONFINTEA e a comunidade latino-americana”. PRINCIPAIS RESULTADOS A possibilidade de um diálogo amplo e crítico, ao mesmo tempo em que comprometido com a formação de consensos sobre os desafios da Educação em Prisões na região, permitiu diversos avanços que agora podem alimentar a elaboração de políticas públicas no âmbito de cada um dos países. Em primeiro lugar, as “recomendações” resultantes do Encontro trazem uma clara linha de princípios que: a) reconhece a educação como um direito dos homens e das mulheres em situação de encarceramento; mas b) requer uma abordagem política e pedagógica distinta, apta a enfrentar as desigualdades materiais e simbólicas que incidem sobre essa condição. Dois são os principais indicativos nesse sentido. O primeiro é a referência a uma “educação integral”, atenta a questões de “diversidade” e que contemple as dimensões “ética, estética, política, artística, cultural e no âmbito da saúde, o mundo do trabalho e as relações sociais.” O segundo é a reivindicação de participação social e familiar em atividades educativas no contexto prisional, na perspectiva da reconstrução dos laços entre prisões e sociedade. 181

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Além disso, as “recomendações” incluem pontos que têm caráter mais instrumental para as políticas públicas, tais como a articulação entre os órgãos governamentais responsáveis pela oferta de educação integral em contextos de encarceramento, o reconhecimento do protagonismo de pessoas presas na oferta de educação em prisões (educação por pares) desde que isso não substitua a responsabilidade do Poder Público; a valorização de agentes penitenciários, docentes e profissionais que trabalham em contextos de privação de liberdade para que atuem como facilitadores da relação ensino-aprendizagem; a produção sistemática de dados estatísticos e a garantia da transparência na gestão prisional; a criação de bibliotecas e outros espaços culturais e recreativos; e a viabilização de continuidade dos estudos para egressos e egressas. Finalmente, o Encontro serviu para criar e fortalecer vínculos que serão de grande importância para o futuro desta pauta em cada um dos países. A audiência diversificada amplia as possibilidades de cooperação técnica em nível regional e cria um novo plano de mobilização em favor da Educação nas Prisões, o qual deve se manter ativo na medida em que evoluem os preparativos para as demais conferências internacionais – CIEP e CONFINTEA. Mais que as “recomendações”, a agenda da Educação em Prisões na América Latina ganha um novo espaço e uma nova e fortalecida coalizão de atores para o acúmulo conceitual e a elaboração de estratégias de transformação.

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13. RECOMENDAÇÕES PARA A I CONFERÊNCIA INTERNACIONAL DE EDUCAÇÃO EM PRISÕES

As seguintes recomendações, apoiadas nos princípios abaixo indicados, se referem a todos os estabelecimentos penais. Princípios: t "FEVDBÎÍPÏVNEJSFJUPIVNBOPGVOEBNFOUBM BTFSFYFSDJEPBP longo da vida. t 0&TUBEPEFWFSÈTFSSFTQPOTÈWFMQPSHBSBOUJSFFGFUJWBSPEJSFJUPB uma educação de qualidade para as pessoas privadas de liberdade. t 5PEPT PT TFSFT IVNBOPT TÍP TVKFJUPT EF EJSFJUP F EFWFN UFS acesso a uma educação de qualidade, estando ou não privados de liberdade. t " FEVDBÎÍP EFWF TFS FOUFOEJEB EF GPSNB JOUFHSBM  BCBSDBOEP P sujeito em todas as dimensões de sua personalidade: ética, estética, política, artística, cultural, no âmbito da saúde, do trabalho e nas relações sociais. t 0SFTQFJUPQFMBEJWFSTJEBEFFNGVOÎÍPEFSBÎB FUOJB HÐOFSP PSJFOtação sexual, faixa etária e religião deve ser um princípio orientador de todo o processo educativo. t 0SFTQFJUPQFMBNVMUJDVMUVSBMJEBEFEFWFTFSVNQSJODÓQJPPSJFOUBdor de todo o processo educativo. t "BUFOÎÍPBRVBMJEBEFEBFEVDBÎÍPÏGVOEBNFOUBMOPDPOUFYUPEF desigualdade em que se encontra a América Latina.

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RECOMENDAÇÕES PARA A EDUCAÇÃO EM PRISÕES E OUTRAS ENTIDADES CARCERÁRIAS Em atenção aos princípios enunciados, fazemos as seguintes recomendações: 1. Os ministérios da Educação e/ou os órgãos governamentais similares devem assumir a responsabilidade da política educacional nas prisões em articulação com os ministérios da justiça ou órgãos equivalentes responsáveis pela administração penitenciária. 2. Os governos devem elaborar, implementar e avaliar políticas públicas integrais de educação e não se restringir a projetos isolados. 3. É imprescindível que os diferentes órgãos e/ou instituições governamentais definam instâncias de articulação com a finalidade de desenvolver políticas de educação, integrais e tranversalizadas pelas questões de gênero, raça, etnia, geracionais, religiosas e de orientação sexual. Estas políticas devem contemplar as dimensões de: saúde, trabalho, desenvolvimento social, cultura, direitos humanos, esportes, participação política e cidadania, entre outras. 4. A educação formal e a educação não formal devem estar articuladas como parte do projeto educativo de cada estabelecimento. 5. É importante reconhecer o protagonismo do indivíduo privado de liberdade nos processos educativos (presos educadores) sem que isto signifique substituir a responsabilidade do Estado. Este protagonismo deve ser valorizado e reconhecido de diferentes maneiras: remição de pena, estímulo cultural e econômico, entre outros. 6. É necessário fortalecer a educação e valorizar os agentes penitenciários, docentes e demais profissionais que trabalham nos estabelecimentos penais a partir de uma perspectiva dos direitos humanos, a fim de promover a participação de todos nos processos educativos. 7. É necessário dar maior visibilidade à realidade das prisões (ou estabelecimentos carcerários) no sentido de proporcionar a sua transformação através da participação cidadã. 8. É necessário fortalecer os vínculos dos estabelecimentos penais com as universidades e as organizações da sociedade civil para construir laços sociais.

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9. É necessário produzir sistematicamente dados quantitativos e qualitativos que possibilitem a formulação de políticas públicas. Tais dados devem ser acessíveis a todos, no sentido de garantir a transparência. 10. É imprescindível reconhecer que as crianças, criadas com as mães em privação de liberdade, são sujeitos de direitos e devem ter assegurado o seu deslocamento para as instituições educacionais e recreativas fora das prisões. 11. É necessário desenvolver projetos pedagógicos que facilitem a participação da família e da comunidade. 12. Entre as estratégias educacionais possíveis, se recomenda a criação de bibliotecas, videotecas e outros espaços culturais e recreativos. 13. Tendo em vista o princípio da educação ao longo da vida se recomenda que se estabeleçam políticas que facilitem a continuidade e o acompanhamento dos processos educativos após recuperação da liberdade. Os participantes deste encontro regional demonstraram preocupação com a atual tendência de privatização dos serviços penitenciários, visto que o processo de privatização pode interferir negativamente na implementação de políticas públicas articuladas e integradas de educação.

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NOTAS SOBRE OS AUTORES

Massimo Pavarini Catedrático de Direito Penal da Faculdade de Giurisprudenza, da Universidade de Bolonha, Itália, desde novembro de 2000. Também exerce a função de Assessor Honorário de instituições governamentais na área de Direito e Segurança Cidadã Hugo Rangel Professor e Pesquisador da Universidade de Quebec – Montreal (Canadá), consultor do Observatório Internacional da UNESCO sobre Educação em Prisões. Também é membro do Sistema Nacional de Pesquisadores do México (SNI - Sistema Nacional de Investigadores de México) Jorge Teles Mestre em Economia pela Universidade Federal Fluminense (UFF), 1999. Atualmente é Diretor de Políticas de Educação de Jovens e Adultos da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade (Secad), do Ministério da Educação (MEC). Trabalhou na avaliação e pesquisa de projetos dos Ministérios da Assistência Social, do Trabalho e Emprego e no Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA). Daniele Duarte Mestre em Sociologia pelo Instituto Universitário de Pesquisa do Rio de Janeiro (IUPERJ). Trabalha, desde 2005, como consultora do Programa Educando para a Liberdade na Diretoria de Estudos e Acompanhamento das Vulnerabilidades Educacionais da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade (Secad), do Ministério da Educação do Brasil (MEC).

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Francisco Scarfó Professor de Ciência da Educação e Mestrando em Direitos Humanos pela Universidade Nacional de La Plata (UNPL), Argentina. Docente de educação Básica de Adultos, Buenos Aires. Consultor convidado pelo Instituto Interamericano de Direitos Humanos (Costa Rica) e do Instituto Internacional de Direitos Humanos (IHRLI) da Universidade De Paul de Chicago, EUA. Consultor Permanente da Associação Alemã de Educação de Adultos na Bolívia. Capacitador na República da Argentina do RPI (Reforma Penal Internacional, Escritório Regional para América Latina e Caribe). Assessor em educação da Procuradoria Penitenciária da Nação. Elionaldo Fernandes Julião Doutorando em Ciências Sociais pela UERJ; Mestre em Educação pela PUC/Rio; Especialista em Gestão Pública e Projetos Sociais; Bacharel e Licenciado em Letras pela UERJ; Pesquisador de Políticas Públicas na área de Execução Penal e Medidas Socioeducativa; Diretor da Escola de Gestão Socioeducativa Paulo Freire do Departamento Geral de Ações Socioeducativas (DEGASE); ex-Diretor da Divisão de Projetos Laborativos e Educacionais da Secretaria de Estado de Administração Penitenciária do Estado do Rio de Janeiro; ex-Coordenador do Programa de Qualificação Profissional para internos e egressos do Sistema Penitenciário do Rio de Janeiro / exSecretaria de Estado de Justiça e Interior do Estado do Rio de Janeiro.

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