EFEITOS ADVERSOS

May 26, 2017 | Autor: Leandro Siqueira | Categoria: Michel Foucault, Psicanáliese E Psicologia Social, Saúde Mental, Psiquiatria, Sociedade De Controle
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REVISTA DE PSICOLOGIA - ESPECIAL

EFEITOS EFEITOS

ADVERSOS DEPOIS DAS NEUROSES É CADA VEZ MAIS DIFÍCIL SER NORMAL.

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Foto Divulgação: Flickr: amountaineer

E UMA PERSPECTIVA POLÍTICA, UM BOM PONTO DE PARTIDA PARA SE PENSAR OS EFEITOS DAS NEUROSES ESTÁ EM DAR-SE CONTA DE QUE ELAS NÃO SÃO ENTIDADES UNIVERSAIS, QUE SEMPRE EXISTIRAM E DEVERÃO EXISTIR PARA SEMPRE. ELAS TÊM HISTÓRIAS, COM SEUS COMEÇOS E SEUS FINAIS. EMBORA PARA A PSICANÁLISE ELAS SIGAM EXISTINDO, A PSIQUIATRIA JÁ LHES DEU UM FIM. O fim das neuroses foi acompanhado pela retomada do interesse da psiquiatria por conteúdos estritamente biológicos, que lhe ajudariam a se reaproximar da medicina, da qual foi acusada de ter se afastado após sua forte vinculação às teorias freudianas, em meados do século XX. Esta psiquiatria biológica, que aparece ainda no século XIX e atinge o seu apogeu nos anos 1990, se importará mais com a regulação das trocas de dopamina, serotonina e outros neurotransmissores no cérebro do

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que com aspectos familiares, sociais e psicológicos dos indivíduos, como fazia a psiquiatria dinâmica, fortemente influenciada pela psicanálise. Com seu aporte biologicista, esta psiquiatria não restringirá sua atuação apenas ao campo das chamadas psicopatologias e a estenderá ao atendimento de pacientes “normais”, que buscam o consultório para “melhorar” o seu comportamento, para otimizar sua saúde mental, inaugurando assim o que o psiquiatra Peter Krammer (1994) chamou de era da farmacologia cosmética. Porém, neste percurso que vai da doença à saúde mental, as neuroses desempenharam um importante, porém ingrato papel. Foram elas que, colateralmente, abriram as portas para que os psiquiatras saíssem do manicômio. Foram elas que permitiram ao psiquiatra se instalar em consultórios, além dos muros do manicômio. Como recompensa à colaboração prestada, as neuroses foram banidas pela psiquiatria para o temido reino das verdades não científicas.

COMEÇOS Uma história das neuroses teve início no século XVIII, quando o médico escocês Willian Cullen passou a designar por este termo um conjunto de

problemas relacionados à sensibilidade e à motricidade sem a presença de febre, inflamação, lesões nos órgãos ou qualquer outra alteração morfológica visível. Eram, portanto, denominadas neuroses todas as doenças às quais a medicina anatomopatológica da época não conseguia atribuir nenhuma causa orgânica. Também foi no século XVIII que emergiu a psiquiatria. Como evidencia o filósofo Michel Foucault (2002), a psiquiatria não nasceu primeiramente como uma especialidade da medicina, mas como uma prática ligada à proteção social, deixada sob o cuidado de médicos. Introduzida na França pelo alienista Philippe Pinel, no século XIX, a noção de neurose foi amplamente difundida pelo neurologista Jean-Martin Charcot no país e em toda Europa. Charcot definia a neurose como um desequilíbrio psíquico que, ao contrário da psicose, não implicava em delírios, alucinações ou perda de contato com a realidade. Alunos de Charcot, Pierre Janet e Sigmund Freud seguiram com o estudo das neuroses. Com o primeiro, a neurose transformou-se em uma doença da personalidade, marcada por conflitos psíquicos perturbadores da conduta social. Para Freud, a neurose é um dos elementos da estrutura tripartite de seu pensamento, ao lado da psicose e da perversão. O termo foi empregado pelo criador da psicanálise para designar uma doença nervosa cujos sintomas

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“Por meio da conceitualização das neuroses, Freud abriu um novo flanco para a atuação da psiquiatria. Enquanto o seu contemporâneo, Emil Kraepelin cuidava da “psiquiatria pesada”, das psicoses e manicômios.”

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DSM, CID E ATUALIDADE Não demoraria para que as neuroses delimitassem um espaço próprio entre os saberes e práticas psiquiátricos, marcado pela sua introdução no Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders, DSM na sigla em inglês), publicado pela American Psychiatric Association (APA). Retomar uma história das neuroses é recontar o apogeu e o declínio da psicanálise como principal articuladora de um tipo de psiquiatria que ligava os problemas mentais a experiências vividas e, no limite, não via problemas em abandonar a prática asilar de controle social, como ficou evidente em iniciativas ligadas aos movimentos antimanicomiais

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“O DSM surgiu para a APA contrapor-se à Organização Mundial de Saúde (OMS) que havia lançado em 1948 a sexta revisão da sua Classificação Internacional de Doenças (CID), a primeira a incorporar doenças mentais.”

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simbolizam um conflito psíquico recalcado, de origem infantil, por isso intimamente relacionada à história do indivíduo e sua forma pessoal de lidar com os seus problemas (ROUDINESCO, 1998). Por meio da conceitualização das neuroses, Freud abriu um novo flanco para a atuação da psiquiatria. Enquanto o seu contemporâneo, Emil Kraepelin cuidava da “psiquiatria pesada”, das psicoses e manicômios, das doenças mentais que deixavam observáveis marcas sobre o corpo na forma de lesões e outras alterações morfológicas nos órgãos; Freud atuou na “psiquiatria leve” das neuroses e consultórios, as “doenças dos nervos” que não deixavam registros orgânicos e permitiram a instalação de lucrativas clínicas privadas para o tratamento mental. Ao misturar prática asilar com filantropia, a psiquiatria queria mesmo fazer do mundo um grande hospício. O confinamento de pessoas em manicômios tornou-se cada vez mais recorrente até meados do século XX, quando a invenção dos psicofármacos, a lobotomia e a psicanálise colaboraram para esvaziar as instituições manicomiais (PIGNARRE, 2007). Este dado pode ser confirmado por registros de países como os Estados Unidos e a França. Nos Estados Unidos, por exemplo, em 1860, havia 8,5 mil internados em manicômios. Quase um século depois, esse total chegou a 560 mil internos (SHORTER, 2001). Em um primeiro momento, as chamadas doenças dos nervos funcionaram como uma resistência à psiquiatria praticada em manicômios. No século XIX, as famílias com mais posses preferiam, no lugar de confinar seus entes em hospícios, tratá-los nas muitas estâncias hidrotermais para “doenças de nervos”, que haviam sido inauguradas na Europa. Não era apenas uma questão humanitária, pois ter uma pessoa com doença mental no círculo próximo era um estigma que recaía sobre toda a família, já que à época os problemas mentais eram tratados como degenerações hereditárias.

e antipsiquiátricos de meados do século XX. Traçar uma história das neuroses ainda permite recuperar o momento em que houve o deslocamento da Europa para os Estados Unidos como o principal centro produtor de saberes sobre o mental. Em relação a esta mudança, que implicou em mais do que uma alteração de continentes, o psiquiatra e historiador da disciplina Henri Ellenberger costumava dizer: “Na Europa, as pessoas vão ao psiquiatra por causa de um sintoma, na América por causa de um problema”. O DSM surgiu para a APA contrapor-se à Organização Mundial de Saúde (OMS) que havia lançado em 1948 a sexta revisão da sua Classificação Internacional de Doenças (CID), a primeira a incorporar doenças mentais. A APA não queria deixar a OMS ser a única referência sobre classificação de doenças mentais. Sua primeira edição, de 1952, trazia uma ligeira referência à psicanálise com a utilização de termos como “neurose”, “mecanismo de defesa” e “conflito

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possui no mínimo 15 novos diagnósticos, além dos que se encontravam na edição anterior. Boa parte das novas categorias diagnósticas incluídas ao longo das edições do DSM é de transtornos ligados aos mais comuns sentimentos, emoções, hábitos e comportamentos. Este movimento configura um crescente processo de “psiquiatrização” do cotidiano, ou seja, a psiquiatria passou a incluir entre as suas classificações questões que anteriormente não pertenciam ao campo psiquiátrico. Foi assim que os medos passaram a ser diagnosticados como transtornos fóbicos; as tristezas, como depressões;

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neurótico”. Nessa época, a psiquiatria estadunidense era orientada pelo pensamento biopsicossocial de Adolf Meyer, que compreendia a doença mental como um tipo de reação do ser humano ao meio ambiente. A publicação do DSM II, em 1968, sinalizou justamente o aumento da influência da psicanálise nos Estados Unidos. O manual da APA passou então a privilegiar a psicanálise freudiana, contendo uma presença maior da nomenclatura de origem psicanalítica e uma forte ênfase nos aspectos da personalidade individual para a compreensão do sofrimento psíquico. Desta forma, se no DSM I constava a “psiconeurose” denominada “Reação Depressiva”, no DSM II esta categoria passou a ser chamada de “Neurose Depressiva”, dentro da seção “Neuroses”. A segunda edição do DSM foi alvo de diversas críticas. Internamente à psiquiatria e à medicina, o manual da APA foi acusado de não oferecer categorias válidas e confiáveis para o diagnóstico clínico, uma direta ofensiva contra a hegemonia do pensamento psicanalítico na psiquiatria. Em relação à sociedade, a psiquiatria era acusada de praticar verdadeiros sequestros e excluir os doentes mentais por confiná-los em instituições nas quais sofriam torturas e outras formas de violência. A elaboração do DSM III, lançado em 1980, veio responder a estas críticas internas e externas. Entregue aos cuidados de psiquiatras biológicos, a APA procurou enfatizar que havia produzido um manual de diagnóstico “científico” e “ateórico”, embasado em “provas e investigações”, que não organizava mais as doenças mentais segundo suas etiologias, como faziam até então as edições do manual, mas pelos sintomas observáveis na clínica. Nesta busca da psiquiatria por objetividade, imparcialidade e cientificidade, todos os problemas mentais do DSM passaram a ser denominados transtornos (disorder, em inglês). A equipe responsável pela nova edição queria varrer as neuroses do manual. Todavia, uma negociação entre os psiquiatras biológicos e aqueles que defendiam a teoria psicanalítica chegou a uma solução: os transtornos que na edição anterior eram apresentados como neuroses, agora no DSM III viriam com o seu antigo nome de neurose entre parêntese após a nova nomenclatura. Na publicação, por exemplo, o chamado “Dysthymic disorder” (“distimia”, em português) veio sucedido por seu antigo nome entre parênteses “or Depressive neurosis” (“ou neurose depressiva”, em português). No DSM IV, o termo e qualquer referência às neuroses foram completamente abolidos do manual. Nos últimos 62 anos, a cada revisão ou nova edição do manual da APA, pode-se observar uma progressiva ampliação do número de categorias diagnósticas. O DSM I começou com 106 categorias e o DSM II trouxe 182. No DSM III, elas totalizavam 256. A quarta edição do DSM era composta por 297 categorias diagnósticas. O DSM 5, lançado em 2013,

“Nesta busca da psiquiatria por objetividade, imparcialidade e cientificidade, todos os problemas mentais do DSM passaram a ser denominados transtornos (disorder, em inglês).”

Foto Divulgação: Flickr: Jack Mallon

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“Hoje, todos podem ser alvo de diferentes intervenções, não apenas os “anormais”. Se, antes, o governo da psiquiatria estava restrito aos doentes mentais confinados em manicômios, agora são os normais que procuram os cuidados psi para muitas vezes resolver problemas de adaptação a condições de vida.”

as angústias e dificuldades de enfrentar desafios em transtornos de ansiedade; os comportamentos excessivos e repetitivos em transtorno obsessivo compulsivo ou transtornos do impulso; o baixo rendimento escolar de crianças em transtorno de déficit de atenção. A lista é grande, mesmo sem ser relembrada a grande quantidade de transtornos que aguardam para entrar oficialmente no DSM como, por exemplo, as chamadas “dependências comportamentais”, as quais incluem as compras compulsivas, os adictos por exercícios ou por Internet. Este último, por sinal, já conta com uma proposta de critério diagnóstico publicada no DSM 5, mas que ainda precisa de mais estudos para ser validada.

MAIS DO QUE “NORMAL” O mais interessante a ser observado neste movimento de psiquiatrização do cotidiano, iniciado com o advento das neuroses e expandido com a psiquiatria biológica, é que agora com o seu discurso pautado no “cerebral”, a psiquiatria tem sido capaz de atrair cada vez mais indivíduos que buscam otimizar seus desempenhos, aprimorar suas performances e conquistar mais qualidade de vida, expressões que se tornaram verdadeiros mantras na era da saúde mental. Um ingrediente imprescindível para a maior presença da psiquiatria biológica no que há de mais cotidiano foi o grande desenvolvimento da psicofarmacologia ao longo do século passado. Além de tornar o psiquiatra um médico “de verdade” (daquele que define um diagnóstico e prescreve um medicamento), a psicofarmacologia ofereceu drogas

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que, até certo ponto, se mostram eficazes para administrar o comportamento e as emoções humanas, via controle dos fluxos de neurotransmissores cerebrais. Desta forma, ganha força uma utopia biologizante do humano, segundo a qual tudo pode ser controlado, regulado e melhorado por meio de medicamentos ou mesmo de terapias, como as congnitivo-comportamentais. Estas transformações na psiquiatria mostram que o “normal” tornou-se mais uma população a ser psiquiatrizada, ou seja, governado por saberes e práticas da psiquiatria. Acabou a distinção entre “anormal” e “normal”. Hoje, todos podem ser alvo de diferentes intervenções, não apenas os “anormais”. Se, antes, o governo da psiquiatria estava restrito aos doentes mentais confinados em manicômios, agora são os normais que procuram os cuidados psi para muitas vezes resolver problemas de adaptação a condições de vida que são extremamente competitivas, estressantes e extenuantes. Mesmo exaustos, os “normais” não se cansam de atender às contemporâneas demandas do neoliberalismo que investe na produção de subjetividades que buscam incessantes aperfeiçoamentos e melhorias. Graças às neuroses e à psicanálise, não estamos mais confinados. Porém, nunca deu tanto trabalho ser normal. * Leandro Siqueira é doutorando no Programa de Estudos PósGraduados em Ciências Sociais da PUC-SP, e formado em Ciências Sociais, pela USP, e em Comunicação Social, pela PUC-SP. É pesquisador no Núcleo de Sociabilidade Libertária (www.nu-sol. org) e no Projeto Temático Fapesp Ecopolítica (http://www.pucsp. br/ecopolitica).

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