Educação, Revolução e seus Direitos

August 14, 2017 | Autor: Silvio Carneiro | Categoria: Educação, Direitos Humanos
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Educação, revoluções e seus direitos

ISBN 978 - 85 - 64537 - 00 - 2

Índios isolados do estado de Acre, apontando flechas ao verem helicóptero, 2010. Foto de Gleison Miranda.

2011 Instituto de Tecnologia Social ITS BRASIL SESC SP

Douglas F. Barros Silvio Carneiro

Revoluções e Direitos Humanos: Educação, revoluções e seus direitos

páginas seguintes: As formas severas. Me. Poirier de Dunkerque, 1795. French Political Cartoon Collection/Library of Congress

“Desde o momento em que nascemos, temos direitos: saúde, moradia, educação, uma alimentação adequada, trabalho, ter uma renda suficiente, entre outros requisitos básicos para viver com dignidade. Eles fazem parte da nossa legislação e são inegociáveis. As pessoas e comunidades, historicamente, têm se organizado — em movimentos, fóruns, associações, sindicatos etc.— para lutar e fazer com que esses direitos aconteçam na prática, não fiquem só no papel. Às vezes pode parecer que, nessa luta, os direitos de diferentes grupos entram em conflito. De fato, a convivência humana é cheia de conflitos e, muitas vezes, eles podem levar a atos de desespero, intolerância, violência e uma sensação de incapacidade para solucionar os problemas que afetam as pessoas naquilo que é mais fundamental a elas. Conhecer os direitos humanos e estar preparado para buscar soluções para os conflitos que podem ser mediados, com base no diálogo, respeito, tolerância e solidariedade, são ferramentas poderosas de cidadania”.* * Disponível em: http://www.itsbrasil.org.br/projetos/ead-direitos-humanos-e-mediacaode-conflitos. Acessado em: 10/02/2011.

Douglas F. Barros Silvio Carneiro

Revoluções e Direitos Humanos: Educação, revoluções e seus direitos Caderno de apoio para o curso

Revoluções Danilo Santos de Miranda Diretor Regional do SESC São Paulo

Se, à exceção das ditaduras, a política não inspira mais a mobilização popular, à qual revolução aspiramos no século XXI? O que levaria a um engajamento contra a descrença e o ceticismo com as instituições e a coisa pública? No Brasil, onde a democracia tem garantido eleições livres há pouco mais de duas décadas, ainda nos falta fazer a revolução do conhecimento contra a ignorância. Aquela que transformaria radicalmente as perspectivas de desenvolvimento de nosso país e a vida de cada cidadão, em particular, descartando, por exemplo, o analfabetismo funcional que assola 20,3% de nossa população. Cabe-nos realizar a revolução da cultura, com ações voltadas diretamente à valorização e ao acesso aos bens culturais, sejam eles produzidos no Brasil, tenham sido eles acumulados pela humanidade. Uma revolução cultural em que a estratégia fosse

Protesto de mulheres, Petrogrado, 1917. Foto de Mark Steinberg.

livrar, tanto de preconceitos quanto de estereótipos, as culturas popular e erudita, material e imaterial, fazendo-as chegar às pessoas, de modo que estas pudessem apreciar, criar sobre e fruir bens que lhes pertencem. A revolução da ética, da qual igualmente necessitamos, nos livraria de intermediários, atravessadores, dubiedades e qualquer ordem de relações escusas, garantindo-nos maior seriedade, auto-estima e certeza de que o esforço cotidiano no sentido de fazer o que é certo, honestamente, não é uma batalha perdida, uma tentativa vã. Juntas, essas revoluções nos assegurariam a liberdade. Ultrapassaríamos o impasse existente entre o individualismo vil e a tirania do coletivismo. Abandonaríamos a prisão dos autoritarismos de esquerda e de direita. Deixaríamos de consentir com a unanimidade, que tantas vezes nos ilude e conduz ao erro. Voltaríamos, pois, a pensar na política, libertos da apatia. O projeto Revoluções, realizado em parceira pela Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República, pelo Instituto de Tecnologia Social (ITS — BRASIL), Boitempo Editorial e pelo SESC São Paulo coloca em xeque a relação entre alguns movimentos que uniram pessoas e transformaram realidades ao longo da história e a luta pelos direitos humanos, tendo como panorama a representação desses processos no cinema e na fotografia. Para o SESC São Paulo, trata-se da oportunidade de refletir sobre o passado e, sobretudo, sobre o quanto nos engajaremos em um futuro mais próspero e digno para todos.

Projeto Revoluções Coordenação do projeto

Qual o significado da palavra “revolução”? Se acrescentarmos o adjetivo “social”, o que a expressão “revolução social”, hoje, pode significar para nós? Passado o bicentenário de comemoração da Revolução Francesa e passado o breve século das revoluções marxistas, o que nos resta desses eventos históricos? Lembremos como Rússia, Hungria, México, China e tantas outras revoluções tiveram seus dias contados. E mesmo Cuba parece anunciar o final de uma era. Ainda assim, a palavra revolução não deixa de povoar o imaginário contemporâneo, sendo evocada para provocar e trazer à tona questões cruciais de uma sociedade em conflito e transformação. Contudo, o projeto não visa à simples propagação das posições revolucionárias de outra hora, mas procura pensar uma questão essencial para os nossos dias: “Viver e educar para qual sociedade?”

É com essa perspectiva que o projeto Revoluções: Educação, História, Direitos Humanos, Cinema e Fotografia será desdobrado, de março a julho de 2011, em um curso, um seminário, oficinas, apresentação teatral, exibição de filmes, exposição de fotos e um site. O conjunto de nossas atividades está pensado a partir de dois temas: os direitos humanos e o embate entre arte e política. Duas frentes que estão intimamente ligadas à ideia de uma revolução que não se reduz a um ato de transformação política, social, filosófica ou formal, mas sim produz uma “revolução humana”. A promessa da construção de novas formas de estar no mundo e de expressá-lo, uma nova vida para indivíduos e para a comunidade em uma revolução vivida que se torna “uma arte de viver”.

Revoluções, Resistência e Reinvenção Instituto de Tecnologia Social — Its Brasil

As crises costumam ser a manifestação de momentos de desequilíbrio, quando se faz necessário apontar novos caminhos. No que diz respeito à democracia, dois fenômenos contraditórios marcam o início do século XXI. As instituições encarregadas da representação parecem esvaziadas. Embora continue havendo diferenças importantes entre governos e partidos, o leque de políticas consideradas possíveis aparece-nos como estreitado. Não havendo escolhas reais, os cidadãos parecem não se sentir representados. Ao mesmo tempo, outra cultura política emerge. Multiplicam-se as iniciativas de cidadãos que se articulam para alcançar, por meio de sua própria mobilização, objetivos comuns. A preservação da natureza (ou de uma espécie particularmente ameaçada); a garantia dos direitos humanos vistos em sua acepção mais ampla (ou, por exemplo, os direitos ameaçados

de um grupo muito específico); a promoção de formas alternativas de produzir, circular e trocar riquezas. É como se, desencantados com o antigo padrão de democracia — que implicava uma transferência das decisões para os eleitos —, os seres humanos procurassem alcançar, eles mesmos, os objetivos que julgam justos e relevantes. Coloca-se então a questão: onde se encontram hoje, em nossa sociedade, as forças e estruturas capazes de dar sentido e legitimar o espaço de construção política, quando o sentimento de desencanto e de esgotamento das formas tradicionais de produção e exercício do poder parece imperar? Como “reencantar” a política? Por que a discussão sobre a “coisa pública” parece esvaziada, reduzindo-se a questões administrativas, e encontrando imensa dificuldade em mobilizar para a construção coletiva de um destino comum? Tomar essa discussão a partir do tema “revoluções” tem uma grande vantagem, que vai além de uma questão meramente histórica. Os momentos de revolução caracterizam-se, sem dúvida, por mudanças rápidas e profundas de certo estado de coisas. Isso, numa visão de conjunto. Se nos aproximarmos das pessoas, veremos que são momentos em que um profundo arrebatamento por uma vontade de liberdade, um entusiasmo e um sentimento de que as ações participam da construção da história são evidentes. Quer dizer, são momentos de grande “encantamento” pelas grandes causas públicas, quando cada ato se vê embebido em um sentido pleno. Assim, compreendemos que a mais importante conquista das revoluções está no direito das

sociedades de não ser espectadoras de seu destino; mas a participar, ativamente, de sua construção. Sob este escopo, nos colocamos algumas questões: Como pensar os valores fundantes da ordem social contemporânea? Que lugar têm os Direitos Humanos hoje na construção de um projeto coletivo de liberdade universal e de um viver em comum digno e justo, desde o âmbito local até o planetário, quando se completam 222 anos da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (e após 62 anos da Declaração dos Direitos Humanos Universais pela ONU)? Quais os meios para se reinventar e ressignificar as estruturas políticas institucionalizadas, de modo que o Estado possa de fato ser o representante de um projeto de nação? Como pensar hoje a relação entre sociedade civil e Estado?  Como ampliar os espaços de participação política para que as pessoas sintam estes espaços como legítimos para os seus anseios de realização enquanto seres humanos? Esperamos que o Projeto Revoluções, que o Instituto de Tecnologia Social — ITS Brasil, em parceria com a Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República; o Serviço Social do Comércio do Estado de São Paulo e a Boitempo Editorial trazem ao público, possa ser um momento importante de contribuição para pensarmos os desafios políticos que estão postos nesta que parece ser uma questão política essencial: o que desejamos construir em comum? Enfim, “como viver junto”? Bom trabalho a todos!

Pela memória coletiva dos povos Boitempo Editorial

As revoluções nunca se repetem, cada qual é uma invenção, uma criação do povo oprimido que se revolta. Por mais que se possa aprender, se inspirar com as anteriores, sempre há um processo de inovação que é imprevisível. — Michael Löwy, em entrevista para a revista Caros Amigos, dezembro de 2007

Criada em 1995, a Boitempo se firmou no mercado editorial brasileiro produzindo obras de qualidade, com um catálogo consistente e opções editoriais claras. Preocupada com a reflexão política e a difusão cultural para além das ações restritas ao mundo dos livros, a editora consolidou ao longo de seus 16 anos de existência uma tradição em promover eventos condizentes com o espírito crítico de suas publicações. Desde o lançamento da edição brasileira de Revoluções (2009), coletânea de ensaios e documentos fotográficos de inestimável valor, organizada por Michael Löwy, a Boitempo vem buscando formas de intensificar o debate acerca das revoluções socialistas que impulsionaram nossa história, suas conquistas e derrotas. Por esse e outros motivos, a editora abraçou com entusiasmo esse grande projeto, em parceria com ITS e SESC.

Assembleia na Vila Euclides, São Bernardo do Campo. 1 de maio de 1980. Foto de Ricardo Alves.

As revoluções determinam mudanças fundamentais na política, na economia e na cultura, perpetuando um legado de esperança entre os mais diversos povos.  Diante disso, nada é mais necessário para destruir os mitos sobre formas “naturais” e absolutas da sociedade do que revisitar os precedentes históricos que marcaram os séculos passados e o início do atual, como a recente convulsão árabe. Adentrar na memória coletiva dos oprimidos, dos explorados e dos trabalhadores é se fazer inteiro no mundo em que vivemos, um dever de cada um e de todos que almejam mudanças. Ambicioso, o Projeto Revoluções contribui para o fortalecimento das discussões acerca da importância dos levantes populares ao abordar o tema em multimídias, com a exibição de fotografias, filmes, videoconferências com renomados especialistas, cursos, lançamentos de livros e palestras sobre a história e os desafios de nosso tempo. Esperamos que os registros aqui apresentados iluminem a reflexão em torno dos rumos tomados pela humanidade e inspirem a transformação social.  

Pai e filho na Rocinha, Rio de Janeiro. Foto André Cypriano.

Sumário

01 O curso Revoluções e Direitos Humanos: Educação, revoluções e seus direitos no Projeto Revoluções 07 Os palestrantes

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09 23 41 57 69

Direitos Humanos e Atualidade Revoluções e Seus Direitos Direitos e desejos Direitos Humanos, Instituições e Educação Imaginário, Futuro e Utopia



83 Bibliografia geral do curso 87 Ficha de avaliação

O curso Revoluções e Direitos Humanos: Educação, revoluções e seus direitos no Projeto Revoluções Comissão Organizadora

Prezados, O curso Revoluções e Direitos Humanos: Educação, revoluções e seus direitos pretende realizar uma investigação crítica sobre a nossa compreensão deste tema na atualidade. Seu objetivo é justamente apontar os limites que envolvem a ideia de que os princípios dos direitos humanos, por defenderem as mais nobres causas em favor da vida humana, são uma força de contenção suficiente contra a opressão, em seus mais diversos níveis e modalidades. O marco a partir do qual pensamos os direitos humanos se pauta por sua relação com as revoluções. Desde seu surgimento na Revolução Francesa, com a Declaração Universal dos Direitos Humanos e do Cidadão, os direitos humanos sempre estão misturados com estes momentos históricos que levaram a humanidade às transformações econômicas, Assembleia na Vila Euclides, São Bernardo do Campo. 1 de maio de 1980. Foto de Ricardo Alves.

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jurídicas ou culturais. Seriam as revoluções modernas porta-vozes dos direitos humanos ou o contrário? Dúvidas como esta justificam este curso no coração do Projeto Revoluções, que busca redefinir este termo um pouco usurpado com tantos anos de ideologias anticíclicas, que não tinham mais a oferecer do que a dura retórica de que a história chegava a seu fim. Contrariando este pensamento, a associação proposta entre Revoluções e Direitos Humanos busca lembrar os diversos paradoxos que herdamos até então. Uma posição que nos exige uma profunda reflexão para pontuarmos as dimensões reais destes termos aparentemente desgastados. O curso vai aprofundar o tema tanto em uma perspectiva histórica quanto para entender as implicações filosóficas, antropológicas e jurídicas que o envolvem. Para tanto, se divide em quatro unidades. A primeira delas vai embrenhar-se na relação entre os direitos humanos e as revoluções. Investigaremos em que sentido as grandes transformações sociais trazem em seu bojo demandas por justiça e alteração nas relações dos homens entre si e destes com as instituições sociais em geral. A segunda unidade tratará da relação entre Desejos e Direitos. Acima mencionamos que a versão moderna dos direitos humanos estava relacionada com a historicização das leis e dos princípios fundadores do direito. Isto quer dizer que em vez de pensarmos que os direitos humanos são a expressão de princípios atemporais, imutáveis, devemos pressupor que eles expressam nossos mais profundos desejos de realização da autonomia. Nesse sentido, os direitos humanos não podem ser pensados em separado da noção

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de sujeito e da perspectiva de que este é construído e reconstruído historicamente, e que a expressão da subjetividade nos direitos envolve uma dimensão da experiência humana além da materialidade, isto é, a linguagem, os universos simbólico e dos sonhos. Ao trabalharmos os Mecanismos dos Direitos Humanos, na terceira unidade, investigaremos o que pode tornar esses direitos concretizados. O principal objetivo aqui é mostrar que sem instituições e programas dedicados a essa causa e dispostos a se empenhar para realizar os princípios mencionados acima, toda a retórica em favor dos direitos humanos corre o risco de se tornar vazia e sem sentido para os indivíduos que realmente sofrem as consequências da opressão. Nesta parte daremos especial atenção para a educação. Na quarta unidade, o objetivo é pensar os direitos humanos sob a relação entre Imaginário, Futuro e Utopia. Que horizonte a defesa e o pensamento sobre os direitos humanos nos reservam? A incorporação de práticas de violência contra seres humanos como instrumento de manutenção do poder político por democracias supostamente impermeáveis aos dispositivos de governos autoritários torna cada vez mais sombria a perspectiva de realização dos direitos humanos. Além disso, notamos um desenvolvimento científico e tecnológico que fornece novos patamares para se repensar o que é afinal de contas o humano e seus direitos. Novas crises, novas demandas, qual seria o horizonte utópico que os direitos humanos têm a nos oferecer? Com a intenção de aprofundarmos o debate, preparamos esta sequência de textos. Pequena série de

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ensaios provocativos que não pretendem esgotar o debate, mas fornecer elementos para este, munindo o aluno com Declarações, Leis e Ensaios, próximos aos temas do curso. Elementos que também estarão disponíveis no site www.revolucoes.org.br. Por fim, gostaríamos de agradecer a presença de vocês e, na esperança de conduzir um bom processo, obter o retorno de suas expectativas através do questionário, pelo qual avaliaremos as potencialidades de nosso curso. Bem-vindos e bom curso!

Os palestrantes

Prof. Costas Douzinas Professor de Direito e diretor do Instituto de Ciências Humanas de Birkbeck na London University; professor visitante nas Universidades de Atenas, Paris, Tessalonica e Praga. Em 1998, foi professor visitante na Universidade de Princeton e na Escola de Direito de Cardozo. Em 2002, foi pesquisador visitante nas Universidades de Griffith, Pequim e Nanquim. Conhecido por seu trabalho em direitos humanos, estética, jurídica pós-moderna, teoria e filosofia política, fez parte da equipe que criou a Escola de Direito de Birkbeck. Em 1997 foi premiado com a bolsa Jean Monnet pelo Instituto Europeu de Florença. Prof. Alysson Leandro Barbate Mascaro Professor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo e dos cursos de Mestrado e Doutorado em Direito Político e Econômico e da Graduação em

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Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie. É Professor Livre-Docente em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela Universidade de São Paulo, com a tese Da ontologia jurídica da utopia: Ernst Bloch, esperança e direito. Membro do Conselho Pedagógico da Escola de Governo — USP. Publicou Utopia e Direito — Ernest Bloch e a Ontologia Jurídica da Utopia, Crítica da Legalidade Jurídica e do Direito Brasileiro. Profa. Olgária Matos Bacharel em Filosofia pela Universidade de São Paulo (1970), mestre em Filosofia — Université Paris 1 (Panthéon-Sorbonne) (1974) e doutora em Filosofia pela Universidade de São Paulo (1985). Atualmente é professora titular da Universidade de São Paulo e professora visitante do curso de Filosofia da Universidade Federal de São Paulo. Tem experiência na área de Filosofia, com ênfase em História da Filosofia, atuando principalmente nos seguintes temas: tempo, filosofia, razão, democracia e história. Publicou Benjaminianas: Cultura Capitalista e Fetichismo contemporâneo, Contemporaneidades, Discretas Esperanças: reflexões filosóficas sobre o mundo contemporâneo, Os arcanos do inteiramente outro: A Escola de Frankfurt, a melancolia, a revolução (vencedor do Prêmio Jabuti).

Avançados (IEA-USP); atua ainda na área de formação de professores em direitos humanos, com projeto vinculado à Secretaria Especial de Direitos Humanos (SEDH); desenvolve projeto de pesquisa sobre Hannah Arendt, modernidade e educação, com financiamento do CNPq. Deputado Federal Paulo Teixeira Deputado Federal reeleito pelo Partido dos Trabalhadores (PT) e atual líder da bancada de seu partido, Paulo Teixeira foi membro titular da Constituição de Justiça e de Cidadania (2007) e integrou a Comissão de Direitos Humanos da Câmara Municipal de São Paulo (2005/2006). Enquanto Deputado Estadual foi membro da Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa (1999–2001). Em 2006, defendeu a dissertação de mestrado em Direito Constitucional pela Faculdade de Direito (USP), com o título “O Direito à Moradia na Constituição Brasileira, o Sistema de Garantia na Legislação e a Experiência de São Paulo”.

Prof. José Sérgio F. Carvalho Pesquisador e professor em programas de graduação e pós-graduação da Universidade de São Paulo (USP); membro da cátedra USP/Unesco de educação para os direitos humanos e do grupo de estudos em temas atuais de educação, ambos sediados no Instituto de Estudos

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Direitos Humanos e atualidade

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Por que os direitos humanos são importantes hoje? O que poderá haver de comum entre os seguintes acontecimentos: a criação das Delegacias da Mulher no Brasil (1986) e o empenho do movimento feminista para fazer valer a lei da violência doméstica contra a mulher — a lei Maria da Penha (2006); o movimento da população egípcia para derrubar o ditador Hosni Mubarak (2011); o movimento contra a carestia que, em 1972, conseguiu reunir mais de 1 milhão de assinaturas em pleno período militar no Brasil, contrapondo-se ao desemprego, ao arrocho salarial, e exigindo a realização da reforma agrária; a condenação dos políticos sérvios (a partir de 1996), no Tribunal Penal Internacional, pelos crimes contra a humanidade, ocorridos na guerra da Bósnia (1992–1995)? Não importa que sejam eventos ocorridos em países diferentes, épocas distintas, motivações absolutamente diversas. O que há de comum entre eles é que todos diziam respeito à luta de seres humanos oprimidos ou em nome deles, no caso do Tribunal, contra a opressão e a eliminação dos direitos fundamentais de proteção ao indivíduo. Nos eventos citados acima há o esforço de deter e reverter a dominação que mira a eliminação desses direitos e extermínio da própria vida humana. Essas lutas de resistência contra a opressão sem medidas, em todas as suas formas, lugares, matrizes ideológicas e históricas são a causa fundamental da ação de grupos, instituições, Estados e indivíduos a favor dos direitos humanos. Não são poucos os fatos que amparam o historiador Eric Hobsbawm em sua avaliação de que o século XX é a “era dos extremos” (HOBSBAWM, 1995). A

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eficácia das inovações vistas nesse período, se comparadas às de outros do passado, surpreende principalmente se levarmos em conta que foi entrecortado por guerras e revoluções, que provocaram um grau de destruição e de transformações jamais experimentado pela, assim chamada, civilização. Há quem considere que as invenções tecnológicas mais decisivas do século não teriam vingado sem as guerras; muitas sequer teriam sido criadas e/ou aperfeiçoadas — o avião, o telefone, a eletricidade etc. Há quem afirme, todavia, que nesse período a tal civilização experimentou os piores horrores da barbárie, causados pelos homens contra os seus próprios semelhantes. O Holocausto, campos de extermínio humano em massa, campos de concentração e trabalho forçado, exploração do trabalho humano, violência contra mulheres e crianças, fome, são os eventos que marcaram a primeira metade do século, mas que foram revividos em outra dimensão em inúmeras guerras, ou fora delas, também na segunda metade. Por isso, um dos extremos que fixaram a identidade do século XX foi o quanto indivíduos foram oprimidos e explorados mundo afora, tanto por governos quanto por organizações políticas estatais ou não estatais, religiosas e até empresariais. De um lado, observam-se nesse período da história maravilhas da criação que elevaram a nossa condição humana e tornaram a vida mais fácil. Por outro, vê-se a exploração humana causada por próprias mãos, engenho e esforço humanos. Se esses eventos são complementares ou contraditórios entre si não podemos responder neste momento. Mas, como afirma Costas Douzinas, o reconhecimento de que o

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século XX “é o século do massacre, do genocídio, da faxina étnica...” pode nos levar a entender por que é também “a era dos direitos humanos” (DOUZINAS, 2009). Por mais que nos pareça paradoxal essa conclusão, é no momento em que constatamos que enormes contingentes de população experimentaram as mais inimagináveis privações, que mais se ouviram falar pomposamente nos “direitos do homem”, na integridade inviolável da pessoa humana, no direito à vida digna e saudável, no direito à liberdade de pensamento, crença e expressão, entre outros tantos belos temas. O triunfo dos direitos humanos, na acepção de Douzinas, deve-se em parte à emergência destas catástrofes cuja autoria se deve aos próprios homens. Mas por quê? a. Direitos Humanos como punição e freio à barbárie Como definir e pensar os direitos humanos, tomando por base justamente aquilo a que se contrapõe? Em certo sentido, os direitos humanos são desde sempre “a experiência política da liberdade, a expressão da luta para libertar os indivíduos da repressão externa e permitir sua autorrealização” (DOUZINAS, 2009). Não por outro motivo, a luta pelos direitos humanos esteve, desde o século XVIII, diretamente relacionada às revoluções, embora não somente a estas. Sempre que homens se insurgiram contra governos fundados na opressão, na exploração, na violação de justiças, na prática da violência como instrumento de justificação e manutenção do

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poder, em qualquer lugar onde tais movimentos se deram, pode-se dizer que em alguma medida os direitos humanos estavam entre o conjunto das demandas por parte dos insurgentes. Nas revoluções modernas, desde a Revolução Francesa, as causas são também econômicas, sociais, mas, em todas elas, a contestação da exploração e da opressão pelo poder a ser convulsionado está presente. b. Do Direito Natural aos Direitos Humanos Que origem terão os direitos humanos? O que chamamos hoje de modernidade, tanto em relação ao pensamento quanto ao período histórico, acarretou uma mudança radical na concepção do próprio fundamento do direito, cujas consequências possibilitaram, entre outras coisas, a atual formulação dos direitos humanos. Desde a invenção dos códigos jurídicos que influenciaram as leis dos países ocidentais, nas civilizações grega e romana, o direito natural esteve na base da concepção das leis. Filósofos como Cícero, Tomás de Aquino, Hugo Grócio sustentaram, cada um a sua maneira, que os princípios do direito e das leis não deveriam estar em desacordo ao que a natureza nos ensina. Nenhuma lei humana poderia ter valor caso contradissesse o que é natural. Por isso, observamos em Aristóteles o argumento de que o homicídio é ato contra a natureza. Civilizações posteriores aos gregos e influenciadas por sua concepção do direito entenderam que matar um cidadão é ato juridicamente inaceitável.

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A reviravolta sobre a concepção do direito, causada pela filosofia moderna, a partir de Thomas Hobbes, se baseou em que o direito natural não era suficiente para sustentar os princípios ordenadores da vida civil, que se organiza no Estado. Assim, os direitos civis deveriam ser criados pelos homens em acordo com o que prescrevia o direito natural, mas nunca restritos a ele. Posteriormente, a partir do século XVIII, filósofos defenderam que o direito e as leis só poderiam ser concebidos a partir da experiência histórica humana e não com base em princípios — como a natureza — cuja vaidade era atemporal. Essa historicização dos princípios do direito possibilitou a incorporação ao campo das leis e do direito, em sentido amplo, uma série de reivindicações históricas, calçadas em movimentos e ideias forjados pelos homens e mulheres que experimentaram condições muito específicas. Por exemplo, as reivindicações que fundamentaram a Revolução Francesa: liberdade, igualdade e fraternidade. É nesse contexto que, do ponto de vista do direito, se passa a falar naqueles direitos que diziam respeito à conservação dos homens contra a opressão, a exploração e a dominação, contra, enfim, o que os impedia de ser indivíduos autônomos e senhores de suas próprias vidas, de direitos humanos. Estes passaram a ser expressos até mesmo em documentos e declarações. O objetivo destes foi, desde o início, nortear os governos e as instituições políticas ou não, assim como aquelas em que se inseriram os cidadãos para acusarem como inaceitável qualquer situação de opressão e de violação da dignidade da vida humana.

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c. As Declarações e a universalidade dos Direitos Humanos Mas que documentos são esses?  Princípios Universais dos Direitos Humanos Um dos resultados que melhor expressaram a radicalidade das mudanças ensejadas pela Revolução Francesa foi a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão. Publicada em 1789, ela representa a inauguração simbólica da moderna acepção dos direitos humanos. Os princípios que deram origem a essa declaração, assim como aqueles que ela congrega, são por si mesmos revolucionários, se compararmos o ideário que funda esse texto com aquele que sustenta as bases do Antigo Regime francês. Contra a ideia de que por natureza há homens aptos a mandar e outros a obedecer, uns nascidos para o ócio e outros para o trabalho, uns para o comando e outros para a escravidão, os revolucionários, em assembleia, declararam no artigo 1° que: “Os homens nascem e vivem livres e iguais em direitos. As diferenças sociais só podem ser fundamentadas no interesse comum”. Veja-se que as diferenças sociais, quando existirem, se prestam à realização de interesses dos cidadãos. E para consumar o princípio dos direitos humanos em acordo com os interesses comuns dos cidadãos, o artigo 2° da Declaração estabelece primeiro que: “O fim de toda associação política é a conservação dos direitos naturais e imprescritíveis do homem”. E define que tais direitos são: “a liberdade, a propriedade, a segurança e a resistência à opressão”. Este último direito constitui nada mais do que o fundamento de

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toda e qualquer reivindicação em nome dos direitos humanos. É a resistência à opressão que sustenta ser incondicional a defesa da inviolabilidade da dignidade humana, em quaisquer situações sociais e políticas e circunstâncias históricas. Após a experiência de horrores e de barbárie que nos propiciaram os domínios imperiais de países europeus sobre a África, na segunda metade do século XIX, e, principalmente, as duas Guerras Mundiais, na primeira metade do século XX, outra Declaração veio firmar o caráter insubstituível e incondicional dos direitos humanos. É a Declaração Universal dos Direitos Humanos, assinada em 1948 pelo conjunto de países que subscreveu a criação da Organização das Nações Unidas (ONU). Esta nos possibilitou confirmar o século passado como aquele em que triunfou o discurso em defesa dos direitos humanos. Se de fato essa Declaração orientou e forçou os países a aplicarem os seus princípios é algo que deve ser posto em questão. Qual a intenção destas declarações? A superação de fronteiras territoriais e ideológicas pelos direitos humanos As suas intenções envolvem o desejo de reconhecimento de que são inalienáveis a dignidade e a igualdade humanas. É claríssima aqui a oposição aos princípios fundadores da ideologia da supremacia racial e social, que constituíram a gênese do regime nazista e do fascista na Europa e do, então, seu apoiador na Ásia. Também essa Declaração procurou reafirmar especificamente o que constituem as

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violações aos direitos humanos. Estas resultam em: “atos bárbaros que ultrajaram a consciência da Humanidade”. Ao mesmo tempo, se procurou estabelecer que os direitos humanos, em todos os países da comunidade de nações congregadas na ONU, que esses direitos estivessem expressos claramente nas leis e fossem protegidos por elas “para que o ser humano não seja compelido, como último recurso, à rebelião contra a tirania e a opressão”. Indiretamente, a constatação acima reconhece que a insurgência contra a exploração humana, embora possa não consistir em ato legal, é por definição dos direitos humanos um ato legitimamente justificável. O que demarca o caráter abrangente desta Declaração é que, em seu parágrafo 2, do artigo 2° não se considera para a defesa dos direitos humanos nenhuma “distinção fundada na condição política, jurídica ou internacional do país ou território a que pertença uma pessoa, quer se trate de um território independente, sob tutela, sem governo próprio, quer sujeito a qualquer outra limitação de soberania”. São firmados como crimes imprescritíveis a escravidão, a servidão, o tráfico de escravos, tortura e tratamento cruel. Estabelecem-se como inaceitáveis atos como a prisão, a detenção e o exílio arbitrários. A presunção da inocência até a consumação do julgamento também é princípio que ao ser ferido constitui afronta aos direitos humanos. A divulgação desta última Declaração veio pôr em destaque o caráter paradoxal da defesa e da efetivação dos direitos humanos, desde a segunda metade do século passado. Sem dúvida esse texto representou avanço na defesa dos direitos humanos e sua

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subscrição por um número expressivo de países possibilitou que se vislumbrassem práticas menos desumanas de governos, instituições e dos próprios homens contra os homens. Contudo, a divisão em blocos de poder em torno dos Estados Unidos e da então União Soviética e eventos derivados desta conjuntura bipolar pós-Segunda Guerra na Europa e suas consequências na Ásia, bem como a posterior derrocada do bloco comunista, além da persistência das disputas territoriais e étnicas na África e religiosas no Oriente Médio, eventos como esses e outros vinculados à exploração humana em benefício da acumulação de riquezas legais ou ilegais, a persistência do racismo, tudo isso vem contestar a eficácia da formulação de acordos retóricos em favor dos direitos humanos. De fato, são eficazes os documentos em defesa dos direitos humanos? Primeiro, em pleno século XXI, cabe levantar as questões: a defesa dos direitos humanos é um posicionamento factível aos governos, aos Estados, a instituições religiosas? Por que a defesa dos direitos humanos é um propósito que ultrapassa os limites dos governos e das instituições oficiais? Haverá limites instrumentais e políticos para uma real proteção da dignidade humana? Antes que nos afundemos no pessimismo ou nos iludamos com a eficácia de ações isoladas, que denotam doação e boa vontade dos cidadãos em favor de causas que pouco incomodam os lugares onde se gestam as violações aos direitos humanos, propomos aqui que essas questões sejam avaliadas e

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aprofundadas. É necessário que confrontemos o pensamento atual sobre os direitos humanos com nosso presente e com as práticas históricas que têm se mostrado muito ou pouco eficazes para a realização e a defesa desses direitos. Como afirma Douzinas, o desafio que comporta a defesa dos direitos humanos está em que esta nos põe diante de incertezas e nos faz confrontar problemas que vinculam, ao mesmo tempo, os aspectos mais íntimos de nossa vida àqueles mais universais que envolvem toda a humanidade e sua história. Por que não tentar conhecer melhor os contornos desse desafio? O caráter paradoxal dos direitos humanos A aprovação aos ideais dos direitos humanos tem, nesta primeira década do século XXI, adquirido adeptos e inspirado consensos. Depois que as utopias do século XX tiveram seu fim decretado, uma nova retórica de mobilização em defesa do ser humano seduziu ou foi utilizada para seduzir os corações e as mentes mundo afora. Ideólogos de esquerda, centro e direita; políticos de países centrais e periféricos, do Norte e do Sul; dirigentes de governos identificados com as mais díspares correntes ideológicas reconhecem a importância de se apoiar os direitos humanos. O que poderia ser princípio de libertação da opressão e da dominação sobre homens e mulheres, crianças e idosos em todas as regiões da Terra, veio se apresentar como retórica capaz de encobrir interesses, antes disfarçados por discursos ideológicos mais nítidos. Embora possam se apresentar como defensores das mais nobres causas humanitárias, haverá alguma diferença entre o discurso de um presidente

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da República e o de ativistas políticos. Um pode justificar a promoção da liberdade e do humanitarismo quando invade um país, acarretando a morte de cidadãos inocentes; outro pode incentivar os movimentos feministas a exigirem o fim da violência sexual contra meninas adolescentes. Qual destes, de fato, promove e defende os direitos humanos? Como vimos acima e constata Douzinas, o envolvimento com este tema na atualidade comporta desafios. De um lado, o debate e os estudos que o concernem estão entre as preocupações centrais da filosofia e da jurisprudência, que congregam as aspirações de conservação da vida, da liberdade, da emancipação e da autonomia do ser humano. De outro, a retórica sobre os direitos humanos se desenvolve permeada por interesses de dominação e exploração que se mascaram nos argumentos defensores do humanitarismo. Entre os desafios que se apresentam aos que se envolvem com essa causa hoje está o de compreender que o seu desenvolvimento na história não se dá descolado das mais importantes formulações teóricas da filosofia e do direito, entre outras áreas de conhecimento. Também é insubstituível que os direitos humanos sejam levados à crítica, tendo em vista que o alinhamento de grupos os mais diversos às suas causas mais importantes não nos tornam claros os interesses escondidos nessa adesão. Afirma Douzinas: os direitos humanos “só têm paradoxos a oferecer” (DOUZINAS, 2009). Mais do que um desestímulo ou prenúncio do fim de um novo horizonte de combate, tal constituição paradoxal nos dá a exata dimensão do problema a ser enfrentado pelos que, de fato, têm

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compromissos não apenas discursivos, estéticos e comerciais com os direitos humanos. De fato, os direitos humanos são utopia ou a sua realização pertencerá a algum momento de nosso futuro? II

Revoluções e seus Direitos

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Declaração Universal dos Direitos Humanos

Adotada e proclamada pela Resolução n° 217 A (III) da Assembleia Geral das Nações Unidas em em 10 de dezembro de 1948. Assinada pelo Brasil na mesma data.

DOCUMENTOS

Considerando que o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e de seus direitos iguais e inalienáveis é o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo,  Considerando que o desprezo e o desrespeito pelos direitos humanos resultam em atos bárbaros que ultrajam a consciência da humanidade e que o advento de um mundo em que os homens gozem de liberdade de palavra, de crença e da liberdade de viverem a salvo do temor e da necessidade foi proclamado como a mais alta aspiração do homem comum, Considerando essencial que os direitos humanos sejam protegidos pelo Estado de Direito, para que o homem não seja compelido, como último recurso, à rebelião contra a tirania e a opressão, Considerando essencial promover o desenvolvimento de relações amistosas entre as nações,   Considerando que os povos das Nações Unidas reafirmaram, na Carta, sua fé nos direitos humanos fundamentais, na dignidade e no valor da pessoa humana e na igualdade de direitos dos homens e das 25

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mulheres, e que decidiram promover o progresso social e melhores condições de vida em uma liberdade mais ampla, Considerando que os Estados-Membros se comprometeram a promover, em cooperação com as Nações Unidas, o respeito universal aos direitos humanos e liberdades fundamentais e a observância desses direitos e liberdades, Considerando que uma compreensão comum desses direitos e liberdades é da mais alta importância para o pleno cumprimento desse compromisso, A Assembleia Geral proclama: A presente Declaração Universal dos Direitos Humanos como o ideal comum a ser atingido por todos os povos e todas as nações, com o objetivo de que cada indivíduo e cada órgão da sociedade, tendo sempre em mente esta Declaração, se esforce, através do ensino e da educação, por promover o respeito a esses direitos e liberdades, e, pela adoção de medidas progressivas de caráter nacional e internacional, por assegurar o seu reconhecimento e a sua observância universal e efetiva, tanto entre os povos dos próprios Estados-Membros, quanto entre os povos dos territórios sob sua jurisdição. Artigo 1° Todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotadas de razão e consciência e devem agir em relação umas às outras com espírito de fraternidade.

Artigo 2° Toda pessoa tem capacidade para gozar os direitos e as liberdades estabelecidas nesta Declaração, sem distinção de qualquer espécie, seja de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou social, riqueza, nascimento, ou qualquer outra condição. Não será tampouco feita qualquer distinção fundada na condição política, jurídica ou internacional do país ou território a que pertença uma pessoa, quer se trate de um território independente, sob tutela, sem governo próprio, quer sujeito a qualquer outra limitação de soberania. Artigo 3° Toda pessoa tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal. Artigo 4° Ninguém será mantido em escravidão ou servidão; a escravidão e o tráfico de escravos serão proibidos em todas as suas formas. Artigo 5° Ninguém será submetido à tortura, nem a tratamento ou castigo cruel, desumano ou degradante. Artigo 6° Toda pessoa tem o direito de ser, em todos os lugares, reconhecida como pessoa perante a lei. Artigo 7° Todos são iguais perante a lei e têm direito, sem qualquer distinção, a igual proteção da lei. Todos têm direito a igual proteção contra qualquer 27

a. Revoluções e a ideia dos direitos de um homem universal discriminação que viole a presente Declaração e contra qualquer incitamento a tal discriminação. Artigo 8° Toda pessoa tem direito a receber dos tribunais nacionais competentes remédio efetivo para os atos que violem os direitos fundamentais que lhe sejam reconhecidos pela constituição ou pela lei. Artigo 9° Ninguém será arbitrariamente preso, detido ou exilado. Artigo 10° Toda pessoa tem direito, em plena igualdade, a uma audiência justa e pública por parte de um tribunal independente e imparcial, para decidir sobre seus direitos e deveres ou do fundamento de qualquer acusação criminal contra ele. (Documento completo no site www.revolucoes.org.br)

Que relações haverá entre as revoluções e os direitos humanos? Revoluções e direitos universais O fato de as revoluções modernas e contemporâneas envolverem os propósitos mais nobres dos direitos humanos é revelador não apenas do caráter eminentemente político desses eventos, mas denota que são movimentos cuja origem é a vontade popular. Os franceses exigiam nada menos do que a reconfiguração completa das relações entre o poder e o povo, pretendiam reestruturar o Estado para que este estivesse permeável e pudesse responder a suas demandas — igualdade, liberdade, justiça, bens materiais. Por esta razão se afirma que nesses movimentos deflagradores das transformações radicais o que está em jogo é a emancipação, isto é, o desejo de que o indivíduo se torne o único senhor de sua vida e de suas decisões. Mesmo que consideremos as diferenças entre as revoluções francesa e americana, veremos que, em ambas, nunca se perde o horizonte de libertação da opressão e de realização de demandas sobre problemas como inseguranças sociais, econômicas e físicas. Do ponto de vista programático, as distinções entre esses dois eventos residem em que, na francesa, os interesses estão mais relacionados a uma noção genérica de homem, de natureza humana. Os aspectos mais específicos das demandas por libertação — problemas de gênero, raça, igualdade de bens

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materiais — não constaram das declarações. Tais ausências tornam a possibilidade de sua concretização algo distante do momento revolucionário. Um importante exemplo é que na mesma França, o direito ao voto foi concedido às mulheres apenas em 1944. Também o direito das mulheres à educação pública e universal e ao trabalho não foi reconhecido pelas instituições estatais até o século XX. Cabe perguntarmos, então, que homem terá sido esse da Declaração dos Direitos do Homem?

Certamente não era aquele que habitava regiões além do território francês. Enquanto a escravidão fora abolida na região metropolitana de Paris em 1792, ela foi restaurada pelo império, nas suas colônias, em 1802. A superioridade do homem francês em relação àqueles habitantes do Caribe — o Haiti é o exemplo maior — permaneceu garantida por decretos legais até 1848. Os críticos da Revolução Francesa sustentaram que garantir o direito desse homem abstrato é o mesmo que nada fazer. O conservador Joseph de Maistre afirmava que “conheci italianos, russos, espanhóis, ingleses, franceses, mas não conheço o homem em geral” (DOUZINAS, 2009). Marx, também crítico, afirmava que ao contrário de vazio, o “homem” da Declaração é repleto de conteúdo. Trata-se do indivíduo atomizado “o homem burguês orientado ao mercado cujo direito à propriedade é transformado em fundamento de todos os demais direitos e embasa o poder econômico do capital e o poder político da classe capitalista” (DOUZINAS, 2009). Se esta

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revolução veio cumprir ou não as demandas populares que a originaram não é discussão que poderemos desenvolver aqui. O fato relevante é que com ela o Estado adquire nova configuração e se torna mais permeável, mesmo que não para todos os homens igualmente, às demandas populares. b. Revoluções e realização do indivíduo concreto Quando as revoluções se referem ao indivíduo concreto e não ao homem universal? Revolução, liberdade e felicidade A Revolução Americana (1776) também se localiza entre aquelas que instituíram entre os direitos elementos que estão diretamente relacionados aos direitos humanos. Duas Declarações foram produzidas pelos norte-americanos revolucionários: Declaration of Independence (1776) e Bill of Rights (1791). Apesar de se distinguir da francesa, cujos protagonistas eram efetivamente vindos de camadas menos favorecidas da população, a Revolução Americana também trouxe em seu bojo o desejo de libertação das estruturas de poder e sociais estabelecidas pela monarquia; no caso, a inglesa. Porém, o fato marcante dessa revolução, do ponto de vista dos direitos, está justamente em que procura favorecer e expressar os interesses mais específicos do homem, este também muito mais concreto do que aquele que observamos na declaração francesa. Por exemplo, além da emancipação, a Declaração americana introduz o direito à felicidade.

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Há quem defenda que o que hoje se chama de “sonho americano” da realização pessoal e da satisfação advinda do esforço individual já está implícito nestas linhas. O que ali se encontra é a “crença de que os indivíduos são capazes de desenvolver seus poderes inatos imaginativos e criativos por meio da melhoria econômica e da participação na vida científica, literária e cultural” (DOUZINAS, 2009). Também estão expressos como direitos a segurança às pessoas, casas, papéis, e o de portar e manter armas. Sem que estabeleçamos juízos de valor sobre tais direitos, o que nos cabe destacar aqui é justamente a especificidade e a concretude deles em relação àqueles criados pela Revolução Francesa. c. E no Brasil? Revoltas e contrarrevoltas da elite conservadora O Estado no passado colonial e imperial do Brasil, até 1888, foi impermeável a qualquer demanda popular por liberdade e contrária à opressão. Um fato contrastante de nosso país em relação a França, Inglaterra e Estados Unidos é que esses Estados se constituíram, em sua versão moderna, a partir de revoluções que aspiravam, entre outros aspectos, à emancipação dos cidadãos. No Brasil, em que a escravidão dos negros e dos índios era um dos pilares de sustentação da economia voltada à exportação 1 — extrativista da madeira e cana, depois do ouro e cafeeira — os poderes políticos e o Estado se constituíram, ou legitimando a violência da exploração de mão de obra, ou eles mesmos se associando a essa forma viabilizadora do acúmulo de riqueza.

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Não podemos dizer que não existiram movimentos de contestação à exploração no período colônia e império da história do Brasil, isto é, antes da abolição da escravatura, em 1888. Porém, eles jamais adquiriram proporções revolucionárias, como as citadas acima. Há quem chame de revolução aos eventos que se deram em 31 de março de 1964. De fato, o que experimentamos naquele momento — veremos adiante — foi um golpe militar clássico, com todas as características dos movimentos conservadores que visam à restauração da ordem conservadora e interditam o processo de mudanças resultantes de demandas populares. Aliás, esses movimentos de interdição das demandas populares são uma constante na história do Brasil. Desde o século XVII, na região Nordeste brasileira se deram inúmeras revoltas, a maioria delas associada a disputas comerciais e/ou territoriais. Uma das primeiras revoltas que envolvem membros do povo contra elites governantes foi chamada de Balaiada, entre 1838 e 1841. Na outra ponta do país, podemos destacar os propósitos antimonarquistas dos partidários da Revolução Farroupilha (1835–1845) e sua tentativa de implantação de uma República Rio-Grandense. Porém, nenhuma delas atingiu maior repercussão para a totalidade do território brasileiro e criou marcas em favor da liberdade e dos direitos civis em geral. O movimento que cumpriu melhor esses objetivos na história do Brasil antes da abolição foi a Inconfidência Mineira, que se deu na segunda metade do século XVIII e não era propriamente de origem popular. Os Inconfidentes eram um grupo da elite intelectual e comerciante instalado em Minas Gerais, na

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cidade de Vila Rica, hoje Ouro Preto, e arredores. Estabeleceram reivindicações frontalmente contrárias aos interesses da Coroa portuguesa; então, fartamente beneficiada pelo pagamento de enormes somas de impostos junto aos mineradores e comerciantes. Contra a expropriação, chamada Derrama, os insurgentes planejaram chamar a atenção da população e sensibilizar para a necessidade de romperem relações políticas com Portugal. Entre as reivindicações dos Inconfidentes estavam: constituir uma República, instalar uma Universidade, desenvolver manufaturas no país, estimular a agricultura doando terras públicas às famílias pobres. Tanto quanto essa pauta liberal e emancipatória, é preciso aqui destacar a reação dos partidários da Coroa contra o movimento dos Inconfidentes. A violência teve sua marca mais evidente com a prisão e condenação de Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes. Enforcado, seu corpo foi exposto em partes colocadas sobre postes e a cabeça exposta em público. No século XIX, várias revoltas se associaram ao desejo de libertação dos escravos. A Revolta dos Malês, negros islâmicos que exerciam atividades livres (alfaiates, carpinteiros, artesãos), foi um exemplo entre outras várias que se deram até 1888, ano da abolição da escravidão. O movimento se deu em Salvador e pretendeu libertar negros escravizados em engenhos de cana. Todavia, foi nos Quilombos, desde o século XVII, que os negros exerceram por suas próprias mãos a resistência contra a exploração. Os escravos fugidos do domínio dos senhores se refugiavam em locais no interior das matas. Tais locais se estenderam por localidades onde hoje são os

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estados de Alagoas, Bahia, Espírito Santo, Pernambuco, Goiás, entre outros. Em 1630, o Quilombo dos Palmares, em Alagoas, chegou a contar com mais de 40 mil negros que buscavam se proteger. Zumbi dos Palmares, mesmo tendo nascido livre, em 1655, resolveu viver no Quilombo e, desde os 25 anos, se tornou o grande líder daquele local. Depois de enfrentar grandes batalhas contra os fazendeiros e membros da elite que não aceitavam a atitude de resistência à escravidão, Zumbi foi capturado e degolado, em 20 de novembro de 1695. A república das elites conservadoras Mesmo no período após a proclamação da República, em 1889, o Brasil não seguiu o roteiro daqueles Estados modernos pós-revolucionários, que responderam mais e mais aos anseios de autonomia e liberdade da população. Os embates que se deram entre camadas populares e o Estado não foram suficientes para que este incorporasse grande número de demandas contra a exploração e as arbitrariedades do poder político. Vale apontar que, nas primeiras décadas da experiência republicana, o poder central no Brasil era francamente ocupado pelas elites regionais, principalmente de São Paulo, do Rio de Janeiro e Minas Gerais. Com a ascensão de Getúlio Vargas ao poder central, não pelo voto, em 1930, vão ao primeiro plano da política nacional as elites políticas e militares do Rio Grande do Sul. Esta ascensão foi considerada por muitos estudiosos no Brasil como Revolução Tenentista. Todavia, esta repete um roteiro segundo o qual as mudanças, quando consumadas, se deram por um acordo de elites governantes

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e não como decorrência de mudanças estruturais na relação entre o Estado e o povo. Como avanços ou concessões estabelecidas pelo novo governo temos que neste momento é instituído o voto secreto, universal e inviolável. Em 1932, as mulheres poderiam votar e ser votadas e fora regulamentado o trabalho feminino. Nenhum período é mais ilustrativo de quanto o Estado brasileiro foi resistente à incorporação de direitos provenientes de demandas populares do que aquele que antecedeu o golpe militar de 1964. Desde que Jânio Quadros renunciou à Presidência e João Goulart assumiu o poder, partidos políticos, sindicatos e grupos de cunho popular, organizações estudantis, entre outros, todos estes pensavam estar a um passo de implantar as reformas de base do Estado brasileiro, que envolviam: as reformas urbana, administrativa, agrária e universitária. Além disso, defendiam a necessidade de estender o direito de voto aos analfabetos e às patentes subalternas das forças armadas, como marinheiros e os sargentos. Porém, o que causou mais descontentamento aos setores conservadores da sociedade brasileira, que encontraram respaldo em instituições do próprio Estado, como o exército, foi a defesa da reforma agrária. O objetivo desta medida seria eliminar os conflitos pela posse da terra e garantir o acesso à propriedade de milhões de trabalhadores rurais. João Goulart fora visto pelas elites conservadoras como político de orientação marxista, que teria entre outras intenções implantar no Brasil o regime comunista. Em discurso por ocasião do encerramento do 1° Congresso Camponês, realizado em Belo Horizonte em novembro

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de 1961, Goulart defendeu a importância da reforma agrária e — o mais importante para atender às demandas por direitos — alterações na Constituição brasileira. O golpe militar, em 31 de março de 1964, veio abortar essas intenções de incorporar ao Estado aspectos diretamente relacionados aos direitos humanos e à emancipação dos cidadãos brasileiros. O exílio, a morte de militantes, a tortura, a proibição às organizações partidárias, a censura, entre outras medidas de cunho repressivo e de negação dos direitos civis básicos, marcaram o grau de violência com que atuavam os ditadores no Brasil. Redemocratização e reconhecimento das demandas populares Foi o movimento pela redemocratização, iniciado em fins dos anos 1970, que retomou as pressões pelo restabelecimento da liberdade e dos direitos civis plenos. A reorganização de grupos políticos em volta de lideranças que retornavam do exílio, a retomada das greves de trabalhadores, a reorganização partidária, sindical e dos movimentos sociais, o movimento pelas eleições diretas para presidente adensaram as demandas pelo fim da ditadura. A promulgação da Constituição Federal em 1988 é um marco na consolidação dos direitos civis e humanos no âmbito das leis. Os objetivos que constam do artigo 3° nos dão a exata medida do esforço para se fixar na Carta Magna, com clareza, os direitos mais fundamentais do homem: 1. construir uma sociedade livre, justa e solidária; 2. garantir o desenvolvimento nacional; 3. erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; 4. promover o bem

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de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. A Constituição de 1988 é considerada não apenas um avanço, mas um marco em favor dos direitos civis e humanos no Brasil. Não por outro motivo foi chamada de a “constituição cidadã”. Porém, Marilena Chauí adverte que fatos do presente não nos permitem considerar tais avanços como definitivos e, menos ainda, que a sociedade brasileira tenha se livrado de sua índole autoritária. Um exemplo: a persistência da exploração de mão de obra em regiões de plantações extensivas, como cana-de-açúcar, onde se encontram trabalhadores em condições análogas às da escravidão. Chauí insiste que, no Brasil, a forma de exploração do trabalho e a reação conservadora contra quaisquer demandas dos explorados são dos traços mais marcantes de uma sociedade autoritária desde a sua gênese. Desde o período colonial, o Brasil padece de uma recusa “tácita (e às vezes explícita) de operar com os direitos civis e a dificuldade para lutar por direitos substantivos e, portanto, contra formas de opressão social e econômica” (CHAUÍ, 2000). O recurso à lei e aos fóruns de justiça é visto como um privilégio cabível às classes favorecidas. Por esse motivo, as leis são necessariamente abstratas e parecem inócuas, inúteis ou incompreensíveis, feitas para serem transgredidas e não para serem cumpridas por todos os cidadãos igualmente. Outro traço característico das instituições políticas do Brasil é a eficácia com que conseguem “bloquear o trabalho dos conflitos e das contradições sociais, econômicas e políticas, uma vez que conflitos

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e contradições negam a imagem da boa sociedade indivisa, pacífica e ordeira”. A ideologia do país ordeiro e pacífico, que agrada parcelas expressivas da população em todas as classes sociais, no Brasil tem implícita a ideia de que as demandas e conflitos contra a exploração “são sinônimo de perigo, crise, desordem e a eles se oferece como resposta única a repressão policial e militar, para as camadas populares, e o desprezo condescendente, para os opositores em geral” (CHAUÍ, 2000). Todos esses elementos históricos nos dão a medida de quão necessária é a militância em favor dos direitos humanos no Brasil atual. Também nos ensinam que esse trabalho requer empenho contínuo, persistente e em várias frentes. Isto porque ele implica não apenas alterar a dinâmica de funcionamento das instituições e do Estado como um todo, mas se instaurar uma cultura de negação, em todos os âmbitos sociais e institucionais, da violência, da exploração e da dominação que impregna a história do país, desde a sua gênese. Nota 1 Cf. Fernando Novais. Portugal e Brasil na crise do antigo sistema colonial (1777–1888). São Paulo: Hucitec, 1979. p. 68 e 70–1. Para melhor compreensão do tema, consultar Raymundo Faoro, que destaca a complexidade da agricultura no período colonial: “...nem só de cana vive o homem colonial”. In: Os Donos do Poder. vol. 1. São Paulo: Globo, 2000. p. 245.

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III

Direitos e desejos

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Lei Maria da Penha Lei 11.340 de agosto de 2006

O PRESIDENTE DA REPÚBLICA Faço saber que o Congresso Nacional decreta e eu sanciono a seguinte Lei:

DOCUMENTOS

TÍTULO I Disposições Preliminares Art. 1° Esta Lei cria mecanismos para coibir e prevenir a vio­lência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do § 8° do art. 226 da Constituição Federal, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de violência contra a Mulher, da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a contra a Mulher e de outros tratados internacionais ratificados pela Re­pública Federativa do Brasil; dispõe sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; e estabelece medidas de assistência e proteção às mulheres em situação de violência doméstica e familiar. Art. 2° Toda mulher, independentemente de classe, raça, etnia, orientação sexual, renda, cultura, nível educacional, idade e reli­gião, goza dos direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sendo-lhe asseguradas as oportunidades e facilidades para viver sem violência, preservar sua saúde física e mental e seu aperfei­çoamento moral, intelectual e social. 43

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Art. 3° Serão asseguradas às mulheres as condições para o exer­cício efetivo dos direitos à vida, à segurança, à saúde, à alimen­tação, à educação, à cultura, à moradia, ao acesso à justiça, ao esporte, ao lazer, ao trabalho, à cidadania, à liberdade, à dignida­de, ao respeito e à convivência familiar e comunitária. § 1° O poder público desenvolverá políticas que visem garantir os direitos humanos das mulheres no âmbito das relações domés­ticas e familiares no sentido de resguardá-las de toda forma de ne­gligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. § 2° Cabe à família, à sociedade e ao poder público criar as con­dições necessárias para o efetivo exercício dos direitos enunciados no caput. Art. 4° Na interpretação desta Lei, serão considerados os fins sociais a que ela se destina e, especialmente, as condições pecu­liares das mulheres em situação de violência doméstica e familiar. (Documento completo no site www.revolucoes.org.br)

Lei Paulo Delgado Lei 10.216, de 6 de abril de 2001

Dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental. O PRESIDENTE DA REPÚBLICA Faço saber que o Congresso Nacional decreta e eu sanciono a seguinte Lei: Art. 1° Os direitos e a proteção das pessoas acometidas de transtorno mental, de que trata esta Lei, são assegurados sem qualquer forma de discriminação quanto à raça, cor, sexo, orientação sexual, religião, opção política, nacionalidade, idade, família, recursos econômicos e ao grau de gravidade ou tempo de evolução de seu transtorno, ou qualquer outra. Art. 2° Nos atendimentos em saúde mental, de qualquer natureza, a pessoa e seus familiares ou responsáveis serão formalmente cientificados dos direitos enumerados no parágrafo único deste artigo. Parágrafo único. São direitos da pessoa portadora de transtorno mental: I — ter acesso ao melhor tratamento do sistema de saúde, consentâneo às suas necessidades; II — ser tratada com humanidade e respeito e no interesse exclusivo de beneficiar sua saúde, visando 45

A felicidade como ordem política moderna alcançar sua recuperação pela inserção na família, no trabalho e na comunidade; III — ser protegida contra qualquer forma de abuso e exploração; IV — ter garantia de sigilo nas informações prestadas; V — ter direito à presença médica, em qualquer tempo, para esclarecer a necessidade ou não de sua hospitalização involuntária; VI — ter livre acesso aos meios de comunicação disponíveis; VII — receber o maior número de informações a respeito de sua doença e de seu tratamento; VIII — ser tratada em ambiente terapêutico pelos meios menos invasivos possíveis; IX — ser tratada, preferencialmente, em serviços comunitários de saúde mental. Art. 3° É responsabilidade do Estado o desenvolvimento da política de saúde mental, a assistência e a promoção de ações de saúde aos portadores de transtornos mentais, com a devida participação da sociedade e da família, a qual será prestada em estabelecimento de saúde mental, assim entendidas as instituições ou unidades que ofereçam assistência em saúde aos portadores de transtornos mentais. (Documento completo no site www.revolucoes.org.br)

A felicidade pode ser universalizável como os direitos do cidadão? A relação entre direitos e desejos na Modernidade se desdobra em paradoxos. Em sua origem, Saint-Just (1767–1794), em meio aos acalorados debates franceses de 1791–1793 acerca dos direitos sociais, reconhece que a “felicidade é uma ideia nova na Europa”. Alguns poderiam afirmar que a felicidade não seria uma questão exclusivamente moderna, lembrando então da Ética dos Antigos, envolvida pelas questões da felicidade, da vida boa e do supremo bem. Contudo, na perspectiva de Aristóteles (384-322 a.C.), a felicidade estaria na realização plena da natureza de cada ser existente, de modo que, na ordem do mundo, a felicidade de um escravo seria diversa de seu senhor. As bases da modernidade são outras. Há, pois, uma verdade na declaração de Saint-Just: um modo novo de colocar a felicidade no centro do cenário político europeu. Em meio à sociedade que surge com as revoluções modernas, a felicidade adquire ares de direito, tornando-se palavra constante em declarações de liberdade, igualdade e fraternidade. Na América, Thomas Paine (1737–1809), em sua “Declaração dos Direitos dos Homens” (1792), afirma que direitos naturais como “agir conforme um indivíduo para seu próprio conforto e felicidade, que não sejam prejudiciais aos direitos naturais dos outros” (apud ISHAY, 1997, p. 237), são fundamentos essenciais para a formação social. Afinal, se cada um tem

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as condições de possibilidade para ser feliz, então a felicidade se realiza em toda a sociedade. Assim, na versão moderna da felicidade, é imperativo que os indivíduos sejam reconhecidos como pessoas jurídicas em sua particularidade. Não importa a natureza de sua origem, classe, religião — todos, em suas particularidades, são iguais perante a Lei. Com isso, inaugura-se o paradoxo que permeia a relação moderna entre desejos e direitos. O desejo é a marca da singularidade que mobiliza os indivíduos a suprir suas carências. Os direitos, por sua vez, habitam o mundo da Lei. Ou seja, se, por um lado, o indivíduo é reconhecido enquanto tal, como detentor de capacidades e desejos que lhes são próprios, por outro, é necessário que tais particularidades se coloquem “perante a Lei”. Enfim, o campo universal dos direitos é necessário para que as particularidades sejam reconhecidas como tais, de modo que o direito de um não prejudique o de outro. Enfim, a particularidade dos desejos está submetida à igualdade de direitos? Ora, o desejo adquire cidadania perante a Lei, mas disputa a todo instante por um espaço de reconhecimento que confere ao indivíduo seu lugar na sociedade. Afinal de contas, até onde vai o direito e o dever de cada um? O filósofo Kant seria um dos primeiros a responder ao desafio das revoluções modernas, considerando o paradoxo em seus limites. A faculdade humana de desejar repousa na capacidade que cada sujeito tem em gozar a felicidade. Assim, cada um apostaria

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sua felicidade naquilo que, de acordo com sua opinião particular, pode proporcionar mais prazeres e menos sofrimento. O desejo, portanto, carece de critérios objetivos; e, apesar de humano, não consegue oferecer uma base universalmente reconhecida para pautar as práticas e o convívio social. A ordem das práticas sociais deve seguir outros critérios que condicionem a humanidade para o reino da liberdade. Seria, pois, a Lei moral, e não mais a felicidade, que ofereceria critérios universalmente reconhecidos para as ações dos indivíduos: deve-se, pois, submeter o desejo particular à vontade da Lei — eis o que Kant opera em seu imperativo categórico, pelo qual se deve agir de tal maneira que a vontade de cada um possa valer como princípio de uma legislação universal. Em uma linguagem mais prática, alguém pode, em vez de cometer uma injustiça por defesa própria, optar livremente por arriscar sua vida em prol da justiça. Isso porque, na visão de Kant, a Lei moral — e não o desejo subjetivo — fornece bases para a deliberação deste indivíduo. O respeito às diferenças estabelece um relativismo moral ou é uma ampliação dos direitos? Todavia, como se diz, “na prática, a regra é outra”. Por mais que a resposta kantiana da Lei universal se desvie do relativismo moral e seus conflitos (e a história das revoluções modernas está repleta de exemplos de tais discórdias), a particularidade do desejo ainda permanece. As diferenças socioculturais ainda insistem em adquirir a igualdade de direitos. É o que se comprova no decorrer de nossa história:

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continuamente a particularidade de um grupo ou a monstruosidade de um ato colocam em xeque a ordem social estabelecida. A luta pela efetivação dos desejos em busca de reconhecimento social mobiliza o terreno aparentemente intacto dos direitos. De modo que podemos nos questionar: será que a ordem dos desejos é tão inadequada ao direito? Haveria uma dinâmica possível em que desejos e direitos operem não mais como opostos? Qual estabilidade social é fornecida ao direito quando se emancipa a variedade dos desejos humanos? Tais questões são recorrentes entre as décadas de 1950 e 1970, na chamada Revolução Sexual. Da “juventude rebelde” aos profetas do “paz e amor”, buscou-se uma reorganização cultural com valores diversos aos de um mundo das Grandes Guerras. Os corpos reivindicavam seus direitos e enfrentariam o padrão comportado da vida do lar. Mais do que ícones cinematográficos, direitos e manifestações de uma nova cultura surgiriam em diversos cantos do planeta. A recusa da velha ordem se expressou na busca de uma nova moda, de um novo ensino, de uma nova ciência e tecnologia, de uma nova relação entre povos e raças, ou de uma nova expressão da sexualidade. O direito de uma nova organização cultural reivindicava não apenas a igualdade civil entre brancos e negros, como também modos livres e autônomos de amar. Movimento que conquistou sua expressão em 1968. Se, neste período, a imaginação ocupou o poder, junto com ela estaria o desejo. O filme Bem-vindos (direção de Lukas Moodysson, 2000) seria sensível aos tipos de questões que esta nova ordem traz.

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Nele, Elisabeth encontra um modo diferente de vida, no qual todas as decisões são debatidas e todos os conflitos são expostos. Crianças fazem seus protestos, a sexualidade floresce sem limites e o modo de vida passa a ser tema constante das mesas de jantar. Trata-se de um quadro interessante que coloca à ordem do dia os debates da revolução sexual da metade do século passado. Discursos que ainda hoje aparecem nas reivindicações mais humanas pelos direitos da mulher ou também pelas críticas aos regimes de isolamento em presídios e hospícios. Vejamos estes casos mais recentes e seus paradoxos. Os direitos das mulheres: a igualdade das diferenças Dos paradoxos atuais, é recorrente a questão: Como dispositivos jurídicos podem estabelecer uma nova ordem cultural? Em 2006, passou a vigorar no Brasil a Lei Maria da Penha que cria “mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher”. Com o surgimento da lei, alguns juristas levantaram dois grupos de objeções. Primeiro, partindo de pressupostos culturais, alegou-se que a lei enfraqueceria a ordem “masculina” do mundo, contrariando um problema que viria de “Adão e Eva”. Tais declarações questionam o fato de uma lei poder intervir nos costumes e deliberações do casal, ignorando os altos índices oficiais de violência doméstica na família brasileira. Um segundo argumento contrário à Lei parte de aspectos formais. Trata-se de um artifício recorrente

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entre os críticos dos direitos humanos: a Lei Maria da Penha seria anticonstitucional na medida em que, ao qualificar um modo específico de violência de gênero, fere o artigo 5° da Constituição, que rege sobre a igualdade de direito. Apoiados em costumes ou no formalismo da Lei, em nome da liberdade privada ou da igualdade de direitos, estes argumentos são apenas alguns exemplos de uma longa trajetória que contrapõe a ordem dos direitos e a singularidade dos desejos humanos. Casos como a Lei Maria da Penha, apoiada não apenas nas antigas reivindicações feministas, mas também em princípios elementares dos direitos humanos, evidenciam aspectos ocultados pelo pretenso caráter universal da Lei. Das várias lições que a luta feminista oferece, uma das mais evidentes é a de que, aliado à emancipação dos desejos, o direito passa a ter um significado distinto. Mais do que uma declaração formal de princípios, o direito se mostra como elemento vivo que acompanha o contínuo movimento dos desejos e a ordem de liberdade correspondente. Afinal, de que adianta a igualdade formal de direitos entre homens e mulheres, se tal conquista significa uma identificação de todos os gêneros em uma ordem social que ainda reprime as potencialidades de todos? Em outros termos, a luta digna por igualdade salarial pouco significa quando a mulher ainda acumula uma dupla jornada de trabalho, mantendo os papéis sociais de trabalhadora e dona de casa. Tampouco, se esta luta significa a manutenção de uma árdua dupla jornada bem repartida entre o casal.

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De outro modo, a luta feminista abre uma nova série da ordem do direito, que redimensiona o corpo humano e seus gêneros em uma ordem cultural distinta do patriarcado que ainda hoje persiste nas instituições públicas ou nas relações sociais mais íntimas. Enfim, o feminismo aponta para um modo de direito associado ao desejo, capaz de compreender a igualdade das diferenças: um direito tão dinâmico quanto nossas pulsões. Nova dinâmica que implica novos impasses. Perversões & Crimes: o que fazer quando o desejo é mais forte do que a Lei? Na relação estabelecida entre o direito e o desejo, é legítimo questionar: o que fazer quando a singularidade de um ato pode ser algo que fere o tecido social? O que fazer quando o estado mental e físico de alguém propicia sofrimentos não apenas ao próprio indivíduo como também àqueles com os quais convive? Enfim, o que fazer quando a singularidade do desejo é caracterizada como algo possivelmente mais forte do que a Lei? A resposta da modernidade encontra seu maior símbolo na guilhotina. Ali se executavam diante de olhos curiosos, em nome da Lei, monarcas e aristocratas, antigos partidários e radicais extremistas. Método rápido e eficiente, distinto das longas horas de tortura e sofrimento das fogueiras da Inquisição, embora não menos espetacular e cruel. Há no registro simbólico da guilhotina uma marca de poder que se articula com os paradoxos da relação entre direitos e desejo. Não apenas a guilhotina expressa

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o corte entre o universo mental e o corporal, como também expressa a vontade de poder que classifica e delimita a singularidade dos desejos. Registro simbólico que atravessa os tempos e ainda encontra ecos nos regimes de internação e disciplinarização pelos quais a sociedade moderna se organiza. Neste sentido, o Direito à Preguiça (1883) de Paul Lafargue (1842 –1911) registra o paradoxo do capitalismo nascente: na França da Revolução e dos Direitos Humanos a produção se organizava em jornadas de trabalho de dezesseis horas com uma hora e meia para as refeições. Algo que contrasta com as dez horas para os trabalhos forçados nas galés ou as nove horas de trabalho aos escravos das Antilhas (2011, p. 18). Nesta comparação, Lafargue ataca os regimes de internação das fábricas, onde os trabalhadores (homens, mulheres e crianças) passavam o dia. O corpo social estaria, digamos, “guilhotinado” entre o mundo do trabalho e das penas e o mundo das riquezas e dos prazeres. Pode-se afirmar que o regime de trabalho desde então foi modificado, em parte pelas novas exigências do capitalismo e em grande parte por organização dos movimentos operários. No entanto, o ponto a ser considerado aqui é outro: a lógica da internação ainda persiste, mesmo que suas personagens sejam outras. Foucault apresenta estudos pioneiros para compreendermos esse fenômeno moderno do isolamento, encontrado, por exemplo, nas prisões e hospícios modernos. Entre um espaço e outro, o isolar aquilo que excede à ordem social é contínuo. Tudo se passa como se o valor moderno do reconhecimento das liberdades individuais provocasse seus “efeitos

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colaterais”: os corpos que perturbam a margem consentida socialmente não podem circular pelas ruas. O direito não permite perversões. Contra isso, a modernidade oferece saberes e forças que contenham, isolem ou aniquilem aquilo que é considerado ameaçador ao modo de vida estabelecido. As análises de Foucault apontam para a crítica deste sistema e alimentaram as lutas de movimentos sociais contra tais regimes de internação, muito fortes nos anos 1970. Um exemplo clássico é o movimento antimanicomial. Suas reivindicações apoiadas nos direitos humanos obtiveram conquistas recentes no Brasil, como a Lei Paulo Delgado de 2001. Nela, o saber médico passa a reconhecer a voz do paciente como determinante nos destinos terapêuticos. Diante deste reconhecimento, o isolamento dos ditos “loucos” torna-se inviável. Mais do que isso, o limite de convivência entre o humano e o inumano é revisto. Para além da relação médico-paciente, o “louco” ganha espaço na convivência social, representação política e, sobretudo, uma nova significação. Pode ser que esta condição, como alguns afirmam, propicie uma irresponsabilidade do Estado com seus doentes; ou ainda, é fato que o sofrimento subjetivo não se elimina nesta abertura. Contudo, é preciso reconhecer que, nesta luta, a “guilhotina” entre a loucura e a normalidade perde seu fio. O que nos faz indagar: surgem aqui novos desafios aos paradoxos da relação entre desejos e direitos, que abram caminho para uma melhor compreensão do sofrimento humano e a realização da felicidade?

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IV

Direitos Humanos, Instituições e Educação

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Constituição da República Federativa do Brasil de 1988

TÍTULO I Dos Princípios Fundamentais Art. 1° A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado democrático de direito e tem como fundamentos: I — a soberania; II — a cidadania; III — a dignidade da pessoa humana; DOCUMENTOS

Art. 5° Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: I — homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição; II — ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei; III — ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante; IV — é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato;

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a. Instituições e realização dos direitos humanos CAPÍTULO III Da Educação, da Cultura e do Desporto SEÇÃO I Da Educação Art. 205. A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho. Art. 206. O ensino será ministrado com base nos seguintes princípios: I — igualdade de condições para o acesso e permanência na escola; II — liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber; (Documento completo no site www.revolucoes.org.br)

Que instituições podem efetivar os direitos humanos? A prática institucional dos Direitos Humanos Desde a publicação da Declaração dos Direitos do Homem, após a Revolução Francesa, essa pergunta ocupou as preocupações daqueles que trabalham pela concretização dos propósitos dos direitos humanos. Pode-se afirmar que, desde a publicação das declarações que consumavam os propósitos revolucionários, tanto instituições do Estado quanto sociais, as mais variadas, em diversos países procurou-se positivar os direitos humanos. Não é absurdo dizer que o grande esforço tem se dado no sentido de tornar globais os direitos humanos. E nesse sentido desafios se apresentaram. Primeiro porque essa positivação que dosa direitos humanos não é suficiente para produzir libertação e autonomia aos cidadãos se a isso não se junta a pressão pela efetivação desses direitos. Vários exemplos ilustram isso. Se tomarmos a realidade de trabalho das mulheres no século XIX e notarmos que até hoje elas são francamente desfavorecidas nessa dimensão da vida social em vários países, como o Brasil, se verá quão importante são as pressões desenvolvidas por grupos e movimentos feministas pela libertação das mulheres e pela equalização dos direitos civis. Desde a primeira greve realizada apenas por mulheres, em 08 de março de 1857, a pauta pela equiparação dos direitos parece teimar em não se resolver. Naquele momento, as grevistas reivindicavam

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melhores condições de trabalho, tais como redução na carga diária de trabalho para dez horas (as fábricas exigiam 16 horas de trabalho diário), equiparação de salários com os homens (as mulheres chegavam a receber até um terço do salário de um homem, para executar a mesma tarefa) e tratamento digno dentro do ambiente de trabalho. No Brasil, hoje, essas reivindicações não nos parecem tão absurdas e ultrapassadas se considerarmos a realidade por que passam muitas mulheres em regiões onde as leis não fazem parte da realidade das relações de trabalho, ou, menos ainda, se considera que o trabalho doméstico e com o cuidado de filhos, netos e afins, seja, de fato, um trabalho. Desse modo cabe perguntarmos: como falar em igualdade dos sexos ou de gênero se não é difícil encontrar no Brasil mulheres que trabalham em tripla jornada — manhã e tarde na profissão, parte da noite no doméstico? Segundo, a prática dos direitos humanos não é tarefa comum às instituições nem em países ricos e menos ainda naqueles pobres. Não obstante essa prática institucional ser o reflexo de todas as lutas travadas em favor dos direitos humanos, a normalidade das instituições tende a não incorporá-la como algo importante ou prioritário. Como afirma Douzinas, os direitos humanos constituem “simultaneamente um princípio de engrandecimento do Estado e um princípio protetor contra o poço sem fundo do desejo do Estado” (DOUZINAS, 2009). Os direitos humanos funcionam como mecanismo para a defesa do indivíduo e a promoção de sua autoafirmação; eles são fundamentalmente um instrumento de proteção e resistência. Mas é possível realizá-los sem que instituições os promovam?

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Vários outros exemplos poderiam ser aprofundados aqui para que vejamos o quanto são distantes do que está nas leis sobre os direitos humanos e a experiência dos direitos feita pelos mais diversos grupos sociais. Como, então, viabilizar a efetivação dos direitos humanos? b. Instituições e Educação para os direitos humanos Afora o Estado, um sem-número de instituições trabalham para promover e realizar os princípios dos direitos humanos. Não é o caso aqui de mencioná-las especificamente, mas convém lembrar como algumas realizam trabalhos que suplantam o trabalho do Estado, quando não, em alguns casos, essas mesmas instituições funcionam complementando os órgãos estatais. A Anistia Internacional, por exemplo, é organização que tem por missão “realizar pesquisas e desenvolver ações com o objetivo de prevenir e de pôr fim aos mais graves abusos dos direitos humanos, bem como exigir justiça para as pessoas cujos direitos foram violados”.1 Para realizar esses objetivos, a Anistia incentiva que seus membros procurem “influenciar governos, organismos políticos, empresas e grupos intergovernamentais”. Seus ativistas são estimulados a se envolver com questões de direitos humanos e desenvolver mobilizações que sensibilizem a opinião pública: manifestações, vigílias, ações de pressão aos governos, campanhas pela internet, entre outros subsídios. O Tribunal Penal Internacional foi estabelecido pela ONU, em 1993, e tem a competência, enquanto

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tribunal permanente, de julgar os crimes mais graves para a comunidade internacional, que atentem contra os princípios dos direitos humanos, independente do lugar em que foram cometidos. O Brasil é um dos países signatários do Tribunal. São estabelecidos como crimes que podem ser julgados pelo TPI aqueles definidos como crimes de guerra: os atos de agressão sexual, escravidão sexual, prostituição forçada, gravidez à força, esterilização à força ou qualquer outra forma de violência sexual; utilização de crianças com menos de 15 anos para participar ativamente nas hostilidades, humilhação e subjugação de inválidos ou incapazes. Também o genocídio cometido em suas mais inimagináveis variações é entendido como crime que compete ao julgamento do TPI. Assim, qualquer atentado que busque destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso, é considerado passível de julgamento. O aspecto inovador e que é fonte das restrições de vários países à assinatura do acordo de aceitação do TPI é que este é um tribunal que se coloca acima dos Estados e das suas constituições específicas. Os tribunais nacionais dos países signatários continuam exercendo função de julgamento sobre seus cidadãos, mas o TPI reserva para si o direito de avaliar se um indivíduo cometeu ou não os crimes previstos como passíveis de pena. Os tribunais especiais, que tratam de eventos específicos (guerra da Bósnia, Ruanda), não substituem os trabalhos desenvolvidos pelo TPI. Basta que um procurador de um Estado-membro signatário do TPI conclua que um Estado não possa realmente ou não deseje julgar os supostos criminosos de guerra que

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estejam sob sua jurisdição. Para serem beneficiados com esse princípio, entretanto, os Estados necessitam de uma legislação adequada que lhes permitam julgar esses criminosos. Porém, tudo isto é suficiente para que os direitos humanos sejam, de fato, respeitados? A resposta não é tão simples. O aspecto para o qual os especialistas em direitos humanos mais têm chamado a atenção, que torna eficaz o pensamento, as demandas e a aplicação dos princípios dos direitos humanos, é a importância da promoção da Educação. É imprescindível o estímulo para que a população se forme e se informe segundo parâmetros educacionais estabelecidos por organismos comprometidos com a defesa dos direitos humanos, sejam eles nacionais — a Secretaria Nacional de Direitos Humanos — e internacionais — a Unesco. Oficialmente, não são poucos os Estados que procuram atender esses parâmetros no nível das instituições governamentais. A própria Constituição do Brasil estabelece que “a educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”. Em seu artigo 206 estabelece como princípios: I — igualdade de condições para o acesso e permanência na escola; II — liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber. No artigo 214, Capítulo III, a lei estabelece que no plano nacional de educação devem constar como princípios insubstituíveis elementos que dizem respeito diretamente aos direitos humanos:

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I — erradicação do analfabetismo; II — universalização do atendimento escolar; III — melhoria da qualidade do ensino; IV — formação para o trabalho; V — promoção humanística, científica e tecnológica do país. Como garantir, no nível da prática, que esses princípios norteiem a ação de professores, supervisores, escolas e promotores da Educação em todos os níveis? Desafios da Educação para os direitos humanos A Educação, formal e não formal, em todos os seus níveis — desde os básicos até aqueles relacionados à pesquisa acadêmica —, tem papel imprescindível para a efetivação dos direitos humanos. Primeiro, porque pela educação é que se poderá criar uma cultura de respeito e de vigília aos princípios invioláveis da dignidade humana. Trata-se de introduzir nos costumes, nos hábitos cotidianos das populações a promoção dos direitos básicos à vida, sem apelar a uma uniformização dos valores e, menos ainda, insistir na padronização das ações que promovam os direitos humanos e possibilitem as denúncias contra as violações a eles. Segundo, a educação para os direitos humanos supõe que os cidadãos sejam estimulados a mobilizar-se pela liberdade; que atentem para a importância de realizarem mudanças estruturais visando à transformação de instituições do poder que favorecem a opressão, a dominação, a destruição da igualdade de direitos. Porém, o maior desafio em um país em que os direitos parecem ser historicamente

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reservados às elites econômicas é fazer os cidadãos, qualquer cidadão, despertarem para o fato de que são sujeitos de direitos. Como afirma Vera Candau, “esta consciência é muito débil, as pessoas — até por ter a cultura brasileira uma impronta paternalista e autoritária — acham que os direitos são dádivas” (CANDAU, 2007). Assim, é necessário defender que os cidadãos liberem o poder, sua potência individual, de grupos minoritários, ou de maiorias silenciosas e oprimidas — o caso das mulheres em muitos lugares e dos negros no Brasil até há poucos anos — de ser sujeito de sua vida e ator social. Outro aspecto imprescindível que concerne à Educação é a recuperação da memória de exploração, dominação e afronta aos princípios dos direitos humanos. Não por outro motivo, as populações para as quais a educação formal é negligenciada ou negada, as referências históricas, o passado de opressão não é conhecido para ser revisto, fato que as torna mais vulneráveis à dominação. Também nessas mesmas sociedades, direitos como a liberdade de expressão e de manifestação da opinião não figuram no horizonte de princípios basilares que devem regular a relação entre o Estado e os cidadãos. Apenas a Educação pode fazer com que os cidadãos vejam sua opinião e o seu pensamento como elementos indissociáveis de sua individualidade. Esses motivos fazem com que os defensores dos direitos humanos sejam também militantes a favor da universalização da educação. Nota 1 Disponível em: http://br.amnesty.org/?q=quem_ai. Acesso em: 07/02/2011

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Imaginário, Futuro e Utopia

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Declaração Universal dos Direitos da Mãe Terra

Elaborado na Conferência Mundial dos Povos sobre Mudança Climática e Direitos de Pacha Mama, Cochabamba, Bolívia, abril de 2010. Preâmbulo Nós, os povos da Terra:

DOCUMENTOS

Considerando que todos e todas somos parte da Mãe Terra, uma comunidade indivisível e vital de seres independentes, inter-relacionados e com um destino comum; Reconhecendo com gratidão que a Mãe Terra é fonte de vida, alimento e ensinamento, e provê tudo o que necessitamos para viver bem; Reconhecendo que o sistema capitalista e todas as formas de depredação, exploração, abuso e contaminação tem causado grande destruição, degradação e alteração da Mãe Terra, colocando em risco a vida como hoje a conhecemos, produto de fenômenos como a mudança climática; Convencidos de que em um sistema interdependente não é possível reconhecer direitos somente aos seres humanos, sem provocar um desequilíbrio na Mãe Terra; Afirmando que para garantir os direitos humanos é necessário reconhecer e defender os direitos da Mãe 71

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O campo imaginário dos direitos humanos Terra e de todos os seres que a compõem, e que há culturas, práticas e leis que o fazem; Conscientes da urgência de agir coletivamente para transformar as estruturas e sistemas que causam as mudanças climáticas e outras ameaças à Mãe Terra, Proclamamos esta Declaração Universal dos Direitos da Mãe Terra, e fazemos um chamado à Assembleia Geral das Nações Unidas para adotá-la, como propósito comum para todos os povos e nações do mundo, a fim de que tanto os indivíduos quanto as instituições se responsabilizem por promover — mediante ensinamento, educação, conscientização — o respeito a esses direitos reconhecidos nesta Declaração, e assegurar com medidas e mecanismos imediatos e progressivos, de caráter nacional e internacional, seu reconhecimento e aplicação universais e efetivos entre todos os povos e Estados do mundo. (Documento completo no site www.revolucoes.org.br)

Em que os direitos humanos alteram a imagem que fazemos de nós mesmos? Como nos lembra Douzinas, os direitos consistem em uma técnica que opera no imaginário. Com isto, compreende-se que direitos constituem identidades, de modo que, com eles, os indivíduos se reconhecem e são reconhecidos socialmente mediante uma imagem que detém as características contidas naquele corpo jurídico. Operar no imaginário significa então recorrer a uma dupla função que resulta na constituição de identidades. Primeiramente, o indivíduo aparece perante a lei como um todo a ser desmembrado. Ou seja, a boca não tem mais o significado amplo e variado que cada indivíduo poderia conferir a ela, enquanto parte constitutiva de seu próprio Eu. Mediante o artifício do direito, a boca torna-se parte da “liberdade de expressão” (DOUZINAS, 2009, p. 328). O que leva a um segundo movimento, que sintetiza o corpo imaginário do indivíduo no corpo simbólico das leis, enquanto pessoa jurídica. Tudo se passa como se, mediante as leis, o modo como imagino meu próprio corpo fosse “traduzido” para uma nova linguagem, em que sou reconhecido como sujeito pleno de direitos e deveres. Isso nos remete a diversos conflitos próprios às disputas legais. Conflitos que se acentuam, por exemplo, nos casos de aborto, em que as decisões das mulheres partem do vínculo imaginário com valores

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religiosos, sociais ou econômicos, nos quais sua identidade é apresentada. É a partir daí que a mulher expressa sua decisão à junta médica, que enxerga sua paciente, por sua vez, como um corpo jurídico (um conjunto relativo seja aos direitos de culto, seja ao direito à vida, etc.). Entre os dois polos da relação, por vezes ocorrem divergências no que se refere à imagem que cada grupo terá sobre o corpo feminino e seus direitos. Assim, o aborto pode transmitir significados jurídicos diversos entre os lados da decisão, proporcionando conflitos de interpretação. Por isso, é possível afirmar com Douzinas que o direito geralmente cria conflitos em vez de resolvê-los. Ao considerar o direito para além de uma declaração de princípios, estática no tempo e no espaço, mas como um tecido vivo em que os indivíduos podem ou não se reconhecer como iguais, o campo imaginário mostra-se como território de disputas, pelos quais o significado de personalidade jurídica se altera historicamente. Daí a perspectiva de que os significados jurídicos da mulher, da propriedade, ou mesmo do ser humano sofram variações históricas. Mais uma vez, refletir sobre o direito nos leva a paradoxos que estão presentes nas bases do agir jurídico. Através da relação com o imaginário, o direito propicia ao indivíduo uma identidade reconhecida socialmente. Os sujeitos se apresentam perante a lei enquanto trabalhador, proprietário, homossexual, consumidor, etc. — garantindo-se em seu grupo legal. Contudo, o imaginário é um elemento móvel pelo qual os corpos jurídicos se enfrentam, solidarizamse ou se transformam no decorrer das relações sociais. De modo que, como afirma Douzinas, quanto

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mais direitos eu tenho, maior meu desejo de “ainda mais” (DOUZINAS, 2009, p. 330), ou seja, a luta por reconhecimento entre os diversos grupos jurídicos se amplia, rearticulando o solo pelo qual a identidade se afirmava. Assim, o imaginário do trabalhador não reside apenas nos direitos da fábrica, mas também enquanto membro de uma família, com demandas de consumo e opções culturais diversas. Seus direitos se estendem a campos que seguem além de sua composição jurídica. E os direitos humanos operam nesta peculiaridade. Mais do que fixado em um grupo de direitos de um campo simbólico constituído, os direitos humanos se vinculam de modo imediato ao jogo imaginário. Na visão de Douzinas, eles não são um “direito dos direitos”, como um terreno mais profundo a ser desvendado pela máquina jurídica; mas, sim, são direitos que operam no jogo livre do imaginário e, por isso mesmo, atuam em camadas sociais mais dinâmicas que as postas pelo direito positivo. Mas o que isto implica? Isto não confirma a tese dos críticos dos direitos humanos, ao apontar para a fragilidade de suas declarações? Não significa considerá-los como relativos e, por isso, limitados quanto à defesa de seus sujeitos jurídicos? Talvez. É impossível negar que por vezes os direitos humanos sustentam paradoxalmente um discurso de barbárie. Lembremos os debates do “11 de Setembro” em que se justificava a violação de direitos humanos pelos próprios direitos humanos. Uma lei como o USA Patriot Act, aprovada pelo Congresso Americano, estabelecia, em nome da defesa nacional

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e com consentimento de grande parte da população, violações de direitos básicos como a invasão dos lares. Mais do que um exercício de retórica, exemplos como este demonstram o quanto os direitos humanos ocupam um terreno do imaginário. Contra a imagem sem face do terror, estrutura imaginária típica, uma cadeia de direitos é fortificada ou enfraquecida em nome da defesa do que há de humano em nós. É como se o “ainda mais” desejado pelo direito encontrasse conforto na “guerra” contra ameaças, ainda que em detrimento de outra série de direitos. Porém, é possível compreender esta associação dos direitos humanos ao imaginário conforme uma perspectiva de alargamento dos direitos. Movimento constante se analisarmos a história dos direitos humanos. Para Douzinas, é necessário que se reconheça o perigo do artifício dos direitos humanos. Mas, também, é preciso reconhecer neles a recuperação de um campo utópico perdido nas duas últimas décadas. Entretanto, em que sentido recuperar uma linguagem empoeirada da utopia responderia às acusações dos críticos dos direitos humanos? O “não-lugar” dos direitos humanos Quando alguém como Francis Fukuyama apresenta o mundo Pós-Guerra Fria como o “fim da história”, representa também o mundo como determinado pela realidade sem alternativas. O jogo político passou a ser caracterizado como um tabuleiro, cujas regras eram dadas de antemão e os “jogadores” deveriam se acostumar com a crueza destas determinações. Decretou-se com isso o fim das utopias no discurso político.

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Contudo, a imaginação é uma aliada ou uma fraqueza nas demandas sociais? Utopias surgem na história da humanidade como um alerta crítico da realidade estabelecida. Científicas como a Atlântida de Francis Bacon (1561–1626) ou irônicas como os exageros do país da Cocanha (de autor anônimo, século XIII), os autores nos remetem a um não-lugar em que as possibilidades estavam abertas. Mas tal exercício crítico estaria fadado ao fracasso quando não houvesse mais polaridades, quando a realidade única se tornasse hegemônica. Entretanto, não se trata deste modelo de utopia que alimenta os direitos humanos. Ernest Bloch (1880–1956) apontaria para a “utopia concreta”, o que parece mais um dos paradoxos de nossa leitura. Ao associar os termos aparentemente contrários, Bloch quer afirmar um movimento pelo qual aquilo que poderia ter sido, mas não foi, deixa suas mensagens para as futuras gerações. Na utopia reside um “ainda não” que deixa uma “reminiscência do futuro”. Como se algo no presente articulasse mensagens do passado que anunciam o futuro. Como se na história dos derrotados estivesse não a história das vítimas, a história da humanidade que ainda não se realizou. E os direitos humanos apontam para este não-lugar: em seu imaginário impera a ordem da humanidade que ainda não é, de um lugar que ainda está para ser desvendado, embora nunca de maneira completa. Operar junto ao imaginário, como vimos, significa ocupar-se continuamente com a constituição de identidades que se alargam ou se atrofiam. Dinâmicas que revelam uma luta em camadas profundas da

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história da humanidade. É no imaginário que estão registradas estas “reminiscências do futuro”, a humanidade que ainda não é. Desafios para o nosso imaginário, exigências para os direitos humanos: novos sujeitos Mergulhar os direitos humanos no registro do imaginário utópico talvez possa desbloquear alguns impasses que nosso mundo atual nos coloca. Afinal, muitas das descobertas científicas, muitas das catástrofes sociais e naturais atingem diretamente o imaginário do que nos identifica como humanos. Que desafios as novas descobertas científicas trazem aos direitos humanos? Há quem nos afirme que vivemos atualmente o tempo do “pós-humano”. Paula Sibilia acompanha este discurso em seu Homem Pós-Orgânico, quando aponta sobretudo para os avanços da ciência no que diz respeito aos limites do que outrora poderíamos afirmar vivos ou mortos. Mais do que uma ciência do controle dos efeitos naturais, o que se apresenta no cenário é a transformação ou mesmo criação de elementos naturais nunca dantes imaginados pelo homem, salvo nos livros de ficção científica. Em outras palavras, o pós-humano possibilita um debate acerca do quanto o homem é, ou não, mais do que um código genético a ser descoberto. Código este que está inscrito de maneira diversa entre as espécies naturais. Códigos que podem ser traduzidos entre os

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seres, como nos apresentam as técnicas de manipulação genética. Neste registro, desponta um campo imaginário com novas referências do significado da humanidade, diante das quais se posicionam os direitos humanos. Por outro caminho, por vezes crítico ao discurso científico do pós-humano, movimentos ecológicos também demandam um alargamento do campo imaginário. É notável que na Declaração Universal dos Direitos da Mãe Terra (Bolívia, setembro de 2006), os signatários do documento tenham como principal base a consideração da Natureza como um corpo jurídico. Não se trata, como registrado nos tempos medievais, de condenar ratos mediante o tribunal de humanos. Ao contrário, trata-se de, ao reconhecer a Natureza como sujeito — e os seres humanos como parte deste ecossistema —, poder criar mecanismos de controle e defesa da conduta humana enquanto ser vivo entre os demais. Ora, apesar das diferenças, algo reside entre os discursos do “pós-humano” e dos “ecologistas em defesa da Mãe Natureza”: em ambos os casos, é notável que o imaginário acerca do humano foi alargado e, em sua nova vizinhança, uma ideia de natureza se torna tema obrigatório para as proclamações dos direitos humanos. Estaria aqui uma das reminiscências do futuro? Nada mais antigo e tão cheio de significados do que a relação entre homem e natureza. Se há algo ignorado pela pretensão do “fim da história” são os processos que esta correspondência tem demonstrado com cada vez maior intensidade a cada giro do mundo. Estariam aqui alguns sinais do imaginário e uma

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revitalização do utópico que alimenta os direitos humanos após a primeira década do século XXI? A qualidade de vida e os desafios do milênio Neste território, os direitos humanos não se colocam como um único solucionador de conflitos, mas, certamente, como um modo de compreendê-los. E não apenas naqueles existentes entre homem e natureza, mas sobre o próprio modo como vivemos até hoje. A atualização dos direitos humanos é uma recuperação ou uma renovação de valores? O alargamento imaginário exigido pelos direitos humanos no início do século XXI não apenas coloca a natureza como pessoa jurídica de direitos, como também provoca variações no significado da vida social. São particularmente recentes os esforços governamentais e supragovernamentais em explicitar índices comparativos entre as nações, como o IDH (índice de desenvolvimento humano), apreendendo não apenas o nível econômico, mas o conjunto de serviços básicos oferecidos à população (como educação, saúde, alimentação). Além disso, não podemos esquecer a Declaração do Milênio (2000), em que muitos países se comprometeram com lutas históricas, como a erradicação da miséria. No entanto, mais de uma década se passou e ainda continuamos girando no mesmo ponto. Conflitos por comida, muitos deles levados ao extremo, como os de 2008 — não apenas nos países africanos

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e asiáticos, mas também no Leste Europeu, e em países da América Latina, como a Bolívia –, não são cenários descartados em nossa atualidade pelos analistas políticos. Talvez tenhamos que operar em novos territórios de nosso imaginário social. Questões que apontam para a complexidade de valores que um ato consensual, como a erradicação da miséria, pode carregar. Afinal, do que se trata ao se dizer “erradicar a miséria”? Partindo do imaginário liberal, o fim da miséria seria efetuado pelo fortalecimento dos sistemas de produção, que gera empregos para a população e, por conseguinte, riqueza social. Partindo do imaginário igualitário, as riquezas sociais já existem, mas precisam ser distribuídas de modo que não haja mais miséria na sociedade. Talvez Maria Benevides tenha razão ao interpretar que os direitos humanos do século XXI exigem não mais um regime igualitário que confere todo poder ao Estado para assegurar a economia forte; muito menos, um regime liberal que coloca as exigências de mercado como valor absoluto para assegurar ao cidadão sua liberdade privada. Ambos os modelos têm seus custos e as experiências históricas anunciaram seus limites. Em contrapartida aos dois modelos modernos da liberdade e da igualdade, a autora indica a necessidade de atualizar a solidariedade como valor maior dos direitos humanos (SILVEIRA, 2007, p. 349). Menos do que o sentido romântico conferido a este conceito, afirmar isso aponta para um imaginário em que o campo da humanidade não se limita às liberdades individuais nem as exclui, mas que atravessa o regime das nações, sem excluir sua soberania. Mais do que

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isso, a solidariedade pensa radicalmente os valores e questiona continuamente a relação que a vida social estabelece cotidianamente. Enfim, o paradigma dos direitos humanos indica variações, em que a solidariedade é identificada aos processos de reconhecimento social. Tarefa repleta de paradoxos remetida a quem estabelece ações e ideias a partir dos impulsos dos direitos humanos. Diante do desafio, resta saber se o caráter utópico e imaginário dos direitos humanos é para um futuro que está por vir ou para um tempo que é agora.

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Projeto Revoluções Realização Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República Maria do Rosário Nunes Instituto de Tecnologia Social ITS Brasil Conselho deliberativo Presidente Marisa Gazoti Conselho Roberto Dolci Pasqualina Sinhoretto Laércio Lage Maria Lucia Arruda Alcely Barroso Consultores Técnicos Marcelo Elias Yara Naí Estagiária Julia Ferreira Tatto

Serviço Social do Comércio Administração Regional no Estado de São Paulo Presidente do Conselho Regional Abram Szajman Diretor do Departamento Regional Danilo Santos de Miranda Superintendências Técnico Social Joel Naimayer Padula Comunicação Social Ivan Giannini Gerências Ação Cultural Adjunto Assistentes Estudos e Desenvolvimento Adjunto Artes Gráficas

Rosana Paulo da Cunha Flávia Carvalho Juliana Braga e Nilva Luz Marta Raquel Colabone Andréa Araújo Nogueira Hélcio Magalhães

Sesc Pinheiros Cristina Riscalla Madi Adjunto Denise Lacroix Rosenkjar Assistentes Adriana Iervolino, Cristiane Ferrari, Cristina Tobias, Claudio Hessel, Fabiano Oliveira, Luciano Amadei e Ricardo Paschoal

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Questionário de Avaliação

Boitempo Editorial Coordenação Geral Editora Assistente Produção Editorial Gerência Comercial

Projeto Revoluções Coordenação Geral, conteúdo Concepção Projeto Gráfico Revisão

Ivana Jinkings Bibiana Leme Ana Lotufo Ivam Oliveira

Moara Rossetto Passoni Henrique P. Xavier Henrique P. Xavier Tacoa Arquitetos Associados Sandra Regina de Souza

Curso Coordenação Douglas F. Barros Silvio Carneiro Edição Coordenação Programação

Site Fabio Cirino Walter Hupsel André Escudero

Curadoria Curadora Assistente Produção Executiva Projeto Gráfico e Museográfico Pesquisa e Produção de Imagens

Exposição Henrique P. Xavier Moara Rossetto Passoni Sérgio Escamilla Tacoa Arquitetos Associados Sandra Pandeló Gustavo Assano

Favor preencher, destacar e entregar no credenciamento. Sua opinião é muito importante para aperfeiçoarmos nossos serviços. Não é necessário identificar-se. Por qual meio soube do curso? E-mail Internet Site do SESC Site do ITS BRASIL, do Curso de Mediação de Conflitos ou da Tecnologia Assistiva Site da Boitempo Site do Projeto Revoluções Universidades Imprensa Material Impresso de divulgação

Apoio Cultural Diretora do Departamento Cultural Dep. Cultural , Cinema, Artes Visuais Dep. Cultural , Seminários, Teatro, Música

Outro

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ótimo

bom

regular

ruim

Divulgação Estacionamento

Instituto Goethe Dra. Jana Binder Simone Molitor Eduardo Simões

Apoio Tecnológico E-Open Gerente de TI André Escudero Programador PHP Glauber Fiametti Cardoso Programador de interface web Luiz Aleagi

Atendimento Material Instalações Palestrantes Horários programados foram cumpridos? Organização geral do evento

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Sobre os conteúdos apresentados 05 de abril Revoluções e Seus Direitos Prof. Costas Douzinas Alysson Mascaro 06 de abril Direitos e Desejos Prof. Costas Douzinas Profa. Olgária Matos 07 de abril Direitos Humanos e Educação Prof. Costas Douzinas Prof. José Sérgio F. Carvalho 08 de abril Direitos Humanos: imaginário, futuro e utopia Prof. Costas Douzinas Deputad0 Paulo Teixeira Durante o curso, houve possibilidade de refletir sobre a correspondência entre Revoluções e Direitos Humanos? Os debates apresentados em cada dia contribuíram significativamente para a reflexão sobre o assunto? As questões apresentadas e a forma como foram conduzidas corresponderam às suas expectativas?

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