EDUCAR EM CASA: GARANTIA DO DIREITO À EDUCAÇÃO PARA UMA SOCIEDADE DEMOCRÁTICA?

June 2, 2017 | Autor: S. Fernández | Categoria: Cidadania, Direito à educação, pactos de escolarização, educação em casa
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EDUCAR EM CASA: GARANTIA DO DIREITO À EDUCAÇÃO PARA UMA SOCIEDADE DEMOCRÁTICA? Silvina Julia Fernández (UFF-UFRJ)

Resumo. O processo de institucionalização da escola moderna assenta-se, em parte, no estabelecimento de um pacto, como dispositivo de aliança, entre professores e famílias relativo às competências, alcances e prerrogativas de cada parte em função da escolarização das crianças, que se insere dentro da narrativa do contrato social em que se funda a obrigação política moderna. Em se tratando da formação dos cidadãos, esses pactos contribuem na definição dos sujeitos pedagógicos e da sua projeção social, referenciando os sujeitos sociais e políticos que animam. Atualmente, os pactos de escolarização parecem estar em crise. Neste trabalho, focalizo em um grupo de famílias brasileiras que optou por retirar as crianças da escola para educá-las em casa, sendo condenadas por “abandono intelectual”, segundo o Estatuto da Criança e do Adolescente. Nesses casos, evidencia-se que a rejeição da escolarização se dá a partir de argumentos neoconservadores. Nas antípodas do argumento illichista, os defensores do denominado homescholling buscam enfatizar o controle moral sobre as crianças, questionando a falta de capacidade de sujeição moral que, hoje, a escola estaria oferecendo. Esses “defeitos” da educação escolar tentam ser resolvidos a partir de uma ênfase na individualização e no controle moral na formação dos sujeitos, pois a retirada do aluno da escola não prevê uma reinserção do sujeito em outros espaços públicos ou noutras tramas de aprendizagem social para além do espaço doméstico e seus circuitos próximos de socialização, como as igrejas. Busca, pelo contrário, o retorno a uma comunidade “anterior” ao espaço público, afetando o direito dessas crianças a serem educadas no convívio social, levando à desintegração da cidadania, separando os indivíduos dos espaços públicos e da preocupação dos problemas sociais mais abrangentes, que deixam de serem considerados problemas comuns.

Palavras-chave: direito à educação, cidadania, pactos de escolarização, educação em casa.

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EDUCAR EM CASA: GARANTIA DO DIREITO À EDUCAÇÃO PARA UMA SOCIEDADE DEMOCRÁTICA? Silvina Julia Fernández (UFF-UFRJ)i

Introdução.

Este trabalho apresenta algumas reflexões parciais surgidas da pesquisa de doutorado denominada “Gestão escolar e cidadania: memórias, diálogos e encruzilhadas nas relações famílias-escolas” (2011). A pesquisa estuda o cotidiano da gestão escolar no que se refere aos processos de democratização escolar e do exercício da cidadania nas relações entre as famílias e as escolas. Neste artigo, a partir da problematização dos “pactos de escolarização” evidenciados no cotidiano escolar de uma escola pública de ensino fundamental situada na Zona Sul da cidade do Rio de Janeiro, busco entender os fundamentos que embasam o entendimento de uma das famílias estudadas, entre outras, com relação a esses “pactos de escolarização”. A abordagem destes fundamentos permite redimensionar as ações e decisões micropolíticas destes sujeitos particulares, identificadas ao interior da dinâmica institucional, em função das dinâmicas macropolíticas e sociais, que explicam compreensivamente as escolhas e argumentos apresentados no cotidiano das relações famílias-escolas. A pesquisa em função de desvendar estes fundamentos levou-me a aprofundar a análise focalizando em um grupo de famílias brasileiras que, efetivamente e concretizando essa tendência apontada no cotidiano escolar estudado, optou por retirar as crianças da escola para educá-las em casa. Essa ação e seus fundamentos, no entanto, trazem também uma importante pergunta: educar em casa implica na garantia do direito à educação para uma sociedade democrática?

Desescolarizar, mas em função de que sujeitos sociais?

A pedagogia, como disciplina que surgiu buscando regular o campo educacional, tem sido uma fonte incansável destes argumentos, dada a necessidade de demarcar/criar seu território disciplinar. Como destaca Narodowsky (Ibidem, 64):

2 deixar a educação escolar a cargo de um especialista implica a renovada referência à ordem arrancando-se a atividade educadora da boa ou má vontade paterna; a universalidade necessita de mecanismos suprafamiliares para realizar-se (...) Já não é suficiente a ação do pai para educar corretamente os filhos: agora são os especialistas que, com métodos racionais, deverão atuar ordenada e eficientemente sobre a infância .

Como o mesmo autor destaca (Ibidem, 65), esses processos exigem um “dispositivo de aliança entre os adultos em questão: os pais e os professores”. Dispositivo que transfere autoridade e algumas das “tarefas” que “naturalmente” correspondiam às famílias para os especialistas, demarcando assim espaços e ações diferentes para instituições diferentes. No meu entendimento, nesse dispositivo estabelece-se um pacto entre as partes, relativo às competências, alcances e prerrogativas de cada uma delas em função da escolarização das crianças. Pactos de escolarização, mais ou menos explícitos, que se inserem dentro de uma narrativa maior, como é o contrato social, em que se funda a obrigação política moderna. Em se tratando da formação dos cidadãos, não podia ser para menos já que esses pactos contribuem na definição dos sujeitos pedagógicos e da sua projeção social, no sentido da sua referência aos sujeitos sociais e políticos que animam. Ao mesmo tempo, essa referência e inserção no contrato social contribuem para outorgar aos pactos de escolarização uma complexidade inerente à tensão que se gera entre regulação e emancipação social, representada na polarização entre “vontade individual” e “vontade geral”, entre o interesse particular e o bem comum. Deste modo, vale a pena considerar que A lógica operativa do contrato social está, assim, em permanente tensão com a sua lógica de legitimação. As possibilidades imensas do contrato coexistem com a sua inerente fragilidade. Em cada momento ou corte sincrônico, a contratualização é simultaneamente abrangente e rígida. Diacronicamente, é um campo de lutas sobre os critérios e os termos da exclusão e da inclusão que pelos seus resultados vão refazendo os termos do contrato. (SANTOS, 1999: 85)

Talvez seja por essa mesma lógica operativa, que, a julgar pelas falas de professores da escola estudada, assim como pela queixa de muitos pais e mães de que já não se pode confiar em que a escola “ensine alguma coisa”, esse dispositivo e os pactos de escolarização resultantes também parecem em crise. Os argumentos de pais e mães são diversos, no entanto, alguns chegam a admitir que o único motivo pelo que seus filhos freqüentam a escola é evitar a punição legal. Neste sentido, uma das mães que participou da pesquisa chegou a comentar, informalmente, que o seu marido, se a lei não lhe impedisse, tiraria a filha da escola por discordar pelo que moralmente

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a mesma estava oferecendo. Segundo ele, em casa, a mãe poderia garantir uma melhor educação moral, dentro dos ideais evangélicos que ele prega como pastor. O posicionamento deste pai não é isolado. A tensão que se manifesta em torno dos pactos resultantes dos dispositivos de escolarização tem chegado, no Brasil, a situações mais extremas. Refiro-me em especial, entre outros, ao caso de dois irmãos mineiros, de 15 e 14 anos, cujos pais decidiram educá-los em casa, assim como outros pais, acreditando que desta forma poderiam aprender melhor do que na escola. Eles foram processados por “abandono intelectual”, segundo o Estatuto da Criança e do Adolescente, e condenados por esse crime a pagar multa simbólica. Cabe salientar aqui, assim mesmo, que este não é o único caso do que vem se denominando homescholing, palavra inglesa importada dos Estados Unidos de Norte América, onde têm maior quantidade de adeptos do que no Brasil, já que essa prática encontra-se permitida pela legislação estadunidense. No Brasil, pelo contrário, a legislação obriga as famílias a matricularem seus filhos e filhas nas escolas, resultando na articulação destes grupos em função de pressionar pelo “direito da família de escolher a educação dos seus filhos”, segundo as suas convicções, petição que chegou a ser examinada pelo Superior Tribunal de Justiça1. Como se evidencia nestas discussões e posicionamentos, a questão não passa apenas pelo conteúdo escolar-disciplinar, mas, antes de tudo, pelas experiências de socialização das crianças em espaços públicos como as escolas. No levantamento realizado, evidencia-se que a rejeição desta socialização, no caso das famílias brasileiras partidárias do homescholing, se dá a partir de argumentos neoconservadores, atendendo a que estes argumentos se baseiam nos conceitos de

“família, dever, autoridade, normas, tradicionalismo, auto-interesse,

individualismo competitivo e antiestatismo” (TORRES, 2001: 55).

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Venho seguindo esse caso desde 2008, quando assisti a matéria em um jornal televisivo. Consultando a internet achei mais informações no site http://insightpublicidade.wordpress.com/2008/09/11/pais-que-ensinamproprios-filhos-nao-serao-presos-diz-juiz/, acessado em junho de 2008, quando após avaliação dos conhecimentos das crianças pela Secretaria Estadual de Educação de Minas Gerais, parecia que o veredito do Juiz lhes seria favorável. Atualmente, o Juiz decidiu a sentença em contra dos pais, como foi publicado em http://www.correiodopovo-al.com.br/v2/article/BrasilMundo/11813/1/print/, notícia que se encontra no Anexo 1. Igualmente, para mais informações sobre o grupo que defende o homescholing no Brasil, sugiro acessar o blog: escolaemcasa.blogspot.com, cuja página web destaca a seguinte frase: “Dedicado a equipar famílias cristãs para a importante responsabilidade de dar a seus filhos uma educação escolar em casa dentro da ética cristã”. No entanto, no blog não se encontram sugestões ou informações a respeito dos conteúdos escolares, mas apenas artigos defendendo o ensino em casa e questionando a escolarização a partir dos conteúdos lecionados nas mesmas, como educação sexual. A última postagem deste blog encontra-se também no Anexo 1. Outros blogs e sites de organizações sociais também se alinham nesse sentido, sendo importante ressaltar que todas páginas web consultadas até agora têm uma argumentação moral e cristã evangélica que os sustenta.

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Argumentos profundamente distantes, por exemplo, dos levantados por Ivan Illich e o movimento anti-escolarista de década de 1970, que buscava desescolarizar a partir do suposto de que a escola capitalista contribuía para a reprodução das desigualdades sociais. Buscando garantir o acesso a diferentes recursos educacionais e tornar a aprendizagem disponível ao público de forma geral de maneira que todos tenham iguais oportunidades, este autor propunha uma educação garantida na convivência, na relação, no acesso e na compreensão do mundo real. Ingenuamente ou não, apostava na incorporação das novas tecnologias de informação e comunicação, pois poderiam oportunizar também a livre expressão. Na “teia de aprendizagens” que a sociedade livremente poderia ir articulando e facilitando para que todos tivessem acesso à cultura, à ciência e à tecnologia, a proposta illichista pregava a desinstitucionalização para acabar com o controle social, facilitando a congregação de pessoas com interesses mútuos. Para além das possíveis críticas, que não cabem neste momento, interessa destacar que o horizonte de Illich era igualitarista, anti-opressivo, contra o controle do desejo de aprendizagem, da curiosidade das pessoas. Nas antípodas do argumento illichista se localizam os defensores do homescholling atual, que buscam enfatizar o controle moral sobre as crianças, questionando a falta de capacidade de sujeição moral que a escola estaria oferecendo hoje em dia. Esses “defeitos” da educação escolar atual tentam ser resolvidos a partir de uma ênfase na individualização e do controle moral na formação dos sujeitos. A retirada do aluno da escola, neste caso, não prevê uma reinserção do sujeito em outros espaços públicos, ou noutras tramas de aprendizagem social para além do espaço doméstico e seus circuitos próximos de socialização, como as igrejas. Busca, pelo contrário, o retorno a uma comunidade “anterior” ao espaço público, onde o controle pode ser realizado pessoalmente, “cara a cara”, renegando da existência de uma sociabilidade para além do grupo específico. Uma consequência particular deste aspecto da individualização - quer dizer, da maior autonomia relativa dos indivíduos a respeito das estruturas coletivas de autoridade baseadas no poder do Estado -, para a que chamam a atenção vários autores, é a corrosão e a lenta desintegração da cidadania. A individualização busca gerar as próprias condições institucionais, separando os indivíduos dos espaços públicos e da preocupação dos problemas sociais mais abrangentes, que deixam de ser considerados problemas comuns. Nesse sentido, para Zygmunt Bauman, o espaço público tende a ser preenchido pelas preocupações dos indivíduos enquanto tais, que reclamam a sua legitimidade exclusiva para ocupar esse espaço e expulsam do discurso público qualquer outra preocupação. O “público”

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é colonizado pelo “privado” e, em conseqüência, “As questões públicas que resistem a essa redução tornam-se incompreensíveis” (BAUMAN, 2001:46). Em função disso, talvez seja possível entender por que se o interesse privado pela moralização das crianças em função dos padrões morais de um grupo específico não se encontra ressaltado pela escola, a tendência tenha sido buscar uma articulação com outros indivíduos com os mesmos interesses particulares em função de exigir o atendimento apenas às suas demandas. Este movimento, no entanto, impede, ao mesmo tempo, “a possibilidade de seguir a pista dos vínculos que conectam o destino individual às formas e aos meios pelos quais a sociedade como um todo opera” (Ibidem, 17). Impedimento que facilita a retirada do sujeito dos espaços públicos e seu conseqüente refúgio no espaço doméstico ou em um espaço comunitário que não pretende dialogar publicamente – nem ensinar às crianças a fazêlo – com outros grupos, com opiniões, preferências e referenciais diferentes. No entanto, para além destes casos em que se coloca uma ruptura explícita na instalação do dispositivo de escolarização aqui analisado, cabe perguntar: em que situação se encontra hoje esse “dispositivo de aliança” que, como parte do contrato social, parece não estar produzindo os efeitos desejados com relação ao mantimento das regras de jogo institucionais e à regulação dos seus conflitos? Ou será que esse “pacto”, como ficção organizacional, perante as mudanças sociais mais recentes, vem mudando também seus sujeitos e, com eles, os conteúdos dos que se deveria tratar talvez mais abertamente? Quais estão sendo as referências mútuas, implícitas ou não, destes sujeitos para provocar tantas críticas com relação à distância entre o esperado e o conseguido na relação entre as famílias e as escolas concretas? Isto, atendendo a que,

Os sujeitos sociais e a ação política apresentam, agora, maior complexidade, confrontando paradigmas que orientaram, até há pouco tempo, os projetos de transformação social. Estes sujeitos propõem novos híbridos institucionais, atuam em várias escalas, exigem a releitura do Estado, defendem diferentes sentidos de nação, rejuvenescem tradições e impedem a sua completa absorção em instituições da modernidade (RIBEIRO, 2005: 268)

É nesse horizonte social e político que se configura o desencanto com a utopia democrática e com o princípio da democratização escolar.

Princípios como os de

representatividade, participação e controle cidadão, entre outros, que supõem a existência de um “cidadão”, não raramente se desencontram nas encruzilhadas geradas perante a pluralidade de sujeitos “comuns” que frequentam as escolas públicas brasileiras.

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Nesse horizonte volta a se articular a discussão da problemática aqui abordada com os processos de subjetivação e de elaboração das noções de democracia e cidadania nas suas dimensões pessoais e coletivas, ressaltando os projetos sociais que, nesse sentido, foram configurando-se na história latino-americana das últimas décadas. Projetos que têm oferecido sustento ideológico às ações cotidianas dos sujeitos, gerando situações cotidianas que colocam em evidência as diferenças geracionais, de classe, de raça, de gênero, entre outras, recolocando a discussão a respeito das possibilidades e dificuldades do exercício da cidadania na escola pública.

Educação e cidadania para uma sociedade democrática: e a escola?

Enquanto buscava alguma forma de concluir a minha pesquisa de doutorado - o que me resultou extremamente difícil, pois as perguntas que a motivaram à medida que procurava resolvê-las ganhavam outras dimensões e perspectivas -, aproveitei para entrar na internet e ler as notícias. Em um dos portais, procurando as últimas informações sobre educação, deparei-me casualmente com uma nota referida àquela família de Minas Gerais que mantém seus dois filhos fora da escola e os educa em casa. Quase um ano após terem sido condenados pela Justiça por tirar os filhos da escola, Cleber de Andrade Nunes e sua esposa, Bernardeth Amorim Nunes, continuam a mantê-los estudando em casa. A notícia apontava que esse casal saiu em defesa de outros pais, que moram no interior paulista e que também educam as suas filhas exclusivamente em casa, enfrentando problemas similares com a Justiça. Nesta ocasião, no entanto, Cleber aproveitou para divulgar a criação da Aliança Nacional para Proteção à Liberdade de Instruir e Aprender (Anplia) que, segunda a nota, já soma cem casais 2 contra o que eles consideram uma “imposição do Estado”: a obrigatoriedade de enviar os filhos e filhas à escola. As reflexões a respeito da situação dos “pactos de escolarização” não demoraram em voltar a aparecer, ao mesmo tempo em que me perguntava novamente por essa “imposição do Estado”, a qual, o mesmo tempo em que se coloca como um dever busca também ser a garantia do direito à educação de todos os cidadãos e cidadãs. Na mesma página web, todavia, chamou a minha atenção uma outra notícia, baseada em um levantamento realizado em novembro de 2010 durante a aplicação da Prova São 2

http://g1.globo.com/vestibular-e-educacao/noticia/2011/02/condenado-pela-justica-casal-de-mg-mantem filhos-fora-da-escola.html

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Paulo, com cerca de 250 mil pais e 243 mil alunos. A notícia informa que apenas 32% das escolas municipais de São Paulo passam lição de casa para os/as estudantes todo dia. E junto com esse dado, a notícia destaca as palavras do atual Secretário Municipal de Educação dessa cidade quando diz: "O recado é que os pais querem mais lição de casa"3. Alguns poderiam se perguntar: “o que querem, então, as famílias?”, buscando uma resposta homogênea a essa pergunta ou, talvez, procurando com isso a demonstração de que “a família atual” se encontra em tal crise que não é capaz, sequer, de saber o que deseja para a educação dos seus filhos e filhas. Buscar respostas homogêneas, no entanto, pode oferecer, mais uma vez, aparentes soluções eficazes, baseadas em generalizações que tendem a padronizar a oferta educacional em função de um suposto “bem comum”. Mas, ao mesmo tempo, essas mesmas respostas planas voltam a operar em função do ocultamento das diferenças e do silenciamento das vozes dos múltiplos sujeitos da educação. Nesse sentido, detive-me mais um pouco sobre essas notícias e percebi que as duas famílias defensoras do ensino em casa estão compostas por adultos que foram escolarizados e que chegaram a cursar a universidade. Um dos pais, inclusive, é professor universitário. Aliás, ambas as famílias contam com recursos econômicos suficientes para, caso os adultos ou os meios disponíveis para o estudo dos filhos e filhas em casa não deem conta do aprofundamento pretendido, contratar professores particulares ou cursos específicos. Do outro lado, milhares de famílias cujos filhos e filhas estudam na rede pública municipal paulista não pensam em tirar os filhos e filhas da escola, ao contrário: essas famílias pedem mais escola; pedem, inclusive, um prolongamento dela para dentro do espaçotempo familiar: querem dever de casa. Pedido que me fez lembrar a uma outra mãe entrevistada ao longo da pesquisa, quando realiza uma demanda similar: M – E com relação à escola mesmo, eu sei que os pais nem sempre têm tempo, né? Mas eu acho que se houvesse mais uma contribuição da escola para que os pais se juntassem mais com os filhos e a escola... Porque mãe nem entende muito bem, a escola dá um dever de casa, vamos voltar ao dever de casa, dá um dever de casa e a criança já faz lá de tão pequenininho que é, não tem um trabalho que o pai ou a mãe participe ali junto com o filho, né? Mesmo que não vá na escola, que mandem pra casa e os pais participem daquele trabalho. A escola não contribui pra isso, porque ela dá um deverzinho bem pequenininho que a criança faz na hora do recreio só para chegar em casa e ficar livre, essa é a verdade. E chega em casa: “Vamos fazer o dever de casa?”, “Não, fiz na escola”. Então, não há dever de casa, é dever de escola, então os pais não têm.... Ele já fez mesmo, acabou, não tem 3

http://g1.globo.com/sao-paulo/noticia/2011/03/32-das-escolas-municipais-de-sp-passam-licao-todo-dia-dizpesquisa.html

8 mais nada pra fazer, então falta também um pouco a contribuição da escola para a gente interagir com a criança. S – Ah! Entendi, então para você a contribuição da escola tem a ver com que a escola ofereça oportunidades para os pais estarem juntos com os filhos em função da escola, em função de alguma coisa que tenha a ver com a questão da escola. M – Escola e família, né?

Ela, como mãe, está pedindo o mesmo que uma das professores daquela escola assinalava quando refletia sobre a sua situação como docente, sobre aquilo do que hoje sente falta na escola, como ela diz: É a questão da liderança, da escola fazer seu papel. Mas, qual é o papel da escola? Do ponto de vista de quem? Se a resposta é reafirmar que a escola tem como função “a formação de cidadãos”, contrapondo esta afirmativa, em especial, àqueles que insistem em que a escola deve priorizar a formação da mão de obra que a sociedade de mercado emergente estaria precisando -, ainda assim cabe nos perguntarmos: que “cidadão” é esse? Preocupam-me, no entanto, os “lugares comuns” que essa formação cidadã não raramente assume em diferentes cotidianos escolares, evitando questionar os projetos sóciopolíticos de referência da ação pedagógica. Questionamentos que, apesar de tudo, insistem em irromper nesses mesmos cotidianos de diferentes formas. Seria interessante retomar a pergunta pelos sujeitos pedagógicos e, com eles, pelos sujeitos políticos e sociais que, implícita ou explicitamente, temos como referência quando agimos/pensamos educacionalmente. Pois, se “o cidadão” tem retornado ao centro da discussão social após a reabertura democrática, vinte anos depois desses processos sóciopolíticos, para a escola, a pergunta a respeito de quem é “ele” e quais são as consequências de suas respostas possíveis nas ações cotidianas, não raramente continua sem se pôr em discussão aberta e respeitosa entre os diversos sujeitos envolvidos. Pergunta fundamental já que, como “nos ensinou Paulo Freire, com sua epistemologia da curiosidade, sempre teremos necessidade de explorar as relações entre educação, política e poder, se quisermos realmente compreender os dilemas educacionais de nosso tempo e agir sobre eles” (TORRES, 1998: 250) As mudanças que vêm a acontecendo com relação ao Estado, assim como com a redefinição das fronteiras entre o público e o privado nas nossas sociedades, recolocam e redimensionam os diferentes sujeitos sociais, suas ingerências e responsabilidades na gestão do público e no uso dos recursos de poder (OSZLAK, 1997: 5), redefinindo, portanto, as figuras e referências da cidadania. Se, como assinala com Bauman (2001), o espaço público

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aparece hoje cada vez mais colonizado pelo privado e tende a ser preenchido pelas preocupações dos indivíduos enquanto tais, expulsando do discurso público qualquer outra preocupação, onde se situa, então, o exercício da cidadania? Se o que vale é o indivíduo, onde será possível encontrar o registro do desejo da igualdade que o espaço público requer? Essas são algumas das questões da “agenda” escolar, representando nela o “espaço problemático”, o conjunto de questões não resolvidas que afetam alguns grupos ou a totalidade dos mesmos e que, portanto, constituem o foco da ação coletiva. A vigência continuada dessas questões, quer dizer, a sua permanência insistente nessa agenda revela a existência de tensões sociais, de conflitos não resolvidos e de sujeitos mobilizados na busca de soluções que expressem seus interesses e valores particulares e, muito ocasionalmente, coletivos. Se há algo que fica em clara evidência ao nos debruçarmos na situação da escola aqui estudada, no entanto, é que apesar das tentativas que muitas vezes presenciamos no cotidiano escolar para evitar trazer essa “agenda” à discussão, suas contradições e tensões se manifestam insistentemente. Isto porque democracia e cidadania aparecem como encruzilhadas onde se encontram e se bifurcam, ao mesmo tempo, muitos outros assuntos e problemáticas, resultando difícil traduzir essas diferentes inflexões a um paradigma político ou institucional único ou, no pior dos casos, “padrão”. Ainda mais em sociedades capitalistas periféricas como as nossas, com seus consequentes problemas de produção de profundas desigualdades sociais historicamente configuradas pelas marcas da colonização. Levantar as questões, contradições e tensões que fazem parte dessas encruzilhadas nas escolas, implica interrogar a relação entre cidadania, democracia e Estado, sem se esquecer da longa história de conformação dessa relação. Ainda mais se considerarmos que

O que o termo democracia significa no mundo atual, no padrão mundial de poder colonial/moderno/capitalista/eurocêntrico, é um fenômeno concreto e específico: um sistema de negociação institucionalizada dos limites, das condições e das modalidades de exploração e de dominação, cuja figura institucional emblemática é a cidadania e cujo marco institucional é o moderno Estado-nação. (QUIJANO, 2002: 18)

Longe se encontram as coordenadas referenciais da democracia participativa que, como utopia, mobilizou grupos e gerações décadas atrás. Entre a utopia e a ideologia, o projeto de uma democracia representativa que mais se assemelha a uma democracia delegativa acabou procurando normatizar a compreensão do saber, do fazer e do poder em

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função de redefinir esse projeto visando - mais uma vez nestas latitudes -, uma suposta “modernização” possível, como presenciamos com maior ênfase da década de 1990 para cá. Nessa passagem, é claro, as meias-palavras ou aquelas com duplos sentidos passaram a circular e “fazer o jogo acontecer”, colocando em evidência as contradições e tensões situacionais. A democracia na escola buscou afirmar-se enfatizando uma visão que priorizou a versão representativa da mesma, embora a participação esteja incluída como um suposto correlativo que permaneceu atônico. Essa falta de tonicidade contribuiu para que, no cotidiano escolar, atravessado por diferentes projetos em disputa e no meio às urgências escolares cotidianas, a discussão necessária e profunda sobre o projeto político-pedagógico escolar se tornasse quase uma “missão impossível”. Desta forma, para além da maquinaria eleitoral e dos procedimentos padronizados que buscam controlar o cotidiano escolar, a questão do respeito pelos direitos fundamentais, como o próprio direito à participação, e a busca pelas formas de fazer a cidadania acontecer no cotidiano escolar, ainda continuam pendentes na “agenda” institucional - que, por mais que se tente, não pode ficar “engavetada”, assim como muitos supostos projetos políticopedagógicos o fazem. Nessas atuais coordenadas e entendimentos sobre a democracia no âmbito escolar, o deslocamento da participação do foco dos holofotes para uma duvidosa penumbra, invisibiliza os rostos dos/das sujeitos “participantes”. Muitas das vezes, o cumprimento de rituais escolares como a escolha de representantes, as comemorações e datas festivas ou a realização de reuniões, empurra “para depois” a possibilidade de a escola ouvir a quem efetivamente comparece aos chamados da instituição. A cidadania, instalada sobre o andaime não apenas de uma hipotética igualdade social, mas também de uma pretendida liberdade individual e de uma solidariedade social como expressão da racionalidade moderna (Ibidem: 18), supõe a livre participação individual no coletivo que faz ouvir a sua voz através do representante. No entanto, o critério de igualdade, a partir do qual se habilita à participação numa comunidade política depende, em primeiro lugar, dos graus de inclusão com que essa cidadania se define. O pertencimento a uma comunidade política é uma das condições primeiras da cidadania. Nas sociedades atuais, a inclusão numa comunidade política – e, portanto, no seu “contrato” - estaria definido pelo pertencimento a um Estado que, por sua vez, garantiria a inclusão nos sistemas de distribuição de bens e de reconhecimento de direitos, sendo esses, portanto, os primeiros bens a distribuir. Com efeito, hoje, uma das questões centrais com relação à cidadania consiste no

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estabelecimento dos critérios de inclusão/exclusão da comunidade política, que dependem das múltiplas relações que se estabelecem entre a sociedade e o Estado. O pertencimento ao Estado-nação em sociedades com tradições institucionais consolidadas garante a cidadania em diversos níveis de atuação e a experiência subjetiva correlativa a esse pertencimento é o sentimento de dignidade da pessoa e o reconhecimento dos direitos próprios e alheios. Porém, ao considerarmos a situação das sociedades latino-americanas torna-se necessário ponderar outras questões relacionadas a essas garantias e, portanto, à inclusão ou não dos diferentes sujeitos sociais na categoria de “cidadãos”. Nas nossas latitudes, para além de um reconhecimento formal da cidadania, em diversas ocasiões, é possível perceber “a exclusão dos/das que pertencem”, o que significa que muitos e muitas dos que são nominalmente cidadãos e cidadãs são efetivamente excluídos por diferentes circunstâncias. Isto porque a condição de excluído ou excluída supõe uma carência dos meios (expressivos, econômicos, sociais) necessários para a constituição da cidadania e da participação organizada no cenário político (TENTI FANFANI, 1993: 263). Nesse sentido, a perda dos supostos de integração econômica e social que sustentavam o ideal do Estado de Bem-Estar, retirou os requisitos básicos da dignidade material que permitiam a muitos, porém não a todos e todas, exercerem a cidadania. Os nossos países, que queriam construir cidadania, transformaram-se em países de clientes: clientes das empresas privatizadas, clientes da nova ordem econômica e clientes políticos, reeditando uma política personalista e demagógica que já tinha forte tradição na nossa região, por exemplo, na figura do coronelismo e outras formas similares de populismo. Embora a cidadania se constituísse apoiada num tripé de igualdade, liberdade e solidariedade que formaliza um sujeito a partir da racionalidade moderna, a pergunta pela mesma, portanto, não tem uma resposta formalmente única, mas diferentes matizes e graus de habilitação/desabilitação na ingerência do público para os/as diferentes sujeitos sociais. Não se trata de uma diferença puramente material, nas condições econômicas de vida, pois, a diferença é também simbólica, o que afeta profundamente a convivência nos espaços públicos, entre eles, as escolas. Convivências que se “pactuam” em inúmeras negociações e renegociações entre espaços públicos e privados a partir das tensões e questionamentos levantadas pelas diferenças entre os sujeitos. Assim acontece, também, em torno dos pactos de escolarização, pois estes manifestam os diversos projetos político-pedagógicos – e, portanto, sócio-políticos - em pugna que tem a escola como âmbito de disputa. Um desses projetos é aquele que tem procurado democratizar a escola nas nossas sociedades latino-americanas já faz mais de duas décadas. Porém, se é possível concordar,

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ainda que com profunda resignação, que a democracia atual não pode acabar completamente com as desigualdades, poder-se-ia aceitar, no entanto, que a coexistência com ela é inevitável, obrigando-nos a insistir com a pergunta acerca do limite de desigualdade social que a convivência democrática é capaz de tolerar. Para falar a verdade, a democracia é cheia de defeitos, mas o autoritarismo é muito pior! Infelizmente, essa democracia atual convive com as desigualdades, com a desigualdade política que ela mesma gera pela assimétrica distribuição do poder político, com as desigualdades econômicas que não consegue corrigir, procedentes da lógica de funcionamento do capitalismo, e com outras desigualdades, como a que considera as mulheres – presença familiar quase unânime nas escolas -, preferencialmente, “cidadãs de ação restrita”. Desta forma, apesar de tudo o que foi possível conquistar – e exercer o direito ao voto, não é pouco -, a noção moderna de cidadania parece estar mostrando seus limites. Assim como não conseguimos instaurar uma democracia substantiva, tampouco alcançamos uma cidadania plena, embora seja importante salientar que essas realizações sociais são processos intermináveis de reconstruções de projetos e sentidos em função tanto da democracia quanto da cidadania. No atual regime de governo, portanto, permanecem e perseveram as desigualdades, na medida em que vão também se incrementando os processos de diferenciação e fragmentação social, alguns de profunda individualização e privatização, como as ações aqui focalizadas, referidas aos entendimentos de algumas famílias e sua preferência a uma educação exclusivamente “em casa”. A questão, portanto, sobre a que seria importante refletirmos e agirmos em função de garantir o direito a uma educação para uma sociedade democrática para todos e todas, aponta a que, enquanto a democracia atual - inclusive a que não raramente se tem como referência nas escolas - aponta para uma democracia apenas eleitoral, concorrencial e delegativa, perdendo assim a densidade simbólica de uma “comunidade”, também as formas de convivência e de trato diário vão deixando de ser orientadas pelo reconhecimento mútuo, pelo compromisso e o respeito recíproco, pela confiança e a disposição para a cooperação. Assim, perante o isolamento que atualmente presenciamos de crianças e adolescentes no espaço doméstico – tendência exacerbada pelos mentores da “educação em casa”, a escola, como espaço público, ainda aparece como um espaço privilegiado para possibilitar uma discussão que envolva os diferentes sujeitos em função da construção coletiva de uma sociedade plural e democrática, baseada no respeito e no princípio da igualdade.

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Referências Bibliográficas.

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O presente trabalho foi realizado com o apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPQ – Brasil.

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